Num inventário realizado em Portugal para partilha subsequente ao divórcio que correu termos em Portugal, não devem ser excluídos da relacionação bens situados no estrangeiro apenas com a alegação da possibilidade de conflito de jurisdições ou de falta de reconhecimento no estrangeiro da sentença que vier a ser proferida. (da responsabilidade do Relator)
Inventário para partilha subsequente a divórcio 991/10.3TBTVD - 1º juízo do TJ de Torres Vedras Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados: 1. Nos autos supra identificados procede-se à partilha de bens de um casal, em consequência de divórcio. 2. A cabeça-de-casal, que é uma dos dois únicos interessados, relacionou, como bens comuns do ex-casal, dois imóveis existentes no Estado da Virgínia dos EUA. 3. O outro interessado, seu ex-cônjuge, reclamou contra esta relacionação, dizendo que esses imóveis não eram bens comuns, antes bens próprios dele. O tribunal recorrido entendeu, seguindo no essencial o ac. do TRC de 13/05/2008 (380-B/1999.C1 que se debruça sobre um caso idêntico – todos os acórdãos citados abaixo sem outra referência, são-no, tal como este, através da base de dados do ITIJ) que os dois imóveis situados nos EUA não devem ser relacionados e isso porque, no essencial: “perante a inexistência de tratado ou convenção que assegure a eficácia da partilha efectuada nos tribunais portugueses de bens situados em país estrangeiro, a realização de tal partilha acarreta para os próprios interessados sério risco de verem inquinada a partilha desses bens – por não reconhecida pelo país estrangeiro qualquer validade à mesma – como, por virtude desse não reconhecimento e eventual necessidade de procederem a nova partilha no país em questão, resultarem sérios conflitos com o resultado da partilha dos restantes bens sitos em Portugal, na medida em que a partilha destes teria sido efectuada no pressuposto de que a partilha daqueles seria válida.”. A cabeça-de-casal recorre deste despacho, para que seja revogado e substituído por outro que aceite a relacionação daqueles dois imóveis. Conclui, em síntese, que (i) nenhuma disposição processual exclui a competência dos tribunais portugueses para a partilha dos bens situados no estrangeiro (arts. 61º, 65º/1a, 75º e 1404º/3, todos do Código de Processo Civil); (ii) a lei material aplicável é a lei portuguesa (arts. 52 e 53, ambos do Código Civil); (iii) a própria lei interna do Estado da Virgínia remete para o direito interno português, na situação dos autos, a competência para a partilha dos bens sitos naquele Estado, pelo que a partilha efectuada nestes autos terá eficácia nos EUA (arts. 18 e 20 do CC e §§ 20-96 e 20-107.3 do Código da Virgínia); (iv) destas regras resultaria aliás que o Código da Virgínia impediria mesmo que os seus tribunais efectuassem a partilha estando esta já pendente em Portugal, pelo que a competência dos nossos tribunais resultaria também da al. d) do art. 65 do CPC; (v) decisão contrária, a impor a partilha dos bens situados na Virgínia só depois do inventário em Portugal dos bens aqui situados, não permitiria alcançar uma partilha igualitária; e (vi) pelo menos devia ter-se em conta o valor dos bens nos EUA para o cálculo da quota parte de cada ex-cônjuge. O outro interessado contra-alegou, defendendo a improcedên-cia do recurso: (i) segue a fundamentação do despacho recorrido e do acórdão citado por este; (ii) aproveitando o alegado pela recorrente [que referia que o divórcio não foi instaurado por apenso, antes de forma autónoma], chama a atenção para que no caso o inventário corre autónomo [e o efeito prático disto seria a oposição à aplicação da regra da apensação do inventário ao processo de divórcio para efeitos de competência]; (iii) diz que a decisão recorrida não impede a recorrente de fazer valer o seu direito à partilha nos EUA; (iv) faz também referência ao art. 20 do CC e sugere que a lei aplicável devia ser a lei da sua (dele, recorrido) residência habitual… nos EUA; e (v) diz que os bens situados nos EUA são avaliados de forma diferente dos que estão em Portugal e que a partilha conjunta nunca poderia conduzir a um resultado justo. * Ainda no tribunal recorrido e já depois de admitido o recurso, foi levantada, num despacho judicial, a questão da origem do documento de que o cabeça-de-casal apresentou uma tradução (com as alegações do recurso). A cabeça-de-casal entretanto já tinha junto (no processo de inventário, não neste apenso) a tradução certificada da Lei do Estado da Virgínia (consultada na internet em 15/02/2011 como resulta do mesmo). O recorrido, notificado desta junção veio então dizer (também para o processo de inventário, não para este apenso) que a tradução não se encontrava autenticada nem certificada e que o documento não identificava cabalmente a que lei se refere, existindo sérias dúvidas – não diz quais – sobre a idoneidade do documento e da respectiva tradução, pelo que os impugna. A cabeça-de-casal, notificada daquele despacho judicial, veio esclarecer (em requerimento que enviou para o processo de inventário) que a lei em causa era o Código da Virgínia, disponibilizado no sítio da Virginia General Assembly na internet e explica como é que se pode aceder ao mesmo. Depois de tudo isto junto a este apenso, os autos foram finalmente remetidos a este tribunal de recurso. * Questão que cumpre solucionar: as inerentes à impugnação do documento e tradução; e a de saber se os dois imóveis situados nos EUA devem ou não ser relacionados neste inventário por divórcio. * Os factos a considerar são os que resultam dos três §§ iniciais do relatório que antecede. * A questão do documento O documento em causa como se verá melhor mais à frente, é um extracto do Código da Virgínia. Trata-se da impressão avulsa de um [extenso] parágrafo (20-107.3) desse Código. A tradução do mesmo não era, só por si, obrigatória, como decorre do art. 140º/1 do CPC. De qualquer modo, a recorrente juntou uma tradução certificada. O recorrido diz que existem sérias dúvidas sobre o documento e a tradução, mas não diz que dúvidas são essas, pelo que tal bastaria para não se ordenar a tradução do documento pela via prevista no nº. 2 do art. 140 do CPC. Por outro lado, é fácil conferir a idoneidade da tradução apresentada (a segunda – a que foi junta no início era uma tradução automática…), bastando confrontá-la com o original à medida da sua leitura, tanto mais que o recorrido tem também, segundo ele, nacionalidade americana (o que implica o conhecimento escrito e falado da língua inglesa). Quando à idoneidade do documento: a consulta da página da internet invocada pela recorrente não dá origem a quaisquer dúvidas sobre a autenticidade do Código em causa e do sítio da internet donde foi retirada: trata-se de uma página da própria Virginia General Assembly. De resto, pode-se aceder a esse sítio através do sítio do Virginia’s Judicial System http://www.courts.state.va.us/main.htm, outro quanto ao qual não se levantam quaisquer dúvidas sobre a respectiva autenticidade e onde se confirma que o Code of Virginia Searchable Database é mantido pela Virginia General Assembly. Por último, se a recorrente não tivesse junto tal documento e tradução, sempre o próprio tribunal poderia – se o considerasse necessário - ter procurado esta legislação e tê-la invocado, traduzindo-a ele próprio se o soubesse fazer, ao abrigo do art. 348º/2 do CC. Aliás, é muito frequente que os tribunais de recurso recorram ao direito estrangeiro e invoquem o respectivo conteúdo, fazendo a sua tradução simultânea, não se levantando qualquer questão quanto a isso. As partes podem sempre impugnar as conclusões a que os tribunais assim cheguem, como o podem fazer quanto ao direito português (veja-se aliás neste sentido, o art. 722º/2 do CPC: é fundamento de revista a violação de lei substantiva, considerando-se como tal também as disposições genéricas, de carácter substantivo, emanadas dos órgãos de soberania estrangeiros). Assim, parafraseando, por exemplo, Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, Universidade de Coimbra, 1973, págs. 589/600, diga-se que o direito estrangeiro é aplicado entre nós como direito e o seu conhecimento directo resulta do exame dos arestos judiciais e das obras dos juristas responsáveis. Ora, se o tribunal pode conhecer o direito estrangeiro através destas fontes, muito melhor o pode fazer consultando directamente a lei estrangeira através dos meios actualmente disponíveis (embora provavelmente a sua compreensão só resulte dos elementos referidos por Ferrer Correia). Mais explicitamente para o que interessa no caso, diz Baptista Machado, DIP, 2ª edição, Almedina, págs. 246/248: “Do nº. 2 do mesmo artigo [348 do CC] resulta ainda que o juiz, sempre que lhe cumpra decidir com base em direito estrangeiro, deve conhecer e aplicar este ex officio, isto é, independentemente da sua invocação pelas partes […]”. E explica que é essa a orientação dominante em diversos outros países, para além da Alemanha, Áustria e Suécia: o juiz deve conhecer e aplicar oficiosamente o direito estrangeiro. Ora, se tudo isto é assim, a recorrente podia simplesmente – como o faz com a lei portuguesa – invocar os §§ da lei estrangeira no texto da suas alegações, referenciando, como o fez, o local de onde tinha retirado os mesmos, em vez de os ter imprimido em texto avulso, e a questão nem sequer se colocava, como questão de admissão do documento. Mas tendo-o apresentado como documento, a sua junção nesta fase de recurso sempre seria de admitir, não só pelo que antecede, como porque (art. 524 do CPC) o tribunal recorrido, sem que o outro interessado tivesse levantado a questão da não relacionação de tais bens com o fundamento de estarem situados no estrangeiro, veio decidir pela exclusão de tais bens, sugerindo que o Estado estrangeiro onde eles estão situados não teria normas que permitissem ver nele reconhecida a sentença de partilha que fosse efectuada em Portugal. Só então se colocou à recorrente a necessidade de tentar provar que assim não era. * II Da exclusão dos bens situados no estrangeiro Não é bem a competência internacional do tribunal de Torres Vedras para este processo de inventário que está em causa nestes autos. O despacho recorrido pressupõe-na. O que o tribunal decide é a exclusão de dados bens por estarem situados no estrangeiro. O que se discute é, pois, se dados bens – que têm a particularidade de estar situados no estrangeiro – devem ou não ser incluídos na partilha. A resposta imediata à questão passa pela invocação do regime substantivo da partilha de bens. Ora, pela lógica das coisas, quando se partilha um conjunto de bens, faz-se a partilha de todos os bens que se incluem nesse conjunto, a não ser que exista alguma norma legal que exclua um dado bem dessa partilha. É a aplicação, a este património comum, do princípio da universalidade que tem sido invocado unanimemente para a herança, comunhão de bens de idêntica natureza (no que interessa à questão). No direito português não existe essa norma. Assim sendo, no caso devem ser partilhados todos os “bens existentes no casal ao tempo em que a sentença transitada tenha posto termo ao casamento” (: Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. III, pág. 369, Almedina, 1991, 4ª edição). Daí que a maior parte dos autores que se pronunciam sobre esta questão – citados aliás pelo ac. do TRL invocado pelo despacho recorrido: Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Parte Especial, ed. de 1999, Almedina, págs. 281 a 283 (= vol. III do DIP, págs. 192 a 194 - que cita no mesmo sentido Adelino da Palma Carlos); e Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ª ed., Almedina, 1990, vol. I, pág. 453 a 464 – digam que devem ser relacionados todos os bens, situem-se ou não em Portugal. E no mesmo sentido vai hoje a maior parte da jurisprudência: entre outros, vejam-se os acs. do TRP de 11/09/2007 – 0722005; do STJ, de 23/10/2008, 07B4545; do TRE de 12/03/2009 - 208-A/1999.E1; do TRG de 11/02/2010 - 702/05.5TBCBT-B.G1; e do TRL de 22/09/2011 - 776/04.6TMFUN-B.L1-8. Relativamente aos tempos próximos apenas se encontrou, em sentido contrário, o ac. referido do TRC. O despacho recorrido cita 4 acórdãos, um do TRC de 08/03/1968 (JR 14-481), outro do TRP de 11/04/1978 (sumariado no BMJ 278/304 e CJ.3.806); um terceiro do TRL de 01/07/1980 (CJ.80.5.5) e um quarto de 01/02/1983 (sumariado no BMJ.331/595), ou seja, jurisprudência de há mais de 28 anos, que não tem em conta, entre o mais, a integração na União Europeia, a convenção de Bruxelas/Lugano, o regulamento (CE) 44/2001 e as reformas do CPC de 1978 (com a Lei 21/78, de 03/05) e de 1995/96, entre outras. * A objecção a esta argumentação, poderia passar pela afirmação de que o regime aplicável não seria o português. Só que não é essa a fundamentação do despacho recorrido (que aliás não invoca outro direito que não o português), ou do acórdão que seguiu. Ora, se for como os dois interessados dizem – eram ambos portugueses ao tempo do seu casamento um com o outro e ainda o são (segundo resulta das alegações da cabeça-de-casal e do outro interessado – este alega ainda ter também a nacionalidade americana) - aquela objecção não podia ser levantada, porque seriam de facto as normas portuguesas as aplicáveis (arts. 52/1, 53/1 e 55, todos do CC – todas estas regras se terão de aplicar, mas a principal é a do art. 53º/1, pois, como diz Baptista Machado, obra citada, pág. 418: “[…] as consequências do divórcio sobre o património dos cônjuges - o termo da comunhão e a partilha – são reguladas pela lei designada no art. 53. Quanto a este último ponto observa--se, no entanto – e a nosso ver com razão – que certas disposições que têm o carácter duma sanção contra o cônjuge ou cônjuges culpados (como aquelas que se referem à perda de vantagens patrimoniais: cfr. os arts. 1790 a 1792 do nosso Código) fazem parte do estatuto do divórcio.” [art. 55º/1, que remete para o art. 52, ambos do CC]. Não teria, assim, razão o recorrido quando apela ao art. 20º/1 do CC e à sua possível residência habitual nos EUA para invocar a lei estrangeira, nem a recorrente quando invoca, apesar do que antecede, os arts. 18 e 20º/1 do CC que aliás têm um pressuposto que a lógica da argumentação da recorrente afasta (com efeito, a norma diz: quando em razão da nacionalidade de certa pessoa, for competente a lei de um Estado…; ora, a recorrente argumenta no sentido de que ambos os cônjuges eram portugueses à data do casamento e que ainda o são – o que, como se viu, é aceite pelo outro interessado, embora com a particularidade de invocar a dupla nacionalidade). E a não ser assim, cabia ao despacho recorrido ter invocado outra lei, da qual decorresse a regra da exclusão dos bens situados no estrangeiro, e os pressupostos da aplicação da mesma. * Mas, a questão também pode ser vista como uma questão da competência do tribunal para a partilha de bens situados no estrangeiro. Só que, também por este prisma, o resultado seria o mesmo, por força do critério da coincidência, do art. 65/1b) do CPC (Miguel Teixeira de Sousa, A competência declarativa dos tribunais comuns, Lex, 1994, págs. 48 a 54; Lebre de Freitas/João Redinha/Rui Pinto, CPC anotado, vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 138/139), já que o inventário para partilha de bens em consequência de divórcio corre por apenso ao processo de divórcio (art. 1404/3 do CPC – que para já ainda está em vigor, pois que a Lei 29/2009, de 29/06, que o revogou ainda não entrou em vigor, por força da alteração do art. 87 efectuada pela Lei 44/2010, de 03/09, tendo também em conta o ac. do TC 327/2011, de 06/07/2011, conforme se refere em anotação a estes diplomas no sítio da PGD de Lisboa), e o processo de divórcio correu em Portugal (art. 75 do CPC). E a solução da questão não sofre influência com a circunstância da competência para o divórcio, por mútuo consentimento, não ser agora dos tribunais mas das conservatórias (isto tendo em conta as alegações de ambos os interessados de que se tratou de um divórcio por mútuo consentimento que correu termos na conservatória do registo civil de Torres Vedras…). A competência para o inventário continua a definir-se do mesmo modo, como se o processo de divórcio tivesse sido instaurado no tribunal (veja-se, neste sentido, apenas por exemplo, os acs. do TRP de 09/12/2008 – 0823517) Afigura-se que a circunstância de o divórcio ter sido decretado pelo Conservador do Registo Civil, em vez dos Tribunais de Família, em nada altera o âmbito da competência destes para o inventário […]. Como vem sustentado no ac. desta Relação de 06/10/2008 e no ac. do TRL de 21/11/2006 […] parece razoável que o […] legislador, não quisesse excluir da competência daqueles Tribunais a de conhecer os processos de inventário instaurados na sequência de divórcios por mútuo consentimento, cuja competência é actualmente (com os requisitos previstos na lei [DL 272/2001)] exclusiva das CRC". Do ponto de vista da teleologia subjacente a tal opção legislativa, nenhuma distinção relevante se vislumbra entre o divórcio por mútuo consentimento decretado pelo Tribunal de Família por via de conversão da acção de divórcio litigioso e o divórcio por mútuo consentimento decretado pelo Conservador do Registo Civil, que possa justificar uma duplicidade de regimes no tocante ao subsequente inventário para partilha de bens.” Por isso não tem razão o recorrido ao invocar o facto deste inventário correr autónomo ao processo de divórcio, para de algum modo se opor à regra da coincidência, do art. 65/1b) do CPC, invocada pela recorrente. * A questão também tem sido posta para os inventários em geral e em termos teóricos/legais a única solução aceitável é esta (da competência do tribunal para a relacionação dos bens situados no estrangeiro), como o explica Alberto dos Reis, no Comentário ao CPC, Coimbra Editora, 1960, vol. I, 2ª edição, pág. 216. Lembra este Prof. que “a questão foi levantada na Comissão Revisora pelo Sr. Dr. Silva e Sousa, que entendia dever inserir-se no Código uma disposição pela qual se atribuísse competência ao tribunal português para a partilha de todos os bens da herança: tanto os existentes em Portugal como os existentes no estrangeiro. Houve divergências no seio da Comissão e nenhuma deliberação se tomou sobre o assunto. No entanto – continua o Prof. Alberto dos Reis – remata o Sr. Dr. Palma Carlos, a doutrina do Sr. Dr. Silva e Sousa é a exacta (Ob. cit., pág. 288).” E continua o Prof. Alberto dos Reis: “Não há dúvida: posto que não se inserisse no Código a disposição proposta do Sr. Dr. Silva e Sousa a doutrina da nossa lei é a que esta proposta traduzia. Em primeiro lugar, não pode deixar-se de considerar-se anómalo e inconveniente que se façam tantas partilhas quanto os países em que se acharem os bens. A partilha deve ser uma só, abrangendo portanto todos os bens, seja qual for o lugar em que se encontrarem. Em segundo lugar, os §§ 1 e 4 do art. 2009, combinados com o art. 77, mostram claramente que o pensamento da lei portuguesa é que o inventário organizado em Portugal compreenda os bens existentes em país estrangeiro”. A seguir a isto, Alberto dos Reis diz algo contra esta solução, mas apenas do posto de vista prático (pág. 217) e apenas a propósito das hipóteses em que se demonstra um conflito de jurisdições, como o demonstra o facto de acabar um dos parágrafos do seu escrito deste modo: “o bom senso aconselha que os tribunais de cada país, em caso de conflito, se limitem a inventariar e partilhar os bens existentes no território nacional”. A solução legal do caso é pois clara, mas, para o Prof. Alberto dos Reis, a solução prática deve ser outra quando se demonstra a existência de um conflito de jurisdição. * Esta mesma posição resulta da anotação de Antunes Varela ao ac. do STJ de 21/03/1985, publicado, com a anotação, na Revista de Legislação e Jurisprudência nº. 123, págs. 118 e segs e 144 e segs. Trata-se de um caso de um português falecido no Brasil (o que desde logo levou à aplicação da norma do art. 77º/2 do CPC, norma que no caso dos autos não tem aplicação), com bens em Portugal e no Brasil, e vigorando, no Brasil, o princípio da obrigatoriedade do processo de inventário, tendo o inventariado distribuído todos os seus bens situados em Portugal por meio de legados. No ac. do STJ e na anotação de Antunes Varela trata-se de se reconhecer a legitimidade da filha para requerer inventário em Portugal para a determinação da quota disponível e a possível redução, por inoficiosidade, das liberalidades feitas, bem como a necessidade da consideração do valor dos bens situados no Brasil apenas com aqueles fins e não para os partilhar. No caso já se tinha procedido a inventário no Brasil dos bens aí situados e sabia-se que o Brasil se considerava exclusivamente competente para os inventários de bens situados no Brasil (art. 89/II do CPC brasileiro de 1973) e que por isso haveria conflito de jurisdições. Aliás, quer o ac. do STJ quer a anotação de Antunes Varela lembram expressamente a passagem de Alberto dos Reis que se refere ao pressuposto da existência de conflito (págs. 120 e 127/128 e 146, respectivamente) para a adopção da solução prática contrária à que seria a regra geral. Ou seja, a posição destes dois Profs. não pode servir minimamente para defender a solução da não relacionação de bens situados no estrangeiro, por motivos relacionados com a efectividade das sentenças portuguesas, sempre que não se demonstre a existência de um conflito de jurisdição, não bastando a afirmação abstracta e não fundamentada da possibilidade da existência desse conflito. Isto mesmo é dito por Lopes Cardoso, obra citada, págs. 457/458: “Mas daqui desde logo se conclui que o problema não surgia quando, por virtude da sua lei interna, o Estado estrangeiro onde os bens se situassem não se atribuísse tal competência. Assim, pelo que respeita a tais casos, a doutrina exposta era inteiramente válida, nada haveria a objectar-lhe, e a generalização não tinha qualquer razão de ser”. * E por tudo isto, compreende-se que Luís Lima Pinheiro, obra citada, pág. 282, diga que, referindo-se à jurisprudência que é hoje a mais antiga: “A orientação seguida pela jurisprudência não tem fundamento legal e baseia-se em argumentos [manifestamente] improcedentes. Nenhuma disposição processual exclui a competência dos tribunais portugueses para a partilha de bens situados no estrangeiro […]” E mais à frente: “[A] insusceptibilidade de reconhecimento dos efeitos de uma decisão portuguesa no Estado de situação dos bens tanto se pode verificar em matéria sucessória como noutras matérias. Em caso algum, porém, ela fundamenta a incompetência dos tribunais portugueses. De resto, as apreciações feitas a este propósito na jurisprudência e em alguma doutrina são pouco rigorosas, porque não decorre, por si, de os tribunais do Estado da situação se considerarem competentes e de aplicarem à sucessão a lei local que a decisão portuguesa não seja susceptível de reconhecimento [em nota refere que já não será este o caso se os tribunais do Estado da situação dos bens se considerarem exclusivamente competentes].” Por outro lado, como se diz no ac. do TRL de 22/09/2011: “Temos de considerar que, na ausência de convenção ou tratado que assegure essa eficácia, nada impede que as normas de direito internacional privado de cada um dos estados interessados prevejam forma destas decisões serem reconhecidas”. Ou como diz o ac. do TRG de 11/02/2010: “A inexistência de tratado ou convenção que facilite o reconhecimento das decisões dos tribunais portugueses no país onde se situam os bens a partilhar, não impede que tais decisões sejam reconhecidas de acordo com as normas internas de direito internacional privado vigentes em cada Estado.” Por fim, como ainda lembra Lima Pinheiro, obra e local citados, “é de assinalar que o princípio da maior proximidade tem um alcance muito reduzido no Direito de Conflitos português. O legislador do Código Civil não deu acolhimento ao art. 5º/2 do Anteprojecto de 1964, que mandava observar os princípios de Direito Internacional Privado do Estado da situação de um imóvel se tal fosse necessário e suficiente para assegurar o reconhecimento da decisão a proferir pelo tribunal português. Isto mostra que, na valorização do legislador, o problema do reconhecimento dos efeitos da sentença no Estado da situação dos bens não justifica qualquer desvio às soluções consagradas pelo Direito de Conflitos português. Muito menos justificará a incompetência dos tribunais portugueses”. * Tudo isto também pode ser visto ainda de outra perspectiva, que é o reverso da que antecede (e que poderá funcionar com uma pedra de toque), e que é a da revisão de sentença estrangeira. É que do que antecede decorre a consideração de que um inventário subsequente a um divórcio não é, sem mais, uma acção relativa a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis sitos em território português, ou pelo menos que não é “suficiente para determinar a competência exclusiva dos tribunais portugueses, conforme a al. a) do art. 65.º-A do CPC, que a acção se prenda indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre imóvel, sendo indispensável que este constitua o seu objecto ou fundamento a título de causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo.” Ou seja: “uma acção de divórcio por mútuo consentimento não deve ser qualificada como acção real, na acepção do art. 65.º-A/a), conquanto nela sobressaiam elementos de realidade, como a atribuição da casa de morada da família do nosso direito, mas sobretudo a partilha do casal por acordo do direito brasileiro, em nível meramente acessório ou dependente do pedido de divórcio.” (cita-se do ac. do STJ de 13/01/2005, referido abaixo). Por isso, se um tribunal americano proferisse uma sentença de partilha de bens incluindo imóveis situados em Portugal, tal sentença seria, em princípio, revista em Portugal, sem violação da norma da al. c) do art. 1096 do CPC. E o mesmo se diga se o tribunal fosse brasileiro, apesar de, como se viu, o Brasil reservar para si a competência exclusiva para os inventários relativos a bens situados no Brasil. Isto mesmo é reconhecido pelo ac. do TRC de 18/02/1997 (CJ.97.II.5), citado, como argumento, por Luís Lima Pinheiro (obra referida, pág. 194, nota 713), bem como pelo ac. do STJ de 13/01/2005 (04B3808 da base de dados do ITIJ – que trata precisamente de uma partilha em divórcio no Brasil e que revogou um ac. do TRL em sentido contrário, anotado (o ac. do STJ) favoravelmente, por Miguel Teixeira de Sousa, nos Cadernos de Direito Privado, nº. 16, págs. 15/27 (que defende a aplicação do art. 22 do Regulamento (CE) 44/2001 mesmo quando estejam em causa interesses que envolvam Estados terceiros). O reconhecimento de sentenças estrangeiras, nestes casos, corresponde, hoje, a uma tendência absolutamente maioritária da nossa jurisprudência (vejam-se, entre muitos outros, os acs do TRG 10/12/2003 - 619/03-1; do STJ de 21/09/2006 - 06P2283; do TRC de 03/10/2006 - 11/06.2YRCBR – e aqui estava em causa um acordo respeitante ao destino da casa de morada de família que poderia implicar uma alteração da titularidade desse bem imóvel; do TRL de 08/03/2007 -9936/2006-6;. do TRL 24/05/2007 - 5499/2006-6; do STJ de 03/07/2008 – 08B1733; do TRC de 03/03/2009 - 237/07.1YRCBR – mas no caso considerou-se haver violação da ordem pública portuguesa; a decisão individual do TRC de 02/10/2009 - 137/09.0YRCBR; do TRL de 01/02/2011 - 987/10.5YRLSB-1 – num caso de sentença americana, confirmado pelo ac. do STJ de 12/07/2011 - 987/10.5YRLSB.S1; do TRC de 24/05/2011, 834/07.5TMBRG.C1; Contra, veja-se Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. 2, pág. 168. Perante isto, não deixaria de ser estranho que Portugal estivesse a alargar o campo do reconhecimento de sentenças estrangeiras em Portugal, ao mesmo tempo que continuaria a recusar a sua própria competência para situações inversas (de algum modo manifestando a mesma surpresa perante as alterações do art. 65 do CPC pela Lei 52/2008, de 28/08 – aplicável apenas às comarcas piloto - veja-se Lebre de Freitas, Competência ou incompetência dos tribunais portugueses, ROA, 2009/I/II, págs. 59/71 (esp. 71): “que a esta generosa abertura para o exterior não corresponda o reconhecimento, também generoso, da competência internacional dos nossos próprios tribunais”). * Chegados aqui, pode-se então dizer que o despacho recorrido, e o acórdão que segue, ficam-se pela invocação de razões práticas, não fundadas em regras jurídicas, como até se vê pelo tipo de fundamentação usado: “‘parece-nos que’ quanto aos bens situados no estrangeiro, aquele princípio da universalidade terá que ser postergado, quando não esteja assegurada, por convenção ou tratado, a eficácia da partilha efectuada pelo tribunal português de bens situados em país estrangeiro.” Mas, estas razões têm tanto menos razão de ser quanto, por um lado, nenhum dos interessados levantou a questão e se eles não estão preocupados com a questão da eficácia da sentença de partilha não se vê porque é que o tribunal o há-de estar em seu lugar. Por outro lado, a cabeça-de-casal até se preocupou em afirmar, fundamentando a afirmação, que o Estado da Virgínia, onde os bens estão situados, aceitará a competência do tribunal português para a partilha dos bens (seguindo o seguinte raciocínio: já que apenas se prevê a hipótese de, em dadas circunstâncias, poder um tribunal do Estado da Virgínia proceder à partilha depois do divórcio decretado pelo tribunal estrangeiro; e entre essas circunstâncias consta a de o tribunal estrangeiro não ter jurisdição pessoal sobre a parte domiciliada na Commonwealth, o que não é o caso – é o que resulta da secção J do § 20-107.3 do Código da Virgínia, que pode ser consultado, como indicado pela recorrente, http://leg1.state.va.us/cgi-bin/legp504.exe?000+coh+20-107.3+700262 – agora consulta-do em 03/12/2011, já com alterações de 2011 que ainda não existiam na consulta efectuada pela recorrente -, através do endereço http://leg1.state.va.us/; nesta página tem de ser fazer o log in com Code of Virginia e depois colocar no espaço de pesquisa 20-107.3) e a esta afirmação nada foi oposto. Ou seja, o tribunal não afirma, nem o faz o ac. do TRC invocado por ele, que o Estado da Virgínia (ou os outros EUA) se arrogue competência exclusiva sobre os bens situados no seu território, ou que não reconheça as sentenças estrangeiras de partilha desses bens. Ora, só se o tivesse feito é que se justificaria entrar na discussão da exclusão dos bens situados nesse Estado. Não é a possibilidade da existência de um conflito que deve levar à exclusão dos bens. * Tendo tudo isto em conta, diga-se agora que não é de modo algum evidente que as normas citadas pela recorrente tenham o sentido que esta lhes atribui, isto é, que a lei interna do Estado da Virgínia remeta para o direito interno português, na situação dos autos, a competência para a partilha dos bens sitos naquele Estado, ou que dessas regras resulte que o Código da Virgínia impeça que os seus tribunais efectuem a partilha estando esta já pendente em Portugal As normas citadas apenas dizem em que casos é que um tribunal do Estado da Virgínia pode proceder à partilha de bens na sequência de um divórcio decretado por um Estado estrangeiro. É certo que, com isso, se indicia que o Estado da Virgínia pode reconhecer sentenças estrangeiras que procedam elas próprias à partilha de bens situados na Virgínia. Ou seja, está indiciada uma competência concorrente e não exclusiva. Mas apenas isso e não também o reenvio do lei do Estado da Virgínia para a lei portuguesa ou mesmo o reconhecimento exclusivo dos tribunais estrangeiros para essa partilha em casos idênticos aos dos autos. Mas como se entende que era ao despacho recorrido que teria de competir a invocação concreta de uma impossibilidade de reconhecimento da sentença portuguesa ou uma competência exclusiva do Estado da Virgínia, e como não foi isso que o despacho recorrido fez, não importa que, por sua vez, as normas invocadas pela recorrente não comprovem todas as afirmações que fez. * O que antecede, serve, no entanto, para afastar um dos argumentos da recorrente, isto é, de que, como o Código da Virgínia impediria que os seus tribunais efectuassem a partilha estando esta já pendente em Portugal, a competência dos nossos tribunais resultaria também da al. d) do art. 65 do CPC, dando-se razão, nesta parte, ao recorrido. Mas este argumento seria ainda afastado pela consideração de que essa alínea nada tem a ver com esta questão, mas sim com, para além das “de verdadeira e própria impossibilidade”, aquelas de um “Estado se encontrar em guerra ou de o demandante, seu nacional, se ter exilado por razões políticas, correndo a sua liberdade grave risco se a ele retornar” (Ferrer Correia e Ferreira Pinto, Breve apreciação das disposições do Anteprojecto de Código de Processo Civil que regulam a competência internacional dos tribunais portugueses e o reconhecimento das sentenças estrangeiras, Revista de Direito e Economia, Universidade de Coimbra, 1987, págs. 35/39 (esp. 39; veja-se, no mesmo sentido, Lebre de Freitas e outros, obra citada, págs. 139/141). Mas a improcedência dos dois fundamentos intermédios - (iii) e (iv) - da recorrente, não afasta a manifesta procedência dos dois primeiros: (i) e (ii). * Neste recurso não se discute a questão de saber se os dois imóveis são comuns ou não. Apenas se devem ou não ser relacionados pelo facto de estarem situados no estrangeiro. Decidida esta questão, fica por resolver aquela, discussão esta que já não cabe no âmbito deste recurso, pois que se trata de uma apelação, subida em separado, apenas para apreciação daquela questão e sem os elementos necessários para apreciação desta (art. 715/2 do CPC). Pelo que ela terá de ser decidida pelo tribunal recorrido. E, como é evidente, nele podem vir a suscitar-se questões que levem a que o tribunal tenha que proceder conforme o previsto nos arts. 1335, 1336 e 1350, do CPC. E isto já seria suficiente para dar resposta à objecção do recorrido relacionada com as possíveis diferenças de avaliação e com a possível injustiça da partilha. Mas, para além disso, pode-se ainda dizer: a avaliação, se necessário, procede-se através de carta rogatória e “as dificuldades no cumprimento de cartas rogatórias, além de não serem de esperar em relação a Estados que sejam partes em convenções internacionais em matéria de processo civil ou a Estados comunitários vinculados pelo Regulamento comunitário no domínio da obtenção de provas em matéria civil e comercial, podem quando muito justificar uma adaptação de certas disposições processuais” (Luís Lima Pinheiro, obra citada, pág. 193; no mesmo sentido, o ac. do STJ de 21/03/1985 – ac. que acrescenta: “e nada habilita a concluir que o valor encontrado, segundo critérios que não os fixados na lei portuguesa, não esteja certo, ou que daí advenha prejuízo para quem quer que seja” - e a própria anotação de Antunes Varela). Por fim, e quanto à questão do “princípio igualitário que preside à partilha e que […] seria violado se a partilha não tivesse valor efectivo relativamente a alguns dos bens” de que falam o ac. do TRC de 2008, o despacho recorrido por remissão e o recorrido, sempre se poderá responder como o fez o ac. do TRL de 22/09/2011: “Sendo certo que o interessado que recebesse os bens sitos no estrangeiro poderia ficar com problemas para o reconhecimento e efectivação da partilha […] também não deixa de ser certo que, ao proceder à partilha, os interessados têm presente tal realidade e vão promover a partilha dos bens tendo em conta a facilidade ou dificuldade em tornar efectiva a posse dos bens que lhe venham a ser adjudicados”. Isto para além de se salientar, de novo, que se trata apenas de uma hipótese de conflito ou de falta de reconhecimento levantada pelo despacho recorrido, não de uma certeza da existência dos mesmos. * A apreciação dos dois últimos fundamentos (v) e (vi) do recurso fica prejudicada pela procedência dos dois primeiros. * Sumário (da responsabilidade do relator): Num inventário realizado em Portugal para partilha subsequente ao divórcio que correu termos em Portugal, não devem ser excluídos da relacionação bens situados no estrangeiro apenas com a alegação da possibilidade de conflito de jurisdições ou de falta de reconhecimento no estrangeiro da sentença que vier a ser proferida. * Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por esta que determina que permaneçam relacionados os dois imóveis situados nos EUA. Custas pelo recorrido. Lisboa, 12 de Janeiro de 2012. Pedro Martins Sérgio Almeida Lúcia Sousa