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Acórdão TCA Sul de 2011-11-17

08121/11

TribunalTribunal Central Administrativo Sul
Processo08121/11
SecçãoCA- 2.º JUÍZO
Data do Acordão2011-11-17
RelatorBenjamim Barbosa
DescritoresMedicamento Genérico; Aim; Patente; Estatuto do Medicamento; Direito Comunitário; Direito Europeu e Internacional

Sumário

- Na impugnação da matéria de facto o recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, deve obrigatoriamente individualizar a sua divergência, indicando os concretos pontos de facto que impugna, os motivos que fundamentam a sua discordância e os meios de prova em que se baseia, os quais, reconduzindo-se à prova testemunhal, devem ser completados com a indicação precisa dos segmentos dos depoimentos que suportam a sua discordância relativamente à apreciação feita no tribunal a quo. - Na concessão de Autorização de Introdução no Mercado (AIM) a medicamento genérico o INFARMED não tem nenhum dever legalmente imposto de apreciar eventuais violações da patente do medicamento de referência; - Nem esse dever resulta do Estatuto do Medicamento, que apenas exige que na AIM o INFARMED acautele a saúde pública, garantindo a qualidade, eficácia e segurança do medicamento genérico; - Nem muito menos do ordenamento jurídico comunitário, que claramente rejeita a hipótese de, na concessão de AIM a medicamento genérico, as autoridades nacionais fiscalizarem ou verificarem a existência de patentes válidas. - O art.º 25.º, n.º 1, do Estatuto do Medicamento, olvida qualquer referência aos direitos de propriedade industrial na concessão de AIM a medicamento genérico, o que não sucedia com o diploma anterior, omissão que concretiza o regime das Directivas que transpôs, as quais não incluem essa questão nos fundamentos taxativos de recusa de AIM; - Aliás, nem o legislador nacional tinha qualquer liberdade de conformação neste domínio, nem o intérprete na aplicação da lei pode interpretá-la em sentido diverso, sob pena de por em causa a primazia do Direito Comunitário, a sua natureza interpretativa e o efeito vertical directo das Directivas; - De resto não existem quaisquer inconstitucionalidades por violação do direito da patente, que embora seja absoluto no sentido de que deve ser observado por todos (eficácia erga omnes), sofre as limitações que são admissíveis para o direito de propriedade, em razão da sua função social; - Em qualquer caso, os direitos económicos de exploração da patente e da exclusividade devem ceder numa colisão com o direito fundamental à saúde pública, que pode ser posta em causa por práticas restritivas da entrada de medicamentos genéricos no mercado. - É por isso ilegítimo impedir actos preparatórios de futura comercialização de medicamento genérico, nos quais se incluem as AIM, os quais estão em consonância, quer com o direito interno, quer com o direito europeu e internacional. - Tanto mais que a recusa de concessão de AIM na vigência do prazo da patente teria por efeito prático ampliar esse prazo pelo tempo necessário à conclusão do processo de AIM, dado que o respectivo procedimento só poderia então iniciar-se depois de expirado o prazo legal de protecção da patente. - O recurso da decisão que rejeita um pedido de providência cautelar tem natureza suspensiva.


Texto Integral

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL: I – Relatório A..., inconformada com a sentença do TAC de Lisboa que neste procedimento cautelar intentado contra o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED) e contra o Ministério da Economia e Inovação (MEI) lhe negou a providência cautelar tendente à suspensão da eficácia dos actos administrativos das autorizações de introdução no mercado (AIMs) proferidos em 20.10.09 e do despacho de aprovação dos PVPs, concedidos à contra interessada B...– Investigação, Desenvolvimento e Fabricação Farmacêutica, Lda. (B...) proferido em 14.01.2010, durante o período de vigência da PATENTE, que termina em 27 de Maio de 2014, relativamente aos seguintes produtos: Emerol, 20 mg, cápsula gastrorresistente; Emerol, 40 mg, cápsula gastrorresistente; Esomeprazol B..., 20 mg gastrorresistente; Esomeprazol B..., 40 mg cápsula gastrorresistente; Omoloc, 20mg cápsula gastrorresistente; Omoloc, 40mg cápsula gastrorresistente; Metrosiz 20mg cápsula gastrorresistente; Metrosiz 40mg cápsula gastrorresistente; Trigazel 20 mg cápsula gastrorresistente; Trigazel 40 mg cápsula gastrorresistente; Trogasix 20 mg cápsula gastrorresistente e Trogasix 40 mg cápsula gastrorresistente, “sob as designações acima indicadas ou quaisquer que venham a ser as designações destes medicamentos no futuro, sendo também o Infarmed ordenado a inserir no seu website a menção expressa à suspensão das AIM´s e dos PVP´s, nos termos a ordenar por este Tribunal”, veio interpor recurso jurisdicional, em cujas alegações concluiu nestes precisos termos: «1. O facto dado como provado sob o n° 28, ou seja o de que "o sal de magnésio esomeprazole B..." constante da alteração às AIMs dos autos "apresenta um valor de R. omeprazole igual ou superior a 0,2%", não é verdadeiro e não tem qualquer correspondência com os documentos dos autos ou com os depoimentos testemunhais em que assentou a douta decisão recorrida no sentido de o dar como provado. 2. Deve, pois, tal facto ser eliminado da lista dos factos provados. 3. Da prova testemunhal e documental produzida nos autos resulta que o sal de magnésio de esomeprazol produzido pela C...para a B..., no processo de fabrico dos medicamentos dos autos pelo processo descrito no DMF (original e alterado) tem uma pureza óptica igual ou superior a 99,8% e.e. e que aquelas empresas decidiram misturar ao esomeprazol assim produzido pequenas quantidades de omeprazol, com vista a mascarar o verdadeiro nível de pureza daquela substância presente nos seus medicamentos. 4. Deve, assim, ser alterado o facto dado como provado no n° 23, passando esse número a ter a seguinte redacção: "Os medicamentos de Esomeprazol B...em causa nestes autos são compostos farmacêuticos contendo sal de magnésio de esomeprazol com uma pureza óptica de mais de 99,8% de excesso enantiomérico como substância activa." 5. As alterações acima requeridas relativamente à decisão sobre a matéria de facto encontram suporte no dispositivo dos artigo 712° n°l a) do CPC aplicável por forçadoart°l°doCPTA. 6. Dos documentos constantes dos autos, não impugnados por qualquer das partes, nomeadamente do Resumo das Características do Medicamento ("RCM") publicado no website do Infarmed de cada um dos Medicamentos de Esomeprazol B...e junto aos autos pela ora Recorrente, se verifica que esses medicamentos agem como inibidores da secreção ácida gástrica. 7. Da factualidade assente decorre, assim, que a comercialização dos medicamentos autorizados pelas AIMs suspendendas implica a violação da EP 10020461 por invasão, nomeadamente, dos limites das reivindicações 1.ª e 9ª. 8. A douta sentença recorrida considerou verificado o requisito do fumus boni júris na sua formulação negativa, aceitando-se o decidido, nessa parte. 9. O exclusivo derivado das patentes constitui um activo intangível dos seus titulares, essencial para a definição e implementação da política de rentabilização dos seus investimento, nomeadamente no que respeita às suas actividade de licenciamento a terceiros e às estratégicas de co-marketing que entendam desenvolver. 10. No caso destes autos, o tempo de exclusivo que ainda resta à Recorrente é de menos de três anos, uma vez que, como está provado, a Patente caducará em 27 de Maio de 2014. 11. A sentença que, na acção principal, venha a decretar a nulidade das AIM e das aprovações de PVP dos autos não terá qualquer utilidade prática, uma vez que o exclusivo da Recorrente terá sido então, há muito, eliminado, tendo-se assim consumado, pelo mero decurso do tempo de processamento da acção principal, a inutilidade de tal sentença. 12. A comercialização dos Esomeprazol B..., antes da Patente expirar, implica, desde logo, que a Recorrente fique, contra a sua vontade, privada do uso e fruição do exclusivo que constitui o conteúdo essencial do direito de propriedade industrial de que é titular, deixando, assim, de usar e fruir, para sempre, do seu direito de propriedade relativo ao dito invento. 13. Esta situação é, em todos os aspectos, equivalente à privação, com violência, da posse de um bem pertencente à Recorrente, causadora de um dano imaterial, consistente na ablação de uma parte do activo integrador da sua esfera jurídica, o qual não poderá ser reparado mesmo que, na sequência de decisão condenatória a proferir na acção principal, lhe viesse a ser atribuída uma compensação de natureza financeira. 14. Com o maior respeito, dir-se-á que a douta sentença recorrida, para além feito uma deficiente apreciação da prova produzida, violou o disposto no artigo 120° n°l b) do CPTA» (sic). Termina pedindo que seja “anulada a douta sentença recorrida e substituída por Acórdão que: a) suprima o facto dado como provado sob o n°28 e altere a redacção dada ao n° 23, que passará a ser a seguinte: Os medicamentos de Esomeprazol B...em causa nestes autos são compostos farmacêuticos contendo sal de magnésio de esomeprazol com uma pureza óptica de mais de 99,8% de excesso enantiomérico como substância activa. " b) decrete as providências requeridas nos precisos termos do pedido formulado no requerimento inicial”. O recorrido INFARMED contra-alegou, concluindo nestes precisos termos: «1a. Nos termos do artigo 143.°/2 do CPTA, os recursos de providências cautelares têm sempre efeito devolutivo. 2a. A regra do artigo 143.°/2 do CPTA justifica-se para obstar o interessado de interpor um recurso da decisão desfavorável com o único objectivo de continuar a usufruir da proibição imposta à Administração de executar o acto administrativo suspendendo durante a pendência do recurso. 3a. Nestes termos, uma vez que o presente recurso incide sobre uma sentença que declarou a improcedência de uma providência cautelar de suspensão de eficácia de actos administrativos, a fixação de efeito suspensivo beneficiaria ilegitimamente a Recorrente, uma vez que permitiria que apenas tivesse interposto o presente recurso tendo em vista a protelação da proibição do INFARMED executar o acto suspendendo. 4a. Na presente demanda, a ora Recorrente deduziu uma providência cautelar conservatória de suspensão da eficácia de actos de concessão de AIMs referentes aos medicamentos genéricos com o principio activo "Esomeprazol", tendo a mesmo sido julgada improcedente pelo douto Tribunal a quo. 5a. In casu, não se encontram preenchidos os requisitos que fundamentam a adopção da mencionada providência cautelar. 6a. É manifesta a improcedência da pretensão a formular na causa principal, uma vez que as AIM concedidas não padecem de quaisquer vícios. 7a. Da factualidade dada como provada resulta que as AIMs são actos insusceptíveis de lesar os direitos de propriedade industrial da Recorrente. 8a. O que se discute nestes autos é definir se o INFARMED está obrigado a verificar quaisquer direitos de propriedade industrial aquando da atribuição de AIMs e se estas são actos susceptíveis de lesar a esfera jurídica da Requerente. 9a. Ambas as respostas são negativas sendo irrelevante apurar, no presente processo, se existem patentes válidas, devendo o recurso da matéria de facto interposto pela Recorrente ser julgado manifestamente improcedente. 10a. Se as AIMs são actos válidos e eficazes, independentemente da existência de direitos de propriedade industrial, cabe à Requerente, caso assim o entenda, defender as alegadas violações dos mesmos nos tribunais de comércio, intentando as competentes acções judiciais contra as requerentes das AIMs. 11a. Não compete ao INFARMED aferir quaisquer direitos de propriedade industrial de terceiros, bem como a eventual violação daqueles direitos não resultará da AIM, mas antes da efectiva comercialização, traduzindo-se num conflito de direitos privados, que não compete à Entidade administrativa dirimir. 12a. Os direitos de propriedade industrial não configurarem um direito fundamental, e muito menos um direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, para efeitos do artigo 133.° do CPA. 13a. Ainda que se entenda que os direitos de propriedade industrial gozam da aplicação do art. 62° da CRP, a verdade é que, sempre seria ilegítimo por esta via impedir actos de futura comercialização, porque o conteúdo da patente consiste no exclusivo temporário de comercialização e não inclui nenhum poder de vedar procedimentos preparatórios de futura entrada no mercado. 14a. Bem andou o douto Tribunal a quo ao julgar não verificada a previsão do artigo 120.°/1/a) do CPTA, já que é manifesta a improcedência da pretensão a formular na causa principal, uma vez que as AIM concedidas não padecem de quaisquer vícios, pelo que deve ser mantida a sentença recorrida. 15a. Como se conclui na douta sentença recorrida, não se verifica igualmente o pressuposto periculum in mora, visto que, como ficou provado em audiência de julgamento, houve uma alteração das AIMs concedidas à Contra-Interessada, sendo que, em consequência, a substância activa desses medicamentos é agora diferente da substância que a Recorrente alega ter patenteada. 16a. Assim, resulta evidente que as AIMs nunca poderão provocar prejuízos à Recorrente, uma vez que, autorizam a introdução no mercado de medicamentos contendo uma substância activa diferente daquela que alegou ter patenteada. 17a. Além disso, e mesmo que assim não se entendesse, sempre se diga que a verificarem-se prejuízos, estes seriam sempre decorrentes da comercialização e não da concessão de AIM, não existindo qualquer nexo de causalidade entre aqueles e os actos de concessão de AIM. 18a. Neste sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.02.2008, que perfilhou a tese que defende a inexistência de qualquer causalidade adequada entre os actos de AIM e os eventuais prejuízos invocados pelas então Recorrentes. Além disso, e mesmo que assim não se entendesse, sempre se diga que a verificarem-se prejuízos, estes seriam sempre decorrentes da comercialização e não da concessão de AIM, não existindo qualquer nexo de causalidade entre aqueles e os actos de concessão de AIM. Neste sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.02.2008, que perfilhou a tese que defende a inexistência de qualquer causalidade adequada entre os actos de AIM e os eventuais prejuízos invocados pelas então Recorrentes. Ainda que a Recorrente tivesse logrado provar qualquer prejuízo com a concessão das AIMs, o que não se verificou, sempre seria de entender que prevaleceria o interesse público, aplicando-se in casu o disposto no artigo 120.°/2doCPTA. Em suma, e não se verificando in totum, no caso sub judice, os requisitos necessários para a concessão da providência cautelar requerida, deve ser julgado improcedente o recurso da Recorrente, mantendo-se a douta sentença recorrida» (sic) Por sua vez a contra-interessada B...apresentou as suas alegações, cujas conclusões são deste teor: «1) A Recorrente impugnou a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre os Factos n.ºs 23 e 28 da factualidade assente, mas não cumpriu o ónus de indicar com precisão quais as passagens da gravação dos depoimentos das testemunhas que fundamentam a sua pretensão. 2) A Recorrente não pode beneficiar do acréscimo de 10 dias ao prazo ordinário de interposição do recurso, pelo que o prazo de recurso terminou no dia 19/08/2011. 3) Como o requerimento de interposição de recurso, acompanhados das respectivas alegações, foi apresentado em juízo no dia 30/08/2011, deverá concluir-se que o presente recurso jurisdicional não foi tempestivamente apresentado, o que implica a sua imediata rejeição. 4) O artigo 1435, nº 2 do CPTA dispõe que "os recursos interpostos de intimações para protecção de direitos, liberdades e garantias e de decisões respeitantes à adopção de providências cautelares têm efeito meramente devolutivo", pelo que o presente recurso jurisdicional interposto da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que indeferiu a presente providência cautelar tem efeito meramente devolutivo. 5) Como a Recorrente apenas impugnou a decisão do Tribunal a quo quanto à matéria de facto constante dos Factos nes 23 e 28, toda a restante factualidade decidida pela primeira instância está definitivamente assente. 6) O pedido de suspensão formulado pela Recorrente na presente providência cautelar diz respeito às AIMs aprovadas pelo Infarmed em 29.10.2009, ou seja, com o DMF na sua versão originária, nele não se fazendo qualquer alusão às possíveis alterações subsequentes das AIMs. 7) O despacho do Infarmed de 29.09.2010 que aprovou a alteração tipo II (alteração do DMF da substância activa) das AIMs em causa é um acto administrativo impugnável e susceptível de ser suspenso. 8) A Recorrente foi regularmente notificada do despacho de deferimento de tal alteração pelo Infarmed, mas não impugnou nem requereu a suspensão desse acto administrativo, sendo certo que podia ter requerido oportunamente a ampliação do pedido de modo a abarcar esse acto administrativo. 9) Atento o "princípio do pedido", o Tribunal a quo não podia senão concluir que não cumpre verificar se o sal de magnésio esomeprazole B...objecto do processo de alteração junto do Infarmed viola ou não a patente. 10) Em parte alguma o Tribunal a quo fez a distinção entre duas AIMs (a inicialmente requerida e outra que foi objecto do pedido de alteração), referindo-se ao longo da sentença a uma única AIM para os mesmos medicamentos, mas com DMFs diferentes. 11) A alteração do DMF implica necessariamente que o medicamento final seja diferente, dado que o processo de fabrico do ingrediente activo foi alterado. 12) Os certificados de análise do produto esomeprazol B...constantes do processo administrativo instrutor, com a versão alterada do DMF (pastas amarelas), os dois certificados de análise da empresa Solvias AG juntos aos autos pela B...e o depoimento das testemunhas Sverker Von Unge, R. Rao, Petur Olafsson e Luis Constantino corroboram plenamente as decisões do Tribunal a quo quanto a matéria de facto assente que fundamentou a sentença recorrida. 13) O produto esomeprazol B...que está na base das AIMs aprovadas pelo Infarmed em 29.10.2009 é um sal de magnésio com uma pureza óptica igual ou superior a 99,8% de excesso enantiomérico, o que indiciava a violação da patente da A...EP1020461. 14) Porém, a B..., ao se aperceber que a substância activa esomeprazol inicialmente submetida à aprovação do Infarmed, em Setembro de 2008, era susceptível de violar a patente da A...(que apenas foi concedida em Julho de 2009), desenvolveu com a C...um outro processo de fabrico do esomeprazol de forma a contornar a patente da A...e com vista à apresentação de um pedido de alteração do DMF das AIMs junto do Infarmed. 15) Em 31.05.2010, a B...requereu junto do Infarmed uma alteração tipo li (alteração do DMF) das AIMs dos medicamentos esomeprazol B..., que foi aprovada por despacho do Infarmed de 29.09.2010. 16) Nessa alteração, o sal de magnésio esomeprazol B...já apresenta um valor de R-omeprazol superior a 0,1% (e não igual ou superior a 0,2% como erradamente refere a sentença), ou seja, com um excesso enantiomérico inferior a 99,8%. 17) Portanto, o Tribunal a quo deu como provado que, após a alteração aprovada pelo Infarmed em 29.09.2010, a substância activa contida nos medicamentos esomeprazol B...encontra-se fora do âmbito das reivindicações da patente EP1020461. 18) O Facto n.º 23 da factualidade assente pela primeira instância deve permanecer inalterado. 19) O Facto n.º 28 da factualidade assente pela primeira instância deve ser corrigido (e não eliminado como sustenta da Recorrente) porque a menção a um valor de R-omeprazol igual ou superior a 0,2%, em vez de superior a 0,1%, é um manifesto erro de escrita do MS Juiz a quo. 20) O Mº Juiz só podia decidir que a substância tem um excesso enantiomérico inferior a 99,8% se tivesse concluído (como concluiu, e bem) que o valor da impureza R-omeprazol era superior a 0,1% {vide pág. 25 segundo parágrafo da sentença). 21) Tendo em conta os documentos a que alude o próprio Me Juiz a quo para sustentar a sua decisão, o Facto n.º 28 deve passar a ter a seguinte redacção: «Nessa alteração, o sal de magnésio esomeprazol B...subjacente aos medicamentos que pretende introduzir no mercado apresenta um valor de R-omeprazol superior a 0,1% (...) sobre os quais sustentam os despachos do Infarmed». 22) Atento o princípio do dispositivo, a parte do depoimento da testemunha Sverken von Unge sobre o processo de fabrico do esomeprazol B...é absolutamente irrelevante porque versa sobre matéria de facto alheia aos presentes autos, pelo que a passagem do depoimento dessa testemunha registada a partir do minuto 00:50:48 não pode ser considerada pelo Tribunal. 23) A matéria de facto indicada para o interrogatório da testemunha Sverken von (artigos 61, 90, 91 e 93 do requerimento inicial e os artigos 107, 108, 109, 111, 112, 114, 116, 117, 119 e 120 do articulado de resposta às oposições) não faz qualquer referência ao processo de síntese do esomeprazol fabricado pela C...e ao possível resultado desse processo. 24) A Requerente teve plena oportunidade de alegar os factos relativos ao processo de síntese do esomeprazol B...no articulado de resposta à oposição da B..., mas não o fez, limitando-se a tecer considerações sobre os certificados de análise incluídos no DMF. 25) No dia 1 de Setembro de 2011, o Governo português aprovou a Proposta de Lei n.º 13/XIl onde se reconhece expressamente que a concessão das AlMs não depende da apreciação, pelas entidades administrativas competentes, da eventual existência de direitos de propriedade industrial. 26) Para que não restem dúvidas sobre a aplicabilidade da futura lei aos processos pendentes nos Tribunais Administrativos, o artigo 9.º, nº 1 estipula que "a redacção dada pela presente lei aos artigos 19.º, 25.- e 179.- do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, bem como o aditamento introduzido ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos e o disposto no artigo anterior, têm natureza interpretativa". 27) Atenta a interpretação autêntica e vinculistica, na data em que essa Lei entrar em vigor o "bloco de legalidade" deverá necessariamente ser interpretado no sentido de que as AIM, os PVP e os despachos de comparticipação de medicamentos genéricos não são susceptíveis de ser contrários a direitos de propriedade industrial, nem podem ser recusados, suspensos ou alterados por causa de tais direitos. 28) De acordo com o Estatuto do Medicamento pode concluir-se que a concessão de uma AIM apenas assegura a qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos autorizados. 29) O problema relacionado com a violação de um direito de propriedade industrial deve apenas ser apreciado aquando da comercialização efectiva dos medicamentos. 30) O Infarmed não deve e não pode recusar um pedido de AIM, com base na susceptibilidade de infracção de direitos de propriedade industrial, pois não tem fundamento legal para esse efeito (cfr. artigo 25 do Estatuto do Medicamento). 31) Existe uma clara falta de causalidade entre os actos de AIM / aprovação de PVP e os danos invocados pela Requerente, pelo que não se revela ser possível a ocorrência de uma situação de facto consumado. 32) É sabido que o Estado português encontra-se em graves dificuldades financeiras e tem vindo a efectuar inúmeros cortes no sector da saúde para garantir a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde. 33) É muito provável que a não entrada dos medicamentos esomeprazol B...no mercado, devido à conduta abusiva da Requerente, venha a tornar inacessível a referida substância activa a um número significativo de doentes. 34) A protecção da saúde pública traduz a expressão de um interesse público de toda a colectividade que, nos termos do artigo 649, n.ºs 3 da Constituição, incumbe ao Estado tutelar. 35) O que é suficiente para se perceber que os prejuízos causados ao Estado e ao interesse público com o decretamento da presente providência são muito superiores aos danos abstractamente invocados (e não dados como provados pelo Tribunal a quo) pela Requerente. 36) O tribunal competente para julgar os factos subjacentes à causa de pedir na presente providência é o Tribunal de Comércio de Lisboa (cfr. artigo 89.9, n.º 1, al. f) e h) da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais -" LOFTJ"), pelo que o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa deve ser declarado materialmente incompetente para conhecer a presente providência cautelar» (sic). O EMMP emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. Vindo os autos à conferência foi votado, em sentido negativo, o projecto de acórdão apresentado pela Relatora inicial do processo, que concedia provimento ao recurso, tendo sido então lavrado o presente acórdão, tendo como relator o 1.º adjunto. * II – Fundamentação II.1 – De facto A sentença deu como indiciariamente provados os seguintes factos: 1. A Requerente está integrada no grupo farmacêutico empresarial internacional A.... 2. O esomeprazol é uma substância activa conhecida como um inibidor da bomba de protões, que actua como inibidor do ácido gástrico no tratamento da doença de refluxo esofágico, de úlceras no estômago e na parte superior do intestino. 3. No ano de 1988, a Requerente lançou no mercado um medicamento com o nome genérico de omeprazole que foi o primeiro inibidor da bomba de prótons sob o nome comercial de Losec. 4. O Losec apresenta-se como uma mistura de dois enantiómeros, o isómero (R) omeprazol e o isómero (S) omeprazol, moléculas que são imagens espelho uma da outra e que são pró-fármacos inactivos que apenas se convertem no estômago em inibidores activos da bomba de protões. 5. O grau de pureza óptica de um determinado composto quiral varia na razão inversa da quantidade presente do enantiómero indesejado (a imagem num espelho, de sinal contrário, desse composto) 6. A impureza óptica é, pois, o enantiómero indesejado e quanto menor for a quantidade desse enantiómero no composto, maior será a pureza óptica do mesmo. 7. A medida da pureza óptica de um composto quiral é o chamado “excesso enantiomérico”. 8. No caso do esomeprazol, a impureza é constituída pelo enantiómero R, ou seja, o (+)-omeprazol (ou R-omeprazol). 9. Após um programa de investigação para identificar um inibidor da bomba de protões com uma melhor performance que o Losec, os cientistas da A...descobriram que sais de S-omeprazol de elevada pureza óptica tinham características farmacológicas e vantagens clínicas inesperadas. 10. O esomeprazol é formulado pela A...como produto farmacêutico na forma de sal de magnésio de S-omeprazol – ou sal de esomeprazol. 11. O ingrediente activo é o sal de esomeprazol. 12. O produto farmacêutico esomeprazol é comercializado em Portugal pela Requerente sob a marca de Nexium. 13. A substância activa do Nexium é um sal de esomeprazol com uma pureza óptica de pelo menos 99,8% de excesso enantiomérico. 14. Em 25 de Junho de 2009, o Instituto Europeu de Patentes (EPO) concedeu à A...a Patente Europeia EP 1020461, sendo Portugal um dos Estados Contratantes designados. 15. Em 22 de Julho de 2009, a A...apresentou no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) uma tradução em Português da EP 102046, incluindo a descrição, as reivindicações e o resumo. 16. A Rte é titular da Patente Europeia nº1020461 com o título: “SAL DE MAGNÉSIO DO ENANTIÓMERO (-) DE OMEPRAZOLE” (conforme certidão emitida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), a fls. 77, cujo teor se dá por integralmente reproduzido). 17. O limite máximo de vigência da Patente é até 27.05.2014. 18. A EP 1020461 foi pedida em 27 de Maio de 1994. 19. A EP 1020461 tem 13 reivindicações, todas relativas ao sal de magnésio do esomeprazol com elevada pureza óptica, de pelo menos 99,8% de excesso de enanciomeria e à sua utilização no fabrico de medicamentos. As reivindicações da EP 1020461 são as seguintes: 20. O “medicamento de referência” do Esomeprazol B...é o produto da Requerente, o Nexium (comprimido gastrorresistente) comercializado pela sua filial, A...Products Farmacêuticos (cfr. doc. de fls. 112 e sgts). 21. Tendo o esomeprazol B...várias indicações terapêuticas (ponto 4.1 do RCM) como: - doença do refluxo gastro-esofágico (DRGE); - cicatrização de úlceras gástricas associadas à terapêutica com AINEs e prevenção de úlceras gástricas e duodenais associadas à terapêutica com AINEs nos doentes em risco; - tratamento do síndrome de zollinger-Ellison (cfr. doc de fls. 135 a 206 RCM resumo das características dos medicamentos). 22. Em 29 de Outubro de 2009, foi concedida pelo Infarmed à contra-interessada B...autorização para introdução no mercado de 12 medicamentos, contendo como princípio activo o magnésio do esomeprazol, os quais apresentavam a seguinte designação: Emerol, 20 mg, cápsula gastrorresistente; Emerol, 40 mg, cápsula gastrorresistente; Esomeprazol B..., 20 mg gastrorresistente; Esomeprazol B..., 40 mg cápsula gastrorresistente; Omoloc, 20mg cápsula gastrorresistente; Omoloc, 40mg cápsula gastrorresistente; Metrosiz 20mg cápsula gastrorresistente; Metrosiz 40mg cápsula gastrorresistente; Trigazel 20 mg cápsula gastrorresistente; Trigazel 40 mg cápsula gastrorresistente; Trogasix 20 mg cápsula gastrorresistente e Trogasix 40 mg cápsula gastrorresistente (cfr. doc. de fls. 100 e sgts.) 23. Os medicamentos de Esomeprazol B...que estão na base das AIM´s referidos no ponto anterior são compostos farmacêuticos contendo sal de magnésio de esomeprazol com uma pureza óptica de mais de 99,8% de excesso enantiomérico como substância activa. 24. A DGAE aprovou os preços dos medicamentos de Esomeprazol B...que estão na base destas AIM´s, a 14 de Janeiro de 2010 (cfr. doc. de fls. 117 e fls. não numeradas do processo administrativo junto aos autos pelo MEI). 25. A fornecedora do ingrediente farmacêutico activo esomeprazol da B...é a C...Ltd., que é uma sociedade química e farmacêutica que opera em todo o mundo, com sede em Mumbai Central, Índia, sendo especializada no fabrico de ingredientes farmacêuticos activos utilizados nos medicamentos. Tem fábricas, designadamente, em Bangalore e kurkumbh. 26. Em 31.05.2010 a B...requereu junto do Infarmed relativamente a cada um dos medicamentos referidos em 22., nos termos do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, a alteração tipo II – alteração do DMF – drug master file (cfr. doc. de fls. 955 a 960). 27. Por despacho de 29.09.2010 foram autorizados estes pedidos de alteração tipo II – actualização do DMF da substância activa fabricada pelo fabricante C...Ltd (...– ..., Ind – 560 049 Bangalores, índia) incluindo a adição do fabricante da substância activa C...Ltd. (Plot nº D- 7, D-27, MIDC Industrial Área, Kurkumbh Village taluka- Daund, pune (Maharahtra), índia. (cfr. fls. 1351 a 1356 dos autos). 28. Nessa alteração, o sal de magnésio esomeprazole B...subjacente aos medicamentos que pretende introduzir no mercado apresenta um valor de R. omeprazole igual ou superior a 0,2% (cfr. informações do Infarmed e quadros nelas contidos – cfr. fls. 3 a 9, 768 a 774, 1531 a 1538, 2298 a 2304, 3063 a 3069, 3847 a 3853 do processo junto aos autos em 27.94.08 (cfr. fls. 1440) composto de pastas amarelas), sobre as quais que sustentam os despachos do Infarmed. * II.2 – De Direito Como se sabe o âmbito do recurso é limitado pelas conclusões do recorrente, seja no recurso principal, seja no subordinado. Vem isto a propósito da contra-Interessada B...ter invocado nas suas contra-alegações a ilegitimidade activa da recorrente e a excepção da incompetência absoluta do Tribunal - em rigor, a do Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa - em razão da matéria. Estas questões foram definitivamente decididas na sentença recorrida, por não terem sido impugnadas, sendo por isso descabido suscitá-las no referido articulado, que não respeita a recurso independente ou subordinado. * A recorrente veio colocar em causa o efeito devolutivo do recurso, fixado no tribunal a quo. Como se sabe, o efeito do recurso fixado no despacho que o admite não vincula o tribunal superior. Ora, nos termos do art.º 143.°, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, “os recursos interpostos de intimações para protecção de direitos, liberdades e garantias e de decisões respeitantes à adopção de providências cautelares têm efeito meramente devolutivo”. Como se sabe as decisões dos tribunais administrativos têm, em regra, efeito suspensivo (art.º 143.º, n.º 1, do CPTA). Só é atribuído efeito devolutivo aos "recursos interpostos de intimações para protecção de direitos, liberdades e garantias" e bem assim às "decisões respeitantes à adopção de providências cautelares". (citado art.º 143.º, n.º 2, do CPTA). O vocábulo adopção tem, na economia do preceito, o sentido de aceitação ou acolhimento. Ora, no caso sub judice não foi adoptada, acolhida, aceite qualquer pretensão cautelar, isto é, alguma providência. Pelo contrário, a providência requerida foi rejeitada. Logo, o efeito é o previsto no n.º 1 do artigo em causa, ou seja, o efeito do recurso é suspensivo. * A recorrente impugna a matéria de facto fixada pela Mm.ª Juíza a quo, no que concerne ao facto n.º 28 da matéria de facto provada, cuja redacção é a seguinte: Nessa alteração [referida no n.º antecedente, ou seja, os pedidos de alteração tipo II – actualização do DMF da substância activa fabricada pelo fabricante C...Ltd (...– ..., Ind – 560 049 Bangalores, índia) incluindo a adição do fabricante da substância activa C...Ltd. (Plot nº D- 7, D-27, MIDC Industrial Área, Kurkumbh Village taluka- Daund, pune (Maharahtra), índia., autorizadas por despacho de 29.09.2010], o sal de magnésio esomeprazole B...subjacente aos medicamentos que pretende introduzir no mercado apresenta um valor de R. omeprazole igual ou superior a 0,2% (cfr. informações do Infarmed e quadros nelas contidos – cfr. fls. 3 a 9, 768 a 774, 1531 a 1538, 2298 a 2304, 3063 a 3069, 3847 a 3853 do processo junto aos autos em 27.94.08 (cfr. fls. 1440) composto de pastas amarelas), sobre as quais que sustentam os despachos do Infarmed. A recorrente pretende que com base nos documentos indicados na sentença [fls. 3 a 9, 768 a 774, 1531 a 1538, 2298 a 2304, 3063 a 3069, 3847 a 3853] o tribunal de recurso está em condições de modificar a resposta dada, tanto mais que o depoimento das testemunhas que a sentença convoca como suporte para a resposta não é contraditório com a posição que defende. O art.º 685.º-B, do CPC (aplicável ex vi do art.º 1.º do CPTA), estabelece o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, nestes termos: 1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. 3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe ao recorrido, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, podendo, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. 4 - Quando a gravação da audiência for efectuada através de meio que não permita a identificação precisa e separada dos depoimentos, as partes devem proceder às transcrições previstas nos números anteriores. 5 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 684.º-A. (Redacção do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto). Pese embora a redacção do n.º 1 possa levar a concluir, prima facie, que o objecto da impugnação da matéria de facto é toda a prova produzida no tribunal a quo, a reapreciação da prova no tribunal ad quem não visa um novo julgamento da matéria de facto mas apenas a sindicância ou averiguação sobre os factos incorrectamente julgados, que numa diferente apreciação podem conduzir a um desfecho fáctico diferente daquele que foi obtido no tribunal inferior. Por isso é que a lei exige que na impugnação da matéria de facto sejam obrigatoriamente individualizados os concretos pontos de facto que o impugnante considera incorrectamente julgados, indicando os motivos da sua discordância e o modo como tal julgamento devia ter sido efectuado, bem como os respectivos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados. E quando esses meios se reconduzem à prova testemunhal, que o impugnante individualize os segmentos dos depoimentos que suportam a sua discordância relativamente à apreciação feita no tribunal a quo. E se o não fizer a lei é clara na cominação: o recurso deve ser imediatamente rejeitado nessa parte, isto é, no que toca à impugnação da matéria de facto. Percebe-se a opção do legislador: como o recurso relativo à decisão sobre a matéria de facto, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal a quo, é de reponderação e não de reexame, o juízo do tribunal superior terá de ser baseado nos mesmos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal de 1.ª instância, sem esquecer que estando aquele privado da oralidade e da imediação que foram determinantes na decisão deste, os aspectos relacionados com comportamentos gestuais ou sinais de expressão das testemunhas - que por regra não são captados nos registos áudio - limitam ou condicionam a reapreciação da prova, pese embora, a nosso ver, não a restrinjam aos casos de manifesto erro ou grosseira apreciação. No caso em apreço e não obstante constar da acta relativa à audiência de julgamento que esta foi gravada, a recorrente não cumpriu o referido ónus, indicando com precisão as passagens dos depoimentos das testemunhas que, em seu entender, justificariam, no confronto com os documentos indicados na sentença, conclusão fáctica diversa da plasmada no n.º 28 desta. Assim, o recurso sobre a matéria de facto tem de ser rejeitado pelas razões acima referidas, sempre se adiantando que a sumariedade que preside à obtenção de prova em procedimento cautelar permite a formulação de meros juízos de verosimilhança, e que nessa perspectiva é diminuto o peso que o ponto de discordância fáctica arguido pela recorrente poderia ter na decisão final cautelar. De resto e com bem defende a recorrida contra-interessada, a menção a um valor de R-omeprazol igual ou superior a 0,2%, em vez de superior a 0,1%, é um manifesto erro de escrita da Mm.ª Juíza a quo, porque só com este valor é que seria possível afirmar, como expressamente o fez, que a substância tem um excesso enantiomérico inferior a 99,8%. Mas reiterando a irrelevância de tal facto para a decisão de fundo, como adiante melhor ressaltará, decide-se manter intocada a matéria de facto fixada na primeira instância. * A rejeição do recurso na parte relativa à matéria de facto não prejudica, ao contrário do que defende a recorrida B..., a tempestividade do recurso. De facto, a extensão do prazo do recurso prevista no art.º 685.º, n.º 7, do CPC, não depende da procedência ou admissão da impugnação da matéria de facto, mas apenas da ampliação do objecto do recurso a tal impugnação, independentemente do desfecho que esta venha a ter. * Na apreciação de fundo das questões colocadas neste recurso, reproduzir-se-á a fundamentação exarada no Acórdão de 10-11-2009, processo n.º 8055/11, do mesmo Relator, por serem substancialmente idênticas, para a tese que faz vencimento, as questões a solucionar. Tal fundamentação é a seguinte: “No presente procedimento cautelar debate-se uma questão que tem merecido da doutrina e da jurisprudência respostas contraditórias. Tal questão consiste em saber se, perante o novo Estatuto do Medicamento (EM), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, os actos de Autorização de Introdução no Mercado (AIM) de medicamentos genéricos, bem como os actos que fixam os respectivos preços de venda ao público (PVP) se devem debruçar, ou não, sobre as questões de direito de propriedade industrial (DPI), rectius, sobre o direito à patente do medicamente original ou medicamento de referência. Parte da doutrina portuguesa, sobretudo expressa em pareceres juntos a processos judiciais, designadamente deste TCAS, sustenta um ponto de vista afirmativo, baseando-se na natureza análoga aos direitos liberdades e garantias do DPI, o que na sua óptica imporia a rejeição da neutralidade administrativa no domínio da concessão das AIM, obrigando o INFARMED a sindicar a eventual colisão do medicamento genérico com patente em vigor, ainda que o EM não lhe imponha expressamente tal actuação(1). Para outra doutrina, porém, tal dever não existe. Por um lado sustenta que a patente é direito patrimonial limitado pela sua função social que, sendo embora absoluto, no sentido de que deve ser respeitado por todos (eficácia erga omnes), não tem natureza de direito fundamental equiparável aos “direitos, liberdades e garantias”. Por outro, a lei portuguesa actual (ao contrário do que sucedia no anterior EM) e o ordenamento jurídico comunitário não prevêem nem muito menos impõem que na concessão de AIM sejam tidos em consideração quaisquer direitos de propriedade industrial. Neste contexto o INFARMED não pode actuar como autoridade de fiscalização ou controlo de existência, validade ou influência de patentes no procedimento de AIM, porque apenas lhe cabe sindicar os aspectos do medicamente que possam conflituar com a saúde pública, os quais se encontram legal e taxativamente fixados. A jurisprudência administrativa tem-se dividido quanto a estas questões. Nos tribunais de primeira instância há decisões contraditórias e neste TCA apenas um punhado de acórdãos, entre dezenas já proferidos sobre a questão dos medicamentos genéricos, tem seguido em maior ou menor grau a doutrina resumida em segundo lugar. Na verdade, para a corrente maioritária da jurisprudência deste tribunal, não só o direito de patente é análogo aos direitos, liberdade e garantias, perspectivando-se como fundamental, como na AIM têm de ser considerados eventuais DPI existentes, sob pena de ilegalidade de tal acto administrativo. E nesta perspectiva a referida jurisprudência vislumbra inconstitucionalidade na norma do art.º 25.º, n.º 1, do EM, “por falta de protecção mínima de um direito fundamental, se for interpretada como fixação taxativa dos fundamentos de indeferimento, obrigando o INFARMED a deferir o requerimento e proibindo-o de tomar conhecimento da existência da violação de patente, tal como seria inconstitucional a produção de efeitos contrários à patente.”(2). Para além disso, as relações poligonais ou multipolares que giram em torno da introdução de medicamentos no mercado impõem a presença de todos os interessados no procedimento de AIM, pelo que a falta da sua audição gera a ilegalidade do respectivo acto administrativo. Há quem entenda, porém, que a concessão da AIM permite apenas que o interessado encete os preparativos da comercialização, que só pode iniciar-se quando findar o período de protecção da patente. O Supremo Tribunal Administrativo analisou estas “correntes interpretativas antagónicas”, que em seu entender não devem censuradas em Recurso de Revista cautelar, desde que qualquer delas “apresente base textual e coerência argumentativa, ficando a decisão de semelhante questão jurídica para o lugar e tempo oportuno que é a sentença na acção principal”(3) * A lei define medicamento genérico como sendo o medicamento com a mesma composição qualitativa e quantitativa em substâncias activas, a mesma forma farmacêutica e cuja bioequivalência com o medicamento de referência haja sido demonstrada por estudos de biodisponibilidade apropriados [art.º 3.º, n.º 1, al. nn), do EM]. Identificado pela substância activa e pela sua denominação comum ou designação comum internacional, o genérico tem a grande vantagem de apresentar um custo inferior ao do medicamento de referência, já que nele não se repercutem os custos de pesquisa e desenvolvimento do medicamento original. Sendo o preço um elemento decisivo na competitividade industrial, é fácil perceber que a introdução de genéricos no mercado não é do agrado das grandes empresas farmacêuticas, que despendem anualmente elevadíssimas quantias em inovação e desenvolvimento de medicamentos. Daí que se tenha vindo a assistir em todo o mundo a uma luta entre estas e os produtores de genéricos e muitas vezes entre as mesmas e governos, sobretudo de países que antes de 1994 não concediam patentes a medicamentos (v.g. Argentina, o Brasil, o Chile, Índia, Indonésia, Tailândia, Taiwan, Turquia e a Coreia do Sul). Com o Acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), obtido nesse ano na Uruguay Round, que transformou o General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), na World Trade Organization, foi estabelecido um conjunto mínimo de normas protectoras de propriedade industrial, que não sendo directamente invocáveis perante as jurisdições nacionais, impunham aos países signatários a obrigação de as transpor e adaptar para o direito interno, passando a existir assim um quadro normativo internacional com princípios comuns em matéria de Propriedade Intelectual(4). A duração temporal da protecção das patentes foi estabelecida, no artigo 33.º pelo período de vinte anos, contados a partir da data de depósito ou do pedido. Contudo o Acordo possibilitou aos Estados afrouxar a rigidez desta disposição, tendo em conta as necessidades, designadamente de saúde pública, e as concretas condições vigentes em cada país. Com a Declaração de Doha (2001) foi reafirmada a possibilidade dos Estados protegerem a saúde pública, promovendo o acesso a medicamentos, em particular através de licenças obrigatórias, como sucedeu no Brasil em 2007 com o anti-retroviral Efavirenz. No que concerne à possibilidade de utilização de direitos exclusivos conferidos pela patente, a cláusula 30.º do Acordo TRIPS(5) permite que os Estados consagrem na legislação interna a chamada “cláusula bolar”, ou seja, a possibilidade de realização de testes e ensaios clínicos e, sobretudo, a apresentação de autorizações de introdução no mercado durante o período de vigência da patente. Essa cláusula foi introduzida, implicitamente, no ordenamento jurídico comunitário pela Directiva n.º 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001 (alterada, nomeadamente, pela Directiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004), que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, e onde se afirma que a autorização de introdução no mercado apenas pode ser recusada “pelas razões enumeradas na presente directiva”, entre as quais não se incluiu qualquer consideração de DPI, mas apenas ponderações relacionadas com a saúde pública (cfr. art.º 126.º) Aliás, o considerando 14.º da Directiva 2004/27/CE expressamente refere que dada a importância que os medicamentos genéricos têm no mercado dos medicamentos, “convém, à luz da experiência adquirida, facilitar o seu acesso ao mercado comunitário. Além disso, deverá ser harmonizado o período de protecção de dados respeitante aos ensaios pré-clínicos e clínicos”; A nova redacção dada por essa Directiva ao artigo 10.º, n.º 6, da Directiva n.º 2001/83/CE é elucidativa quanto a esta questão: “A realização dos estudos e ensaios necessários à aplicação dos n.os 1, 2, 3 e 4 e os consequentes requisitos práticos não são considerados contrários aos direitos relativos à patente nem aos certificados suplementares de protecção de medicamentos” (negrito nosso), devendo entender-se que a expressão requisitos práticos se refere a todos os actos tendentes a obter uma AIM. No ponto V, n.º 11, da Posição comum (CE) n.º 61/2003, adoptada pelo Conselho em 29 de Setembro de 2003 refere-se que “A alteração 134 relativa à denominada cláusula de tipo "Bolar" sobre protecção de patente foi aceite quanto ao seu princípio, excepto a parte referente a medicamentos para exportação. Em relação à apresentação de pedidos de autorização e à concessão das mesmas, o Conselho considera que estas actividades, sendo de natureza administrativa, não infringem a protecção de patentes. O Conselho e a Comissão sublinharam esta ideia numa declaração conjunta(5). Deste modo, não é necessário ou apropriado incluir estas actividades numa disposição relativa a excepções à protecção de patentes"(6) (negrito nosso). De resto, em Espanha, o legislador da Ley 29/2006, de 26 de julio (Lei do medicamento), que transpôs para o ordenamento jurídico espanhol as Directivas acima referidas, modificou a Lei de Patentes com propósito, expressamente afirmado na exposição de motivos, de introduzir a cláusula Bolar. E em Portugal, embora o legislador português não tenha sido tão assertivo, pode dizer-se que essa regra (cláusula Bolar) está aflorada nos art.os 18.º, n.º 4, e 19.º, n.º 1, e, implicitamente, no art.º 25.º, n.º 1, do EM, considerando neste caso a taxatividade das razões que podem justificar a recusa de AIM, nas quais não se inclui quaisquer considerações de DPI(7). Note-se, alias, que o EM expressamente invoca a transposição do direito comunitário em matéria de medicamentos para uso humano, que além de ser a causa genética do diploma nacional, goza de primazia na sua aplicação e constitui parâmetro incontornável na interpretação do direito interno. Mas onde esta excepção ou clausula Bolar se mostra de modo mais impressivo é na alínea c) do artigo 102.º do Código da Propriedade Industrial (CPI), que apenas impede o inicio da exploração industrial ou comercial dos produtos antes de se verificar a caducidade da patente que os protege. Dir-se-á, portanto, que a lei portuguesa está conforme à legislação comunitária neste domínio e ao Acordo TRIPS já referido, encontrando-se em sintonia com a esmagadora maioria dos restantes ordenamentos jurídicos comunitários e mesmo com os demais a nível mundial. Aliás, porque a interpretação que tem sido acolhida pela jurisprudência maioritária deste Tribunal escapa à consensualidade legislativa e jurisprudencial reinante na Europa, é que a Comissária Europeia da Concorrência, no relatório final do inquérito realizado ao sector farmacêutico da União(8), refere Portugal como um case study, pelos entraves que foram colocados à comercialização de genéricos por parte das empresas de medicamentos originais através de acções, incluindo procedimentos cautelares, que foram intentados nos tribunais administrativos. Argumenta-se contudo, em contrário, com uma suposta afronta das AIM ao DPI e, por via disso, de uma inconstitucionalidade por ofensa a um direito fundamental, visto como direito análogo aos direitos, liberdades e garantias(9). Mas, salvo o devido respeito, nem uma nem outra se verificam. O Conselho e a Comissão da Comunidade Europeia são uníssonos a este respeito: “O Conselho e a Comissão consideram que a apresentação e a subsequente avaliação de um pedido de autorização de introdução no mercado, bem como a concessão de uma autorização, são tidos como actos administrativos e como tal não infringem a protecção das patentes”(10). No voto de vencido aposto pelo relator no Ac. do TCAS n.º 06154/10, de 06-05-2010, argumenta-se que a já referida cláusula ou excepção "Bolar", que visa incrementar a presença de genéricos no mercado e favorecer a competitividade e a saúde publica, permite a apresentação do pedido de AIM de medicamento genérico na vigência da patente, possibilitando a sua comercialização logo que a patente caduque, o que demonstra que a AIM não contende com a patente. Aliás, é o que resulta do art.º 18.º, n.º 4, do EM e é defendido pela doutrina no âmbito do DPI, embora se entenda que a comercialização não possa iniciar-se antes de se verificar a caducidade da patente(11). Se a AIM só pudesse ser concedida depois da patente ter caducado isso significaria que o medicamento genérico só podia ser comercializado em momento posterior. Ora, não é isso que resulta do CPI: o direito de exploração por terceiro de um invento protegido pela patente surge logo que tiver expirado o seu prazo de duração [art.º 37.º, n.º 1, al. a), do CPI], o que aponta para uma exploração imediata, incompatível com um processo administrativo autorizativo que só pudesse iniciar-se a posteriori(12). De facto, a violação de uma patente só se verifica no momento em que a cópia não autorizada do produto protegido é introduzida no mercado. É nesse momento que os direitos económicos e de exclusivo que a patente confere são efectivamente afrontados. Esta afirmação demonstra-se através do princípio do esgotamento das patentes, na maioria dos casos relacionado com importações paralelas de medicamentos, segundo o qual o titular da patente perde o direito a opor-se a posteriores comercializações do produto logo que o coloca no mercado. Isto é, a partir do momento da sua introdução legítima num mercado de determinado país, o produto pode ser comercializado no território de outro país que admita a importação, sem que o titular da patente nesse Estado se possa opor. O que justifica este princípio é a ideia de que o monopólio legalmente atribuído ao titular do direito, até por constituir uma excepção à regra da liberdade do comércio, deverá confinar-se ao mínimo indispensável ao desempenho da respectiva função(13). A ordem jurídica nacional consagra o princípio do esgotamento do direito de patente no art. 103.º do CPI; para além disso permite importações paralelas de medicamentos (cfr. art.os 80.º a 91.º do EM). Esta possibilidade demonstra, por sua vez, que a AIM de um medicamento genérico não pode ser vista como acto violador, ou se se quiser, como acto que autoriza a violação da patente do medicamento de referência. Pense-se na hipótese de um fabricante pedir em Portugal uma AIM para um medicamento genérico. Segundo a jurisprudência maioritária deste tribunal a concessão dessa AIM não seria possível por violação do direito de patente do medicamento de referência. Imagine-se então que o mesmo fabricante obteria uma AIM europeia ou noutro país da União. Assim, pese embora não fosse titular de AIM nacional nem por isso deixaria de poder comercializar o produto através da sua importação paralela! O absurdo desta solução, salvo o devido respeito demonstra a falta de fundamento da tese dominante e a sua desconformidade com o direito nacional e, maxime, com o direito europeu. Concluiu-se, assim, que se o direito de exclusivo se esgota no exacto momento em que o bem é vendido dentro do espaço europeu, então a violação de tal direito de exclusivo só ocorre, em concreto, quando o produto contrafeito ou cópia é introduzido no comércio. E se assim é a questão da inconstitucionalidade torna-se irrelevante, na medida em que no momento da concessão da AIM nenhuma ofensa ao direito da patente se verifica. E mesmo que se verificasse, então haveria que ponderar outras violações de direitos fundamentais, desde logo o direito à saúde de largas camadas da população e a própria sustentabilidade económico-financeira do Estado, que podem ser postos em causa por práticas restritivas da introdução de genéricos no mercado; e nesse contexto afigura-se-nos que a solução para essa colisão de direitos seria a de dar prevalência a estes últimos, designadamente à saúde pública em detrimento dos direitos particulares de natureza económica, do titular da patente (cfr. art.º 335.º, n.º 2, do CC). Tem sido invocado, porém, o argumento do EM impor que o titular do AIM inicia a comercialização no prazo de três anos após a concessão, o que tornaria a AIM numa verdadeira “Imposição de Introdução no Mercado”. Nessa perspectiva a AIM seria manifestamente violadora de DPI se concedida mais de três anos antes da caducidade da patente. Não nos parece correcta esta visão. Em primeiro lugar a AIM não pode ser vista como uma imposição; não passando de uma autorização, como o próprio nome indica, nenhuma obrigação legal impõe ao beneficiário da mesma a introdução inexorável do medicamento no mercado. Em segundo lugar a concessão da AIM não retira ao titular da patente os direitos que lhe assistem em caso de comercialização indevida do medicamento genérico. Em terceiro lugar, iniciado o procedimento de concessão de AIM de tal modo que esta seja concedida antes do inicio do prazo de três anos, recai apenas sobre o seu titular a impossibilidade de comercialização, se outras razões não existirem e que possam ditar solução diferente, designadamente em termos de suspensão desse prazo. Como quer que seja não parece que o argumento tenha consistência tal para, por si mesmo, suportar a construção teórica que dele pretende retirar acrescidas virtualidades. Em face de todo o exposto, pode concluir-se que apenas é exigível que o INFARMED se assegure, na concessão da AIM, de que a comercialização do medicamento se faz em condições que garantam a saúde pública, e sem que essa autorização envolva a apreciação de eventual ofensa a direito de patente ou assegure definitivamente a introdução do medicamento no mercado. Com efeito, outras autorizações são necessárias, desde logo a fixação do PVP, o que prova que a AIM não pode ser encarada como autorização em termos absolutos, na qual se tenham de apreciar todos e quaisquer aspectos ligados à comercialização dos medicamentos. E nesta visão das coisas não está na sua finalidade apreciar eventuais colisões com DPI. Se a AIM fosse susceptível de violar patente farmacêutica, ainda que indirectamente, seria incompreensível a exigência legal de demonstração da bioequivalência (art. 19.º, n.º 1, do EM), que por si só implica a produção, ainda que limitada, do medicamento genérico na vigência da patente. De resto, nem sequer o fabrico do medicamento para aprovisionamento, com o fito da sua comercialização logo que caducada a patente, lesa o DPI do respectivo titular. Deste modo, as alusões ao direitos de propriedade industrial que o EM faz nos seus art.os 18.º, n.º 4, 19.º, n.º 1 e 8, 20.º, n.º 1, constituem meras cláusulas de salvaguarda de tais direitos, não podendo tais normas ser encaradas como impondo uma conduta à Administração em defesa daqueles(14), que para além do mais sempre seria incompatível com o quadro jurídico comunitário. Dessas normas apenas se pode retirar, como corolário, que o beneficiário da AIM não se pode prevalecer desta para se eximir à responsabilidade civil, contra-ordenacional ou mesmo criminal a que a sua conduta dê lugar, expressamente afirmada no art.º 29.º, n.º 1, al. n), do EM. Em resumo, dir-se-á que na nossa perspectiva não só a mera concessão de AIM não ofende os direitos de patente como não cabe ao INFARMED assegurar a inexistência dessa violação. Dito de outro modo, não pode ser considerado parâmetro da aferição de legalidade desse acto administrativo a consideração de quaisquer eventuais DPI nem tão pouco a falta de audiência procedimental de eventuais interessados de pretensas relações poligonais ou multipolares, conexionadas com tal direito. E se para nós assim é face ao direito constituído, então de iure condendo nenhuma dúvida nos fica. Referimo-nos à proposta de Lei n.º 13/XII, votada favoravelmente, em votação global, no passado dia 28 de Outubro. Nessa proposta consagram-se alterações ao EM que, grosso modo, se reconduzem à perspectiva por nós acima traçada. Na exposição de motivos refere-se que “Quanto à concessão da autorização de introdução no mercado, a Comissão, na sequência do anteriormente assumido na Posição Comum n.º 61/2003, recorda que a legislação comunitária que rege o sector farmacêutico não prevê a apresentação de observações por parte de terceiros e, menos ainda, intervenções formais durante a avaliação de um pedido de autorização de entrada no mercado. Além disso, no que diz respeito à fixação dos preços e do regime de reembolso, a Comissão Europeia entende que os Estados-Membros não devem aceitar observações de terceiros em que sejam levantadas questões relacionadas com as patentes”. E acrescenta: “Por outro lado, e tendo em conta que a jurisprudência nacional vem entendendo que os direitos de propriedade industrial podem ser afectados pela concessão das autorizações de introdução no mercado, do preço de venda ao público e da comparticipação do Estado no preço dos medicamentos, estabelece-se a compatibilização que se considera adequada desses direitos com outros de idêntica relevância, como é o caso do direito à saúde e ao acesso a medicamentos a custos comportáveis, bem como dos direitos dos consumidores. Assim, e indo também ao encontro das recomendações da Comissão Europeia, prevê-se expressamente que a concessão das referidas autorizações não depende da apreciação, pelas entidades administrativas competentes, da eventual existência de direitos de propriedade industrial. Subsequentemente, estabelece-se, ainda, que os pedidos de autorização não possam ser indeferidos com esse fundamento e que as mesmas autorizações não podem ser alteradas, suspensas ou revogadas, pelas respectivas entidades emitentes, com base na subsistência desses direitos”. Na alteração proposta ao art.º 19.º, é modificado o número 7, nestes termos: “A realização dos estudos e ensaios necessários à aplicação dos n.ºs 1 a 6, e as exigências práticas daí decorrentes, incluindo a correspondente concessão de autorização prevista no artigo 14.º, não são contrárias aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de protecção de medicamentos”. E a redacção proposta para o art.º 25.º, n.º 2, é esta: “O pedido de autorização de introdução no mercado não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 18.º”. É referido ainda, no n.º 1 do art.º 9.º, sob a epígrafe “Disposições transitórias”, que “a redacção dada pela presente lei aos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, bem como o aditamento introduzido ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos e o disposto no artigo anterior, têm natureza interpretativa”. Como todas as considerações acima expendida valem tanto para as AIM como para a fixação de PVP, dir-se-á, para rematar, que nenhuma ilegalidade se vislumbra nos actos cuja suspensão se requer, claudicando as conclusões formuladas pela recorrente Merck, com especial destaque para a 23.ª, que além de ser intrinsecamente irrazoável e infundada juridicamente, face a todo o expendido não merece qualquer outra refutação, e para demais onde se suscitam questões sobre a matéria de facto, cuja ampliação ou reformulação nenhuma virtualidade teriam na modificação da decisão. E deste modo, não tendo sido arguidas ilegalidades relacionadas com considerações de eficácia, qualidade e segurança dos medicamentos, que coloquem em causa a protecção da saúde pública, tem de concluir-se que o acto suspendendo é perfeitamente legal e, concomitantemente, manifestamente ilegais e com evidente falta de fundamento, as pretensões formuladas pela requerente. Isto é, constata-se a existência de patente fumus malus iuris que funciona como fundamento da recusa da providência requerida e dispensa a averiguação dos demais requisitos (periculum in mora e ponderação de interesses), que sempre se adianta não existirem. O primeiro porque, pelas razões sobejamente explanadas, não existe qualquer perigo patrimonial para a requerente, decorrente directamente da AIM, perigo esse que só se concretizaria com a introdução do medicamento genérico no mercado, facto que nem sequer pode ser encarado como uma agressão ao direito de exclusivo que a patente confere, pois como já se salientou nada impede eventual importação paralela. A ponderação de interesses, a ser feita só poderia pender para o interesse público, face ao valor absoluto da saúde pública na colisão com os direitos de natureza económica da requerente”. A esta argumentação poderá ainda acrescentar-se que a tese que tem vindo a ser maioritariamente seguida neste tribunal, ao recusar a concessão da AIM na vigência da patente do medicamento de referência, estende efectivamente o prazo de vigência dessa patente pelo período correspondente ao tempo necessário – e que não é curto – para ultrapassar todos os trâmites administrativos que a introdução de um medicamento genérico acarreta. O que a nosso ver é uma consequência a todos os títulos injusta (bem vistas as coisas, ilegal) que resulta dessa mesma jurisprudência. Por outro lado, no presente procedimento o tribunal a quo concluiu pela inexistência de ofensa à patente da recorrente, conclusão que se impõe acatar, quer porque a impugnação da matéria de facto foi rejeitada, quer porque não há qualquer justificação para usar dos mecanismos previstos no art.º 712.º, n.º 1, do CPC, desde logo face à impossibilidade de sindicar validamente a convicção da Mm.ª Juíza, quer porque não se está perante uma de qualquer das situações previstas nos números 3, 4 e 5 do referido artigo. O que dispensaria até mais largas lucubrações e permitiria acompanhar a judiciosa argumentação expendida na sentença recorrida. * III - Dispositivo Em face de todo o exposto acordam em conferência em: a) Fixar ao recurso efeito suspensivo; b) Negar provimento ao recurso confirmando, com a fundamentação supra, a sentença recorrida. Custas pela recorrente A.... Lisboa, 2011-11-17 (Benjamim Barbosa, relator por vencimento) (Sofia David) (Teresa de Sousa) Vencida, porquanto, sufragando a jurisprudência amplamente maioritária deste Tribunal, no que concerne à obrigatoriedade do INFARMED sindicar na concessão das AIM a medicamentos genéricos eventuais direitos relativos à patente do medicamento de referência, teria anulado a sentença recorrida e concedido a providência requerida, por considerar subsistente o periculum in mora que esta afastou, tal como propus no projecto de acórdão que apresentei 1-Cf. vieira de andrade, José Carlos, A protecção do direito fundado em patente no âmbito do procedimento de autorização de comercialização de medicamentos, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 138º, Nov/Dez 2008, n.º3953, p.70 e ss. 2-Cf. Ac. do TCAS n.º 067797/10, de 04.11.2010 (Cristina Santos); no mesmo sentido Ac. n.º 07302/11, de 01.06.2011 (Paulo Pereira Gouveia), disponíveis in www.dgsi.pt. 3-Ac. n.º 028/09, de 22-01-2009 (Cons. Rosendo José) e Ac. n.º 0177/09, de 04-03-2009 (Cons. Rosendo José), disponíveis in www.dgsi.pt. 4-fausto de quadros, O carácter selfexecuting de disposições de tratados internacionais. O caso concreto do Acordo TRIPS, in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 61, 2001, págs. 1268 a 1312 5- Article 30.º: Exceptions to Rights Conferred Members may provide limited exceptions to the exclusive rights conferred by a patent, provided that such exceptions do not unreasonably conflict with a normal exploitation of the patent and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the patent owner, taking account of the legitimate interests of third parties. 6- Jornal Oficial nº C 297 E de 09/12/2003 p. 0041 - 0071 7- couto gonçalves, Luis M., Manual de Direito Industrial, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2008, p. 127, nota 234, escreve o seguinte: "De acordo com o art.º 10.º n.º 6 da Directiva 2004/27/CE de 31/3/2004 (JO-L 136 de 30/4/2004, p. 34), transposta pelo DL 176/2006, de 30/8 ("Estatuto do Medicamento"), que altera a Directiva 2001/83/CE que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, consagra-se a chamada excepção bolar segundo a qual a realização dos actos necessários para obter a autorização de comercialização de um medicamento genérico e os consequentes requisitos práticos não se consideram contrários ao direito de patentes nem aos certificados complementares de protecção dos medicamentos". Um afloramento dessa excepção no direito interno pode ver-se no citado art.º 18.º, n.º 4, e no art.º 19.º, n.º 8, do Estatuto do Medicamento. Esta foi, também, a opinião veiculada na Newsletter de Novembro de 2006 da Vieira de Almeida & Associados, Sociedade de Advogados, em texto da autoria da Dra. Leonor Pimenta Pissarra, no qual textualmente se refere que o novo EM introduziu no ordenamento jurídico nacional a cláusula Bolar. (disponível em http://www.vda.pt/xms/files/Newsletters/NewsLetterGeralNovembro.pdf [em linha]. [cons. 08-11-2011]. 8- In http://ec.europa.eu/competition/sectors/pharmaceuticals/inquiry/communication_pt.pdf [em linha]. [cons. em 08-11-2011]. 9- Em nossa opinião o direito de propriedade industrial não é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, precisamente porque se trata de um direito de propriedade especial limitado pela sua função social. Neste sentido e fazendo uma resenha sobre as posições doutrinais e jurisprudenciais sobre esta questão, vd. couto gonçalves, Luis M., ob. cit., pp. 38 e ss.. 10- Cf. Jornal Oficial nº C 297 E de 09/12/2003 p. 0041 - 0071 11- couto gonçalves, Luis M. ob. e loc. cit.. 12- A Organização Mundial de Comércio defende, no documento Canada – Patent Protection Of Pharmaceutical Products, disponível in: http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/7428d.doc [em linha].[cons. 27-04-2010], que a AIM não conflitua com a patente do medicamento de referência quando se destina permitir que o medicamento genérico esteja apto a ser comercializado logo que aquela caduque. 13- Cf. Pedro Sousa e Silva, O “esgotamento” do direito e as “importações paralelas”, Desenvolvimentos recentes da jurisprudência comunitária e nacional, disponível em: http://www.ptcs.pt/resources/pdfs/PSS_O_esgotamento_do_direito_e_as_importacoes_paralelas.pdfhttp://www.ptcs.pt/resources/pdfs/PSS_O_esgotamento_do_direito_e_as_importacoes_paralelas.pdfhttp://www.apdi.pt/APDI/DOUTRINA/O%20esgotamento%20do%20direito%20e%20as%20importa%C3%A7%C3%B5es%20paralelas.pdf. [cons. em 08-11-2011]. 14- Na esteira do disposto no art.º 14.º, n.º 11, e art.º 15.º do Regulamento (CE) n.º 726/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004.

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