Não pode considerar-se que exista falta de inquérito quando o mesmo é aberto e autuado, mas o MP, por entender que os factos denunciados não são crime, não faz diligências tendentes a averiguar a veracidade desses factos, declara encerrado o inquérito e profere despacho de arquivamento.
Recurso Penal 114/10.9TaVLG-A.P1 Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto 1. Relatório O Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Valongo, inconformado com a decisão da Sr.ª Juiz de Instrução Criminal, proferida fls. 87 e segs dos autos – que admitiu a abertura de instrução requerida por B… e declarou a nulidade do despacho de arquivamento do inquérito (fls. 33 a 35), com fundamento na inexistência de diligências de inquérito – recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição): 1) Iniciaram-se os autos à margem epigrafados com a queixa de fls., 2 a 6 dos autos à margem identificados. 2) Tendo em conta que os factos na mesma descritos não integram a nosso ver a prática de qualquer ilícito de natureza jurídico-penal, mormente a prática de um Crime de Burla, foi proferido, logo após o início do inquérito, despacho de arquivamento, nos termos do disposto no art. 277º, 1 do CPP, 3) Requerida a abertura de instrução e admitida a mesma quanto ao queixoso B…, foi proferido despacho, que nos termos do disposto no art. 119°, 1, d) do CPP e por falta de inquérito, declarou nulo o mencionado despacho de arquivamento. 4) Ora, é deste despacho que aqui e agora se recorre e com o qual não se concorda por duas ordens de razões. 5) A primeira prende-se com a definição do que seja "falta de inquérito" para efeitos do disposto no art. 119°, 1, d) do CPP. 6) Com efeito, como já foi decidido, quer por esse Tribunal da Relação, quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a nulidade insanável da alínea d) do art. 119° do CPP reporta-se à falta de inquérito, enquanto fase processual. 7) Assim, não obstante não ter sido realizada qualquer diligência de prova depois da autuação da supra aludida queixa, não se pode falar em falta ou inexistência de inquérito, pois este passou a existir com a autuação da respectiva queixa. 8) De acordo com esta interpretação, que perfilhamos, apenas estaremos perante uma situação de "falta de inquérito", nos casos em que o Ministério Público, perante a notícia de um crime, omite o dever de, com base em tal notícia, mandar instaurar o correspondente inquérito, violando dessa forma o disposto no art. 262°, 2 do CPP. 9) Em casos como os dos autos, em que formalmente houve inquérito, apenas poderíamos configurar abstractamente a nulidade de “insuficiência de inquérito" a que alude o art. 120°, 2, d) do CPP. 10) Porém, de acordo com o que dispõe o art. 120°, 3, c) do CPP, trata-se esta de uma nulidade dependente de arguição pelos interessados. 11) Ora, percorrido o requerimento de abertura de instrução, temos que tal nulidade não foi arguida, razão pela qual a Exma. Juíza de Instrução Criminal não tinha legitimidade para a conhecer. 12) A segunda razão de discordância em relação ao despacho recorrido prende-se com aquilo que parece ser o entendimento subjacente ao mesmo de que o Ministério Público perante qualquer queixa ou participação tem sempre de investigar. 13) Salvo o devido respeito, parece-nos não ser assim. 14) Com efeito, de acordo com o disposto no art. 262°, 2 do CPP apenas a notícia de um crime dá lugar a abertura de inquérito. 15) Isto vale por dizer que o dever de investigar, enquanto uma das vertentes do princípio da legalidade que norteia a actuação do Ministério Público (art. 219°, 1 da CRP), apenas existe nas situações em que os factos constantes das participações/ denúncias que lhe chegam ao conhecimento são susceptíveis de integrar a prática de um crime. 16) Nas situações em que, como é o caso dos autos, os factos participados não são susceptíveis de integrar qualquer ilícito de natureza jurídico-penal, não existe dever de investigar, não devendo sequer haver lugar a abertura de inquérito. 17) Caso tenha havido instauração de inquérito, o princípio geral de proibição da prática de actos processuais inúteis e inclusivamente a proibição surgida com a revisão do código de processo penal de 2007 de que haja constituições como arguido sem suspeitas fundadas da prática de um crime determinado, impõe que seja proferido despacho de arquivamento. 18) Assim sendo, em face do exposto e por ter feito errada interpretação do disposto nos art. 119°, 1, d) e 262°, 2 do CPP, entendemos que, sendo dado provimento ao presente recurso, deve ser proferida decisão que, revogando o despacho recorrido, determine o prosseguimento da instrução. O arguido, C…, respondeu à motivação do recurso, pugnando pelo provimento do mesmo. Também o assistente (e requerente da abertura de instrução) B… respondeu ao recurso interposto pelo MP, concluindo que “o despacho de arquivamento proferido nestes autos pelo MP é legalmente inadmissível, por registar a nulidade de omissão de inquérito por absoluta falta de actos de inquérito, concordando em pleno com a decisão do JIC da qual o MP recorreu”. Nesta Relação, o Ex.º Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer reconhecendo que “a questão é melindrosa por não estar completamente resolvida no CPP ou (…) por permitir interpretações como aquelas que se expuseram nos autos”, concluindo no entanto por defender que, “ (…) embora por razões não totalmente coincidentes (…), o despacho da M.ª Juiz deve ser alterado no sentido de declarar a impossibilidade de instrução, assim se dando provimento ao recurso. 2. Fundamentação 2.1 Matéria de facto a) Em 21/01/2010 o MP proferiu o despacho de fls. 33 a 35 dos autos, do seguinte teor (transcrição integral): “Declaro encerrado o inquérito. B… e D… apresentaram queixa contra C…, alegando em síntese: No dia 23.12.2008, o queixoso B… acordou com o denunciado que este lhe venderia o veículo automóvel Audi …, de matrícula ..-..-QL. O queixoso terá entregue em troca um Peugeot … de matrícula ..-..-Z1 de que era então proprietário. Para pagamento do Audi ao denunciado os queixosos terão assinado um pedido ainda por preencher de concessão de crédito ao E…, sendo que terão combinado com o denunciado que a prestação mensal não seria superior àquela que até então tinham suportado para pagamento do Peugeot e que era no valor de € 136,00. Da mesma forma, teriam acordado que, a partir da entrega do Peugeot, seria o denunciado a suportar as prestações mensais referentes ao crédito ainda existente para aquisição do Peugeot. Entretanto, mais tarde vieram a constatar que, não só as prestações pela aquisição do Peugeot continuavam a ser debitadas das suas contas bancárias, como a prestação pela aquisição do Audi veio a ser fixada pelo E… em € 297,06. * Os factos cuja autoria os queixosos imputam ao denunciado são susceptíveis de integrar eventualmente a prática de um Crime de Burla, p. e p. pelo art.217º e ss do Código Penal (C.P.). Dispõe o art." 2170 do CP que "quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido..." A burla é configurada como um crime de dano, pois que à sua realização típica é essencial o conceito de prejuízo patrimonial. Ora, resulta dos presentes autos que os ofendidos terão sofrido um prejuízo patrimonial em virtude da conduta do denunciado, pelo que se encontra preenchido este elemento objectivo do tipo legal de crime. Mais se exige, na lei, que o agente deste crime tenha agido com intenção de obter um enriquecimento ilegítimo, facto este que seria em abstracto recondutível ao valor que o denunciado terá logo recebido por inteiro do E… para pagamento do Audi. Todavia, para que se pratique este crime, exige-se ainda que o agente tenha actuado através de um processo enganatório astucioso. Trata-se de uma acção que o legislador descreve com pormenor, sendo assim um tipo de crime de forma vinculada. Exige-se na lei que o erro ou engano da vítima tenha sido provocado através da astúcia. Ora, dos elementos juntos aos autos resulta que o engano do queixoso B… na celebração do contrato não resultou de uma actuação que se possa considerar astuciosa em termos de poder preencher este elemento objectivo do tipo legal de crime. Na verdade, resulta da própria denúncia que no momento da celebração do contrato, o arguido, no máximo, se terá comprometido a pagar as prestações devidas pela aquisição do Peugeot e a obter-lhes uma prestação equivalente pela aquisição do Audi, promessa que posteriormente não terá cumprido. De nada resulta, que nesse momento, o denunciado já tivesse a intenção de incumprir aquilo a que na altura se comprometia. Aliás, mesmo que tal sucedesse, ainda assim, tal situação não assumiria relevância criminal, porquanto a simples omissão de factos relevantes para a decisão de contratar ou mesmo a mera mentira não constitui um meio astucioso e portanto não permite a recondução ao tipo legal do crime de burla. Assim sendo, em situações como as dos autos encontramo-nos somente do âmbito de um típico incumprimento contratual, sendo tal incumprimento absolutamente alheio ao foro criminal. Na verdade, em obediência ao princípio constitucional da "ultima ratio" do direito penal, o legislador foi especialmente exigente na punição da condutas enganosas como crime, apenas punindo aquelas em que o agente usa de estratagemas especialmente hábeis para enganar e já não os casos de mentiras ou omissão de informações relevantes na celebração dos negócios, questões estas que a lei deixou no âmbito do direito civil. Assim sendo, não se vislumbram quaisquer outras diligências a efectuar com utilidade em vista do esclarecimento dos factos, sendo certo que, face aos elementos recolhidos nos autos não existe uma probabilidade razoável de vir a ser aplicada qualquer pena ao denunciado em julgamento [art. 283°, 2 do Código de Processo Penal (C PP)]. Pelo exposto, determine desde já e sem mais arquivamento do presente inquérito (art.º 277°, nº 1 do C.P.P.). Cumpra o art. 277°, n.º 3 do C.P.P” b) Notificados do despacho de arquivamento do MP, os denunciantes B… e mulher, D…, requereram a sua constituição como assistentes nos autos e, nessa qualidade, a abertura de instrução, nos termos do art. 287°, nº. 1, al. b) do CPP, alegando o que consta de fls. 36 a 44. c) Em 22/04/2010 a Sr.ª JIC proferiu o despacho recorrido, do seguinte teor (transcrição integral): “O Tribunal é o competente. Por ter sido requerida por quem tem legitimidade, estar em tempo e não se vislumbrarem razões determinantes de inadmissibilidade legal, admito a abertura de instrução requerida por B… e, em consequência, declara-se a mesma aberta. Notifique (artigo 287°/5 do Código de Processo Penal). *Nulidade Insanável Consultados os autos constato que, nomeadamente, o assistente/ofendido apresentou a denuncia criminal que esteve na origem dos mesmos a 15/0112010, na qual, para além do mais, descreveu os factos que imputa ao denunciado e que considerou como integrantes de um crime de burla. Tal denúncia deu entrada nos Serviços do Ministério Público deste Tribunal no dia supra referido, conforme se extrai do carimbo aposto na mesma. Não foi desenvolvida ou ordenada, mesmo que com delegação em qualquer órgão de policia criminal, qualquer diligência investigatória, vindo a ser proferido despacho de arquivamento por parte do Magistrado do Ministério Público titular do inquérito e que conduziu ao requerimento de abertura de instrução. Neste requerimento, depois de invocadas as razões de discordância do assistente quanto ao despacho de arquivamento, são elencados os factos que o assistente pretendia serem submetidos a apreciação judicial, com a respectiva integração jurídica. Como é sabido, as nulidades insanáveis estão taxativamente indicadas no art. 119° do Código de Processo Penal (CPP). E aí, na parte que ora nos interessa, prevê-se como nulidade insanável a falta de inquérito (alínea d) do citado normativo). Tal vício só existe quando haja ausência absoluta ou total de inquérito - cfr. Souto de Moura in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 118 - ou falta absoluta de actos de inquérito - cfr. Maia Gonçalves in CPP Anot., 1996, pág. 250 (em anotação ao art. 1200 daquele Código) e José da Costa Pimenta, in CPP Anot., pág. 523 de 1987. No caso em análise, parece-me certo ser patente a falta de inquérito, dada a circunstância de não ter sido ordenada e/ou realizada qualquer diligência de investigação e, portanto, nada tendo sido investigado (nem sequer ouvido o queixoso e denunciados), não se podia falar em indícios do que quer que fosse, pela positiva (sua existência) ou pela negativa (sua inexistência). Como foi decidido nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/05/1991, no recurso 27063/91 da 33 Secção: "A ausência total de qualquer diligência de investigação, pelo MP ou por qualquer órgão de polícia criminal, configura inexistência de inquérito, o que constitui nulidade insanável", e de 12/12/2002, proferido no P.º 42319/00, da 9ª Secção: "Denunciado um determinado facto como crime, o Ministério Público não pode arquivar liminarmente os autos sem a realização de qualquer diligência, designadamente a identificação do(s) arguido(s), sob pena de nulidade absoluta por falta de inquérito, pois o(s) denunciado(s) tem direito a ter conhecimento da queixa contra si apresentada e a pronunciar-se sobre ela, tal como ao denunciante deve ser dada a oportunidade de, caso a Lei o permita, requerer a abertura de instrução". Entendo, pois, que com a prolação pelo Ministério Público do despacho de arquivamento de fls. 33 a 35 dos autos sem que se tenha efectuado qualquer diligencia no inquérito se cometeu a nulidade insanável de falta de inquérito a que alude o art. 119°, alínea d) do CPP, o que declaro. E a tal entendimento e declaração não obsta o facto de ter sido requerida instrução, uma vez que a instrução não se substitui ao inquérito. Na verdade, a instrução, por força do disposto no art. 286°, nº.1 CPP, “...visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento". E estando incluídos, como de resto o deveriam estar, no requerimento de instrução os factos denunciados e a respectiva integração jurídica, não posso deixar de concluir que a não realização das diligências requeridas pelo assistente na sua participação criminal e a decisão de arquivamento judicialmente proferida revela-se temerária, pelo que se impunha, ao contrário, dar seguimento ao processo. Nestes termos, tendo em consideração tudo quanto deixei dito e ao abrigo do disposto nos arts. 119°, alínea d), e 122° n. ° 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal, declaro nulo o despacho de fls. 33 a 35 dos autos, que determinou o arquivamento do inquérito, bem como todos os actos posteriores, exceptuando a constituição de assistente por parte do queixoso (cfr. neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Janeiro de 2006, proferido no âmbito do processo n." 5147/2002-9, in www.dgsi.pt). Sem custas - art. 513°, n.º 1 do Código de Processo Penal "a contrario". Notifique e, após trânsito, remeta os autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes”. 2.2 Matéria de direito É objecto do presente recurso a decisão da Sr.ª Juiz de Instrução Criminal (proferida fls. 87 e segs dos autos) que admitiu a abertura de instrução requerida por B… e declarou a nulidade do despacho de arquivamento do inquérito (fls. 33 a 35), com fundamento na inexistência de diligências de inquérito. O MP junto do Tribunal de 1ª instância recorreu dessa decisão para esta Relação, considerando que não houve falta de inquérito e, portanto, não foi cometida a nulidade prevista no art. 119º, 1, d) do CPP. Quando muito, poderia ter havido uma “insuficiência de inquérito”, sendo que tal nulidade não foi arguida e a Sr.ª JIC não tinha legitimidade para dela conhecer, sem prévia arguição do interessado. Por outro lado, sustenta o recorrente que só há dever de investigar factos quando os mesmos sejam susceptíveis de integrar a prática de um crime, o que não é o caso. Nesta Relação, o Ex.º Procurador-Geral-Adjunto entendeu “que o crime indiciado é diferente do denunciado, como diferente é do descrito no requerimento de abertura de instrução e os factos que hão-de descrever-se para a integração do crime de falsificação são diferentes daqueles que integram o crime de burla e foram descritos no requerimento de abertura de instrução. Esta situação conduz-nos, por impossibilidade de por factos diferentes dos descritos no requerimento de abertura de instrução pronúncia – art. 309º do CPP – à impossibilidade de instrução e ao fundamento da rejeição de tal requerimento. O erro instalado no presente inquérito só pode ser resolvido pela instauração de um novo inquérito que se justifica por os factos serem diferentes dos relatados na primeira denúncia”. Por seu turno, na resposta à motivação do recurso, o ofendido/assistente concluiu: “(…) Nestes termos, deve manter-se a decisão recorrida, nomeadamente: 1. Declarar-se nulo o despacho de fls. 33 a 35 dos autos, que determinou o arquivamento do inquérito, bem como todos os actos posteriores, exceptuando a constituição de assistente por parte do queixoso, ao abrigo do disposto nos artigos 110º, al. d) e 122º, n.º 1, 2 e 3 do CPP; 2. Se assim não se entender, o que só por mera cautela de patrocínio se invoca, deverá considerar-se a insuficiência do inquérito, previsto no art. 120º, 2, d) do CPP devidamente arguida pelos ofendidos no art. 21º do requerimento da abertura de instrução, com as devidas consequências legais.”. Perante a multiplicidade das questões suscitadas, impõe-se clarificar o objecto do recurso. Como introdutoriamente dissemos, o presente recurso tem como objecto a decisão recorrida e mais precisamente os vícios dessa decisão. Daí decorre que apenas serão reapreciadas as questões que ali foram conhecidas. O arguido tem direito ao recurso e, portanto, em processo penal haverá, em princípio, um segundo grau de jurisdição, salvo nos casos expressamente permitidos na lei. Assim, e na ausência de qualquer preceito legal que autorize o julgamento por substituição (como ocorre, por exemplo, no caso do art. 426º do CPP), o objecto deste recurso é limitado à questão que foi conhecida na decisão recorrida, ou seja, à questão de saber se, no caso, ocorreu ou não a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. d) do CPP (falta de inquérito). Vejamos então. Sobre as nulidades processuais, o Cód. Proc. Penal consagra o “Princípio da Legalidade”. Por isso, nos termos do artigo 118º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Penal, a violação ou inobservância das disposições da lei do processo só determina a nulidade do acto, quanto esta for expressamente cominada na lei. Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular. De acordo com a respectiva classificação legal, as nulidades podem ser sanáveis ou insanáveis, estando estas também expressamente previstas na lei, quer no art. 119º, quer noutras disposições legais (v.g. artigos 330º, 1 e 321º, 1 do CPP). Ora, no elenco das nulidades insanáveis previstas no art. 119º, inclui-se “A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade” (al. d) do art. 119º). No caso dos autos, o MP proferiu um despacho declarando encerrado o inquérito e ordenando o seu arquivamento, sem que tivessem sido feitas quaisquer diligências. Foi perante esta situação – ou seja, perante um inquérito sem diligências – que a Sr.ª JIC entendeu estar perante uma situação de “falta de inquérito”. “No caso em análise (argumenta-se na decisão recorrida), parece-me certo ser patente a falta de inquérito, dada a circunstância de não ter sido ordenada e/ou realizada qualquer diligência de investigação e, portanto, nada tendo sido investigado (nem sequer ouvido o queixoso e denunciados), não se podia falar em indícios do que quer que fosse, pela positiva (sua existência) ou pela negativa (sua inexistência)”. A nosso ver, há que fazer uma distinção importante entre “falta de inquérito” e “insuficiência de inquérito”, pois a nossa lei prevê esses dois casos a que atribui natureza jurídica diversa: (i) a falta de inquérito é uma nulidade insanável, prevista no art. 119º, d) do CPP e (ii) a insuficiência de inquérito é uma nulidade “dependente de arguição”, prevista no art. 120º, 2, d) do CPP. Cabem no conceito “insuficiência de inquérito” todos os casos em que o inquérito existe, por ter sido declarado aberto e encerrado, mas onde não foram feitas as diligências impostas necessárias, ou, como diz a lei, não foram praticados os actos legalmente obrigatórios (art. 120º, 2, d) do CPP. Já haverá falta de inquérito nos casos em que essa fase processual não chega a ser feita, ou seja, nas situações em que a lei impõe o inquérito como fase processual e o processo chega a julgamento sem essa fase. Neste sentido, podem ver-se os acórdãos citados pelo MP na motivação do recurso – Acórdãos da Relação do Porto, de 19-05-2004, CJ, Ano III, 2004, p. 208 e da Relação de Lisboa, de 26-04-1995, Proc. 0336243. Nestes termos, não pode considerar-se que exista falta de inquérito quando o mesmo é aberto e autuado, mas o MP, por entender que os factos denunciados não são crime, não faz diligências tendentes a averiguar a veracidade desses factos, declara encerrado o inquérito e profere o despacho a que alude o art.277º do CPP (arquivamento do inquérito). Nestes casos, o inquérito é aberto e encerrado e, portanto, a fase processual de inquérito existiu, com a amplitude adequada aos indícios. Não faria sentido que o MP, por exemplo, perante uma queixa sem indícios e contra incertos, fizesse diligências inúteis. O que pode ser questionado, nestes casos, é o juízo sobre a necessidade de diligências perante os indícios existentes, nomeadamente através da intervenção hierárquica (art. 278º, 2 do CPP), ou da arguição da nulidade de insuficiência de inquérito (art. 120º, 2, d) e c) do CPP). Ora, a possibilidade de, nestes casos, ser questionada a exactidão do entendimento subjacente ao despacho de encerramento do inquérito e, desse modo, fazer intervir o superior hierárquico do MP, ou o Juiz de Instrução Criminal, mostra-nos que houve um inquérito e que a actividade aí desenvolvida pode ser sindicada. Deste modo, e perante a situação em apreço, impõe-se concluir que houve efectivamente inquérito que foi declarado encerrado, pelo que não ocorreu a nulidade (insanável) prevista no art. 119º, d) do CPP (falta de inquérito). Dado que as questões sobre a eventual nulidade por “insuficiência de inquérito” (referenciada no art. 21º do requerimento para abertura de instrução) e sobre a eventual “impossibilidade de instrução como fundamento da sua rejeição” não foram apreciadas na decisão recorrida, sobre elas não nos pronunciaremos, por não fazerem parte do âmbito deste recurso. Com efeito, como refere GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, pág. 335, “(…) o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Nas conclusões da motivação o recorrente tem de indicar concretamente os vícios da decisão impugnada e essa indicação delimita o âmbito do recurso”. Trata-se, aliás, de entendimento uniforme na jurisprudência do STJ – cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada. Nestes termos, impõe-se conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida e ordenar a remessa dos autos ao Tribunal de 1ª instância, devendo a Sra. Juiz de Instrução Criminal apreciar, alem do mais, as questões suscitadas (insuficiência de inquérito e inadmissibilidade legal de instrução). 3. Decisão Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, ordenar o prosseguimento dos autos, nos termos acima expostos. Sem custas. Porto. 7/12/2011 Élia Costa de Mendonça São Pedro Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando