Apura logo

Acórdão TR Évora de 2020-05-21

388/20.7T8STR.E1

TribunalTribunal da Relação de Évora
Processo388/20.7T8STR.E1
RelatorAna Margarida Leite
DescritoresMenor, Competência Internacional, Acção de Impugnação da Paternidade, Presunção de Paternidade, Residência, Conexão
Data do Acordão2020-05-21
VotaçãoUnanimidade

Sumário

I - Os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para uma ação na qual é impugnada a paternidade presumida, intentada pelo marido da mãe, residente em Portugal, contra a mãe e o filho, residentes na Alemanha, se os factos reveladores da manifesta improbabilidade da paternidade do marido da mãe ocorreram essencialmente na Alemanha, país onde residia a mãe durante o período legal de conceção e em que foi concebido o filho, em data anterior ao casamento com o autor, numa ocasião em que este com a mesma não mantinha relacionamento sexual; II – Na ação de impugnação da paternidade presumida, intentada pelo marido da mãe, a causa de pedir é constituída pela factualidade da qual decorra que tal paternidade se mostra manifestamente improvável, o que integra necessariamente os factos relativos à conceção do filho; III – Decorrendo da alegação do autor que os factos essenciais integradores da causa de pedir foram praticados na Alemanha – a mãe residia na Alemanha durante o período legal de conceção e a criança foi concebida nesse país –, ao que acresce a circunstância de ter o nascimento igualmente ocorrido na Alemanha, não se encontra verificada a conexão com o território português exigida pela alínea b) do artigo 62.º do CPC; IV - Não decorrendo da alegação do autor qualquer elemento demonstrativo da impossibilidade de impugnar nos tribunais alemães a paternidade do réu, designadamente em virtude de a jurisdição alemã não se considerar competente para a apreciação do litígio ou a legislação alemã lhe não conferir o direito que pretende exercer, não pode considerar-se verificada a impossibilidade absoluta de o autor exercer o direito mediante a instauração de uma ação no estrangeiro, nos termos previstos na 1.ª parte da alínea c) do artigo 62.º do CPC; V – A invocação de dificuldades económicas e de falta de meios financeiros para custear uma ação no estrangeiro não preenche a segunda categoria de situações prevista na alínea c) do artigo 62.º do CPC, por não decorrer de tais circunstâncias uma dificuldade manifesta na propositura da ação na Alemanha, sendo certo que este Estado-Membro da União Europeia dispõe de sistema de apoio judiciário em processos cíveis; VI - O alegado desconhecimento da língua alemã, invocado pelo autor como fator de impossibilidade relativa de propositura da ação na Alemanha (onde já residiu), não permite considerar verificada a segunda categoria de situações prevista na alínea c) do artigo 62.º do CPC, por se não vislumbrar que tal torne a propositura da ação nesse país num sacrifício que ultrapasse o limite da razoabilidade, dada a possibilidade de recurso a tradutor ou intérprete (sumário da relatora)


Texto Integral

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: 1. Relatório J…, casado, residente em Portugal, intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra JD…, casada, e A…, menor, representado pela 1.ª ré, sua mãe, ambos residentes na Alemanha, impugnando a paternidade presumida do 2.º réu e pedindo se declare que não é o pai biológico deste. Alega, para o efeito, em síntese, que não é o pai biológico do 2.º réu, apesar de tal paternidade de encontrar inscrita no respetivo assento de nascimento em virtude de ter nascido na constância do seu matrimónio com a 1.ª ré, mãe da criança, a qual já se encontrava grávida quando o autor a conheceu; acrescenta que a criança foi concebida na Alemanha e que, à data da conceção, a 1.ª ré residia nesse país e o autor em Portugal, tendo-se conhecido em agosto de 2014 em Portugal, após o que passou o autor a residir na Alemanha; afirma que a ré lhe comunicou que se encontrava grávida do anterior namorado, residente na Alemanha; mais alega que casou com a 1.ª ré a 10-12-2014, na Chancelaria do Consulado-Geral de Portugal em Estugarda, na Alemanha, e que o 2.º réu nasceu a 26-01-2015, na Alemanha, sendo cidadão português e tendo o respetivo nascimento sido registado na Conservatória do Registo Civil de Salvaterra de Magos em 31-07-2015. Mais sustenta que se encontram preenchidos, no caso presente, os fatores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses previstos nas alíneas b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, pelos motivos que expõe. Por despacho de 28-02-2020, foi declarada a incompetência internacional do tribunal, por se ter entendido que os tribunais alemães são os internacionalmente competentes para a causa, em consequência do que foram os réus absolvidos da instância e o autor condenado no pagamento das custas. Inconformado, o autor interpôs recurso deste despacho, pugnando pela respetiva revogação e prolação de decisão que considere o tribunal português internacionalmente competente para julgar a presente ação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem: «1.º) O presente Recurso de Apelação vem interposto da Sentença proferida na sequência da Acção de Impugnação da Paternidade Presumida, movida pelo Autor e ora Recorrente J… contra os Réus JD…, e seu filho, menor, A… que julgou improcedente a acção tendo declarado a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para julgar a presente acção. 2.º) O Autor e ora Recorrente não se conforma, com o teor da Sentença, nomeadamente quanto ao facto de declarar incompetente o Tribunal Português para julgar a presente acção. 3.º) Entende a Mm Juiz a quo que não se encontram verificados os requisitos legais disposto no artigo 62.º do C.P.C. 4.º) Salvo melhor opinião em contrário, a Douta Sentença recorrida assenta num erro de interpretação disposto no artigo 62.º do Código do Processo Civil, porquanto no caso em concreto dos presentes autos encontram-se verificados os elementos de conexão previsto naquele dispositivo legal. 5.º) A competência internacional é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, e afere-se pelo objeto apresentado pelo A. na Petição Inicial. 6.º) Não se aplica aos presentes autos o Regulamento nº 44/2001, do Conselho, porquanto a mesma é uma acção sobre o estado das pessoas, isto é uma acção sobre relações de filiação. 7.º) O caso dos autos insere-se quer na alínea b), quer na alínea c) do art.º 62 do CPC, o que significa que são internacionalmente competentes os nossos tribunais para esta acção. 8.º) Atente-se que, por causa da presunção legal do casamento entre o A., e a 1.ª R, o A. encontra-se registado como pai do 2.º R. 9.º) Numa acção de impugnação da paternidade a causa de pedir é constituída pela alegação de factos dos quais o Douto Tribunal possa concluir que a pessoa indicada no registo do 2.º R. como pai presumido (por ser marido da mãe) não é o pai biológico, sendo falsa aquela menção no registo, por não corresponder à verdade biológica. 10.º) O A. durante o período da conceção do menor, residia em Portugal e a 1.ª R. vivia na Alemanha. 11.º) Não se conheciam, pelo que é manifestamente improvável e impossível a paternidade do marido da mãe (Autor). 12.º) Acresce que durante o período da conceção legal a 2.ª R. se relacionava sexualmente com uma outra pessoa, que não o A. 13.º) Em nosso entendimento, o facto de o A. residir em Portugal aquando da conceção legal do 2.º R, o facto de o menor ter nacionalidade Portuguesa, tendo sido registado, na Conservatória do Registo Civil de Salvaterra de Magos, e de o casamento do 1.º R. e da 2.ª R. ter ocorrido no Consulado Português, na Alemanha constituem factos de onde se pode retirar que existe conexão de uma forma mais próxima com os Tribunais Portugueses (sublinhado nosso). 14.º) Encontra-se devidamente alegados na Petição Inicial factos que integram a previsão legal do disposto no artigo 62.º al.b) C.P.C (principio da conexão). 15.º) Para além do mais, cremos que o Douto Tribunal a quo não faz uma correta interpretação do disposto no artigo 62.º alínea c) do Código do Processo Civil, pois resulta da mencionada alínea do art. 62.º do C.P.C duas alternativas possíveis para que o Tribunal Português seja competente ao abrigo do princípio da necessidade. 16.º) Os tribunais portugueses serão competentes internacionalmente quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de uma ação proposta em tribunal português ou (…), em alternativa quando a sua propositura no estrangeiro constitua apreciável dificuldade para o autor, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real. 17.º) No caso em apreço o Autor alegou fatos que demostram uma clara e inequívoca dificuldade económica e financeira, que o impossibilitam de instaura a acção na Alemanha, a saber: - o A. não tem meios económicos nem financeiros para custear uma ação judicial na Alemanha, pagando despesas, custas e honorários de Advogado que exerça na Alemanha. - O A., inclusivamente beneficia de proteção jurídica nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o que comprova a sua insuficiência económica, conforme despacho de deferimento de proteção jurídica nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo junto com a P.I; - Desde que regressou a Portugal, A. trabalha na construção civil, na empresa C…, Sociedade Unipessoal, Lda., recebendo actualmente 600,00 € de vencimento mensal ilíquido, conforme recibos de vencimento junto aos autos com a P.I; - O A. vive com sérias dificuldades económicas atendendo aos seus fracos rendimentos; - O A. vive com a sua mãe e ajuda-a com as despesas mensais bacias, como água, luz, gás, alimentação e comunicações no valor mensal que pode ir dos 250,00 € aos 300,00 €. 18.º) Cumulativamente com as dificuldades económicas supra mencionadas, refira-se ainda que o Autor não sabe falar alemão, nem nenhuma outra língua estrangeira, sendo esse um entrave para fazer valer os seus direitos num ordenamento jurídico internacional, não tendo na Alemanha qualquer contato pessoal ou profissional. 19.º) Caso a presente ação venha a seguir os seus trâmites naquele país o A. não teria como suportar as viagens e estadias naquele país, não tendo capacidade económica, sem qualquer suporte familiar ou profissional para poder acompanhar os trâmites legais. 20.º) Importa assim, face ao caso concreto verificar se se encontra preenchido com base nos factos articulados na Petição Inicial a última parte do disposto na alínea c) do artigo 62.º. do C.P.C. 21.º) No caso em apreço conclui-se que existem elementos ponderosos de conexão pessoal, nomeadamente; todos os intervenientes processuais são cidadãos portugueses; o casamento entre o A. e a 1.ª Ré ocorreu no Consulado Português na Alemanha; o casamento católico ocorreu em Portugal; o 2.ª Réu foi registado na Conservatória do Registo Civil de Salvaterra de Magos e o Autor vive em Portugal. 22.º) Assim se conclui que se encontra preenchida a previsão do disposto na alínea c) do artigo 62.º do C.P.C.» O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido. Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se se verifica infração das regras de competência internacional para a apreciação do presente litígio. Corridos os vistos, cumpre decidir. 2. Fundamentos 2.1. Tramitação processual Os elementos com relevo para a apreciação da questão suscitada constam do relatório supra. 2.2. Apreciação do objeto do recurso Vem impugnada na apelação a decisão que considerou verificada a exceção de incompetência absoluta e absolveu os réus da instância, por se ter entendido que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a presente causa e que tal competência cabe aos tribunais alemães. Discordando deste entendimento, sustenta o recorrente que se encontram verificados, no caso presente, os fatores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses previstos nas alíneas b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, defendendo a revogação da decisão proferida e a prolação de decisão que considere o tribunal internacionalmente competente. Está em causa uma ação de impugnação da paternidade presumida do 2.º réu, intentada pelo marido da mãe, em que existem elementos de conexão com Portugal, onde reside o autor, e com a Alemanha, onde residem ambos os réus, cumprindo apreciar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer do pleito. Para o efeito, há que atender ao disposto no artigo 59.º do CPC, com a redação seguinte: Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º. Extrai-se deste preceito que a competência internacional dos tribunais portugueses decorre, em primeira linha, do estabelecido em regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, os quais prevalecem sobre as regras fixadas nas normas processuais elencadas, os artigos 62.º, 63.º e 64.º do CPC. Considerou a 1.ª instância, e não vem posto em causa na apelação, que não existe regulamento europeu ou outro instrumento internacional que regule a competência internacional dos tribunais quanto à matéria em apreço, bem como que o previsto nos artigos 63.º e 64.º do CPC não é aplicável ao caso presente, pelos motivos expostos na decisão recorrida, com os quais se concorda. Face ao objeto da apelação, excluída a aplicação ao caso presente dos regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, cumpre reapreciar a decisão proferida, na parte em que considerou não verificados os fatores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses previstos no artigo 62.º do CPC, designadamente nas alíneas b) e c) invocadas pelo recorrente. Sob a epígrafe Fatores de atribuição da competência internacional, dispõe o artigo 62.º o seguinte: Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram; c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real. Explicam José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 153) que neste artigo “são enunciados três critérios de atribuição da competência internacional com origem legal aos tribunais portugueses, habitualmente designados por critérios da coincidência (alínea a)), da causalidade (alínea b)) e da necessidade (alínea c))”. Esclarecem os autores (ob. cit., p. 154) que “cada um dos fatores atributivos de competência tem valor autónomo, pelo que basta a verificação de um deles para que os tribunais portugueses sejam competentes”. No que respeita à previsão da alínea a), considerando que ambos os réus têm residência na Alemanha, à luz do disposto no artigo 80.º do CPC, e não estando o caso previsto nos artigos anteriores ou em disposições especiais, o tribunal competente seria o do domicílio dos réus, o que não constitui fator de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, conforme se entendeu na decisão recorrida e não vem questionado na apelação. Assim sendo, cumpre averiguar se se verifica algum dos fatores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses previstos nas demais alíneas do artigo 62.º do CPC, a saber: ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram, conforme previsto na alínea b); o direito invocado não poder tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou verificar-se para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, existindo entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, nos termos estatuídos na alínea c). A 1.ª instância considerou não verificada a previsão da citada alínea b), pelos motivos seguintes: No que toca à alínea b), importa aferir se foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram. Tal não nos parece suceder. Senão, vejamos: o 2.º réu foi concebido na Alemanha, segundo vem alegado pelo autor, onde a 1.ª ré vivia; nasceu na Alemanha; na Alemanha se casaram o autor e a 1.ª ré, país onde viviam. Os factos que o autor alega como fundamento de uma especial conexão da ação com a jurisdição portuguesa (a saber: a circunstância de o menor ter nacionalidade Portuguesa, tendo sido registado na Conservatória do Registo Civil de Salvaterra de Magos e de o casamento do autor com a 1.ª ré ter sido realizado em Consulado Português), a nosso ver, não se sobrepõem aos outros elementos factuais, supra referidos, em especial no que toca ao local da conceção do menor e do seu nascimento, que apontam decisivamente para uma maior conexão da ação com o ordenamento jurídico alemão. (…) Dito isto, afigura-se-nos que, efetivamente, os factos fundamentais da causa de pedir (conceção da criança e seu nascimento) ocorreram ambos na Alemanha, pelo que será esta a jurisdição melhor colocada para o acesso às provas e sua apreciação. Não se verifica, portanto, a circunstância referida na alínea b) do art.º 62.º do Código do Processo Civil. Na apelação, defende o recorrente que, encontrando-se alegado na petição inicial que o autor residia em Portugal durante o período legal de conceção do 2.º réu, que este tem nacionalidade portuguesa, tendo sido registado na Conservatória do Registo Civil de Salvaterra de Magos, e que o casamento entre autor e 1.ª ré foi celebrado em consulado português da Alemanha, esta factualidade permite considerar verificados os elementos de conexão previstos na alínea b) do citado artigo 62.º. Vejamos se lhe assiste razão. A citada alínea b) atribui competência internacional aos tribunais portugueses quando tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram, assim consagrando o denominado critério da causalidade. A aferição da verificação deste fator de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses impõe se determine, previamente, qual a causa de pedir do presente pleito, tendo em conta que se trata de uma ação de impugnação da paternidade, através da qual o marido da mãe, ora autor, impugna a paternidade presumida do 2.º réu, nascido na constância do seu matrimónio com a 1.ª ré, mãe da criança. Estando em causa a impugnação, pelo marido da mãe, da paternidade presumida nos termos estabelecidos no artigo 1826.º, n.º 1, do Código Civil, cumpre atender ao disposto no artigo 1839.º do mencionado código, preceito que, no n.º 1, lhe confere legitimidade para o efeito e, no n.º 2, esclarece que na ação o autor deve provar que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável. Extrai-se do n.º 2 do citado artigo 1839.º que a causa de pedir da presente ação de impugnação da paternidade presumida, intentada pelo marido da mãe, é constituída pela factualidade da qual decorra que tal paternidade se mostra manifestamente improvável. Em anotação ao preceito, esclarece Guilherme de Oliveira (Estabelecimento da Filiação, reimpressão da 1.ª edição – 1979, Coimbra, Almedina, 1991, p. 84) que “a referência à improbabilidade de o marido ser o pai envolve uma certa atitude doutrinal que vê na regra pater is est… uma autêntica presunção, assente, como é próprio das presunções, num juízo de probabilidade. Esta posição de princípio justifica, sem mais, um regime liberalizado de impugnação no que toca à prova do contrário do facto presumido”; acrescenta o autor (loc. cit.) que “com a fórmula da manifesta improbabilidade de o marido ser o pai o legislador quis significar que os tribunais devem exigir mais do que uma improbabilidade simples e menos do que a impossibilidade estrita da paternidade marital”. Decorre da análise do indicado preceito que a lei não exige a prova da relação biológica de filiação, nem sequer um grau de certeza da não paternidade, mas unicamente a mencionada manifesta improbabilidade da paternidade do marido da mãe. Alega o autor que o 2.º réu foi concebido na Alemanha, em data anterior ao matrimónio entre o autor e a 1.ª ré, e nasceu na Alemanha a 26-01-2015, na constância de tal casamento; mais alega que a 1.ª ré já estava grávida quando o autor a conheceu, em agosto de 2014, tendo este residido até essa data em Portugal e a 1.ª ré na Alemanha, não tendo existido qualquer contacto físico entre os dois em data anterior; sustenta ainda que, no indicado mês, passou o autor a residir na Alemanha com a 1.ª ré, vindo a contrair matrimónio a 10-12-2014, num consulado de Portugal na Alemanha; acrescenta que o 2.º réu é cidadão português, tendo o respetivo nascimento sido registado na Conservatória do Registo Civil de Salvaterra de Magos em 31-07-2015. Decorre de tal alegação que os factos reveladores da manifesta improbabilidade da paternidade do marido da mãe ocorreram essencialmente na Alemanha, país onde residia a 1.ª ré e no qual foi concebido o 2.º réu, numa ocasião em que o autor a não conhecia e com ela não mantinha relacionamento sexual. Estando em questão a improbabilidade manifesta da filiação biológica, a causa de pedir integra necessariamente a factualidade relativa à conceção do 2.º réu, sendo que o autor alega que a 1.ª ré residia na Alemanha durante o período legal de conceção do 2.º réu e que a criança foi concebida nesse país. Face a estes elementos, ao que acresce a circunstância de ter o 2.º réu igualmente nascido na Alemanha, verifica-se que os factos integradores da causa de pedir não se mostram localizados em Portugal, mas sim na Alemanha, mostrando-se irrelevantes para o efeito os factos relativos ao posterior registo do nascimento do 2.º réu em conservatória portuguesa, à celebração do matrimónio entre o autor e a 1.ª ré em consulado português na Alemanha ou à alegação de que o autor residia em Portugal no período legal de conceção do 2.º réu. Em conclusão, decorre da alegação do autor que os factos essenciais integradores da causa de pedir foram praticados na Alemanha, conforme considerou a decisão recorrida, não se encontrando verificada a conexão com o território português exigida pela alínea b) do referido artigo 62.º. No que respeita à alínea c) do preceito, a 1.ª instância considerou não verificada a respetiva previsão pelos motivos seguintes: Quanto à alínea c) do art.º 62.º daquele diploma legal, as dificuldades económicas e linguísticas invocadas pelo autor para a instauração da ação na Alemanha não configuram, a nosso ver, “dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro” – pois que, a ser assim, sempre essa exceção estaria verificada, pois que para residentes em Portugal sempre será mais fácil e menos dispendioso litigar neste país. Esta norma consagra, como se disse já acima, um verdadeiro princípio da necessidade, no sentido de que apenas é admissível a extensão de competência nela prevista se a instauração da ação em tribunal estrangeiro não permitir a efetivação do direito pretendido exercer pelo autor (…) Assim, não se mostra igualmente preenchida a circunstância a que alude a alínea c) do art.º 62.º do Código do Processo Civil. Sustenta o apelante que a matéria constante da petição inicial permite considerar verificada a previsão da alínea c) do citado artigo 62.º, tendo em conta que alegou factos demonstrativos de dificuldades económicas e financeiras, os quais o impossibilitam de instaurar a ação na Alemanha, bem como de suportar as necessárias viagens e estadia nesse país, acrescentando que não sabe falar alemão ou qualquer outra língua estrangeira, o que constitui um entrave a que faça valer os seus direitos num ordenamento jurídico internacional. A invocada alínea c) atribui competência internacional aos tribunais portugueses em duas categorias de situações: quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, assim consagrando o denominado critério da necessidade. Em anotação ao preceito, José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (ob. cit., p. 156-157) afirmam que se referenciam “com o fito de prevenir conflitos negativos de jurisdição e evitar situações com claro recorte objetivo de denegação de justiça, quer os casos de impossibilidade absoluta, quer os de impossibilidade relativa, ou dificuldade, em tornar efetivo o direito por meio de ação instaurada em tribunal estrangeiro”, esclarecendo que “tal dificuldade tem de ser manifesta: a oneração do autor com a propositura da ação no estrangeiro tem como limite a razoabilidade do sacrifício que lhe é exigido, à luz do princípio da boa fé”. Acrescentam os autores (loc. cit.) o seguinte: “verifica-se a primeira hipótese quando nenhuma das jurisdições com as quais o caso se encontra conexo se considera competente para o conhecimento da ação ou quando a jurisdição estrangeira não reconhece, em abstrato o direito carecido de tutela”; “na segunda hipótese incluem-se tradicionalmente as situações de guerra ou de ausência de relações diplomáticas”. Referem António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 94), por seu turno, o seguinte: “A al. c) contém uma cláusula de salvaguarda tendente a evitar que, atenta a impossibilidade de ordem prática ou jurídica (v.g. recusa de competência) ou a grave dificuldade na instauração da ação num tribunal de outro Estado, o direito em causa pudesse ficar sem tutela efetiva (v.g. casos de guerra ou outras calamidades). Concretiza o princípio da necessidade, mas a atribuição da competência aos tribunais nacionais exige uma forte conexão com a ordem jurídica portuguesa, seja de ordem pessoal (v.g. nacionalidade ou residência das partes), seja de natureza real (v.g. o facto de se situar em território nacional o bem que é objeto imediato ou mediato da ação)”. No que respeita à primeira categoria de situações prevista na citada alínea c) – o direito invocado não poder tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português –, não decorre da alegação do autor qualquer elemento demonstrativo da impossibilidade de impugnar nos tribunais alemães a paternidade do 2.º réu, designadamente em virtude de a jurisdição alemã não se considerar competente para a apreciação do litígio ou a legislação alemã lhe não conferir o direito que pretende exercer, não configurando as circunstâncias invocadas um caso de impossibilidade absoluta de exercer o direito mediante a instauração de uma ação no estrangeiro. Relativamente à segunda categoria de situações prevista na alínea em apreciação – verificar-se para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro –, igualmente se não vislumbra que decorra da alegação do autor uma dificuldade que possa qualificar-se como apreciável em intentar uma ação judicial na Alemanha. As dificuldades económicas e a falta de meios financeiros para custear uma ação no estrangeiro, invocadas pelo autor, não integram a categoria em apreciação, não configurando uma dificuldade manifesta, sendo certo que a Alemanha, tal como os demais Estados-Membros da União Europeia, dispõe de sistema de apoio judiciário em processos cíveis. Também o alegado desconhecimento da língua alemã, invocado pelo autor como fator de impossibilidade relativa de propositura da ação na Alemanha (onde já residiu), não preenche a previsão do preceito, por se não vislumbrar que tal torne a propositura da ação nesse país num sacrifício que ultrapasse o limite da razoabilidade, dada a possibilidade de recurso a tradutor ou intérprete. Nesta conformidade, podendo a ação de impugnação da paternidade ser intentada, sem dificuldade extrema, na Alemanha, não se mostra preenchida a previsão da alínea c) do referido artigo 62.º, conforme considerou a 1.ª instância. Em conclusão, não se verificando qualquer dos invocados fatores de atribuição de competência internacional, cumpre concluir que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para o presente pleito, pelo que se impõe julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida. 3. Decisão Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo apelante. Notifique. Évora, 21-05-2020 (Acórdão assinado digitalmente) Ana Margarida Leite (relatora) Cristina Dá Mesquita José António Moita

© 2024 Apura. Todos os direitos reservados.
Termos e Condições
Política de Privacidade