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Acórdão TR Porto de 2021-05-12

419/12.3TGVNG.P1

TribunalTribunal da Relação do Porto
Processo419/12.3TGVNG.P1
Nº ConvencionalJTRP000
RelatorÉlia São Pedro
DescritoresCrime de Difamação, Liberdade de Expressão
Nº do DocumentoRP20210512419/12.3TGVNG.P1
Data do Acordão2021-05-12
VotaçãoUnanimidade
Privacidade1
Meio ProcessualCONFERÊNCIA (RECURSO DO ARGUIDO)
DecisãoNegado Provimento
Indicações Eventuais1ª SECÇÃO
Área Temática.

Sumário

I - A liberdade de expressão não pode ser pretexto para ofender a honra e consideração de outra pessoa. É pois relevante distinguir o uso do direito à liberdade de expressão, para defender causas ou informar o público, e o mero insulto pessoal. A diferença relevante radica no conteúdo, contexto e finalidade das expressões usadas: se a crítica se dirige exclusivamente à pessoa e aspectos da sua personalidade, sem ter por base factos concretos e sem qualquer finalidade de interesse púbico na sua divulgação, estamos no domínio do insulto em que, a pretexto da liberdade, se ofendem os outros. Nestas condições, o agente não está a coberto do exercício de um direito (liberdade de expressão), mas a abusar da possibilidade de se exprimir livremente para ofender outrem. De outro modo, não era sequer concebível um crime de difamação, uma vez que o difamador estaria sempre no exercício do seu direito de se exprimir livremente… II - No caso concreto, o arguido usou o direito de se exprimir livremente para considerar o arguido como um exemplo da matéria fecal em que o PS (na sua óptica) se está a transformar. O conflito entre a liberdade de expressão e o direito ao bom nome - honra e consideração da pessoa visada - é, nesta situação concreta, muito fácil de resolver: o direito à liberdade de expressão extravasou claramente o limite que lhe impõe o direito ao bom nome e reputação da pessoa visada (ofendido). Nem sequer havia, no caso, qualquer interesse público na divulgação do texto, o qual, pelo seu próprio teor, se reporta a um conflito pessoal entre o arguido e assistente, sem qualquer relevância social. Finalmente, a comparação (exemplo) a que recorre o autor do texto é não só ofensiva da honra e consideração do visado, como é totalmente inútil para o esclarecimento público das razões de desconforto do arguido perante o assistente.


Texto Integral

Recurso Penal 419/19.3TGVNG.P1 Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto 1. Relatório 1.1. No processo acima referenciado, foi proferido despacho de pronúncia para julgamento em processo comum e com perante tribunal singular, contra B…, devidamente identificado nos autos, pelos factos e com as imputações jurídicas constantes da acusação pública de fls. 108 a 110, a qual imputa ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180º, n.º 1, 183º, n.º 1, e 184º, n.º 1, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal (cfr. despacho de fls. 346 a 348, cujo teor, no mais, se tem por integralmente reproduzido). 1.2. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo a final sido proferida sentença com a seguinte decisão: “ (…) A - Nestes termos, julgo a acusação particular totalmente procedente, por provadas, e em consequência decido: a) Condenar o arguido B… pela prática de um crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180º, n.º 1 e 183º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6,50€, o que perfaz o montante de 780,00 (setecentos e oitenta euros); b) Condenar o arguido B… no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 6 U.C., nos termos do disposto no artigo 513º do Código de Processo Penal, e no artigo 8º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais. B - Julgo ainda parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante E…, em consequência do que decido: a) Condenar o demandado B… no pagamento de €1.200,00 (mil e duzentos euros), a título de compensação pelos danos morais sofridos pelo assistente/demandante, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença e até integral e efetivo pagamento; b) Custas cíveis por demandante e demandado cível, na proporção do respetivo decaimento (cfr. artigo 4º, nº1, alínea n) do Regulamento das Custas Processuais e artigo 527º do Código de Processo Civil). Após trânsito, remeta boletim ao registo criminal. Notifique e proceda ao depósito desta sentença na secretaria. (…) ” 1.3. Inconformado com tal decisão, o arguido recorreu para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões (transcrição: “I. A absolvição do arguido é ditada pelo Princípio, basilar de qualquer Estado de Direito Democrático, “Nullum Crimen, Nulla Poena Sine Lege”. II. A expressão utilizada pelo arguido insere-se no contexto da crítica política, no exercício – quiçá exacerbado – da sua liberdade de expressão. III. Assim, as declarações do arguido (ficheiro áudio 20201014095151 _15640630 _2871629, min. 09:28 a 12:26) e o depoimento da testemunha J… (ficheiro áudio 20201014111107_15640630_2871629, min. 21:00 a 21:54) prestados na audiência de discussão e julgamento sustentam decisão diversa da recorrida, determinando a inclusão dos pontos 5º, 7º e 9º no elenco dos factos não provados. IV. Caso se entenda que a conduta do arguido é típica, ainda assim não é ilícita, pois aquele actuou no exercício do seu direito de liberdade de expressão. V. Dispõe o art.º 31.º, números 1 e 2 da alínea b) do CP que: “Não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito”. VI. O arguido actuou a coberto da referida causa de justificação, VII. A jurisprudência nacional e a do Tribunal de Estrasburgo vão no sentido de uma reforçada protecção da liberdade de expressão, designadamente quando estão em causa questões de interesse político e/ou público. VIII. Diz o Tribunal de Estrasburgo “que as ingerências na liberdade de expressão de um homem político só devem ser admissíveis face a razões imperiosas e impõem um controlo dos mais restritos, pois a margem de apreciação é aqui particularmente reduzida, mesmo nula” 5. IX. O mesmo tribunal diz que “eleições livres e liberdade de expressão, particularmente liberdade do debate político, constituem a pedra angular de qualquer sistema democrático”. 1.4. Respondeu o MP junto do Tribunal “a quo”, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo: “ (…) Por todo o exposto e de acordo com o que já acima se expôs, não restaram quaisquer dúvidas ao tribunal, em face da prova produzida, que o arguido praticou os factos de que vinha acusado e dados como provados, integradores do tipo de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1 e 183º, n.º 1, alínea a) do Código Penal. Aqui chegados, importa ainda dizer que “a intervenção do Tribunal de recurso em sede de avaliação da decisão proferida sobre matéria de facto, não visa a reapreciação sistemática e global da prova produzida em audiência, mas antes a deteção e a correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto,” – Acórdão da Relação de Lisboa de 23.11.2010. É esse o corolário lógico do princípio da livre apreciação da prova, relevando elementos que apenas podem ser percecionados, apreendidos e valorados por quem os presencia, elementos esses que não ficam gravados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como o tribunal “a quo” formou a sua convicção, referimo-nos, desde logo, à ausência da oralidade, particularmente, da imediação. Restando, pois, ao Tribunal de recurso, apreciar se a valoração dos depoimentos foi feita de acordo com as regras da lógica e da experiência. Nestes termos e nos demais de direito e por tudo o supra expendido, negando provimento ao recurso V. Excelências farão Justiça (…) ”. 1.5. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, concluindo: “ (…) Volvendo agora ao caso em apreço, verifica-se que o escrito que motivou a condenação do recorrente contém duas partes: a) uma reportada a factos em que o mesmo imputa ao assistente a apresentação ao Ministério Público de uma denúncia anónima que o visava e que assinou sem se identificar como presidente da câmara de D… b) outra em que o recorrente faz um juízo de valor referindo-se ao assistente como exemplo da matéria fecal em que se está a transformar o partido H…. Ora, a matéria factual contida na declaração do recorrente era falsa e este sabia-o, como resulta do ponto 4.º do alinhamento dos factos provados, ponto que, diga-se, o recorrente nem sequer impugna. A ausência de base factual que o sustente demonstra ser absolutamente gratuito o juízo de valor efectuado pelo recorrente, sem outro intuito que não fosse o de menosprezar o assistente, arredando toda a possibilidade de enquadrar a conduta na largueza de parâmetros possibilitada por qualquer tipo de debate. Como diz o TEDH, mesmo quando uma declaração se traduz num juízo de valor, deve haver base factual suficiente em que se apoie, pois, caso contrário, será excessiva (caso DO CARMO DE PORTUGAL E CASTRO CÂMARA vs. PORTUGAL, citado). De qualquer modo, o TEDH também reconhece que existe uma clara distinção a fazer em cada caso entre o que é exercício de direito de crítica e de opinião e o que se traduz em mero insulto, reafirmando que no caso destes últimos a aplicação de uma sanção encontra abrigo, por princípio, à lua da CEDH. No caso em apreço, considerando a ausência de qualquer base factual que justificasse o escrito e considerando os termos e a linguagem utilizados, não há qualquer dúvida de terem sido ultrapassados os limites das relações pessoais e sociais a partir dos quais se justifica a imposição de sanção ao abrigo do artigo 10.º n.º2 da CEDH. Em CONCLUSÃO, tendo em conta o exposto, conjugado com o teor das respostas do Ministério Público na 1.ª instância e do assistente, somos de parecer que o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão condenatório nos seus precisos termos, assim como a pena aplicada. (…) ” 1.6. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º, 2, do CPP. 1.7. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência. 2. Fundamentação 2.1. Matéria de facto A sentença recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto: “Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão a proferir: 1º- No dia 17 de Dezembro de 2018, no blogue denominado “C…”, o arguido B… publicou um texto, intitulado “Autarca de D… apresenta denúncia anónima ao Ministério Público”. 2º- No referido texto é referido o seguinte: “E…, presidente da Câmara D…, enviou ao Ministério Público uma denúncia anónima, a qual assinou sem se identificar como presidente da Câmara D…. Nessa denúncia, sou acusado de ter pedido 300 euros a um tal de F…, de G…, para tratar de um problema de humidade. Esse autarca e dirigente nacional do H… foi recentemente condenado pelo Tribunal Judicial D… por um crime de difamação, mas é um jovem obstinado. Mais do que isso, é o exemplo da matéria fecal em que se está a transformar o Partido H….” 3º- A denúncia anónima a que o arguido se refere no escrito referido em 1º é a simples comunicação ao Ministério Público, por parte do assistente, em papel com timbre da Câmara Municipal D…, em que o mesmo participa a eventual ocorrência de um crime de natureza pública, de acordo com os seus deveres enquanto Presidente da Câmara, tendo tido conhecimento do mesmo por causa das suas funções. 4º- O arguido, ao escrever que E…, presidente da Câmara de D…, enviou ao Ministério Público uma denúncia anónima, a qual assinou sem se identificar como presidente da Câmara D…, sabia que referia factos falsos, uma vez que a denúncia a que aludia não era anónima e a comunicação ao Ministério Pública estava assinada pelo assistente, em representação da câmara. 5º- O arguido, ao referir-se ao assistente como sendo um “exemplo da matéria fecal em que se está a transformar o Partido H…”, comparou-o a matéria fecal, dando-o como exemplo comparativo, considerando assim também o assistente como sendo matéria fecal. 6º- O arguido agiu como descrito apesar de ter plena consciência que E… era Presidente da Câmara Municipal de D…, tendo publicado o texto, nos termos em que o fez, por causa das funções exercidas pelo assistente. 7º- Ao dirigir ao assistente as insinuações e expressões invocadas, agiu o arguido com o intuito, plenamente concretizado, de o atingir na sua honra e consideração pessoal e profissional, e afetar o seu prestígio pessoal e político, sabendo que com os termos empregues vexava o assistente no exercício das suas funções, o que pretendeu. 8º- Fê-lo ainda num conhecido blogue de natureza política, com repercussão pública, no qual escrevia com assiduidade, o que facilitou a divulgação do respetivo teor. 9º- Atuou sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo o seu comportamento contrário à lei. Mais se provou que: (do pedido de indemnização civil) 10º- O arguido exerceu funções de Adjunto do Gabinete da Presidência da Câmara Municipal de D…, entre Dezembro de 2013 e de Junho de 2016. 11º- O assistente é militante do Partido H… e o arguido foi militante do Partido H… até meados de 2018. 12º- O arguido foi nomeado pelo assistente para o cargo de Adjunto do Gabinete da Presidência atenta a confiança política e pessoal que o assistente depositava no arguido. 13º- O assistente e o arguido desempenharam as respetivas funções num ambiente de grande proximidade, mantendo-se ambos a par de todos os assuntos relacionados com a atividade do executivo camarário. 14º- Por quebra da confiança pessoal e política, o assistente exonerou de funções o arguido a 25 de Junho de 2016. 15º- A publicação do texto referido em 1º e 2º afetou a credibilidade, a consideração e a confiança que são devidos ao Presidente da Câmara, bem como o bom-nome e a honra que lhe são devidos enquanto cidadão. 16º- A publicação do texto referido em 1º e 2º logrou obter descrédito da imagem do assistente, minando a confiança que nele é depositada pela generalidade dos munícipes. 17º- Com a publicação do texto referido em 1º e 2º, o assistente sentiu-se humilhado e afetado na sua honra, consideração e prestígio, quer enquanto cidadão, quer enquanto autarca. 18º- Tanto mais que o texto foi elaborado por um seu ex-acessor. 19º- Pelo cargo de adjunto que o arguido ocupou, e por ser uma pessoa socialmente interventiva e conhecedor da população do concelho, é dada especial credibilidade ao que por ele é escrito. 20º- O assistente sentiu-se envergonhado, revoltado e deprimido com a publicação do texto referido em 1º e 2º. 21º- Sofreu forte comoção, perda de sono e ansiedade, e viu-se forçado a dar explicações às várias pessoas e entidades que o confrontaram com o aludido texto. Provou-se ainda que: (condições socioeconómicas e familiares do arguido) 22º- O arguido é licenciado em Design de Comunicação, encontra-se desempregado, auferindo subsídio de desemprego no montante de 430,00€, está a frequentar o ensino superior, é casado, a esposa é técnica de contabilidade e aufere um vencimento mensal de 950,00€, residem em habitação própria, despendendo mensalmente a quantia de 300,00€ na amortização do crédito à habitação, e têm dois filhos menores. 23º- O arguido averba no seu registo criminal a seguinte condenação: - por sentença proferida a 17/06/2019, transitada em julgado a 18/05/2010, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 7187/16.9T9VNG, o arguido foi condenado na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 6,50€, pela prática, a 25/11/2016, de um crime de difamação. Factos não provados, com relevo para a decisão a proferir:a) – Que, ao aludir ao suposto envio de uma denúncia anónima por parte do assistente E… ao Ministério Público, o arguido procurasse dar a entender ao leitor daquele texto que o teor da suposta missiva anónima seria falso e criado pelo ora assistente, sendo o envio da mesma, uma manobra de natureza persecutória; b) – Que o arguido quisesse significar que o assistente, enquanto Presidente da Câmara Municipal D…, seria capaz de elaborar uma missiva, de conteúdo falso, ao Ministério Público, com intenção de que fosse instaurado inquérito criminal contra o ora arguido; c) – Que o blogue referido em 1º, à data da publicação do escrito intitulado “Autarca de D… apresenta denúncia anónima ao Ministério Público”, fosse lido por milhares pessoas. Não se provaram quaisquer outros factos, para além dos constantes da factualidade provada e não provada, ou que com os mesmos estejam em contradição, e que assumam relevo para a decisão a proferir, sendo que o demais alegado no pedido de indemnização civil e na contestação é conclusivo, respeita a matéria de direito e/ou é irrelevante para a decisão a proferir no âmbito destes autos.III – MOTIVAÇÃO:A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados e não provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida em audiência, e na prova documental constante dos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma apreciação de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável. Assim, o tribunal começou por tomar em consideração as declarações do arguido B…, o qual admitiu expressamente e sem quaisquer reservas a factualidade objetiva que lhe é imputada na acusação pública, referindo ter sido o autor do texto intitulado “Autarca de D… apresenta denúncia anónima ao Ministério Público”, publicado no blogue denominado “C…”, a 17 de Dezembro de 2018, e de todo o seu conteúdo. Negou, no entanto, que tenha pretendido com o mesmo inculcar a ideia de que o Presidente da Câmara Municipal de D…, aqui assistente, teria elaborado uma denúncia anónima, de conteúdo falso, e que a tivesse remetido ao Ministério Público, com intenção de que fosse instaurado inquérito criminal contra o ora arguido. Explicou a este respeito que pretendeu dizer precisamente o que escreveu, isto é, que o Presidente da Câmara remeteu ao Ministério Público uma denúncia anónima na qual o arguido é visado, que o fez sem que se intitulasse nessa qualidade, sendo que tais factos correspondem à verdade, e que tal remessa da denúncia ao Ministério Público é mais um exemplo da perseguição que aquele lhe vem movendo desde que o exonerou das funções de Adjunto do Gabinete da Presidência. Negou também que, ao utilizar a expressão “este autarca é o exemplo da matéria fecal em que se está a transformar o Partido H…”, pretendesse apelidar o assistente de matéria fecal, e como tal ofendê-lo na sua honra e consideração. Explicou a este respeito que é um homem com pensamento político, com atividade política e cívica, e que é um crítico do atual executivo camarário da Câmara de D…, crítica essa que vem assumindo publicamente, manifestando a sua discordância em relação a diversas opções políticas da Câmara Municipal D… e do H… de D…, partido do qual foi militante, pelo que a observação que escreveu, referindo-se em primeiro lugar ao Partido H… e depois ao assistente enquanto militante desse partido, pretendia ilustrar o seu profundo desagrado com a classe política, com a descida da atividade política a um nível de deterioração tal que pode ser comparada a matéria fecal. Referiu, assim, ter agido no âmbito do seu direito à crítica e à discordância política, e no exercício da sua liberdade de expressão, servindo-se de um eufemismo para manifestar todo o seu desagrado. Aludiu ainda ao contexto da publicação do referido texto, esclarecendo a este respeito que exerceu funções de Adjunto do Gabinete de Apoio à Presidência entre Dezembro de 2013 e Junho de 2016, tendo sido exonerado de funções nesta data, e que desde essa altura vem sendo vítima de uma verdadeira perseguição movida pelo assistente e pelos seus colaboradores, traduzida na instauração de inúmeros processos de natureza criminal, visando a sua aniquilação política. Por sua vez, o assistente E…, Presidente da Câmara de D…, referiu que pouco antes da exoneração, e depois dela, foi o arguido quem iniciou uma campanha de ataque pessoal e político ao assistente e ao executivo camarário por este dirigido, consubstanciado em diversas publicações no Blog C…, e também na instauração de diversos processos de natureza criminal. A propósito do post em causa nestes autos, que considera como mais uma manifestação da perseguição movida, referiu que o escrito assenta em factos falsos, como aliás decorre da mera análise dos documentos constantes dos autos e que o próprio arguido publicou no seu blogue, uma vez que a carta que enviou ao Ministério Púbico não é anónima, encontrava-se subscrita por um tal F…, denunciava uma situação que podia configurar um ilícito criminal, alegadamente ocorrida com o arguido, e seguiu os procedimentos habituais deste tipo de comunicações, passando para o departamento jurídico, e depois encaminhado para o Ministério Público, a parecer deste. Por outro lado, a comunicação feita ao Ministério Público encontra-se assinada pelo assistente na qualidade de representante do Município. Deste modo, interpretou a primeira parte deste escrito como uma pretensão do arguido de relatar factos que sabia serem falsos, porquanto a denúncia em causa não era anónima e a comunicação remetida ao Ministério Público está efetivamente assinada pelo assistente na qualidade de representante do município, e com o intuito de denegrir a sua imagem e atentar contra o seu bom nome, não tendo extraído do escrito qualquer insinuação no sentido de que o assistente seria o autor dessa denúncia supostamente anónima. A respeito da comparação do assistente a matéria fecal, considerou-a como um ataque mesquinho e insultuoso à sua pessoa, à sua honra e consideração pessoal e política, visando a sua descredibilização, explicando ainda que se sentiu profundamente ofendido e desonrado, tendo sido forçado a dar explicações a todos quantos se lhe dirigiam a comentar tal publicação, inclusive diversos órgãos de comunicação social, tanto mais que o facto de o artigo ter sido publicado pelo arguido no blogue C… permitiu uma considerável profusão e ampliação, dada a popularidade que este blogue granjeava à data. Foram ainda tomadas declarações à testemunha I…, jurista, e diretora do departamento jurídico da Câmara Municipal de Vila Nova de D…, que descreveu minuciosamente toda a tramitação que foi seguida no caso da carta que é mencionada no post em causa nestes autos, desde que foi rececionada na Câmara até ser remetida para o Ministério Público, e que corresponde ao procedimento habitual para todos os documentos que são rececionados pelo município, de modo que nos mereceu inteira credibilidade, encontrando-se ademais sustentada pelos documentos constantes dos autos, a fls. 57 a 75, referentes a tal tramitação. Referiu ainda que interpretou tal escrito como uma comunicação de factos falso, uma vez que não só a denúncia encaminhada para o Ministério Público não era anónima como estava assinada pelo presidente da câmara enquanto representante do município, sendo habitual este assinar ou como presidente da câmara ou em representação da câmara, como de resto é do conhecimento do arguido, que já exerceu funções como Adjunto do Gabinete de Apoio à Presidência, assim como a considerou insultuosa, ofensiva do bom nome e da pessoa do Sr. Presidente da Câmara, a título pessoal e profissional. No mesmo sentido, a testemunha J…, que também já exerceu funções na Câmara Municipal de D…, revelou ter tido conhecimento do conteúdo do post, por o ter lido no Blogue C…, reconheceu o seu conteúdo como altamente ofensivo da honra e consideração do assistente, enquanto militante do Partido H… e Presidente da Câmara de D…, e referiu que também ele se sentiu visado, visto que também é militante deste partido político. Acrescentou que da leitura do post em casa nos autos extraiu que o arguido pretendeu transmitir a ideia de que o Presidente da Câmara teria sido o autor da denúncia supostamente anónima que foi enviada ao município e que depois foi remetida ao Ministério Público, e que teria tido para com ele uma atitude persecutória, e ainda que na comparação do assistente a matéria fecal não vislumbrou qualquer crítica política mas tão só um insulto gratuito. Também a testemunha K…, que exercia funções como chefe do Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal até Setembro de 2019, referiu ter tido conhecimento da publicação do arguido no blogue C…, que interpretou como pretendendo transmitir a ideia de que o próprio assistente foi o autor da denúncia anónima que remeteu ao Ministério Público, e ainda dirigir-lhe um insulto e uma calúnia, ao compará-lo a matéria fecal, sem qualquer contexto político ou de oposição política, uma vez que o arguido nunca se perfilou nessa qualidade perante o assistente, designadamente nunca se candidatou a qualquer cargo político contra o assistente no âmbito da autarquia ou da concelhia do Partido H…. Precisamente no mesmo sentido pronunciou-se a testemunha L…, Adjunta do Presidente da Câmara de D…, que referiu ao tribunal o modo como tomou conhecimento da publicação do arguido no Blogue C… e explicou ainda que tal blogue gozava ao tempo de uma grande profusão pública, sendo lido e seguido por muitas pessoas, sobretudo no concelho de D…. As aludidas testemunhas, apesar de terem manifestado que não se encontravam de boas relações com o arguido, apresentaram um depoimento que se nos afigurou sério e isento, e como tal merecedor de credibilidade. Ora, tendo em conta a natureza confessória das declarações do arguido, deu o tribunal como provados, e com base nas mesmas, os factos vertidos nos pontos 1º e 2º da factualidade provada. Considerando ainda o depoimento das aludidas testemunhas, que exercem ou exerceram funções na Câmara Municipal de D…, bem como o teor dos documentos de fls. 53 a 75, demos como provada a factualidade vertida no ponto 3º. Atentando nas declarações do assistente e do arguido, no que tiveram de coincidentes e confluentes, nos depoimentos produzidos, que a este respeito não foram unânimes, e apelando desde logo ao elemento literal para interpretar o texto elaborado pelo arguido, na parte em que refere que “E…, presidente da Câmara de D…, enviou ao Ministério Público uma denúncia anónima, a qual assinou sem se identificar como presidente da câmara de D…”, afigura-se-nos que, não obstante a ambiguidade do texto, que conduz a leituras diversas, o sentido mais lógico e mais literal é aquele que lhe foi dado pelo próprio assistente, e que de resto o arguido referiu ter sido o que pretendeu transmitir. Deste modo, demos como não provados os factos descritos nas alíneas a) e b) da factualidade não provada. De todo o modo, impõe-se concluir da análise da prova documental e testemunhal já aludida que os factos vertidos no mencionado texto a respeito da denúncia supostamente anónima e supostamente remetida ao Ministério Público pelo assistente sem que o fizesse na qualidade de Presidente da Câmara são falsos, e que o arguido tinha conhecimento dessa falsidade, uma vez que teve acesso aos documentos sobre os quais se pronunciou e pôde constatar quer a autoria da denúncia quer a missiva do município dirigida ao Ministério Público, assinada pelo assistente em representação da Câmara. A este propósito não atribuímos credibilidade às declarações do arguido, que referiu que se limitou a dizer a verdade, pois o arguido tem conhecimento, até pelas funções camarárias que já exerceu, e porque é do senso comum, que a assinatura de documentos pelo assistente na qualidade de Presidente da Câmara e em representação da Câmara é precisamente a mesma coisa, uma vez que quem representa a Câmara Municipal é o seu Presidente. Daí que o tribunal tenha dado como provados os factos referidos no ponto 4º da factualidade provada, relativos à factualidade subjetiva. A respeito da intencionalidade da expressão matéria fecal, não obstante as declarações a este respeito produzidas pelo arguido, atendendo à demais prova produzida, nomeadamente testemunhal, e analisado o texto à luz das regras da experiência e da normalidade do acontecer, consideramos provado que ao comparar o assistente a matéria fecal, o arguido atuou com o intuito, plenamente concretizado, de o atingir na sua honra e consideração pessoal e profissional, e afetar o seu prestígio pessoal e politico, sabendo que com os termos empregues o vexava no exercício das suas funções, o que pretendeu, e tendo publicado o texto, nos termos em que o fez, por causa das funções exercidas pelo assistente (pontos 5º, 6º, 7º e 9º da factualidade provada). Com efeito, analisando a expressão “matéria fecal” à luz das regras da experiência e da normalidade do acontecer, das explicações decorrentes da lógica e as deduções e induções que realizamos a partir dos factos probatórios, baseadas na correção de raciocínio, concluímos sem margem para dúvidas que a mesma objetivamente desabonatória relativamente ao carácter e personalidade do assistente, e é atentatória da honra e consideração devida ao mesmo, ainda que produzidas num contexto de divergência pessoal e política e de crítica contundente ao assistente enquanto Presidente da Câmara de D…. A expressão utilizada pelo arguido ultrapassa claramente o âmbito do debate político, do socialmente tolerável, a expressão de um juízo de valor político, a crítica política à figura do assistente e à sua atuação enquanto Presidente da Câmara de D… e enquanto militante do Partido H…, e evidencia uma intenção do arguido de criar uma imagem negativa da pessoa do ora assistente, configura um claro achincalhamento, um insulto gratuito, e por isso entendemos que extravasa a liberdade de opinião e de expressão que assiste ao arguido. Quanto ao meio de divulgação utilizado pelo arguido, a prova dos factos vertidos no ponto 8º resultou da valoração positiva do depoimento das testemunhas inquiridas, bem como das declarações do assistente, sendo certo que a ressonância pública do blogue “C…” não foi negada nem de algum modo posta em causa pelo próprio arguido. No entanto, não se logrou apurar quantas pessoas liam ou seguiam o blogue à data da publicação em causa nestes autos, pelo que resultou não provada a matéria de facto vertida na alínea c) da factualidade não provada. Por sua vez, para dar como provados os factos vertidos nos pontos 10º a 21º, relativos às consequências da atuação do arguido na vida do assistente e no seu estado de espírito, contextualizadas à luz da relação pessoal e profissional que existiu entre ambos, valoramos positivamente as declarações do assistente E…, conjugada com o depoimento das testemunhas I…, J…, K… e L…, já aludidos, e ainda o depoimento da testemunha M…, assessora de imprensa da Câmara Municipal de D…, que revelaram conhecimento direto dos factos descritos e que nos mereceram credibilidade. A comprovação da situação pessoal, familiar e profissional do arguido decorreu das declarações deste, que se nos afiguraram sérias, isentas e merecedoras de credibilidade também este propósito (ponto 22º). Valorou-se também o teor do certificado de registo criminal constante dos autos quanto aos antecedentes criminais do arguido (ponto 23º).”2.2. Matéria de direito 2.2.1. Objecto do recurso.É objecto do presente recurso a sentença proferida nos autos que, além do mais, condenou o arguido pela prática de um crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180º, n.º 1 e 183º, n.º 1, alínea a) do Código Penal. O arguido insurge-se contra tal decisão, por entender que a expressão por si utilizada se insere no contexto da crítica política, no exercício da sua liberdade de expressão, devendo por isso ser absolvido. Além disso, considera que as declarações por si prestadas em audiência impunham decisão diversa da recorrida e, nessa medida, os pontos 5º, 7º e 9º da matéria de facto provada foram incorrectamente julgados, devendo passar para “o elenco dos factos não provados”. Caso se entenda que a conduta do arguido é típica, ainda assim não é ilícita, pois o mesmo actuou no exercício do seu direito de liberdade de expressão, ou seja, agiu no âmbito de uma causa de justificação (art. 31º, 1 e 2 do CP). Vejamos cada um destes aspectos.2.2.2. Recurso da matéria de facto Nos referidos pontos 5º, 7º e 9º deu-se como provado: 5º- O arguido, ao referir-se ao assistente como sendo um “exemplo da matéria fecal em que se está a transformar o Partido H…”, comparou-o a matéria fecal, dando-o como exemplo comparativo, considerando assim também o assistente como sendo matéria fecal. 7º- Ao dirigir ao assistente as insinuações e expressões invocadas, agiu o arguido com o intuito, plenamente concretizado, de o atingir na sua honra e consideração pessoal e profissional, e afetar o seu prestígio pessoal e político, sabendo que com os termos empregues vexava o assistente no exercício das suas funções, o que pretendeu. 9º- Atuou sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo o seu comportamento contrário à lei. Para se compreender o sentido e alcance da matéria de facto constante dos referidos pontos, deve referir-se que se provou ainda (e tal não foi contestado) nos pontos 1º e 2º: “1º- No dia 17 de Dezembro de 2018, no blogue denominado “C…”, o arguido B… publicou um texto, intitulado “Autarca de D… apresenta denúncia anónima ao Ministério Público”. 2º- No referido texto é referido o seguinte: “E…, presidente da Câmara de D…, enviou ao Ministério Público uma denúncia anónima, a qual assinou sem se identificar como presidente da Câmara de D…. Nessa denúncia, sou acusado de ter pedido 300 euros a um tal de F…, de G…, para tratar de um problema de humidade. Esse autarca e dirigente nacional do H… foi recentemente condenado pelo Tribunal Judicial de D… por um crime de difamação, mas é um jovem obstinado. Mais do que isso, é o exemplo da matéria fecal em que se está a transformar o Partido H….” Da mera transcrição do texto publicado no seu blogue, verifica-se que o arguido, referindo-se ao assistente, o apelidou de “autarca e dirigente nacional do H…”, “jovem obstinado” e “exemplo da matéria fecal em que se está a transformar o Partido H…”. Ora, dizer de alguém que “é um exemplo da matéria fecal” é dizer que essa pessoa faz parte da matéria fecal. Ou seja, o sentido normal da expressão usada é o de que a pessoa visada é um exemplo, uma demonstração, de matéria fecal. Dado que o sentido de “matéria fecal” é unívoco, resulta claramente que, com tal expressão, o arguido considerou o assistente “matéria fecal”, exemplificando, com essa “qualidade”, aquilo em que (na sua óptica) “se está a transformar o Partido H….” Não tem pois qualquer razão de ser a tese do arguido, insurgindo-se contra o ponto 5º da matéria de facto provada, o qual traduz, em termos lógicos e linguísticos, a expressão usada pelo arguido. A intenção de ofender o assistente, bem como a consciência da ilicitude, emergem também do teor da expressão usada e do seu significado contextual. Com efeito, há expressões que, pelo seu teor, são só por si ofensivas da honra e consideração da pessoa visada. Comparar alguém a matéria fecal é uma dessas expressões; não se torna sequer necessário qualquer desenvolvimento. Assim, a intenção e vontade (dolo) de denegrir a imagem do assistente (formulando sobre ele um juízo ofensivo da sua honra ou consideração) decorre do conhecimento que o arguido tinha da expressão usada e do seu significado literal. O mesmo se diga da consciência da ilicitude; o arguido bem sabia que difamar é crime pois, por sentença proferida a 17/06/2019, transitada em julgado a 18/05/2010, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 7187/16.9T9VNG, o arguido foi condenado na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 6,50€, pela prática, a 25/11/2016, de um crime de difamação (ponto 23º dos factos provados). Deste modo, e relativamente à impugnação da matéria de facto, o recurso não tem qualquer razão de ser, sendo claramente improcedente.2.2.2. Qualificação jurídica – exercício de um direito (liberdade de expressão). Relativamente à alegação de que o arguido agiu no exercício do seu direito de liberdade de expressão, ou seja, no âmbito de uma causa de justificação - art. 31º, 1 e 2 do C.P - e, nesses termos, a sua conduta não é ilícita, pensamos que também aqui não tem razão. Vejamos porquê. No essencial, o arguido alega: “ (…) A jurisprudência nacional e a do Tribunal de Estrasburgo vão no sentido de uma reforçada protecção da liberdade de expressão, designadamente quando estão em causa questões de interesse político e/ou público. VIII. Diz o Tribunal de Estrasburgo “que as ingerências na liberdade de expressão de um homem político só devem ser admissíveis face a razões imperiosas e impõem um controlo dos mais restritos, pois a margem de apreciação é aqui particularmente reduzida, mesmo nula” IX. O mesmo tribunal (diz) que “eleições livres e liberdade de expressão, particularmente liberdade do debate político, constituem a pedra angular de qualquer sistema democrático”. (…) ”. Todavia, e como sublinhou o Ex.º Procurador-geral Adjunto nesta Relação, “A ausência de base factual que a sustente demonstra ser absolutamente gratuito o juízo de valor efectuado pelo recorrente, sem outro intuito que não fosse o de menosprezar o assistente, arredando toda a possibilidade de enquadrar a conduta na largueza de parâmetros possibilitada por qualquer tipo de debate. Como diz o TEDH, mesmo quando uma declaração se traduz num juízo de valor, deve haver base factual suficiente em que se apoie, pois, caso contrário, será excessiva (caso DO CARMO DE PORTUGAL E CASTRO CÂMARA vs. PORTUGAL, citado).De qualquer modo, o TEDH também reconhece que existe uma clara distinção a fazer em cada caso entre o que é exercício de direito de crítica e de opinião e o que se traduz em mero insulto, reafirmando que no caso destes últimos a aplicação de uma sanção encontra abrigo, por princípio, à lua da CEDH. (…) ” É verdade que a Constituição da República Portuguesa consagra a liberdade de expressão e o direito à informação, com a natureza e regime específicos dos direitos fundamentais – cfr. arts. 37º, 1 e 18º da CRP. Contudo, também é certo que a mesma CRP reconhece a todas as pessoas o direito ao “bom nome e reputação” – art. 26º, 1 da CRP. Existem várias situações em que os direitos e valores constitucionais devem ser devidamente conjugados ou, melhor dizendo, harmonizados de modo a poderem coexistir. Quer isto dizer que os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos têm limitações. Tais limitações podem decorrer de restrições legislativas, de limites imanentes ou de situações como a presente, em que nos deparamos com uma “colisão entre direitos ou conflito entre direitos e valores afirmados por normas ou princípios constitucionais”. VIERIA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª Edição, Coimbra, pág 320/321. Estamos perante uma colisão ou conflito (segundo o mesmo autor) “sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética).” Um exemplo dessas situações é aquele que está em causa nestes autos, em que “ (…) o juiz poderá resolver, nos casos concretos, conflitos entre direitos fundamentais, nomeadamente entre liberdade de expressão e o direito de informação, de um lado, e o direito ao bom nome e reputação e o direito à reserva da intimidade da vida privada, por outro” (ob. cit. pág. 329, nota 104). A jurisprudência tem sublinhado desde sempre que, no conflito entre liberdade de expressão e direito ao bom nome, aquele acaba onde este começa: - “ (…) Toda a liberdade, ainda que se traduza no exercício de um direito fundamental, como acontece com a liberdade de expressão (artigo 37º da CRP), tem limites lógicos, isto é, consubstanciais ao próprio conceito de liberdade () Cfr. Nuno e Sousa, - A Liberdade de Imprensa"; Coimbra, 1984, págs. 255 e seguintes. Veja-se também o Acórdão do STJ de 5 de Março de 1996, in CJ - Acórdãos do STJ -, Ano IV, Tomo I, 1996, págs. 122 e segs. Do sumário deste acórdão, extractam-se os seguintes pontos: " (...) III. O conceito de honra importa sempre um juízo de valor, pelo que a formulação de tal juízo implica matéria de direito. IV - Havendo conflito entre direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, a sua harmonização concreta depende de critérios metódicos, abstractos, tal como o princípio de concordância prática ou a ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes. V - A liberdade de expressão deverá ser exercida sem subordinação a qualquer forma de censura, autorização, caução ou habilitação prévia, mas com respeito pela Constituição e leis ordinárias. VI - É ilícita a conduta que atinge a honra de outrem já que atribui a este factos desonrosos, sem apoio em fontes seguras e já depois de terem sido objecto de desmentidos credíveis. VII - É assim devida indemnização quanto a danos não patrimoniais.). (…) ” – Acórdão do STJ, de 3-2-1999, proferido no recurso 98A1195. - “ (…) 3. Na delimitação do direito à informação intervêm princípios éticos, pelos quais o jornalista responde em primeiro lugar, constituindo dever de quem informa esforçar-se por contribuir para a formação da consciência cívica e para o desenvolvimento da cultural sobretudo pela elevação do grau de convivialidade como factor de cidadania, e não fomentar reacções primárias, sementes de violência, ou sentimentos injustificados de indignação e de revolta, tratando assuntos com desrespeito pela consciência moral das gentes, contribuindo negativamente para a desejável e salutar relação de convivialidade entre elas. 4. Na conflitualidade entre os direitos de liberdade de imprensa e os direitos de personalidade, sendo embora os dois direitos de igual hierarquia constitucional, é indiscutível que o direito de liberdade de expressão e informação, pelas restrições e limites a que está sujeito, não pode atentar contra o bom nome e reputação de outrem, salvo se estiver em causa um interesse público que se sobreponha àqueles e a divulgação seja feita de forma a não exceder o necessário a tal divulgação. (…) ” – Acórdão do STJ de 26-02-2004, proferido no recurso 03B3898. “ (…) Assim, o artigo 10º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem prevê que "o exercício desta liberdade [liberdade de expressão, na qual se inclui a liberdade de imprensa], porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial" e o artigo 19.º, n.º 3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos dispõe que "o exercício das liberdades [liberdade de expressão, na qual se inclui a liberdade de imprensa] (...) comporta deveres e responsabilidades especiais. Pode, em consequência, ser submetido a certas restrições, que devem, todavia, ser expressamente fixadas na lei e que são necessárias: a) ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem; b) à salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas." – Acórdão do Tribunal Constitucional 292/2008. Do exposto resulta que, sem qualquer margem para dúvida, a liberdade de expressão não pode ser pretexto para ofender a honra e consideração de outra pessoa. É pois relevante distinguir o uso do direito à liberdade de expressão, para defender causas ou informar o público, e o mero insulto pessoal. A diferença relevante radica no conteúdo, contexto e finalidade das expressões usadas: se a crítica se dirige exclusivamente à pessoa e aspectos da sua personalidade, sem ter por base factos concretos e sem qualquer finalidade de interesse púbico na sua divulgação, estamos no domínio do insulto em que, a pretexto da liberdade, se ofendem os outros. Nestas condições, o agente não está a coberto do exercício de um direito (liberdade de expressão), mas a abusar da possibilidade de se exprimir livremente para ofender outrem. De outro modo, não era sequer concebível um crime de difamação, uma vez que o difamador estaria sempre no exercício do seu direito de se exprimir livremente… No caso concreto, o arguido usou o direito de se exprimir livremente para considerar o arguido como um exemplo da matéria fecal em que o H… (na sua óptica) se está a transformar. O conflito entre a liberdade de expressão e o direito ao bom nome - honra e consideração da pessoa visada - é, nesta situação concreta, muito fácil de resolver: o direito à liberdade de expressão extravasou claramente o limite que lhe impõe o direito ao bom nome e reputação da pessoa visada (ofendido). Nem sequer havia, no caso, qualquer interesse público na divulgação do texto, o qual, pelo seu próprio teor, se reporta a um conflito pessoal entre o arguido e assistente, sem qualquer relevância social. Finalmente, a comparação (exemplo) a que recorre o autor do texto é não só ofensiva da honra e consideração do visado, como é totalmente inútil para o esclarecimento público das razões de desconforto do arguido perante o assistente. Assim, também neste ponto o recurso não pode proceder. 3. Decisão Face ao exposto os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC. Porto, 12 de maio de 2021, Élia São Pedro Donas Botto

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