I – A problemática da caducidade das acções de investigação de paternidade, no que concerne, especialmente, à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da fixação de prazos para a sua propositura, tem sido largamente debatida na doutrina e na jurisprudência e está, ainda hoje, longe de ser pacífica. II - A Lei n.º 14/2009, de 01/04, surgiu depois de o Tribunal Constitucional ter declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que previa para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (cfr. acórdão n.º 23/2006, de 10 de Janeiro, publicado no D.R., I Série-A, de 08-02-2006). III - Essa declaração suscitou inúmeras dúvidas, na doutrina e na jurisprudência, no que toca aos seus efeitos, passando a principal por saber se, a partir daí, as acções de investigação de paternidade continuavam a estar dependentes de algum prazo para a sua propositura ou se, ao invés, tinha deixado de existir qualquer prazo para esse efeito, tendo sido precisamente a essas dúvidas que o legislador visou dar resposta. IV – A reforma legislativa em causa não se limitou a alongar a duração dos prazos de caducidade anteriormente estabelecidos no artigo 1817.º do Código Civil, tendo ido mais longe ao ter posto fim ao funcionamento autónomo de um prazo de caducidade “cego” que corria inexorável e ininterruptamente, independentemente de poder existir qualquer justificação ou fundamento para o exercício do direito. V – Não obstante o n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil (aplicável às acções de investigação da paternidade ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo Código) manter que esta acção só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos 10 anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, o n.º 3 estabelece que a acção ainda pode ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos factos aí enunciados VI - O prazo de três anos referido no n.º 3 conta-se para além do prazo fixado no n.º 1, do artigo 1817.º do Código Civil, não caducando o direito de proposição da acção antes de esgotados todos eles. Isto é, mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou emancipação, a acção é ainda exercitável dentro do prazo fixado no n.º 3; e inversamente, a ultrapassagem deste prazo não obsta à instauração da acção, se ainda não tiver decorrido o prazo geral contado a partir da maioridade ou emancipação. VII - Onde anteriormente se previam, de forma fechada e taxativa, duas causas de concessão de prazos que, excepcionalmente, poderiam legitimar o exercício da acção para lá dos dois anos posteriores à maioridade ou emancipação, passou a acolher-se, através de autênticas cláusulas gerais, como dies a quo, a data em que se verifique “o conhecimento de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação”. VIII - O conhecimento superveniente de que cuida o n.º 3, alínea c) será aquele que se verifique depois de integralmente decorrido o prazo objectivo de dez anos previsto no n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil. IX - O seu preenchimento não se basta com todo e qualquer facto ou circunstância, antes exigindo que o tal conhecimento superveniente se reporte a factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação ou, dito de outro modo, a factos que justifiquem que tenha sido apenas nesse momento (e não antes – ou seja, dentro do prazo geral de dez anos após a maioridade ou a emancipação) que o investigante tenha lançado mão da acção com vista a exercer o seu direito de ver estabelecido o vínculo da filiação. X - Em sede de recurso de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é muito circunscrita, admitindo-se, ainda que com alguma controvérsia, que o Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá sindicar o uso de tais presunções se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. XI – Na decisão de direito, o STJ deve levar em conta também a factualidade que as instâncias deram por apurada, ainda que não a tenham inserido na respectiva enunciação, ou seja, no lugar próprio. XII – Tendo a autora comprovado que só em Março de 2010 teve conhecimento da sua paternidade e justificando esse tardio acesso a informação relevante, não ocorre caducidade da acção de investigação proposta em Maio de 2011. XIII - Não age com abuso de direito, a investigante que apenas soube em Março de 2010 da sua paternidade, justificando esse tardio acesso à sua ascendência na ausência em parte incerta do investigado e na comprovada sonegação de informação relevante por parte da mãe e de familiares.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Relatório I – AA, residente em …, Oeiras, intentou acção declarativa de investigação de paternidade, sob a forma de processo ordinário, contra: 1 - BB, residente em …; 2 - CC, residente em Lisboa; 3 - DD, residente em …; 4 - EE, residente em Santa …; 5 - FF, residente em Marvila; 6 - GG, residente em C…; e 7 - HH, residente em Lisboa, todos estes na qualidade de únicos herdeiros de II, falecido em 01/10/2009, alegando, em síntese, que: Entre Janeiro de 1946 e Julho de 1947, a sua mãe – JJ – e II estabeleceram uma relação amorosa, durante a qual mantiveram relações sexuais com cópula completa. Fruto dessas relações veio a nascer, em 14/12/1947, a Autora, sendo, por isso, filha biológica daquele. A sua mãe, já falecida, nunca lhe transmitiu a identidade do seu progenitor, apesar das suas insistentes e reiteradas tentativas nesse sentido. Só em Março de 2010 foi informada por uma prima de que o seu pai tinha falecido no dia 1 de Outubro de 2009, no Lar de Idosos da Santa Casa da Misericórdia de …, e que se chamava II. Após ter tomado conhecimento da sua paternidade, deslocou-se a F…, onde a referida relação entre sua mãe e o dito progenitor se desenvolveu, tendo só então tido ocasião de falar com vizinhos e familiares deste, contemporâneos dos ditos acontecimentos, de quem soube o dito passado. Com tais fundamentos concluiu por pedir a declaração de que é filha biológica de II, falecido a 1 de Outubro de 2009. Os Réus, regularmente citados, ofereceram contestação conjunta em que, além de arguirem a litispendência entre esta acção e aquela que pendia no extinto Tribunal da Comarca de Figueiró dos Vinhos com o número 125/10.4TBFVN, bem como a caducidade desta acção, por instaurada mais de 10 anos após a maioridade da Autora, impugnaram também a versão factual narrada na petição. A Autora apresentou réplica, pugnando pela improcedência de ambas as deduzidas excepções e invocando, em particular, a inconstitucionalidade do prazo de investigação da paternidade previsto no artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redação introduzida pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril. A instância foi suspensa até à decisão da aludida acção (125/10.4TBFVN) que terminou pela absolvição da ali ré, a Herança jacente por óbito de II. Finda essa acção, foi proferido saneador a refutar a excepção de litispendência e a julgar procedente a excepção de caducidade, com a consequente absolvição dos Réus do pedido. Inconformada, a Autora interpôs recurso, tendo a Relação de Coimbra, por acórdão de 15 de Janeiro de 2013, revogado a decisão e ordenado o prosseguimento da acção, com a seleção da matéria de facto tida como relevante para efeitos de instrução e de discussão da causa, incluindo a aplicabilidade ou não, ao caso, do disposto no artº 1817º, nº 3, als. b) e c) do Cód. Civil. Saneado o processo e relegada para final a apreciação da excepção de caducidade, procedeu-se à selecção da matéria de facto, com enunciação dos factos assentes e organização da base instrutória, sobre o que incidiu reclamação de ambas as partes, parcialmente atendidas (cfr. fls. 418 a 420). Realizadas duas perícias médicas, a última a material biológico colhido ao cadáver do falecido II (cfr. fls. 688, 692, 710 e 711), procedeu-se a julgamento, seguido de prolação de sentença a decidir de facto e de direito, datada de 16.11.2015, que, após refutar a caducidade, o abuso de direito e a inconstitucionalidade invocadas, julgou a acção procedente e declarou a Autora filha de II. Inconformados com tal decisão, apelaram os Réus, sem êxito, tendo a Relação de Coimbra confirmado a sentença da 1ª instância e, persistindo irresignados, interpuseram recurso de revista excepcional (admitido pela formação prevista no art.º 672º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil), finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões[1]: 1 - As instâncias não podem, relativamente a uma ação instaurada apenas em 27/05/2011 (quando a Autora já tinha nascido em 14/12/1947 e o investigado falecido em 1/10/2009), limitar-se a referir que "até Março de 2010 a autora pouco ou nada sabia acerca do seu progenitor". 2 - Não só por se estar perante uma proposição que, manifestamente, posterga as regras da lógica (concretamente, o princípio da não contradição). 3 - Mas também, e ipso facto, ela não afirmar nenhum facto (precisamente, por, sendo este "algo que acontece no mundo", nada poder ter acontecido que seja e não seja ao mesmo tempo) e ser, consequentemente, falsa. 4 - A lei distingue entre o caso julgado material e o caso julgado formal, conforme a sua eficácia se estenda ou não a processos diversos daqueles em que foram proferidos os despachos, as sentenças ou os acórdãos em causa. 5 - O intérprete deve partir do texto e do seu sentido perfunctório, liminar e heurístico para através de adequada hermenêutica jurídica alcançar o real e essencial pensamento, a ratio e teleologia do quid interpretativo, pois que só assim se consegue a finalidade suprema a alcançar pela aplicação concreta do direito: a realização efetiva da justiça material. 6 - Resultando do acórdão da Relação de Coimbra de 15/01/2013, reportado a este processo, que a ação deve prosseguir, "com a seleção de matéria de facto alegada pelas partes e tida como relevante para efeitos de instrução e de discussão da presente causa,..., com vista a permitir-se a produção de prova que no caso vier a caber e a discutir-se, a aplicabilidade ou não, ao caso, do disposto no artº 1817s, nº 3, ais. b) e c) do C. Civil" é inequívoco que a questão sobre a aplicação da segunda parte do nº. 1 deste artigo não pode voltar a discutir-se, sob pena de violação do caso julgado formal, que o objeto do litígio ficou delimitado à seleção e discussão da referida matéria, com o consequente afastamento da possibilidade de se poder curar do prazo de 10 anos do citado nº. 1. 7 - Este prazo é suficiente para o exercício ponderado do direito de propor a ação de investigação de paternidade, não exigindo o princípio constitucional da proteção do direito fundamental à identidade pessoal a imprescritibilidade desse tipo de ação. 8 - A Lei 14/2009 entrou em vigor em 2/4/2009 e o investigado faleceu em 1 de Outubro de 2009, estando, já, em vigor os novos prazos. 9 - O DL 47344, de 25/11/1966, que aprovou o Código Civil de 1966 revogou o anterior Código Civil, designado Código Civil de Seabra. 10 - A alteração dos prazos estabelecidos no art.º 1817º do C. Civil, por força da Lei 14/2009, deu resposta à declaração de inconstitucionalidade. 11 - Esta alteração legislativa sofreu forte influência do ordenamento jurídico francês. 12 - Os prazos das alíneas b) e c) do n.º 3 do art.º 1817º do C. Civil devem considerar-se especiais em relação ao prazo geral previsto no n.º 1 desse mesmo artigo. 13 - O prazo da alínea b) do n.º 3 desse artigo incorpora, apenas, a posse de estado, devendo o direito de ação ser exercido, ainda, em vida do investigado. 14 - O prazo da alínea c) do n.º 3 desse artigo visa a cessação involuntária (morte ou perda definitiva de faculdades mentais do investigado) da posse de estado e o conhecimento de escrito ou declaração inequívoca de reconhecimento da paternidade ou, no limite, de factos concretos que viabilizem uma pretensão investigatória. 15 - Pretender-se que os prazos das alíneas b) e c) se referem a quaisquer factos ou circunstâncias genericamente consideradas é subverter a ratio que determinou o instituto. 16 - Tendo-se considerado apenas provado que "até Março de 2010 a autora pouco ou nada sabia do seu progenitor" temos como evidente que esta prova não permite, por si só, a aplicação do disposto no artigo 1817º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código Civil. 17 - Importa, por outro lado, notar que a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do art.º 1817º, 2 do C. C. (na redacção anterior) teve como base o facto do investigante só adquirir essa qualidade, por causa do êxito da impugnação com sucesso da paternidade ter ocorrido após o decurso do referido prazo legal. 18 - E que a aplicação dos prazos previstos nas alíneas b) e c) do artº 1817º do C.C. implica a alegação de factos que demonstrem o conhecimento superveniente da cessação voluntária da posse do estado, ou da cessação involuntária (morte do investigado) e conhecimento de documento escrito ou declaração confirmadora da paternidade, ou, ainda, de facto concreto e relevante, não bastando uma mera afirmação equívoca. 19 - Factos que não foram (concretamente) alegados e cuja omissão o Tribunal não pode, como é sabido, suprir, até por os réus não terem podido defender-se deles. 20 - Constitui pressuposto de aplicação do disposto na alínea c) do n.º 3 do art.º 1817º do CC a alegação e prova por parte do autor da investigação de paternidade de que obteve o conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitam e justificam a investigação. 21 - Considerar idóneo o facto de "até Março de 2010 a autora pouco ou nada saber acerca do seu progenitor" é não só ofender as regras da lógica (por violação do princípio da contradição, pois não se pode saber pouco e, simultaneamente, nada saber), como subverter a sistema atual que considera idóneos prazos para a instauração de ações deste tipo. 22 - O mesmo é dizer que "...pouco ou nada saber" não pode, nem deve, ser considerado facto ou circunstância que possibilite e justifique a investigação, tratando-se, apenas, de enunciação não suscetível de prova, já que o facto é algo que acontece no mundo e é impossível acontecer que alguém saiba pouco de algo e simultaneamente nada saiba deste algo. 23 - Deve considerar-se manifestamente extemporânea a acção de investigação de paternidade decorridos que são 63 anos sobre o nascimento da autora e 42 anos sobre a data em que esta - autora - atingiu a maioridade. 24 - Resultando dos autos que a autora em 28 de Junho de 2010 requereu providência cautelar de arrolamento de bens do investigado, na sequência, aliás, de anterior providência instaurada em 14 de Junho de 2010, é exteriorizar uma clara intenção de ver salvaguardados a seu favor os bens materiais daquele. 25 - É no contexto do abuso de direito que a distinção de efeitos - filiação/herdeiro - deve ser enfocada, admitindo que qualquer pretensão jurídica pode ser paralisada se o respetivo exercício for maculado pelo seu abuso - a questão da "caça à fortuna". 26 - O que ocorre nos casos em que o investigante, a coberto de averiguar a sua filiação, da proclamada intenção de conhecer as suas raízes, que apareceria como um propósito legítimo e da maior importância pessoal e social, pretendesse primordialmente, acautelar aspetos patrimoniais, visando o estatuto de herdeiro para aceder à partilha dos bens do progenitor. 27 - Não carecem de alegação, em homenagem ao princípio da aquisição da prova, os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. 28 - O que, com o devido respeito, que é muito, demonstra a incorreção da interpretação e aplicação do direito, traduzindo, assim, a violação inequívoca do disposto nos artigos 1817º, 3, alínea c), 334º e 342º, todos do C. Civil, e artºs 412º e 620ºdo C. P. Civil, devendo o douto acórdão ser revogado, considerando-se verificado o prazo de caducidade previsto no art.º 1817º, n.º 3, do Código Civil. A Autora ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso da revista. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II - Fundamentação de facto Na enunciação expressa da factualidade dada como provada, nas instâncias, consta o seguinte: 1 - II faleceu no dia 1 de outubro de 2009 - Alínea A) dos factos assentes. 2 - A autora nasceu a 14 de dezembro de 1947, está registada como filha de JJ, sendo o seu assento de nascimento omisso quanto à paternidade e quanto à avoenga paterna - Alínea B) dos factos assentes. 3 - A presente ação foi instaurada a 27 de maio de 2011 - Alínea C) dos factos assentes. 4 - Até março de 2010 a autora pouco ou nada sabia acerca do seu progenitor - Alínea D) dos factos assentes. 5 - Correu termos no extinto Tribunal da Comarca de Figueiró dos Vinhos, sob o número 125/10.4TBFVN, ação de investigação de paternidade que AA instaurou, a 29 de março de 2010, contra a herança jacente de II, na qual foi proferida sentença, já transitada em julgado, na qual se declarou verificada a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré, prevista na alínea c) do artigo 494º, do (anterior) Código de Processo Civil, absolvendo-se a mesma da instância, nos termos dos artigos 288º, número 1, alínea c), e 493º, número 2, do mesmo diploma legal - Alínea E) dos factos assentes. 6 - Do teor da sentença anteriormente referida consta “A falta de personalidade judiciária da herança consubstancia uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso e cuja consequência é a absolvição da ré da instância, sem prejuízo do disposto nos artigos 289º, números 1 e 2, e 389º, número 1, alínea d), ambos do (anterior) Código de Processo Civil, este último no que concerne aos efeitos sobre os autos de procedimento cautelar a estes apensos” - Alínea F) dos factos assentes. 7 - Do escrito denominado “Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos”, outorgado na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de Figueiró dos Vinhos, em 9 de dezembro de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzido, com relevância consta que os réus foram declarados herdeiros do falecido II e que não há quem lhes prefira ou com eles possa concorrer na sucessão - Alínea G) dos factos assentes. 8 - Em data não concretamente apurada, mas anterior a 14 de dezembro de 1947, a mãe da autora, JJ, encetou uma relação de namoro com o falecido II, com quem manteve relações sexuais de cópula completa - Resposta – restritiva - aos artigos 1º a 5º da base instrutória. 9 - O que aconteceu nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que antecederam o nascimento da autora, que sobreveio a tais relações sexuais de cópula completa, mantidas neste período, e como consequência delas - Resposta ao artigo 6º da base instrutória. 10 - JJ confidenciou a KK que estava grávida de II e que este lhe prometera casamento - Resposta – restritiva - aos artigos 13º e 14º da base instrutória. 11 - A referida KK não conheceu outro namorado a JJ no período que antecedeu o nascimento da autora - Resposta ao artigo 15º da base instrutória. 12 - Ainda antes do nascimento da autora e depois de JJ lhe ter dito que estava grávida dele, II desapareceu da localidade de B…, tendo corrido neste lugar que o mesmo tinha ido para África - Resposta ao artigo 17º da base instrutória. 13 - Como resulta do assento de óbito cuja certidão consta de fls. 403-404, JJ faleceu a 14 de outubro de 1986 - artigo 20º da base instrutória. III – Fundamentação de direito A apreciação e decisão do presente recurso de revista passam, atentas as conclusões delimitadoras do seu objecto (art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[2]), pela análise e resolução das seguintes questões jurídicas colocadas pelos recorrentes a este tribunal: - caducidade da acção e suficiência factual para a sua dilucidação; e - abuso de direito por banda da autora. Debrucemo-nos, então, sobre cada uma delas. 1 – Da caducidade da acção A problemática da caducidade das acções de investigação de paternidade, no que concerne, especialmente, à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da fixação de prazos para a sua propositura, tem sido largamente debatida na doutrina e na jurisprudência e está, ainda hoje, longe de ser pacífica[3]. No caso vertente, está em causa a questão de saber se o direito de acção da autora se mostra ou não caducado à luz da alínea c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, na sua redacção actual, introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 01-04, o que passa por analisar se a factualidade dada como provada é ou não subsumível à mencionada previsão legal. Como é sabido, a Lei n.º 14/2009 surgiu depois de o Tribunal Constitucional ter declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que previa para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (cfr. acórdão n.º 23/2006, de 10 de Janeiro, publicado no D.R., I Série-A, de 08-02-2006). Essa declaração suscitou inúmeras dúvidas, na doutrina e na jurisprudência, no que toca aos seus efeitos, passando a principal por saber se, a partir daí, as acções de investigação de paternidade continuavam a estar dependentes de algum prazo para a sua propositura ou se, ao invés, tinha deixado de existir qualquer prazo para esse efeito, tendo sido precisamente a essas dúvidas que o legislador visou dar resposta. Na verdade, tendo a declaração de inconstitucionalidade de uma norma como efeito a repristinação da norma ou das normas que aquela que foi declarada inconstitucional tenha, entretanto, revogado (artigo 282.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), colocou-se a questão de saber se tendo o legislador do Código, em 1966, ao ter instituído o prazo de dois anos para a propositura da acção de investigação de paternidade, revogado as normas constantes do Decreto n.º 2 de 1910, seria esse o regime aplicável no respeitante ao tempo do exercício do direito de investigar ou se, ao invés, tal acção tinha deixado de estar dependente de qualquer prazo. Prevaleceu na jurisprudência o entendimento – alicerçado na falta de conformidade constitucional do apontado regime pretérito – de que tais acções tinham passado a ser imprescritíveis, tendo sido, pois, a esse mesmo entendimento maioritário que o legislador pretendeu por cobro através da Lei n.º 14/2009, de 01-04, fixando, no artigo 1817.º do Código Civil, novos prazos de caducidade para a propositura da acção: um prazo geral de dez anos após a maioridade ou emancipação do investigante (ao invés dos dois anos anteriormente previstos); e um prazo de três anos após o conhecimento superveniente (isto é, depois de decorrido aquele outro prazo) de factos ou circunstâncias justificativas da propositura da investigação. Permaneceram, contudo, as dúvidas quanto à questão de saber qual o regime que seria aplicável às acções que se encontravam pendentes, bem como às acções instauradas no aludido período intercalar (isto é, entre a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e a entrada em vigor da Lei n.º 14/2009), sendo que em relação às primeiras, apesar de o legislador ter pretendido dissipar tais dúvidas (prevendo a aplicação imediata do novo regime às acções pendentes), a verdade é que não foi bem sucedido, pois o artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 01-04, veio igualmente a ser declarado inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 18.º da Constituição, na medida em que mandava aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor o prazo previsto na nova redacção do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 164/2011, de 24 de Março, n.º 24/2012, de 17 de Janeiro, e n.º 323/2013, de 31 de Maio, todos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt). A declaração de inconstitucionalidade da mencionada disposição transitória deu azo a que várias acções de investigação de paternidade que se encontravam pendentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, de 01-04, tenham sido decididas sem dependência de qualquer prazo, podendo ver-se, nesse sentido, a título exemplificativo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-09-2010 (proc. 4/07.2TBEPS.G1.S1), e de 24-05-2012 (proc. 37/07.9TBVNG.P1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt. Todavia, no caso sub judice, a acção foi instaurada em 27-05-2011, quando já estava em vigor, portanto, o novo regime a que acima se aludiu – posto que a Lei n.º 14/2009, de 01-04 entrou em vigor em 02-04-2009 (cfr. artigo 2.º) – não se suscitando, assim, as supra enunciadas questões que apenas revestem interesse para um melhor enquadramento da questão decidenda e para cuja apreciação importa ter em conta o artigo 1817.º do Código Civil. Estabelece este, na actual redacção, que: 1. A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. (…) 3. A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: (…) b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe; c) Em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem ou justifiquem a investigação. 4. No caso referido na alínea b) do número anterior, incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da acção. Como se deixou dito, a Lei n.º 14/2009, de 01-04, teve subjacente o desiderato do legislador de dar resposta à evolução verificada na jurisprudência constitucional que, após a prolação do acórdão n.º 456/03, de 14 de Outubro (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt), passou a julgar inconstitucionais os prazos de caducidade estabelecidos no artigo 1817.º do Código Civil e que veio a culminar com a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, a que já antes se fez referência. Tal como fez notar o Tribunal Constitucional, em Plenário, no acórdão n.º 401/2011, de 22 de Setembro (disponível no supra indicado sítio), a reforma legislativa em causa não se limitou a alongar a duração dos prazos de caducidade anteriormente estabelecidos no artigo 1817.º do Código Civil, tendo ido mais longe ao ter posto fim ao funcionamento autónomo de um prazo de caducidade “cego” que corria inexorável e ininterruptamente, independentemente de poder existir qualquer justificação ou fundamento para o exercício do direito. Com efeito, apesar do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil (que continua a ser aplicável às acções de investigação da paternidade ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo Código) manter que esta acção só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos 10 anos (na nova redacção) posteriores à sua maioridade ou emancipação, o n.º 3 estabelece que a acção ainda pode ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: a) ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a paternidade do investigante; b) quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso pai; c) e em caso de inexistência de paternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação. Como resulta do advérbio “ainda” introduzido no corpo do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, é manifesto que os prazos de três anos referidos nos n.º 2 e 3 se contam para além do prazo fixado no n.º 1, do artigo 1817.º, não caducando o direito de proposição da acção antes de esgotados todos eles. Isto é, mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou emancipação, a acção é ainda exercitável dentro dos prazos previstos nos n.ºs 2 e 3; inversamente, a ultrapassagem destes prazos não obsta à instauração da acção, se ainda não tiver decorrido o prazo geral contado a partir da maioridade ou emancipação. Do confronto do regime anterior com o actual, sobressai a inovadora previsão de um fundamento genérico de abertura de prazos específicos para a proposição da acção de investigação, não contando apenas, para esse efeito, o conhecimento do escrito onde seja declarada a maternidade/paternidade e a cessação do tratamento como filho. Onde anteriormente se previam, de forma fechada e taxativa, duas causas de concessão de prazos que, excepcionalmente, poderiam legitimar o exercício da acção para lá dos dois anos posteriores à maioridade ou emancipação, passou a acolher-se, através de autênticas cláusulas gerais, como dies a quo, a data em que se verifique “o conhecimento de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação” (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 401/2011 já citado, sendo os sublinhados e o negrito nossos). Trata-se, aliás, de solução que o Tribunal Constitucional já tinha avançado, no seu acórdão n.º 486/2004 (disponível em www.dgsi.pt) – quando acolheu a tese da inconstitucionalidade do prazo “normal” de dois anos então previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil (por o mesmo ser exíguo e ter o seu termo inicial numa época da vida em que os investigantes não gozam ainda da normal maturidade e experiência para aquilatar da necessidade, da oportunidade ou da conveniência em estabelecerem juridicamente a respectiva ascendência biológica) – ao ter salientado a possibilidade de previsão de uma cláusula geral de salvaguarda, que permitisse a propositura da acção para além do referido prazo mínimo “normal”, contanto que o autor cumprisse o ónus de alegar e provar factos que tomassem a propositura tardia da acção desculpável ou justificável (maxime, o desconhecimento, sem culpa, da identidade do progenitor ou a existência de reais obstáculos práticos ou sociais à proposição da acção). Foi essa solução que veio a ser consagrada pelo legislador, através da Lei n.º 14/2009, de 01/04, em que, a par do dies a quo puramente objectivo previsto no n.º 1 do mencionado preceito legal (isto é, não dependente de quaisquer elementos relativos à possibilidade concreta do exercício de acção), estabeleceram-se também, nos números seguintes desse normativo, alternativas que ligam o direito de investigar às reais e concretas possibilidades investigatórias do pretenso filho, sem imprescritibilidade da acção, mas com a previsão de um termo inicial que não ignora o conhecimento das circunstâncias que fundamentam a acção (dies a quo subjectivo). Enquadra-se neste último leque de prazos subjectivos o prazo que vem previsto na alínea c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, cuja previsão, constituindo objecto da presente revista excepcional, vale a pena relembrar: A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: (…) c) Em caso de inexistência de paternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação. Não restam dúvidas de que o conhecimento superveniente de que cuida este normativo será aquele que se verifique depois de integralmente decorrido o prazo objectivo de dez anos previsto no n.º 1 do preceito e o seu preenchimento não se basta com todo e qualquer facto ou circunstância, antes exigindo que o tal conhecimento superveniente se reporte a factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação ou, dito de outro modo, a factos que justifiquem que tenha sido apenas nesse momento (e não antes – isto é, dentro do prazo geral de dez anos após a maioridade ou a emancipação) que o investigante tenha lançado mão da acção com vista a exercer o seu direito de ver estabelecido o vínculo da filiação. Com relevância, para apreciação desta questão, provou-se que: · II faleceu no dia 1 de Outubro de 2009. · A autora nasceu a 14 de Dezembro de 1947, está registada como filha de JJ, sendo o seu assento de nascimento omisso quanto à paternidade e quanto à avoenga paterna. · A presente acção foi instaurada a 27 de Maio de 2011. · Até Março de 2010 a autora pouco ou nada sabia acerca do seu progenitor. · Ainda antes do nascimento da autora e depois de JJ lhe ter dito que estava grávida dele, II desapareceu da localidade de B…, tendo corrido neste lugar que o mesmo tinha ido para África. · JJ faleceu a 14 de Outubro de 1986. De entre esta factualidade releva, sobretudo, o facto comprovado de que «até Março de 2010 a autora pouco ou nada sabia acerca do seu progenitor», cujo sentido não é claro ou unívoco. Na verdade, a expressão «pouco ou nada sabia», quando dissecada no seu conteúdo, não é particularmente feliz, em termos de rigor, mas constitui expressão de uso corrente que tem, para qualquer homem médio, o sentido de praticamente nada saber ou de não saber o suficiente. Seja como for, deixa em aberto se antes a autora conhecia algo sobre a sua paternidade e ainda se o “pouco” que a autora sabia era ou não suficiente para conhecer a paternidade e tomar a iniciativa de propor a respectiva acção. Aliás e sintomaticamente, é sobre a falta de clareza e sentido unívoco desse facto que gravitam nuclearmente as conclusões dos recorrentes, quando se batem pela caducidade da acção. Contudo, a 1ª instância, ainda que não o tivesse incluído no lugar normal da enunciação da matéria de facto, deixou explícito, a fls. 744 verso, em alusão à data de 10 de Março de 2010, que «resultou também da discussão da causa ter sido nesta altura que…a autora soube que o seu pretenso pai tinha falecido, das suas condições de vida nos últimos dias e do local onde o mesmo estava enterrado», factos que possibilitavam e justificavam a investigação seriamente dificultada, senão mesmo comprometida dada a ausência do pretenso pai em parte incerta (cfr. ponto 12. do elenco factual provado). E a 2ª instância, por seu turno, consignou, a fls. 829, «permite-nos considerar…como provado que a mãe da autora…. nada disse de relevante à filha sobre a identidade do progenitor …..apenas depois de Março de 2010 veio a tomar conhecimento da identidade completa desse investigado, na sequência da respectiva morte…». Estes factos que as instâncias acabaram por dar por assentes, embora não os inserindo no respectivo elenco factual, têm de ser aditados a tal elenco (trata-se verdadeiramente de operação de mera arrumação) e levados também em consideração por este Tribunal Supremo que, como é sabido, ressalvados os casos excepcionais legalmente previstos, apenas conhece, em regra, de matéria de direito, aplicando definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o regime jurídico que julgue adequado (cfr. art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e art.ºs 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil). Mais assentando tais factos em presunções judiciais, o uso destas apenas é sindicável, em sede de revista, se ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados[4], o que não se descortina que ocorra, na medida em que a lógica seguida nos raciocínios realizados pelas instâncias é patente e até reconhecida pelos recorrentes, não incorre na violação de qualquer preceito legal (os recorrentes não a indicam) e parte de factos provados (em lado algum se parte de factos não provados, com referem os recorrentes) para, com recurso às regras da experiência, dar por assentes outros factos. Acresce que estando tal matéria fáctica também assente, há que considerar ultrapassada, desde já, a pretensa insuficiência factual apontada pelos recorrentes e a que antes se aludiu, a qual poderia justificar, no limite, o reenvio do processo às instâncias, nos termos do artigo 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, para novo julgamento dessa factualidade alegada pela autora. Contudo, ponderando que afinal a indicada factualidade acabou por ser dada por assente, nos moldes já antes referidos, entendemos que não se justifica sequer nova baixa do processo, tanto mais que a autora caminha para os 70 anos de idade e o teste de paternidade realizado, após exumação do cadáver do pretenso pai, apontou para uma paternidade praticamente provada, com a probabilidade de 99,99994%, nada aconselhando portanto o arrastamento da lide iniciada há quase seis anos (completam-se no próximo mês de Maio). Pelo contrário, impõe-se reconhecer, por um lado, que essa factualidade, como bem equacionaram convergentemente as instâncias, integra, face às considerações expendidas, a previsão da alínea c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil - por estarem comprovados factos ou circunstâncias que justificaram e possibilitaram a investigação (até aí impedida pelo desconhecimento da autora acerca do seu progenitor) – e, por outro lado, que, iniciando-se em Março de 2010 o prazo de três anos ali previsto e tendo a acção sido instaurada em 27-05-2011, a caducidade não se verifica. Improcedem, pois, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões tecidas pelos recorrentes, a propósito da caducidade da presente acção, inclusive as referentes à pretensa violação do ónus da prova ou desrespeito da 1ª instância pelo primeiro acórdão da Relação que ordenou o prosseguimento da acção. 2 – Do abuso de direito Por fim, sustentam os recorrentes o abuso de direito da autora, com fundamento no arrolamento dos bens do investigado que a mesma requereu em Junho de 2010. Apesar da questão não ter sido seleccionada pela formação (cfr. fls. 967), o que, em princípio, a excluiria do objecto do recurso, entende-se apreciá-la, por ser de conhecimento oficioso, adiantando, desde logo, que a mera instauração da providência cautelar desencadeada pela autora não configura nem indicia que há abuso de direito. A função essencial deste consiste, como decorre do artigo 334º do Código Civil, em temperar, com o apelo a regras e princípios fundamentais (a boa fé, a confiança legítima, a finalidade económica e social dos direitos) os resultados que decorreriam de uma aplicação estrita e imediata de outras figuras ou regimes jurídicos. Ora, a autora limitou-se, por um lado, a exercer o direito a ver reconhecida a sua paternidade biológica que se insere no seu direito à identidade pessoal plena e conhecimento das suas raízes ou ascendência biológica e, por outro, justificou a tardia iniciativa do acesso às suas origens, na ausência do pai em parte incerta e sonegação de informação relevante por parte da mãe e familiares até Março de 2010, o que, como já se disse e salientou, acabou por se confirmar. Nada permite, assim, afirmar, como o fazem os recorrentes, que é «caça-fortuna» ou que age apenas por razões patrimoniais e, nessa medida, não há lugar à paralisação desse seu direito fundamental com base em pretenso abuso de direito que não se descortina existir. Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões dos recorrentes, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe apontam, nem viola os princípios ou disposições legais que indicam. 3 – Pode, assim, concluir-se, de relevante, o seguinte: 1 – A problemática da caducidade das acções de investigação de paternidade, no que concerne, especialmente, à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da fixação de prazos para a sua propositura, tem sido largamente debatida na doutrina e na jurisprudência e está, ainda hoje, longe de ser pacífica. 2 - A Lei n.º 14/2009, de 01/04, surgiu depois de o Tribunal Constitucional ter declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que previa para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (cfr. acórdão n.º 23/2006, de 10 de Janeiro, publicado no D.R., I Série-A, de 08-02-2006). 3 - Essa declaração suscitou inúmeras dúvidas, na doutrina e na jurisprudência, no que toca aos seus efeitos, passando a principal por saber se, a partir daí, as acções de investigação de paternidade continuavam a estar dependentes de algum prazo para a sua propositura ou se, ao invés, tinha deixado de existir qualquer prazo para esse efeito, tendo sido precisamente a essas dúvidas que o legislador visou dar resposta. 4 – Tal reforma legislativa não se limitou a alongar a duração dos prazos de caducidade anteriormente estabelecidos no artigo 1817.º do Código Civil, tendo ido mais longe ao ter posto fim ao funcionamento autónomo de um prazo de caducidade “cego” que corria inexorável e ininterruptamente, independentemente de poder existir qualquer justificação ou fundamento para o exercício do direito. 5 – Não obstante o n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil (aplicável às acções de investigação da paternidade ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo Código) manter que esta acção só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos 10 anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, o n.º 3 estabelece que a acção ainda pode ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos factos aí enunciados 6 - O prazo de três anos referido no n.º 3 conta-se para além do prazo fixado no n.º 1, do artigo 1817.º do Código Civil, não caducando o direito de proposição da acção antes de esgotados todos eles. Isto é, mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou emancipação, a acção é ainda exercitável dentro do prazo fixado no n.º 3; e inversamente, a ultrapassagem deste prazo não obsta à instauração da acção, se ainda não tiver decorrido o prazo geral contado a partir da maioridade ou emancipação. 7 - Onde anteriormente se previam, de forma fechada e taxativa, duas causas de concessão de prazos que, excepcionalmente, poderiam legitimar o exercício da acção para lá dos dois anos posteriores à maioridade ou emancipação, passou a acolher-se, através de autênticas cláusulas gerais, como dies a quo, a data em que se verifique “o conhecimento de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação”. 8 - O conhecimento superveniente de que cuida o n.º 3, alínea c) será aquele que se verifique depois de integralmente decorrido o prazo objectivo de dez anos previsto no n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil. 9 - O seu preenchimento não se basta com todo e qualquer facto ou circunstância, antes exigindo que o tal conhecimento superveniente se reporte a factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação ou, dito de outro modo, a factos que justifiquem que tenha sido apenas nesse momento (e não antes – ou seja, dentro do prazo geral de dez anos após a maioridade ou a emancipação) que o investigante tenha lançado mão da acção com vista a exercer o seu direito de ver estabelecido o vínculo da filiação. 10 - Em sede de recurso de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é muito circunscrita, admitindo-se, ainda que com alguma controvérsia, que o Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá sindicar o uso de tais presunções se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. 11 – Na decisão de direito, o STJ deve levar em conta também a factualidade que as instâncias deram por apurada, ainda que não a tenham inserido na respectiva enunciação, ou seja, no lugar próprio. 12 – Tendo a autora comprovado que só em Março de 2010 teve conhecimento da sua paternidade e justificando esse tardio acesso a informação relevante, não ocorre caducidade da acção de investigação proposta em Maio de 2011. 13 - Não age com abuso de direito, a investigante que apenas soube em Março de 2010 da sua paternidade, justificando esse tardio acesso à sua ascendência na ausência em parte incerta do investigado e na comprovada sonegação de informação relevante por parte da mãe e de familiares. IV – Decisão Nos termos expostos, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido. Custas pelos recorrentes. * Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC). * Lisboa, 02 de Fevereiro de 2017 António Piçarra (relator) Fernanda Isabel Pereira Olindo Geraldes ________________ [1] Com exclusão das referentes à admissibilidade da revista excepcional. [2] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º). [3] Apesar das sucessivas decisões do Tribunal Constitucional confirmarem a constitucionalidade dos prazos fixados na Lei n.º 14/2009, de 01/04, a tese da inconstitucionalidade do estabelecimento de todo e qualquer prazo para a propositura das acções de investigação da paternidade continua a ser defendida por parte da doutrina e da jurisprudência, incluindo no seio do Supremo Tribunal de Justiça, citando-se, neste sentido, Jorge Duarte Pinheiro, em O Direito da Família Contemporâneo, 4.ª Edição, p. 162 e ss. e em “Inconstitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil” in Cadernos de Direito Privado, n.º 15, Julho/Setembro 2006; Luís Menezes Leitão, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-04-2013, disponível em www.oa.pt; Cristina M. A. Dias, em “Investigação da paternidade e abuso do direito. Das consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade, in Cadernos de Direito Privado, n.º 45, Janeiro/Março 2014, bem como inúmeros arestos do Supremo Tribunal de Justiça, cujos sumários se encontram acessíveis no respectivo site. [4] Neste sentido, vide, entre outros, o acórdão do STJ, de 25/11/2014, proferido no processo n.º 6629/04. 0TBBRG.G1.S1, e o acórdão 24/11/2016, proferido no processo n.º 96/14.8TBSPS.C1.S1, ambos acessíveis através de www.dgsi. pt/stj.