I – A liberdade de expressão deve dar guarida a um excesso linguístico, é para isso que serve, e de todo o modo a ofensa relevante nos termos do art. 180.º, n.º 1, do CP, não pode sê-lo porque o visado assim subjectivamente a sinta, mas apenas se objectivamente for apta a como tal haver-se. II – Agressividade e firmeza de discurso, tanto mais quando a matéria é de interesse público (e porventura até identitária para os contendentes), têm de aceitar-se e serão mesmo desejáveis, enquanto marca de água de um genuíno debate, com liberdade de expressão, a qual por seu lado tolera até rudeza ou mesmo alguma grosseria; o que já não implica é contemporização com ataques pessoais que, resultando na lesão significativa da honra dos visados, afinal desbordem, em qualquer compreensão social aceitável, do adequado àquela expressão e debate de ideias, à crítica de posições, acções ou objectivos. III – As expressões dirigidas, através de uma rede social, pela arguida à assistente, no âmbito de um divulgado, pela segunda (médica veterinária), processo de esterilização de animais domésticos: “isto é matar”; “são assassinas”; “uma assassina”; “isto são maus tratos”; “isto é matar bebés”; “esta gente é louca e cruel para os animais”; “esterilizar bebés de dias é matá-los”, revelam, à luz do que ficou dito, um manifesto excesso hiperbólico, incorporado na querela sobre aqueles procedimentos veterinários da assistente e da crítica, bem ou mal fundada tecnicamente, conta ela movida, e assim escudada pela liberdade de expressão. IV – O mesmo critério apreciativo não pode ser feito em relação à locução “gente de merda”, também inscrita no mesmo acto comunicacional, porquanto essa formulação linguística consagra, de modo incontornável, um directo e imediato juízo de valor fortemente depreciativo sobre a própria pessoa da assistente, sem outro propósito senão rebaixá-la e enxovalhá-la; por isso, é idónea ao preenchimento do tipo objectivo do crime de difamação. V – Por seu turno, as frases divulgadas por outra arguida, visando também a mesma assistente: “esterilizar [sic] uma bebé com poucos dias de vida?, isto lembra o tempo dos nazistas” e “isto é macabro e desumano (…)”, pese embora o patente azedume da linguagem e até, sob o ponto de vista das representações dominantes, um certo mau gosto no assimilar de uma gata de tenra idade a uma “bebé”, estão amplamente cobertas pela liberdade de expressão, não podendo, deste modo, considerar-se como ofensivas da honra da assistente, sob pena de com isso ser afirmado um constrangimento à crítica (chilling effect), resultando em limitação excessiva da liberdade de expressão da arguida, com a inerente violação dos arts. 10.º, n.º 2, da CEDH, e 37.º, n.º 1, da CRP. VI – Mesmo tendo em conta o extremado mau gosto e até a natureza provocatória da comparação entre esterilizar gatos na clínica veterinária e a singular tragédia humana do extermínio de pessoas pelo regime nazi, a frase concreta evidencia inequivocamente não ser mais do que um excesso de linguajar. A recorrente não imputa à assistente o extermínio de pessoas ao jeito nazi, nem mesmo lhe chama nazi; segundo qualquer leitor o apreende, o sentido claro da frase, em si mesma e sobretudo no contexto, é o da recorrente manifestar o entendimento (mal ou bem, mas livremente assim entende) que esterilizar gatos de tenra idade, nos modos em que a assistente o faz e publicitou fazê-lo, equivale a exterminá-los.
Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório 1. No Juízo Local de Competência Genérica de Penacova, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi a .../.../2022 e em processo comum com intervenção de juiz singular, proferida sentença em cujos termos foram entre outras/os condenadas as arguidas a) AA, nascida a .../.../1973, natural de ..., ..., casada, filha de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., e B) DD, nascida a .../.../1968, natural de ..., ..., solteira, filha de EE e de FF, residente na Calçada ..., ..., A primeira, como autora de um crime de difamação, com publicidade, p. e p. pelos art. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), do Código Penal (CP), na pena de cem dias de multa à taxa diária de 5,50 € – e a mais disso, na procedência do pedido de indemnização civil formulado pela assistente/demandante GG, a pagar a esta, a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de 400,00 €, acrescida de juros desde a data da prolação da sentença até pagamento; e A segunda, como autora de um crime de difamação, com publicidade, p. e p. pelos art. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), do CP, e, em concurso, de um crime de ofensa a pessoa colectiva, com publicidade, p. e p. pelos art. 187.º, n.º 1 e 2, al. a), e 183.º, n.º 1, al. a), do CP, nas penas, respectivamente, de setenta dias e de sessenta dias de multa, à taxa diária em ambos os casos de 6,00 €, em cúmulo jurídico dessas penas sendo-lhe imposta a única de noventa dias de multa, à mesma taxa – e a mais disso, na procedência do pedido de indemnização civil formulado pela assistente/demandante GG, a pagar a esta, a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de 150,00 €, acrescida de juros desde a data da prolação da sentença até pagamento. 2. Ambas as arguidas interpuseram contra essa sentença recurso, a primeira em matéria de direito, a segunda em matéria de facto e de direito, ambas pedindo a respectiva absolvição e dos correspondentes recursos cada uma extraindo a final as conclusões seguintes: A) Do recurso da arguida AA «I – Não há norma legal ou regra de legis artis que consagre, ou dê cabimento, de forma expressa e/ou incontroversa, que a prática castrativa de gatitos recém nascidos, como os praticados e publicitados por elas [assistentes], é conduta lícita, legal ou sequer eticamente admissível na nossa sociedade e comunidades. II – Não será preciso ter-se uma inteligência acima da média, nem pródiga imaginação para se perceber e alcançar que a mutilação dos órgãos genitais em seres vivos acabados de nascer, provocada por terceiro que exerce um poder tamanho que sem possibilidade de alguma oposição eficaz, de um ser – mesmo não humano, mas ainda assim da milenar proximidade íntima do Homem. Ora, III – Para os comuns mortais, leigos em Direito e em Medicina Veterinária, como é o caso da ora e aqui arguida recorrente, pode ser – e será – chocante (considerado), aviltante, indigno, ultrajante, imoral e, até, criminoso (no sentido vulgar e popular de “algo mau, negativo”, como foi o caso da assistente, aqui recorrida, e/ou, quiçá, rigoroso da palavra). IV – Dando azo, essa conduta assim voluntária e conscientemente publicitada pelas próprias, em rede social, convocando/provocando comentários “gosto/não gosto”, a uma expectável e natural (e porque não, talvez, desejada ou até propositadamente assim provocada, porque, pelos vistos, altamente rentável), crítica social, no meio de quem, como a ora e aqui arguida, tem mais forte e incontida empatia e sensibilidade para a protecção dos animais, em especial domésticos, e em particular, as suas crias indefesas. Acresce, porém, V – A assistente Ordem dos Médicos Veterinários não vem asseverar tal procedimento nas idades compreendidas na publicação ora aqui em crise, como quer fazer crer a aqui assistente recorrida. Para além de que, VI – Mais não é que uma condenável tentativa de silenciar tudo e todos quantos duvidam ou desaprovam este procedimento concreto, que aparentemente foi unilateral, inopinado, e sem respaldo de entidade pública, e sem base regulada ou cabimento nas legis artis da profissão. VII – Persegue-se e pretende-se ver julgadas e condenadas essas pessoas, sem que previamente, as assistentes (e os próprios Tribunais) tenham, respectivamente, demonstrado, e/ou chegado à conclusão segura que a dita castração de gatitos recém-nascidos é legal, ou lícita, cabível por aceite pela maioria da classe, ou que não caiem na previsão das normas penais de protecção destes animais. Desta forma, VIII – É patente a violenta facada (para manter o “contexto instrumental”) na liberdade de expressão (e livre exercício do direito de crítica), direito e princípio constitucional fundamental consagrado no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa (CR). IX – As expressões concretas que a assistente imputa à ora e aqui arguida recorrente, não são penalmente relevantes, representando, outrossim e apenas, um juízo de valor negativo quanto ao procedimento “clínico” levado a cabo pela recorrente, não se lhe referindo, pessoalmente, a ela. X – É por demais patente e evidente que estas expressões, de terminologia comum, normal, regular, de onde se denota apenas o tom de uma (legítima) indignação, não integram qualquer tipo de difamação contra pessoa. XI – A ora e aqui arguida recorrente, no que tange à sua liberdade de expressão e direito de crítica, jamais ultrapassou a fronteira do socialmente permitido. XII – Não pode ser com base na aparente ou figurada (hiper) susceptibilidade ou “sensibilidade” da assistente ora e aqui recorrida e daquilo que ela diz entender que a atinge, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deve considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais – e, seguro é, que nenhuma das expressões imputadas à ora e aqui arguida, podem ser consideradas ofensivas, na óptica e opinião de um bom pai de família. Por outro lado, XIII – Há que considerar ainda o facto de a ora e aqui arguida recorrente ser uma mulher do Norte, zona bastante rica em expressões regionais um pouco mais abrasivas, mas não ofensivas, que no restante território nacional. XIV – É também reconhecida uma forma de estar mais vulcânica entre os habitantes do Norte. XV – Pode muito bem acontecer que os conteúdos visados pelas críticas e comentários da grande maioria das arguidas, afinal até sejam pertinentes e acertados e por isso nunca difamatórios. Aliás, XVI – O próprio Bastonário da Ordem dos Veterinários, cfr. documento junto […], explicou à Revista Sábado que (sic) “fazer esterilização antes das seis semanas, não é aconselhável e, apesar de haver várias teorias, pode vários riscos, como obstruções uretrais ou o desenvolvimento incompleto de órgãos”. Em suma, XVII – Criticou-se a “obra”, não o “autor”. XVIII – Tendo em conta a justaposição dos direitos em confronto [direito à crítica como corolário do princípio constitucional da liberdade de expressão e opinião (exercida, ademais, em efectivo exercício de defesa dos direitos dos animais, legalmente protegidos)] versus direito à honra e reputação, é-se de opinião que aquele direito constitucional, por essencial a uma sociedade verdadeiramente plural e democrática, deve sempre prevalecer. Convém não olvidar, XIX – Como se sublinha no Acórdão da Relação do Porto, de 19/12/2007, proferido no âmbito do Proc. nº 0745811 (in www.dgsi.pt), “quando uma palavra tem uma pluralidade de sentidos, não temos de acolher o significado atribuído pelo visado tão-só por se ter considerado ofendido, sendo que isso terá de resultar inequivocamente dos factos”. Ora, XX – O crime de difamação supõe a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, actuações, obras, prestações ou realizações, isto é, esses juízos não configuram, nem podem configurar como elementos constitutivos deste tipo de crime. XXI – “Não se pode pretender que as conversas discordantes tenham todas um discurso sereno, com adjectivação civilizada e detentoras de uma argumentação racional, pois isso seria privar do direito de manifestar o seu desagrado aos menos dotados do ponto de vista retórico, das boas maneiras, até da capacidade de raciocínio, recorrendo-se aos tribunais para punir tais excessos e ficando a discordância confinada ao grupo de pessoas polidas”, in acórdão do Tribunal da Relação do Porto, P. 16391/15.6T9PTR.P1 (em www.dgsi.pt) XXII – O direito à honra e ao bom nome não protege os seus titulares de toda e qualquer ofensa, pois “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado”. v.g., entre outros, Ac. Tribunal da Relação do Porto de 12.06.2002, proc. n.º 332/02, Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 10.12.2006, proc. n.º 2281/06 –1 e Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.09.2016, proc. n.º 243/15.2GASPS.C1. XXIII – As referidas expressões situam-se no terreno da crítica por parte da arguida e no uso do princípio da liberdade de expressão, donde está excluída a ilicitude, se não ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 180.º do CP, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 31.º do mesmo compêndio normativo. Ora, XXIV – A liberdade de expressão constitui um dos pilares essenciais do Estado de Direito Democrático e redunda na mais cabal exigência da dignidade da pessoa humana. Só através de uma “esfera de discurso público desinibida, robusta e aberta, poderá cada cidadão desenvolver livremente a sua personalidade, adoptar as escolhas (informadas) que melhor sirvam os seus interesses”. Em suma, XXV – A pluralidade de personalidades e de idiossincrasias exigem que o direito proteja também os discursos mais vivos, aberrantes e ofensivos. No limite, as ideias que chocam ou provocam a colectividade, incentivam os demais a ripostar e a entrar no debate público, contribuindo para um maior esclarecimento de todos. XXVI – A ora e aqui arguida recorrente, ainda que por vezes de forma indecorosa, mas inócua para atingir a honorabilidade ou respeitabilidade da pessoa a quem se dirigiu, limitou-se a manifestar a sua repulsa por práticas médico-veterinárias que correspondem a um tema fracturante e polémico entre os próprios médicos-veterinários. Salvo o devido respeito, XXVII – Agiu com a convicção de que as aludidas práticas lesavam o bem-estar animal, tendo fundamentos sérios para, em boa-fé, reputar como verdadeiros e correctos alguns dos juízos de valor que formulou sobre a assistente recorrida, naquela rede social, v.g. art. 180.º n.º 2, al. b), do CP. Ora, XXVIII – Uma conduta que preencha os requisitos vertidos nas als. a) e b) do n.º 2 do art. 180.º do CP, a saber, prossecução de um interesse legítimo e prova da veracidade da imputação, não é punível por ser lícita, isto é, permitida (ou pelo menos tolerada) pela ordem jurídica! XXIX – Não deixará de se precisar que, ainda que a conduta não se possa ter por justificada ao abrigo da norma aqui em apreço, a punibilidade do agente pode ser excluída por via do n.º 2 do art. 16.º do CP. Isto é, XXX – A pura convicção subjectiva da ora e aqui arguida recorrente no acerto das suas afirmações, pressuposta a existência do interesse legítimo na mesma, pode consubstanciar um “erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto”, excludente do dolo e, como tal, da responsabilidade penal da arguida, v.g. neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, datado de 02.11.2005, relativo ao proc. n.º 8612/2005-3, relatado por Carlos Almeida (disponível em www.dgsi.pt) Seguindo a posição sufragada, XXXI – Do Sr. Prof. Dr. Manuel Costa Andrade (in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal – Uma perspectiva Jurídico-Constitucional, Coimbra Editora, 1996, pp. 232 a 240), é claro ao considerar atípica a crítica objectiva, ou seja, a crítica de obras, prestações, realizações e actuações. XXXII – Essa crítica pode situar-se nos âmbitos político, artístico, desportivo ou outros. Estaremos perante uma situação de atipicidade, e nem sequer perante uma justificação, nos termos da al. c) do n.º 2 do art. 31.º, do CP, de uma conduta típica pelo exercício de um direito (neste caso, o direito de crítica). Em suma, XXXIII – Tais expressões, proferidas pela ora e aqui arguida recorrente, traduzem apenas uma crítica sem extravasar como direito de expressão. XXXIV - Não restam dúvidas de que a ora e aqui arguida recorrente, dentro deste contexto, agiu no âmbito do seu direito de crítica e liberdade de expressão. Não se esquecendo, porém, XXXV – Que a amplitude com que a liberdade de expressão é reconhecida em determinado ordenamento jurídico é um dos índices mais fidedignos para aferir da democraticidade desse Estado. XXXVI – Como nos ensina o Ac. da Relação do Porto, atrás mencionado, de 19 de Abril de 2017, (sic) “É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra pessoa, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utlizada incomoda ou fere a susceptibilidade do visado. (…) E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”. – Ac. Relação Porto de 19 de Janeiro de 2005 (in www.dgsi.pt). XXXVII – A jurisprudência dos tribunais portugueses vem assegurando a tutela da honra enquanto projecção da dignidade humana, o mesmo sucede com a liberdade de expressão, pois que a CR reconhece tanto aquele como esta no plano dos direitos e liberdades fundamentais, sem estabelecer nenhuma hierarquia entre eles. Contudo, XXXVIII – Adversamente a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), não tutela, em primeira linha, o direito à honra, o qual surge apenas a propósito das restrições à liberdade de expressão afirmada no n.º 1 do art. 10.º, emergindo como uma excepção àquela liberdade, cfr. o n.º 2 do preceito supra. Ora, XXXIX – O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), vem considerando dever essa excepção ser interpretada restritivamente. Na verdade, XL – No contexto da CEDH a relevância da liberdade de expressão é tão abrangente que nela se vêm acolhendo expressões, menções ou referências críticas, por vezes mesmo chocantes, exageradas ou até tangentes à própria realidade. XLI – E se tais expressões, menções ou referências se referirem a pessoas com exposição pública e mediática, seja pela necessidade de escrutínio das suas decisões, a tolerância é ainda maior! Em suma, XLII – Nos artigos 8.º e 16.º, n.º 1, da CR, esta eleva a CEDH a um plano superior ao ordinário, o que daqui deriva com cristalina evidência, que todas as autoridades, incluindo naturalmente os tribunais, devem acolher a doutrina que deriva da jurisprudência do TEDH, de molde a evitar futuras condenações por violação da Convenção.» B) Do recurso da arguida DD «I – A arguida foi condenada como autora material pela prática de um crime de difamação, p. e p. nos termos dos art. 180.º e 183.º, n.º 1, al. a), do CP, e de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. nos termos do art. 187.º, n.º 1 e 2, e 183.º, n.º 2, do CP, a uma pena única de noventa dias de multa, à taxa diária de 6,00 €. II – A arguida foi ainda condenada a pagar uma indemnização no valor de 150,00 €, a título de danos não patrimoniais causados à demandante […]. III – Quanto ao crime de difamação, salvo melhor entendimento, parece-nos que o tribunal a quo incorreu num erro de apreciação de prova, ao dar como provados os factos constantes dos n.º 101 e 102. IV – A prova produzida em audiência impõe a absolvição da arguida, havendo salvo o devido respeito, um erro notório na apreciação da mesma. V – Da análise das declarações da assistente GG, supra transcritas, resulta claramente demonstrado que os comentários proferidos pela arguida foram dirigidos ao procedimento em si, e não contra as pessoas das assistentes, limitando-se a arguida a manifestar-se contra uma prática que estava a ser divulgada, e não a tecer comentários que visassem os autores de tais práticas. VI – As expressões utilizadas pela arguida para comentar uma publicação feita pela assistente na rede social Facebook não foram dirigidas à assistente. VII – A arguida pretendia apenas dar a sua opinião acerca da esterilização pediátrica de gatos, tema que estava a ser debatido no referido post. VIII – A Arguida fez um comentário genérico, não visando, em momento algum, ferir a honra e consideração da assistente. IX – A Arguida não atuou com dolo, no sentido de que não atuou com conhecimento e vontade de realização do facto que preenche os elementos típicos objetivos do crime de difamação. X – Não estando verificados, quer o tipo objetivo, quer o tipo subjetivo do crime de difamação, deve a arguida ser absolvida da prática do mesmo. XI – Todavia, caso se entenda que a conduta da arguida consubstancia a prática de um crime de difamação, o que por mera cautela de patrocínio se concede, note-se que a assistente permitiu que toda e qualquer pessoa pudesse comentar livremente a publicação, devendo por isso entender-se que consentiu na lesão da sua honra. XII – Consequentemente, deve considerar-se excluída a ilicitude dos factos de que vem a arguida condenada, ao abrigo do disposto no art. 38.º, n.º 1, do CP. XIII – Ademais, ainda que se considere que a conduta adotada pela arguida consubstancia a prática de um crime de difamação, atendendo ao princípio da intervenção mínima do direito penal, a mesma não é, materialmente, um crime. XIV – Já no que respeita ao crime de ofensa a pessoa coletiva pública, a arguida foi mal interpretada pelo tribunal a quo. XV – Com a expressão “incapacitar o bicho”, a arguida estava a referir-se ao facto de que, após ser submetido a uma cirurgia, qualquer animal tem de passar por um período de recuperação, durante o qual, logicamente, tem as suas capacidades reduzidas. XVI – A arguida não quis dizer que a assistente maltratou o gato apresentado nas fotografias partilhadas por esta, deixando-o incapacitado de forma permanente, contrariamente àquela que foi a opinião adotada pelo tribunal a quo na decisão da qual se recorre. XVII – Perante o exposto, depreende-se que não está em causa a prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, mas tão só, um mal-entendido em relação ao sentido da frase utilizada pela arguida. XVIII – Em consequência, e porque não provocou quaisquer danos à assistente, uma vez que não incorreu na prática do mencionado crime, deve a arguida ser absolvida do pagamento da quantia de 150,00 €, a título de danos não patrimoniais causados à assistente.» 3. Admitidos os recursos, em ambos os casos respondeu somente o MP, em ambos os casos pugnando pela inteira correcção do decidido, e assim pela improcedência das pretensões recursivas e consequente manutenção da sentença recorrida, também ele de cada uma dessas respostas extraindo a final as conclusões seguintes: A) Da resposta ao recurso da arguida AA «I – A liberdade de expressão consubstancia uma garantia constitucionalmente consagrada, tendo cada pessoa direito de expressar a sua opinião sobre temas fraturantes da sociedade, tais como o desporto, as artes, a política, a religião, a justiça e a atividade científica. Todavia a mesma está sujeita a diversos limites, os quais se encontram expressamente previstos quer na CR – art. 37.º, n.º 3 – quer na CEDH – art. 10.º, n.º 2 –, bem como ainda, diga-se, no art. 70.º, n.º 1, do Código Civil (CC), que reza do seguinte modo: “[a] lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”. II – O direito à liberdade de expressão e o direito à honra gozam de igual dignidade e hierarquia constitucional, estando as suas limitações sujeitas a ponderação e balanceamento nos casos concretos – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.06.2021 (relatora Anabela Simões) e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada. III – Em caso de colisão de direitos, o exercício de cada um deles está sujeito a uma avaliação da concreta atuação do seu titular, a qual se deve inserir dentro do âmbito dos poderes jurídicos que emanam de tal direito, devendo ser evitadas atuações inadequadas, incorretas e desproporcionais que sejam intrusivas do núcleo essencial de outros direitos. IV – De acordo com a jurisprudência e a doutrina dominantes “[devem] considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.03.2007 (relator Oliveira Mendes). V – No caso dos autos, e tendo como pano de fundo os factos dados como provados na douta sentença recorrida (60 a 68), verifica-se que a recorrente arguida, no exercício do seu direito de liberdade de expressão, se insurgiu, através de uma rede social (Facebook), contra um procedimento cirúrgico de esterilização de gatos de tenra idade, publicado pela assistente GG, tendo manifestado o seu desagrado relativamente ao mesmo através de comentários escritos de natureza pejorativa, humilhante e vexatória, extravasando de forma manifesta e desproporcional o exercício do seu direito de liberdade de expressão. VI - As expressões utilizadas pela recorrente, escritas numa rede social, foram aptas e idóneas a lesar a honra e o bom nome da assistente GG, uma vez que foram suscetíveis a criar em terceiros a convicção de que a assistente, enquanto profissional do ramo da medicina veterinária, era uma pessoa que não zelava pelos interesses dos animais, que pretendia colocar termo à vida de gatos de tenra idade de forma injustificada, e que não era pessoa idónea para exercer a sua atividade profissional. VII – Encontram-se preenchidos todos os elementos típicos, objetivos e subjetivos, do crime de difamação, com publicidade, p. e p. nos art. 180.º, n.º 1, e artigo 183.º, n.º 1, al. a), do CP. VIII – Não se verifica nenhuma causa de justificação prevista nas als. a) e b) do n.º 2 do artigo 180.º do CP, nem o disposto no art. 16.º, n.º 2, do CP, por não estarem preenchidos os respetivos pressupostos. » B) Da resposta ao recurso da arguida DD «I – A factualidade dada como provada na douta sentença recorrida não carece de qualquer reparo, uma vez que a mesma motivou a decisão da matéria de facto, esclarecendo o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção, indicando os meios de prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância. II – À luz das regras da experiência, as expressões utilizadas pela arguida terão sempre que se dirigir à pessoa que realiza o procedimento cirúrgico, pois tal procedimento não é efetuado de per si, i.e., automaticamente, carecendo obviamente de intervenção humana. E, no caso concreto, bem sabia a arguida que quem tinha efetuado a intervenção cirúrgica de esterilização tinha sido a assistente GG, pelo que apenas se pode concluir que todas as expressões pejorativas constantes da matéria de facto dada como provada (“isto lembra o tempo dos nazistas” e “isto é macabro e desumano”) tinham como destinatário a pessoa que efetuou o procedimento, pois a pessoa e o procedimento, neste caso concreto, são completamente indissociáveis. III – Em todo o caso, a procedência da argumentação da arguida recorrente sempre pressuporia a revogação pelo Tribunal da Relação da norma do art. 127.º do Código de Processo Penal (CPP), a que os tribunais devem naturalmente obediência, que manda que o juiz julgue segundo a sua livre convicção. IV – No caso dos autos, verificam-se todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de difamação, com publicidade, p. e p. pelos art. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), do CP, sendo, por isso, a conduta da arguida típica, ilícita, culposa e punível. V – Carece de sentido o argumento de que a assistente GG, ao efetuar a publicação na rede social, deu o seu consentimento para qualquer pessoa lesar a sua honra, uma vez que, por essa ordem de ideias, qualquer pessoa que coloque numa rede social uma qualquer publicação, seja por que motivo for, estará a consentir e a autorizar todos os utilizadores a praticar atos que ofendam o autor da publicação na sua honra e consideração. VI – A globalidade do facto praticado pela arguida, conjugada com a utilização da expressão “incapacitar o bicho, quem vos dá o direito, estou chocada”, leva à conclusão de que a mesma pretendeu transmitir a ideia de que a assistente “CB...” estaria a incapacitar permanentemente os animais através do procedimento de esterilização precoce, propalando deste modo um facto inverídico, pelo que bem andou o tribunal ao imputar à arguida o crime de ofensa a pessoa coletiva, com publicidade, p. e p. pelos art. 187.º, n.º 1 e 2, e 183.º, n.º 1, al. a), do CP. » 4. Subidos os autos, a Sr.ª procuradora-geral adjunta emitiu parecer em que, acompanha e desenvolve as posições expressas nas respostas do MP em primeira instância, a final pugnando também pelo não provimento dos recursos, com integral manutenção do decidido. 5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais se acrescentou (ao parecer respondeu ainda a recorrente AA, meramente remetendo para os argumentos do recurso), sendo que após exame preliminar a que se não patentearam dúvidas relevantes, sem mais vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência. II – Fundamentação 1. Delimitação do objeto do recurso 1.1. O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões das recorrentes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e nenhuma destas se perspectivando, então podem a partir daquelas apontar-se, como assuntos a apreciar, os seguintes: a) Do recurso da arguida AA i. Da alegada atipicidade da conduta ou quando menos da exclusão da respectiva ilicitude, por representar exercício de liberdade de expressão, cuja tutela tem de sobrepor-se à da honra, ou ainda e em última análise da exclusão do dolo nela, em virtude de erro. b) Do recurso da arguida DD ii. Do alegado erro de julgamento, quanto aos factos que se deram como provados sob 101 e 102, e com isso da suposta actuação sem dolo, no que tange ao imputado crime de difamação; iii. Do alegado consentimento da ofendida/assistente GG nessa difamação; iv. Da alegada atipicidade da conduta, no que tange ao crime de ofensa a pessoa colectiva. 1.2. De fora das indagações que os recursos concitam, haverá porém de ficar a matéria das condenações das arguidas nos pedidos de indemnização cível, de que em si mesmas não cabe recurso (atento os valores dos pedidos e condenações: 440,00 €, quanto à recorrente AA, 150,00 €, quanto à recorrente DD), tudo nos termos dos art. 400.º, n.º 2, do CPP, e 44.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário – LOSJ; Lei n.º 62/2013, de 26/08). Nelas, apenas aqui caberá tanger se, e na medida em que, por eventual procedência da impugnação da matéria de facto ou, com ou sem ela, do afastamento da conclusão pelo preenchimento dos crimes, conduzindo à absolvição criminal, isso seria imposto pelo art. 403.º, n.º 3, do CPP. 1.3. E enfim, não cabendo renovação de provas e de igual modo não sendo caso de realização de audiência (que aliás nenhuma das recorrentes requereu), sempre os recursos deveriam ser julgados em conferência (art. 419.º, n.º 3, al. c), e 430.º, n.º 1, a contrario, do CPP), como foram. 2. A decisão recorrida A boa apreciação da causa, nos termos acima melhor enunciados, importa que se faça aqui presente, não obstante a extensão que isso impõe a esta peça, o essencial da decisão recorrida, com o elenco dos factos dados como provados e não provados, a motivação da decisão de facto, tudo no que às recorrentes possa tanger, e as partes da fundamentação de direito respeitantes à conclusão pelo preenchimento, por elas, dos crimes em causa, bem como à escolha e à determinação da medida das penas. Assim delimitado, é o seguinte o teor respectivo: « (…) III – Fundamentação de facto A. Factos provados Do despacho de pronúncia 1. Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a abril de 2018, GG registou um perfil público de Facebook com o nome “CB...”, no link ..., destinado a dar conhecimento da atividade da pessoa coletiva “CB...”, enquanto centro de atendimento médico-veterinário aberto ao público, da qual a primeira é diretora clínica e a única médica veterinária ao serviço. 2. No dia 9 de abril de 2018, GG filmou um vídeo de 8 minutos e 2 segundos, onde se pode ver a própria sentada a uma secretária, com a face virada para a câmara, a explicar a sua perspetiva clínica sobre o procedimento cirúrgico de esterilização de gatos bebés, na sequência de algumas críticas feitas a esse procedimento numa publicação anterior da página CB.... 3. Pelas 13h46 do mesmo dia, GG publicou o aludido vídeo na página de Facebook da Clínica. (…) 10. A assistente GG é médica veterinária de profissão, encontrando-se inscrita na Ordem dos Médicos Veterinários, sendo portadora da cédula profissional n.º ...98. 11. A assistente exerce a sua atividade como diretora clínica da sociedade “CB...”. 12. Esta última exploradora de um centro de atendimento médico-veterinário sediado em ..., com o mesmo nome. 13. A mencionada clínica está acreditada pela Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) porque possuidora das condições, em termos de local, pessoal, material e equipamentos, para a prática da medicina veterinária. 14. Na causa do bem-estar animal avultam associações e entendimentos quanto ao modo de combate e resolução do flagelo que é o abandono de animais (cães e gatos) e a sua acumulação em canis e colónias de rua, com o inerente problema da insuficiente adoção, por, resumidamente, «não haver lares para todos». 15. Uma das formas internacionalmente aceites, disseminadas e acolhidas na lei para o desejável controlo sobrepopulacional e, portanto, para o combate à proliferação indesejada de animais e consequentemente o seu abandono, é a esterilização de animais errantes através de um procedimento designado por CED, que consiste em “Capturar, Esterilizar e Devolver” os animais à sua origem, impedindo, assim, o quanto antes, a sua cíclica reprodução em larga escala, o que é particularmente relevante em colónias de gatos, ditos silvestres, ferais ou de rua. 16. Na prossecução desse objetivo de esterilização, inclui-se a cirurgia pediátrica, ainda que muitos profissionais não tenham o necessário know-how quanto ao procedimento cirúrgico e protocolo anestésico a utilizar em animais de pequeno porte, razão pela qual geralmente é adiada para idade mais adulta. 17. A assistente GG efetuou, ao longo de cerca de vinte anos de profissão, milhares de castrações, participando e promovendo a realização de campanhas massivas de castração de animais de rua e disponibilizando o seu saber e tempo para esta causa de forma voluntária e gratuita. 18. A assistente GG partilha, sem contrapartidas, o seu conhecimento com outros colegas veterinários quanto à técnica utilizada e respetivos procedimentos, colaborando com diversas associações sem fins lucrativos, nomeadamente com a “AR...”, cedendo gratuitamente as instalações da clínica da sociedade que gere, procurando, assim, contribuir para a causa animal. 19. A “CB...”, criou um perfil público de Facebook para esta pessoa coletiva, que ali gira sob o nome CB..., sediada no link https:..., no qual dá conta da sua atividade enquanto centro de atendimento médico-veterinário aberto ao público. 20. A assistente GG, sendo sócia gerente de tal sociedade, exerce aí, como trabalhadora, a profissão de médica veterinária, sendo a única veterinária ao seu serviço e assumindo a sua direção clínica. 21. Na qualidade de administradora desse perfil público de Facebook da “CB...”, GG publicou, no dia 6 de abril de 2018, uma publicação, redigida em português do Brasil, com o seguinte teor: “Hoje tivemos mais um dia com esterilizações em parceria com a AR.... São gatinhos "de ninguém", ou comunitários como prefiro, gatinhos de todos nós. Eles são silvestres, tem muito medo de nós humanos e para poder tratar deles temos de usar armadilhas e equipamentos próprios. E fazer tudo com todo o cuidado e agilidade para minimizar o estresse. E aproveitar a oportunidade que provavelmente é única para causar um impacto positivo não apenas na vida de cada um deles, como da colónia que pertencem e toda a comunidade em que estão inseridos. Isto inclui ter preparação para esterilizar qualquer bichinho, de qualquer idade, em qualquer situação. Em destaque uma menina de muitos poucos dias. E sua mãe e irmãos, que poderão ter uma vida melhor, mais tranquila e sem mais ninhadas”. 22. Foram juntas a esta publicação três fotografias, entre as quais se destacava uma pequena gata, com dias de vida, no pós-cirúrgico da esterilização, saudável e recuperada, junto com uma gata adulta sua mãe e demais ninhada, igualmente castrados. 23. Tal publicação, que ostentava, à data da queixa, mais de duzentas e noventa partilhas diretas, foi alvo de comentários, perfilando-se, entre eles, elogios e parabéns pelo trabalho desenvolvido, assim como imensas surpresas pelo facto de alguns utilizadores desconhecerem a possibilidade de efetuar castrações em animais tão pequenos e dúvidas e questões que foram sendo esclarecidas aos interessados. 24. Sendo a causa animal alvo de acesos ânimos, fez espoletar também comentários pejorativos e de discordância. 25. Face à panóplia de comentários, GG, em vez de lhes responder individualmente, como vinha fazendo, efectuou um vídeo explicativo, que foi publicado no mural do Facebook da clínica. (…) 60. A arguida AA era, à data da prática dos factos, utilizadora da rede social Facebook, apresentando-se com um perfil público com o nome AA sediado no link .... 61. A arguida AA partilhou publicamente, a 8 de abril de 2018, às 17h20, na sua página pessoal naquela rede social, o post inicialmente feito pela sociedade assistente, adicionando o seguinte texto: “ESTERLIZAM GATOS RECÉM NASCIDO!!! LOUCURA E MUITA CRUELDADE”. 62. No seguimento dos comentários publicamente efetuados nessa sua publicação, a arguida referiu o seguinte, a 8 de abril de 2018: “Já tinha ouvido falar que fazem em bebés de 2 meses. Eu não concordo. Mas estes têm dias de vida!!! Isto para mim é crueldade. Não acredito que muitos bebés se salvem. Isto é matar» 63. Logo a seguir, a arguida escreve: “Ainda mais são bebes de gata de rua. Como sabemos os filhotes nascem sempre com poucas defesas. Neste caso fizeram isto a recém nascidos e devolverem a e os bebés a rua novamente. Esta gente só pode ser louca e maquiavélica”. 64. No dia 9 de abril de 2018, às 00h40, a arguida escreveu: “Eu sou a favor do CED e faço mas isto para mim é muito crueldade. Esterilizar recém nascidos já é muito mau. E torna los a mete los na rua pior ainda. Se lhes acontece alguma coisa ninguém sabe pois de certeza que a mãe vai levar os bebes para um sitio aonde estejam escondidos. Sabemos muito bem que se mexermos nos bebés elas mudam nos. Esta gente mata bebés e da pior forma possível. Isto para mim é de uma loucura sem fim. São assassinas.” 65. No seguimento da resposta da usuária HH, que lhe referiu que a assistente GG é a única que dá formação em Portugal a este respeito, a arguida AA reiterou: “Uma assassina então. Esterlizar recém nascidos!!! CRUELDADE ANIMAL” 66. No dia 8 de abril de 2018, às 15h43, em comentários ao post público da assistente “CB...”, a arguida escreveu: “Isto é ridículo e uma barbaridade cruel Como sabem que estes bebes são silvestres ????, a mãe pode ser os bebés não Vocês são loucos.” 67. No mesmo dia 8 de abril, a arguida AA escreveu: “Loucos Isto é maus tratos Bebés sem defesas e levar uma anestesia Crueldade Eu dou muitos bebés para adopção e aos 6 meses todos são esterilizados.” 68. A 9 de abril de 2018, às 19h03, a arguida publicou o seguinte: “Vão ‘pritando’ tudi porque eu também o estou a fazer Ainda hoje falei com 2 veterinárias e recusam se a fazer estas esterlizacoes Sim para mim isto é matar bebés Continuo a dizer Esterlizar sim mas com precaução NUNCA ARRISCANDO A VIDA DE UM ANIMAL Isto para mim é de uma crueldade sem nome São maus tratos sim Maus tratos não é só mata los a pancada Mata los assim só porque acham que as gatas poderão engravidar!!! Tiram bebés da rua e tornar a mete los na rua com dias de vida!!! Bebés esses que deveriao seguir para adopção Mães selvagens sim sou a favor de esterlizar e libertar Quem gosta de animais mesmo sendo de rua protege os não esterliza bebés com os olhos fechados e os mete na rua novamente Estão preocupados que não engravidam e não se preocupam que bebés podia ser adoptados e terem uma família!!! Estranho este gostar de animais!!!!!” 69. Com tais afirmações, feitas publicamente através da rede social Facebook, de forma livre, deliberada e consciente, dirigindo-se a terceiros, teceu a arguida AA juízos ofensivos da honra e consideração da veterinária aqui assistente, pois que esta é profissional habilitada, competente e sabedora do seu ofício, incapaz de perpetrar maus tratos a animais ou de os abater sem razão médica atendível. 70. Em resposta a um comentário de II, em que perguntava como estavam os animais intervencionados, a arguida afirmou: “Não respondem Já fiz essa pergunta e nada Elas nem sabem aonde estão os bebés nem a mãe Acha que uma gata que é de rua que lhe mexem vai ficar no mesmo sitio aonde a deixarem ?!! A gata já desapareceu á muito com os bebés Pobres animais que caem na mão desta gente e de tantas que por aqui andam”. 71. A assistente CB.... veio responder à pergunta formulada pela utilizadora II, por mão da assistente GG, juntando uma foto que retratava dois dos animais intervencionados. 72. A 30 de abril de 2018, a arguida AA respondeu: “O bebé da foto não é o mesmo que foram esterlizados com dias Incrível é fazerem o que fazem.” 73. A arguida procurou colocar em causa a seriedade, conduta, reputação, honradez, bom nome, imagem e prestígio da assistente GG. 74. Em 28 de Junho de 2018, pelas 12h49, foi publicado na versão online do jornal Sábado, uma notícia dando conta da queixa apresentada no âmbito dos presentes autos. 75. Na sequência da publicação de tal texto online, de que a arguida AA teve conhecimento, veio esta publicar, no seu mural de Facebook, o seguinte post, em 28 de junho de 2018, às 20h29: “Ainda processam?!!!! Quem tem que ser processado é quem faz estes actos bárbaros Esterlizar bebés com dias !!!” 76. Tal post veio a ser alvo de comentários dos seus seguidores, por ocasião dos quais a arguida, sempre referindo-se, designadamente, à assistente GG, foi respondendo. 77. Imediatamente após o primeiro comentário da utilizadora com o nome de perfil JJ, que referiu “O que eles fazem é que é um crime!”, respondeu a arguida a 28 de junho de 2018, pelas 20h44: “Sim é crime Mas quem comenta eles ainda vão fazer queixa Esta gente não gosta de animais Esterlizar bebés de dias é mata los” 78. Em 28 de Junho de 2018, às 22h31, e no seguimento desse post, disse a arguida, em resposta ao comentário de KK e referindo-se, designadamente, à assistente GG: “Devem querer protagonismos está gente de merda”. 79. Na sequência de comentário da utilizadora LL, que sugere que as assistentes deveriam estar a conduzir experiências em tais animais, escreveu a arguida, a 29 de junho, pelas 03h17: “Devem estar Só podem” 80. No seguimento desse post, em 30 de junho de 2018, pelas 18h31, disse a arguida AA, em resposta ao comentário da utilizadora MM e referindo-se, designadamente, à assistente GG: “Sim está gente deve estar louca a pensar que processar as pessoas vão se calar de tanta barbaridade e crueldade aos animais”. 81. Ainda no seguimento desse post, em 4 de julho de 2018, pelas 21h22, disse a arguida, em resposta ao comentário da arguida NN: “Sim Para mim isto é sim um abate e em sofrimento”. 82. Em 28 de junho de 2018, pelas 22h40, a arguida publicou no seu mural de Facebook outro post, de carácter público, com o seguinte teor: “Depois de saber através do Facebook que vou ter uma queixa no Diap de Coimbra porque comentei num post que não concordo que esterlizem bebés com dias e essas mesmo ainda os metem na rua porque dizem que são gatos selvagens!!! Deixo vos aqui "meninas de ..." uma das minhas meninas, a OO era uma bebé de 1 mês quando foi recolhida na rua com os irmãos e sim a mãe era de rua E fiquem a saber que tenho imensos meninos mas a OO é a minha menina mais meiga que tenho, é a menina que vai ter com as pessoas mal entram na minha casa mesmo não as conhecendo Se vocês dizem que gatos bebés não socializam é mentira e só vocês não o devem saber ou melhor não querem é fazê lo Melhor mata los não é????? Não tenho paciência para tanta estupidez e juntem o meu post as vossas queixas Pois, sim agora sou eu que vos vou meter uma queixa em cima”. 83. Este último post veio a ser alvo de comentários dos seus seguidores, por ocasião dos quais, sempre referindo-se, designadamente, à assistente GG, a arguida foi respondendo. 84. A 29 de junho de 2018, pelas 03h14, após o primeiro comentário de PP, escreveu o seguinte: “São gente que devem pensar que irão receber algum Mas comigo vão receber merda pois se é verdade o que vem na publicação quem vai avançar sou eu com uma queixa contra estas assassinas de bebés São São piores que os veterinários municipais está gente Esterlizam bebés de dias é depois metem nos na rua!!! Dizem elas que são gatos selvagens!!!! Assim claro que rapidamente acabam com nascimentos Matam nos todos Gente que não gosta de animais”. 85. A 29 de junho de 2018, pelas 18h40, escreveu a arguida nessa sua publicação a propósito do comentário de QQ: “Sim Só a partir dos 6 meses e mesmo assim tem que se ver como o animal está Mas não, estas tipas não querem saber Só querem esterlizar e esterlizar”. 86. A 30 de junho de 2018, pelas 00h13, escreveu a arguida em resposta à sugestão de RR de lhe pôr “um processo em cima”, o seguinte: “E vou mesmo fazê lo Esta gente é louca e cruel para os animais Não lhes interessa o bem estar do animal só pensam em esterlizar e esterlizar mesmo bebés de dias”. 87. Apelidando ainda a assistente GG de gente “muito má”, pouco depois, a arguida AA, a 30 de junho de 2018, pela 01h38, redigiu o seguinte texto: “Sim foi lá mesmo que fiz o meu comentário E NÃO concordo que o façam em bebés ainda com olhos fechados nem com 2 meses Neste caso foi comentado em bebés que tinham dias e nem os olhos tinham abertos E meteram nos no dia a seguir na rua Nunca irei concordar com isso Esterlizar sim mas com consciência Mas não querem saber se o animal vai ou não morrer O que interessa é esterlizar Não compreendo Falamos de vidas e não de objectos Sim fizeram queixa de mim mas isso não me irá fazer uar a minha opinião nem de a dar sempre que o achar necessário Sim eu também me informei e estou bem esclarecida que isso nunca será bom para os animais e tem muitos riscos de vida Só porque os animais nasceram na rua não tem direito a viver como os outros ??? Temos que os matar fazendo esterlizacoes a bebés???!!! Aonde estão em Portugal os dados dos animais que sobrevivem a isso??? Eu respeito a vida e posso afirmar que isso para mim chama se crueldade animal”. 88. A arguida AA pretendeu atingir a honra, consideração, prestígio e credibilidade da assistente GG, através da rede social pública Facebook. (…) 98. A arguida DD era, à data da prática dos factos, utilizadora da rede social Facebook, apresentando-se com o perfil público com o nome SS, sediado no link .... 99. No dia 25 de abril de 2018, a arguida escreveu publicamente, em resposta a um comentário à clínica feito pela utilizadora TT no decorrer do post principal: “TT caramba as hormonas fazem falta ..... Incapacitar o bicho, quem vos dá o direito, estou chocada .... mais papistas que o papa ... o lado das protectoras no seu pior então isto é assim?”. 100. Escreveu ainda a arguida, no mesmo dia 25 de abril de 2018, em comentário ao post principal: “Esterelizar uma bebê com poucos dias de vida? As hormonas fazem falta .... UAU isto lembra o tempo dos nazistas .... UAU, super mau .... as hormonas fazem falta .... WTF .. desculpem lá vocês é que deviam ser esterilizados Isto é macabro e desumano fonix”. 101. Com tais comentários, procurou e logrou esta arguida denegrir a honra, consideração, credibilidade e prestígio, quer da veterinária assistente, quer da clínica na qual esta exerce atividade e que publicou o post, além do mais comparando pejorativamente a atividade de ambas com o extermínio nazi, apelidando tal prática de “macabra” e “desumana”, dizendo que pretendiam, pela referência a “incapacitar”, maltratar os animais, o que sabia não corresponder à verdade, pois que se trata de uma clínica e uma profissional devidamente acreditados pela Ordem a efectuar um acto médico cabível. 102. Por via de tal comentário mais defendeu a arguida, de forma ofensiva, e dirigindo-se a todos os terceiros leitores, que a própria veterinária aqui assistente, assim como os demais profissionais que lá trabalham e colaboram em tal procedimento, deveriam ser esterilizados. (…) 106. Todos os arguidos, em todas e cada uma das suas condutas, agiram sempre livre, voluntária e conscientemente, sabendo que estas eram previstas e puníveis como crime por lei, que ainda assim quiseram e lograram violar. (…) C. Motivação (…) IV. Fundamentação de direito (…) ii. Do crime de difamação As arguidas (…) vêm pronunciadas pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação cada uma, p. e p. pelos art. 180.º e 183.º, n.º 1, al. a), e 2, ex vi do artigo 182.º, do CP. Estipula o art. 180.º, n.º 1, do CP que quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até duzentos e quarenta dias, evidenciando, desde logo, que o bem jurídico aqui sob tutela é a honra. O conceito de honra que aqui se alberga é tido como “um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior” - cf. José de Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, tomo I, p. 603. Nesta medida, temos, por um lado, um conceito subjetivo ou interior de honra que “consiste no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma” e, por outro lado, uma vertente objetiva ou exterior de honra “equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa [envolvendo, por isso], a consideração, o bom nome e a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente” – cf. José de Faria Costa, ob. cit., p. 603. O tipo objetivo inclui a imputação de facto ofensivo da honra de outrem, a formulação de um juízo igualmente desonroso ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo. Assim, verifica-se que à semelhança do que sucede na jurisprudência dos tribunais europeus, a lei traça uma distinção clara entre imputação de factos desonrosos e formulação de juízos de valor desonrosos. A distinção entre facto e juízo desonrosos está em que o primeiro é um elemento da vida real, que tem um tempo e um espaço precisos, e cuja revelação atinge a honra do seu protagonista. O juízo desonroso, por sua vez, é um raciocínio, uma ideia, uma valoração, cuja revelação atinge de igual modo a honra da pessoa objeto desse juízo. Note-se que a imputação de factos ou a formulação de juízos desonrosos podem ser inequívocas ou podem estar recobertas pela suspeita, podendo ser formuladas em sentido afirmativo, negativo ou dubitativo. Por outro lado, o crime de difamação distingue-se do crime de injúria pelo modo de imputação dos factos ou de formulação do juízo, i.e., na injúria a imputação de factos ou a utilização de expressões ofensivas são diretamente dirigidas ao ofendido, ao passo que na difamação há a intermediação de um terceiro com quem o agente comunica, imputando ao ofendido ausente factos ou formulando juízos ofensivos da honra e consideração daquele. O preenchimento da conduta típica objetiva deste crime pressupõe, ainda, que se aprecie em concreto a idoneidade do facto ou das palavras para atingir os bens jurídicos tutelados pela norma. A este respeito, diz-nos Faria Costa que “o significado das palavras tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas, no momento em que apreciamos o significado” – cf. José de Faria Costa, ob. cit., p. 630. Neste sentido, é apenas perante o caso concreto que é possível aferir da relevância jurídico-criminal do facto imputado ou dos juízos formulados, importando sempre uma ponderação casuística sobre o tempo, lugar e modo da ação para aquilatar da idoneidade da conduta para atingir a honra ou consideração social da pessoa visada. Acresce que a proteção penal conferida à honra e a punição dos factos lesivos deste bem jurídico só se justifica em situações em que objetivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não o da ofensa, ou em situações em que, ultrapassadas as suscetibilidades individuais, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são, na perspetiva do homem e da mulher médios, verdadeiramente lesivas da honra e consideração do visado – e, a contrario, não tão somente reprováveis do ponto de vista ético -, sendo certo que também se encontram fora do âmbito da tutela penal as expressões abrangidas pelo princípio da insignificância [Definido pelo douto Acórdão de Tribunal da Relação de Évora, de 07.12.2012, processo n.º 488/09.4TASTB.E1, do seguinte modo: “O princípio da insignificância, como máxima interpretativa dos tipos de ilícito, exclui condutas que, embora formalmente típicas, não o sejam materialmente – a insignificância penal exclui a tipicidade e as condutas insignificantes não são típicas porque o seu sentido social não é de ofensa do bem jurídico”.] Ao nível do tipo subjetivo, a difamação trata-se de um crime doloso, que se preenche com qualquer uma das modalidades do dolo previstas no art. 14.º, do CP, pressupondo, assim que o agente, pelo menos, se conforme com o facto de a sua conduta objetiva poder lesar a honra ou a consideração do visado. Por via do art. 182.º, do CP, a difamação verbal é equiparada àquela produzida por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de comunicação. Importa ainda dar nota que a difamação não é punível quando se verifiquem, cumulativamente, as condições vertidas no art. 180.º, n.º 2, 3 e 4, do CP: a imputação seja feita para realizar interesses legítimos e, para além disso, o agente provar a verdade da mesma imputação ou ter fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira, exceto quando o facto imputado seja relativo à intimidade da vida privada e familiar. Para além disso, ao abrigo do n.º 4 do mesmo normativo legal, a boa fé mostra-se excluída quando o agente não tenha cumprido o dever de informação que as circunstâncias do caso impunham sobre a verdade da imputação. Como decorre da leitura e interpretação desta norma, a causa de justificação especial vertida no art. 180.º, n.º 2, do CP, não se aplica aos juízos de valor, “mesmo que tais juízos sejam acompanhados da referência aos factos que lhe estão subjacentes” – cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 201/2004 e 407/2007. No que respeita à imputação de factos desonrosos, os mesmos estão subordinados, como vimos, à causa de justificação especial vertida no art. 180.º, n.º 2, do CP, a qual prevalece sobre a regra geral do estado de necessidade justificante – cf., neste sentido, Taipa de Carvalho apud Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 727. Assim, a imputação de facto desonroso não é ilícita quando (1) é verdadeira (exceptio veritatis) e (2) prossegue interesses legítimos. Por sua vez, a prova da verdade dos factos pode ser substituída pela prova da boa fé do agente para reputar o facto como verdadeiro, sendo que a boa fé tem uma vertente subjetiva, consubstanciada na própria convicção da verdade dos factos, mas também uma dimensão objetiva que se prende ao cumprimento pelo agente dos deveres de informação e esclarecimento a que está obrigado, os quais serão maiores ou menores consoante as características do caso concreto. Na verdade, neste tipo de crimes, os tribunais deparam-se, amiudadamente, com o confronto entre dois direitos fundamentais: por um lado, o direito à honra, constitucionalmente consagrado no art. 26.º, n.º 1, da CR e nos artigos 8.º, da CEDH, e 3.º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), e, por outro lado, o direito à liberdade de expressão, com guarida constitucional no art. 37.º da CR, e nos art. 10.º, da CEDH, e 11.º, da CDFUE. A defesa das arguidas, no caso sub judice, assentou, em sede de contestação e alegações finais, em parte, na invocação do direito à liberdade de expressão e da sua prevalência sobre o direito à honra e ao bom nome da assistente. Vejamos. Ao abrigo do art. 10.º, n.º 1, da CEDH, qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. Todavia, à luz do n.º 2, do mesmo normativo legal, o exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para (…) [designadamente] a proteção da honra ou dos direitos de outrem (…). Em sucessivos acórdãos incidindo sobre aplicação do art. 10.º, da CEDH, o TEDH tem sublinhado a necessidade de se proceder a uma valoração do conteúdo e sentido das expressões em causa, inserindo-as no contexto em que surgiram, considerando que mesmo os juízos de valor suscetíveis de reunirem apenas um conteúdo ofensivo, podem merecer a proteção da liberdade de expressão, desde que sejam dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objetivamente compreensível de crítica sobre realidades objetivas em assuntos de interesse público ou em debate de natureza política – cf., neste sentido, os Acórdãos do TEDH nos casos Lopes Gomes da Silva c. Portugal, decisão n.º 37698/97, de 28.09.2000, no qual prevalecendo expressões como “boçal”, “grotesco”, “pessoa ridícula”, “alarve” sobre o direito à honra de um candidato a uma Câmara Municipal; caso Antunes Emídio c. Portugal e Soares Gomes da Cruz c. Portugal, decisão de 24.09.2019; caso Tavares de Almeida Fernandes e Almeida Fernandes c. Portugal, decisão de 17.01.2017; caso Carmo de Portugal e Castro Câmara c. Portugal, decisão de 4.10.2016; caso Pinto Pinheiro Marques c. Portugal, decisão de 22 2015; caso Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal, acórdão de 3.04.2014; caso Welsh e Silva Canha c. Portugal, acórdão de 17.09.2013; caso Sampaio e Paiva de Melo c. Portugal, acórdão de 23.07.2013; caso Bargão e Domingos Correia c. Portugal, acórdão de 15.11.2012; caso Pinto Coelho c. Portugal, acórdão de 28.06.2011; caso Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa c. Portugal, acórdão de 29.06.2011. Em especial sobre o direito à liberdade de expressão associado à causa do bem-estar animal, veja-se a pioneira decisão do TEDH no caso Bladet Tromsø e Stensaas c. Noruega – concluindo o tribunal pela violação do art. 10.º, da CEDH, num caso que contrapunha os trabalhadores do navio Harmoni, que procediam à caça de focas, e a crítica a tais práticas reflectida no jornal norueguês Bladet Tromsø. Em casos idênticos, o tribunal reiterou a sua conclusão de que o bem-estar e os direitos dos animais são “temas de interesse geral” (cf. caso Steel and Morris c. Reino Unido parágrafo 89) e “questões de interesse público” (cf. caso PETA Deutschland c. Alemanha, parágrafo 47), observando, em consequência disso, que a margem de apreciação dos Estados para determinar em que medida a liberdade de expressão pode ser restringida é mais reduzida (cf. caso VgT Nos. I&II e ADI c. UK parágrafos 71 e 104), embora afirmando que, ainda assim, o padrão de proteção das pessoas e grupos que trabalham nestas questões não é idêntico ao aplicável aos jornalistas (cf. caso PETA Deutschland c. Alemanha, parágrafo 7). Tal vale, designadamente, para os juízos de apreciação e valoração crítica que recaiam sobre realizações científicas, académicas, artísticas ou profissionais ou mesmo sobre prestações conseguidas no domínio do desporto e do espetáculo – cf., neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04.11.2020, processo n.º 2294/17.3T9VFR.P1. Nestes casos, segundo o entendimento hoje dominante, na medida em que não se ultrapasse o âmbito da crítica objetiva – isto é, enquanto a valoração e censura críticas se direcionam exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si mesmas, não visando diretamente a pessoa dos seus autores, profissionais ou criadores – os juízos de valor caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação. Dito de outro modo, o juízo de valor é ilícito quando “enxovalha, degrada e rebaixa a pessoa visada (…) atribuindo-lhe características que a singularizam como pessoa especialmente merecedora de desconsideração” - cf. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 726. Posto isto, em todos os casos em que os tribunais são confrontados com a necessidade de sopesar os direitos em conflito, é imperioso recorrer ao princípio da proporcionalidade, “(…) seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso”, a fim de concluir “se o exercício da liberdade de expressão se conteve [ou não] dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática hodierna, aberta e plural” – cf. neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.01.2017, processo n.º 1454/09.5TVLSB.L1.S1. Por último, cumpre fazer referência às circunstâncias agravantes dos crimes de difamação e injúria, previstas no art. 183.º, do CP. Esta disposição legal contém duas circunstâncias agravantes – nas als. a) e b) do n.º 1 – a saber: a publicidade e o conhecimento da falsidade do facto imputado, e ainda um crime qualificado de difamação, previsto no n.º 2. A circunstância agravante da publicidade é aquela que alarga o impacto nocivo da ofensa “através de meios ou circunstâncias que facilitem a sua divulgação”, mostrando-se, por isso, como um conceito amplo capaz de abarcar diversas formas, desde uma reunião pública até à utilização de meio de reprodução técnica. Já a difamação através de meio de comunicação social é a aquela que é feita através de um meio de difusão de informação a um número alargado de pessoas, como a imprensa, a televisão ou a rádio. Tendo presente as considerações expendidas, revertamos à factualidade apurada. (…) No que respeita aos comentários escritos pela arguida AA foi dado como provado que a arguida fez uso de expressões e de imputação de factos objetivamente ofensivos da honra e consideração da assistente, tais como “isto é matar”, “são assassinas”, “uma assassina então”, “isto é maus tratos”, “isto é matar bebés”, “são maus tratos sim”, “esta gente mata bebés e da pior forma possível”, “esta gente é louca e cruel para os animais”, “assim claro que rapidamente acabam com nascimentos, matam nos todos», “esterlizar bebés de dias é mata los”, “gente de merda”, “não querem saber se o animal vai ou não morrer”, “assassinas de bebés” – cf . factos provados em 62, 63 a 65, 67, 68, 75, 77, 81, 84 e 87 –, dirigindo-se a terceiros e utilizando, para o efeito, a rede social Facebook. Com efeito, estas expressões, dirigidas a uma pessoa singular, que a arguida sabia tratar-se de médica veterinária, num juízo de balanceamento entre os direitos em confronto, não poderão mostrar-se contidas dentro do espectro alargado concedido ao direito à liberdade de expressão, pois o sentido linguístico das palavras utilizadas e o contexto em que as mesmas foram escritas, conduzem-nos à conclusão de que se tratam de juízos de valor e de imputação de factos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e enxovalhar a assistente, afastando-se, por essa razão, do âmbito da crítica objetiva. Por outro lado chamando à colação os argumentos expendidos supra relativamente à arguida NN[1], no que respeita às imputações de crime de maus tratos e de matar animais, a arguida AA não podia, sem mais, reputar tais factos como verdadeiros, pois que para isso carecia de encontrar sustento numa base factual mínima que objetivamente inexiste. Face ao exposto, conclui-se que a arguida AA, com as condutas descritas nos pontos 62, 63 a 65, 67, 68, 75, 77, 81, 84, 87, 88 e 106, preencheu os elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de crime de difamação agravada de que vem acusada, p. e p. pelos art. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), do CP, razão pela qual se impõe a sua condenação. (…) No que respeita aos comentários escritos pela arguida DD na rede social Facebook, dados como provados nos pontos 98 a 100, temos que os mesmos se subsumem à formulação de juízos de valor e imputação de factos desonrosos respeitantes à conduta da assistente, designadamente através da utilização das expressões como: “esterelizar uma bebê com poucos dias de vida? (…) isto lembra o tempo dos nazistas”, e “isto é macabro e desumano fonix”. Com efeito, tais expressões ultrapassam a tolerância social para uma certa margem de rispidez de linguagem quando em causa estão temas sensíveis, a que nos reportámos supra, porquanto estes comentários equiparam a conduta da assistente a atos de extermínio historicamente repugnáveis, além de que extravasam largamente o âmbito da crítica objetiva, visando apenas humilhar e destratar a pessoa visada. Face ao exposto, conclui-se que a arguida DD, com as condutas descritas nos pontos 98 a 102 e 106, preencheu os elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de crime de difamação agravada de que vem acusada, p. e p. pelos art. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), do CP, razão pela qual se impõe a sua condenação. (…) iv. Do crime de ofensa a pessoa colectiva (…) v. Escolha e determinação da medida da pena (…) V. Do concurso de crimes e da determinação da pena única (…) 3. Enfim apreciando A) O recurso da arguida AA 3.1. No essencial, damos aqui por válida a argumentação longamente tecida pela recorrente, nas suas motivações e com a súmula feita nas suas conclusões, sobre a tensão entre a tutela da honra e o exercício da liberdade de expressão, notando de resto que em substância os critérios gerais por ela enunciados não se afastam sensivelmente dos que ficaram alinhados na sentença recorrida, tudo nos termos acima já amplamente transcritos e que tornariam ociosa, aqui, uma reiteração academista deles. Importante será notar, e nisso não haverá por certo discordância, que a especial importância da liberdade de expressão em uma sociedade democrática, justificando prevalência nas ponderações concitadas por eventual conflito com um bem jurídico como a honra, tutelado pelo crime de difamação do art. 180.º, n.º 1, do CP, nem por isso a torna absoluta. Uma e outro gozam entre nós de tutela constitucional (a liberdade de expressão no art. 37.º, n.º 1, o direito à honra no art. 26.º, n.º 1, da CR), e se é certo que na CEDH não há uma previsão expressa deste último como directo objecto de tutela, ele surge quando menos como limite, precisamente, àquela primeira (art. 10.º, n.º 2, da CEDH). 3.2. Isto posto, temos, sem minimamente pôr em dúvida a vigência, na nossa ordem jurídica, das normas daquela CEDH e dos direitos que consagram (art. 8.º, n.º 2, e 16.º, n.º 1, da CR), e nem aliás o acerto de na apreciação do conteúdo e limites deles, nos casos concretos, ser acompanhada a interpretação feita pelo órgão a quem isso primacialmente e em última instância cabe, que é o TEDH, nem enfim e em especial que este, no tema daquela particular limitação à liberdade de expressão se vem pautando por uma significativa restritividade, a inarredável conclusão, sob pena de tornar a dita interpretação ab-rogante, é a de que ainda assim tem de haver um ponto para além do qual a lesão da honra de terceiros que importe afasta a tutela do discurso como exercício legítimo da liberdade de expressão. Como nodalmente ficou na sentença sob recurso sublinhado, e também decerto se não disputará, à determinação desse ponto é necessária uma valoração do conteúdo e sentido das expressões em causa e do seu contexto (temático e subjectivo, isto é, tendo em conta a natureza e relevo do assunto, o objecto das expressões e mesmo a qualidade/actividade dos envolvidos), iluminada por juízo de proporcionalidade. 3.3. Resumidamente, o contexto relevante no caso concreto é o de uma polémica, nas redes sociais, originada pela circunstância de na clínica veterinária das assistentes ser seguida uma prática (esterilização de gatos recém-nascidos) sobre que na ciência veterinária não haverá consenso quanto aos respectivos riscos para a saúde dos animais a ela sujeitos – independentemente dos benefícios que possam atribuir-se à esterilização em geral de animais ferais, com vista à limitação da respectiva reprodução descontrolada. A arguida, como outros, insurgiu-se contra essa prática, e o que está em causa não é o seu óbvio direito de formar nesse sentido opinião e exprimi-la, de modo agreste que fosse, coisa inequivocamente ínsita no exercício legítimo da sua liberdade de expressão; aliás, seguramente não caberia aos tribunais dirimir essa contenda, sendo aqui irrelevante determinar o acerto/correcção clínico-veterinário da dita prática. O que importa, isso sim, é saber se aquele modo de expressar a sua opinião que a arguida entendeu empregar entrou ou não pela fronteira do ilícito criminal, produzindo na honra da assistente lesão desnecessária para o exercício daquele seu direito e com ele desproporcionada. 3.4. Tem de ter-se presente a circunstância de, mesmo não sendo e nem podendo ser um espaço livre do direito, na internet e em especial na rede social (facebook) que foi o ambiente do emprego das expressões em apreço, é comummente conhecido um padrão ou pelo menos frequência, em certa medida implicitamente aceite pelos usuários, de alguma liberdade ou soltura de modos e linguagem. Por outro lado, e como não é menos evidente, as questões relativas ao bem-estar animal e mesmo, em certas concepções extremas, a atribuição de autênticos direitos de que seriam portadores e a sua defesa, tudo é matéria de actual discussão intensa na sociedade, assumindo manifesto relevo ideológico e, em particular, suscitando acesas paixões. Todavia, aquela distensão das fronteiras habituais da civilidade ou do bom trato, certamente não pode é ser marco das da ilicitude criminal. O que vale por dizer que agressividade e firmeza de discurso, tanto mais quanto a matéria é de relevo público (e porventura até identitária para os contendentes), têm de aceitar-se e serão mesmo desejáveis, enquanto marca de água de um genuíno debate, com liberdade de expressão, a qual por seu lado tolera até rudeza ou mesmo alguma grosseria (a liberdade de expressão não é privilégio dos polidos); o que já não implica é contemporização com ataques pessoais que, resultando na lesão significativa da honra dos visados, afinal desbordem, em qualquer compreensão social aceitável, do adequado àquela expressão e debate de ideias, à crítica de posições, acções ou objectivos. 3.5. Recordemos aqui as expressões que a arguida dirigiu à assistente e que na sentença foram mobilizadas para integrar o tipo criminal da difamação: “isto é matar”, “são assassinas”, “uma assassina então”, “isto é maus tratos”, “isto é matar bebés”, “são maus tratos sim”, “esta gente mata bebés e da pior forma possível”, “esta gente é louca e cruel para os animais”, “assim claro que rapidamente acabam com nascimentos, matam nos todos», “esterlizar bebés de dias é mata los”, “gente de merda”, “não querem saber se o animal vai ou não morrer”, “assassinas de bebés” [sic] – cf . factos provados sob 62, 63 a 65, 67, 68, 75, 77, 81, 84 e 87. Mesmo descontando, à luz de quanto ficou já dito, o manifesto excesso hiperbólico nas expressões com que imputa à assistente matar bebés da pior forma possível, ser por isso assassina, maltratante de animais, para eles sendo cruel, até louca, é dizer, pelo contrário e em divergência com o tribunal recorrido aceitando-as ainda (pese embora a respectiva e patente grosseria), como coisa relevante da querela sobre aqueles procedimentos veterinários das assistentes e da crítica, bem ou mal fundada tecnicamente, tanto monta, contra eles movida, e assim escudada pela liberdade de expressão no contexto da referida polémica, simplesmente não vemos como poderia dizer-se o mesmo a respeito do epíteto “gente de merda” – formulação linguística que por si mesma revela, de modo incontornável, um directo e imediato juízo de valor fortemente depreciativo sobre a própria pessoa da assistente, sem outro significado objectivo (ainda reduzindo ao mínimo denominador comum o valor de uso das palavras), senão o de rebaixá-la e enxovalhá-la (e seja ou não a recorrente “uma mulher do Norte”, habituada ou não ao suposto maior “vulcanismo” e soltura de linguagem das gentes dessas paragens, já para não falar da irrelevância do muito questionável e até porventura algo ofensivo argumento de que nelas a atenção à linguagem insultuosa é objecto de menor cuidado, e enfim notando-se que ser a recorrente uma “mulher do Norte” nada tange com o significado que a generalidade dos falantes de português à expressão em causa atribui). 3.6. Por outras palavras, o emprego de pelo menos aquela expressão, cuja lesividade da honra daqueles a quem seja dirigida não suscita a menor reserva (postando-se muito além do que por ser azedo ou acintoso meramente incomoda ou fere susceptibilidade), não apenas e por isso integra logo prima facie o tipo objectivo do crime da difamação (art. 180.º, n.º 1, do CP), como a nenhum título poderia ter-se por sequer adequada à afirmação da crítica, posta a matéria da causa e os termos dela, assim e em definitivo se revelando inteiramente proporcionado sancioná-la. Breve, ter-se a recorrente referido assim à assistente, não é coisa que pudesse considerar-se abrangida no legítimo exercício da liberdade de expressão, a qual, à luz do citado art. 10.º, n.º 2, da CEDH, e como vimos, cede certamente onde de forma injustificada contenda com a tutela (mesmo mínima) devida á honra. E igualmente segura é a afirmação de que aquela tipicidade da conduta não poderia afastar-se (à luz das als. a) e b) do n.º 2 do mesmo art. 180.º do CP), com a eventualidade de ser direcionado à realização de fins legítimos (quais!?), ou, menos ainda, com a de ter a recorrente tido fundamento para em boa fé reputar de verdadeira a imputação (uma vez que se trata de um estrito juízo de valor e não da imputação de quaisquer factos). 3.7. Ainda neste tema, é útil notar que não ignoramos aqui (como o não ignorou a sentença recorrida), que mesmo a formulação de meros juízos de valor pode merecer agasalho sob o manto da liberdade de expressão, se dotados de base factual mínima ou pelo menos providos de explicação objectiva sobre realidades fácticas de relevo ou interesse público e em debate, que a tornem manifestação de uma crítica apesar de tudo compreensível. Simplesmente, damos por seguro não ser esse o caso quando se trata da expressão “gente de merda”, e isso ainda que concedêssemos em ser inapropriado, sob o ponto de vista clínico-veterinário, o objectivo procedimento castrativo que ficou assente que a assistente defendia e praticava mas que a recorrente tanto repudia. A esta consideração absolutamente nada altera, claro está, a realidade da execução objectiva e pela assistente de um tal procedimento, algo que, à luz do art. 387.º, n.º 1, 3 e 4, do CP, debalde a recorrente procura configurar como eventual crime de maus tratos a animais de companhia (por sua natureza criminal uma coisa a repudiar unanimemente e a justificar a correspondente censura viva pela comunidade em geral ou qualquer cidadão em particular), já que de fora do respectivo foco ficam por certo as intervenções veterinárias (cfr. aquele n.º 3, do no dito art. 387.º, do CP, e seu inciso “sem motivo legítimo”, tendo em conta a utilidade da castração para controlar a população dos animais ferais), além de que gatos ferais/silvestres não cabem, por sê-lo, no conceito pertinente de animais de companhia (cfr. o art. 389.º, n.º 1, a contrario, do CP), e tudo já sem falar na duvidosa constitucionalidade daquela incriminação (assunto que aqui manifestamente não cabe aprofundar). 3.8. Continuando neste plano de abordagem, diremos que igualmente baldado é o esforço com que a recorrente ensaia argumentar com o ter-se supostamente limitado a manifestar a sua repulsa por aquelas práticas veterinárias, supostamente dirigindo as suas críticas ao procedimento, sem se lhe referir pessoalmente; enfim, que criticou a “obra” e não a sua “autora”. Com certeza que por mais veementes, indecorosos e até, passe a impropriedade, “insultuosos” que se mostrassem os termos, seria absolutamente legítimo que os usasse para visar “a obra”, isto é, o procedimento pelo qual sente essa repulsa. Quando se trate de realizações humanas de qualquer ordem, científicas, técnicas, artísticas, desportivas ou o que seja, a formulação de juízos sobre elas é livre, sendo a sua eventual grosseria indiferente ao direito penal – em cujo âmbito se não inscreve delimitar acerto desses juízos ou a falta dele, e nem sequer a adequação ou não dos termos (questão do foro da civilidade e do bom gosto, não do da normatividade criminal). Procurando ilustrar com um exemplo límpido, certamente que nada bule com o direito penal que um adepto de futebol, desagradado com o resultado conseguido em um escaldante desafio pela equipa do clube da sua preferência, se refira à respectiva prestação dizendo que “jogaram uma merda”, “fizeram um jogo de merda” ou que a equipa “joga uma merda” (coisa que porventura não seria do agrado dos ditos jogadores, mas que não teriam senão de respeitar); já decerto se não dirá o mesmo se aquele adepto, dirigindo-se a algum um dos ditos jogadores ou ao conjunto deles, ou a terceiros, afirmar que é/são uma “gente de merda”… 3.9. Passando do exemplo ao caso real em apreço, de todo não se lobriga, logo no domínio linguístico, como pode a recorrente sustentar racionalmente (salvo o devido respeito), que o emprego da expressão “gente de merda”, dirigida a número indeterminado de terceiros e referida (também) à assistente GG, desse corpo a juízo de valor não sobre aquela mas sobre o procedimento veterinário que executava. Sem confusão, dir-se-á ser notório que se tratou, isso sim, de um juízo de valor sobre ela porque fez esse procedimento, mas sobre ela em todo o caso, e não sobre o procedimento. Bem se compreende que casos haverá, e porventura fenomenologicamente frequentes, em que a crítica veemente a uma obra ou realização necessariamente envolva desprimor para a pessoa do autor, até porventura e em algum sentido relevante, lesão da respectiva honra. Se e quando assim for, temos de assumir, partindo da respectiva teleologia em uma sociedade plural e da sua centralidade nos direitos fundamentais, que a liberdade de expressão resguarde tais lesões, afastando o do agente o espectro da incriminação, isto é, do preenchimento dos tipos de crime da difamação ou da injúria. 3.10. Pensemos, de novo exemplificando, em alguém que sobre determinada escultura afirma que “é uma merda”, ou, por hipótese, que “não sei como há escultores que esculpem desta merda”. Desvia-se porventura das regras da cortesia, desconsidera talvez os cânones da escultura e da interpretação respectiva que tivessem levado a generalidade da crítica especializada a aclamar a obra e com ela o autor, e decerto melindra este último, ofende-o, por assim dizer, afecta a sua reputação, pelo menos enquanto artista; mas certamente não se desvia do respeito pelo direito criminal. Figuremos até que este nosso imaginário opinador de escassa educação, era afinal e profissionalmente um crítico de arte, que a peça escultórica em causa era profundamente provocatória, escatológica mesmo, e que a sua grosseira apreciação passava por afirmar ser própria de “escultores de merda”. Talvez não fosse desrazoável ligar ainda esse juízo de valor à obra e só reflexa mas necessariamente ao escultor, isto é, concluir-se, a despeito da ofensa assim causada, que a formulação merecesse tutela como exercício da liberdade de expressão, porque em termos directos referida à obra, objectivamente explicada na apreciação negativa sobre ela, como manifestação de uma crítica que, bem ou mal fundada, era a do agente e como tal apesar de tudo compreensível – e só indirectamente reflectida no pobre escultor. No caso da recorrente, porém, a formulação empregue não suscita sequer tais ponderações: é rigorosamente destituída de ambiguidade no referir-se directa e pessoalmente quando, dirigindo-se a número indeterminado de terceiros, afirmou ser “gente de merda”. 3.11. Além disso, notemos também que em quanto tange à pessoa da assistente, veterinária que executa os procedimentos pela recorrente aborrecidos, e que aliás no contexto da polémica, confrontada com as críticas (em si mesmo legítimas, insista-se) que ao mesmo e a ela por eles tenham sido movidas, procurou pela mesma via (no Facebook) defendê-los e à respectiva adequação segundo as leges artis, bem como à sua própria competência e capacidade para conduzi-los, não se trata de pessoa que por qualquer razão especial, designadamente relevo das funções profissionais e autoridade pública no desempenho delas, ou particular exposição pública, por alguma razão devesse ver-se compelida a suportar ataques mais veementes à sua honra – ou, vistas as coisas pelo revés, a quem a tutela da honra devesse ser menos intensa do que a outro qualquer cidadão comum (como sucederia, por exemplo e para manter as coisas no mesmo tema, com um responsável político ou da administração pública em matéria de bem-estar animal, controlo de populações animai ou medicina veterinária, ou até por hipótese um bastonário da Ordem dos Veterinários). 3.12. Assim já neste plano da abordagem encerrando, e desestimando os argumentos da recorrente em contrário, concluímos pelo preenchimento integral, por ela e com a factualidade que se apurou ter levado a cabo, do tipo de crime da difamação, com o que se não lobriga violação alguma dos art. 10.º, n.º 1 e 2, da CEDH, 8.º, n.º 2, 16.º, n.º 1, e 37.º, n.º 1, da CR, ou 180.º, n.º 1 e 2, als. a) e b), do CP. Naturalmente, nada a esta luz aproveita à recorrente a sua invocação do art. 31.º, n.º 2, do CP, com fito na exclusão da ilicitude. NO que pudesse relevar, teria em vista a respectiva al. b), onde se prevê que “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade” (n.º 1), e que “nomeadamente, não é ilícito o facto praticado” (n.º 2) “no exercício de um direito” (n.º 2, al. c): de quanto antecede fica absolutamente claro que em face das circunstâncias, o emprego da concreta expressão “gente de merda”, referida à assistente e dirigida a terceiros, não pode ser reclamado como relevante do exercício da liberdade de expressão – ou nem já agora de outro qualquer direito, de resto nenhuma mais tendo sido invocado. 3.13. Por último, a apreciação do argumento da recorrente sobre a putativa falta de dolo na respetiva actuação não conduz a resultado para ela mais favorável. Segundo defende, mesmo a entender-se que a sua conduta foi típica e ilícita, então e porque subjectivamente estava convicta do contrário, e até de que exercia um direito, teria incorrido em “erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto”, de tal sorte que, nos termos do art. 31.º, n.º 1 e 2, do CP, estaria excluído quando menos o seu dolo enquanto conhecimento da ilicitude criminal da conduta (elemento intelectual) que quis empreender e com efeito empreendeu (elemento volitivo), e por aí afastada a punição – uma vez que se trata de crime exclusivamente doloso e desse modo, infere-se, não ficando ressalvada a punição a título negligente (art. 16.º, n.º 3, do CP). Nisto, contudo, a recorrente começa por incorrer em manifesto equívoco, uma vez que, assumindo que estivesse erroneamente convencida da licitude da sua conduta por suposto exercício de um direito, logo em abstracto do que se traria não era de um erro sobre as circunstâncias de facto ou sobre as proibições eventualmente necessárias à compreensão da ilicitude (art. 16.º, n.º 1 e 2, do CP), mas antes de um erro sobre a ilicitude do facto (art. 17.º, n.º 1, do C), que exclui a culpa, se não for censurável, e do qual, mesmo a poder afirmar-se, sempre restaria, sendo censurável, a punição especialmente atenuada (art. 17.º, n.º 2, do CP). 3.14. Em todo o caso, e eis o decisivo, da matéria de facto assente como provada, e que aliás a recorrente não impugna, nada pode colher-se que por qualquer forma dê corpo a um tal erro, que enfim nem mesmo se aceitaria ocorrer, tendo em conta que a proibição e sanção da injúria ou difamação, pese embora a escassa gravidade do crime, se inscreve no cerne do que que segundo a consciência axiológica da comunidade é indiscutivelmente tido por ilícito. Mostram-se pois integralmente improcedentes as linhas de argumentação de recurso erguidas pela recorrente AA, relativamente à qual a punição decidida não merece reparo, devendo ser mantida a sentença sob recurso. Naturalmente, mantida essa condenação criminal, e face à já dita irrecorribilidade, em si mesma, da decisão cível (cfr. supra, II/1/1.2), também nada a este respeito e quanto àquela recorrente cabe modificar na decisão. B) Do recurso da arguida DD (…) Como adiante veremos, as pretensões últimas da recorrente não ficam afinal decisivamente prejudicadas pelo soçobro da impugnação da decisão em matéria de facto. 3.24. É que, abordando agora o preenchimento do tipo de crime de difamação, antes de curar se a recorrente agiu com dolo, no sentido de, representando a ilicitude da sua conduta ter ainda assim querido levá-la a cabo, importa aferir se a mesma é objectivamente típica, sem o que é óbvio ser o dolo irrelevante (se verdadeiramente de dolo pudesse nesse caso ainda falar-se). Ora, recapitulando aqui o que acima e a título de enquadramento se escreveu a respeito do crime de difamação, então pelo que tange à recorrente AA (cfr. supra, III/3/3.1.-3.4; 3.7-3.8), e a essa luz apreciando as concretas expressões, temos de divergir do tribunal recorrido quanto ao relevo típico que lhe concedeu no plano igualmente da perspectivada difamação. As expressões “esterelizar [sic] uma bebê com poucos dias de vida?”, “isto lembra o tempo dos nazistas” e “isto é macabro e desumano, fónix”, que foram as relevadas pelo tribunal recorrido, consubstanciam essencialmente juízos de valor (“macabro”, “desumano” e “lembra o tempo dos nazistas”) e implicam uma afirmação de facto (a esterilização de gatos com poucos dias de vida”). Pois bem, não se vê como negar à recorrente o seu direito de reputar a prática como macabra e desumana, livremente exprimindo a opinião que com melhor ou pior fundamento sobre isso forma (e tantos a partilham), e quanto à esterilização de animais com poucos dias de vida (pelas assistentes), nem certamente se trata de facto inverídico (desnecessário sendo qualquer apelo à disposição do art. 180.º, n.º 2, al. b), do CP), nem menos ainda se pode reputar de ofensiva da sua honra ou reputação o afirmá-lo (as próprias assistentes o assumem publicamente e lhe defendem a correcção, do que aliás são livres!). 3.25. Vale isto por dizer que, pese embora o patente azedume da linguagem e até, sob o ponto de vista das representações dominantes, um certo mau gosto no assimilar de uma gata de tenra idade a uma “bebé”, a expressão de discordância com as expressões em causa está amplamente coberta pela liberdade de expressão da recorrente; está-o certamente na formulação dos juízos de valor, e de igual modo na imputação do facto, aliás veraz, de serem esterilizados pelas assistentes aqueles animais e com aquelas características. Com o devido respeito, mal se compreende como, no entendimento do tribunal recorrido (que em boa verdade sobre isso especificamente não desenvolve exposição de raciocínio), aquelas expressões “ultrapassam a tolerância social para uma certa rispidez de linguagem quando estão em causa temas sensíveis”. No caso das já referidas, diremos, isso sim, que a liberdade de expressão nada significa se limitada ás expressões que são socialmente toleráveis quando estão em causa matérias sensíveis”; ela faz falta, a uma sociedade plural e democrática, é lá onde as afirmações são contenciosas, erradas mesmo, até despropositadas. E se bem se aceita que seja o caso, e ainda que a assistente GG se sentisse com elas incomodada, mesmo vexada, o que não pode perder-se de vista é que para os efeitos do art. 180.º, n.º 1, do CP, não podem considerar-se como ofensivas da sua honra, sob pena, aí sim e claramente, de com isso ser afirmado um efeito de constrangimento à crítica (chilling effect), resultando em limitação excessiva da liberdade de expressão da recorrente, com a inerente violação dos art. 10.º, n.º 2, da CEDH, e 37.º, n.º 1, da CR. 3.26. No rigor das coisas, isso não terá escapado inteiramente ao tribunal recorrido, que quando avançou aquela singela justificação para negar tolerância às expressões da recorrente (“ultrapassam a tolerância social para uma certa rispidez de linguagem quando estão em causa temas sensíveis”), se referiu especificamente e tão só à pressuposta assimilação da prática veterinária da assistente ao extermínio conduzido no regime nazi: “estes comentários equiparam a conduta da assistente a actos de extermínio historicamente repugnáveis, além de que extravasam largamente o âmbito da crítica objectiva, visando apenas [leia-se: sendo apenas aptos a] humilhar e destratar a pessoa visada”, foi o que na sentença se escreveu. Pois bem, uma vez mais notando que certamente a assistente se possa ter sentido pessoalmente incomodada, melindrada, por essa leitura das palavras empregues pela recorrente, como aliás sem dúvida sentiu, ninguém disputará (mesmo tendo em conta o extremado mau gosto e até a natureza provocatória da comparação entre esterilizar gatos na clínica veterinária e a singular tragédia humana do extermínio de pessoas pelo regime nazi), a frase concreta revela inequivocamente não ser mais do que um excesso hiperbólico. A recorrente não imputa à assistente o extermínio de pessoas ao jeito nazi, nem mesmo lhe chama nazi; segundo qualquer leitor o apreende, o sentido claro da frase, em si mesma e sobretudo no contexto, é o de a recorrente manifestar o entendimento (mal ou bem, repise-se, mas livremente assim entende), que esterilizar gatos de tenra idade, nos modos em que a assistente o faz e publicitou fazê-lo, equivale a exterminá-los, e o jeito que encontrou de exprimi-lo foi com a dita hipérbole. 3.27. Como vimos já amplamente, a liberdade de expressão deve dar guarida a esse excesso linguístico, é para isso que serve, e de todo o modo a ofensa relevante nos termos do art. 180.º, n.º 1, do CP, não pode sê-lo porque a visada assim subjectivamente a sinta, mas apenas se objectivamente for apta a como tal haver-se (citando a partir da própria sentença, com a doutrina ali concitada, temos, no que ao bem jurídico tutelado tange, «por um lado, um conceito subjetivo ou interior de honra que “consiste no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma’ e, por outro lado, uma vertente objetiva ou exterior de honra, “equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa [envolvendo, por isso], a consideração, o bom nome e a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente”». E se deveras assim é, como acreditamos ser, então não se vê como pudesse uma frase com aquele sentido importar, objectivamente, lesão relevante da honra da assistente, o que directamente nos leva à atipicidade da conduta assumida com proferi-la. À mesma conclusão se chega quando, uma vez mais recapitulando algo que ficou já dito (cfr. supra, ii/3/3.8-3.10), se recorde que mesmo potencialmente envolvendo aquele juízo de valor (alguém que comete actos similares ao do nazismo), a frase em causa se refere directamente aos procedimentos da assistente, não a ela mesma, aspecto em que são absolutamente certeiros os protestos da recorrente. Esta admitiria que a hipérbole melindrasse (“ofendesse”) a assistente, no mínimo conformou-se com essa hipótese, se é que a não quis também como coisa necessária, mas isso não a demoveu (nem tinha de demover) de exprimir a crítica que lhe merece a prática em causa, e designadamente não levaria a que o considerasse como ilícito criminal, que na verdade não configura. 3.28. Do que antecede decorre já, está claro, que por falta de tipicidade da conduta, a recorrente tenha de ser absolvida do crime de difamação, o que inutiliza não apenas a já dita questão da falta de dolo na actuação, nos termos referidos, como em especial a questão, também por ela posta, da exclusão da ilicitude por suposto consentimento da ofendida (art. 38.º, n.º 1, do CP), ainda que não deixemos de lateralmente notar, salvo o devido respeito, que em supondo aquela tipicidade, o apelo à figura do consentimento enquanto excludente da ilicitude, e a partir da circunstância de as expressões terem sido empregues como comentário a publicação da própria ofendida, é algo de verdadeiramente esdrúxulo: é da mais elementar lógica das coisas que fazer uma publicação envolve a possibilidade de concitar críticas, e que quem publica não pode deixar de estar disso ciente, com essa eventualidade se conformando – mas em nada convida aquele que publica a ser injuriado/difamado ou faz presumir o seu consentimento para isso. No mais, e sendo certo que no que respeita ao pedido cível formulado pela assistente sociedade (“CB...”) e conexo com o crime de ofensa a pessoa colectiva, a recorrente fora absolvida, a absolvição agora também do crime de difamação, de que seria ofendida a assistente GG, envolve, por eliminação dos pressupostos do dever de a esta indemnizar (nos termos dos art. 483.º, n.º 1, 562.º e 563.º, do Código Civil), com destaque para a ilicitude do facto, e à luz do art. 403.º, n.º 3, do CPP (cfr. supra, II/1/1.2), a necessidade de que seja igualmente revogada a condenação na reparação pelos correspondentes danos não patrimoniais. 3.29. Sobra enfim a questão do preenchimento, pela recorrente e com os referidos factos (os provados sob 99. e 102.), do crime de ofensa a pessoa colectiva, p. e p. pelo art. 187.º, n.º 1, do CP (e, por força do n.º 2, al. a), do mesmo artigo, com a agravação do art. 183.º, n.º 1, als. a) e b), também do CP). Aqui, o tribunal recorrido relevou a expressão “incapacitar o bicho, quem vos dá o direito”, como tratando-se da imputação de facto (incapacitação do animal) que a recorrente não tinha fundamento para em boa-fé reputar verdadeiro e que, objectivamente, é apto (a sua afirmação/propalação) a lesar o prestígio e a confiança devidos à clínica veterinária. Não podemos senão discordar, e em toda a linha. Antes de mais, e na sua mais elementar objectividade, o facto não é falso: a castração de um animal é seguramente, em qualquer sentido razoável que à palavra se atribua, uma sua incapacitação (reprodutora, desde logo, e já nem falando da apenas temporária que desejavelmente implica uma intervenção cirúrgica nem, sobretudo, dos riscos que reconhecidamente envolve para a saúde do bicho, como a própria assistente reconhece que envolve – e sendo aliás isso o que faz polémica a intervenção em animais de tenra idade). 3.30. Em linha com isso, acresce que se revela gratuito e até espúrio, sempre salvo o devido respeito, afirmar que a recorrente não teria razão para em boa-fé reputar esse factos como verdadeiros. Não que a questão releve decisivamente, porque com efeito o eram (verdadeiros), mas porque a isso nada alteram as razões concitadas na decisão, seguramente não se exigindo à recorrente que em virtude dos “esclarecimentos” da assistente sobre os benefícios dessas intervenções no combate à proliferação de gatos de rua (ferais), então desse por verdadeiro que não eram incapacitantes dos animais a elas sujeitos – e, é bom de ver, é para o caso indiferente que a recorrente não tivesse meio de saber que o concreto gato retratado na fotografia junta com a publicação da assistente tivesse ficado assim ou por outro qualquer jeito incapacitado, porque objecto da crítica, em si mesma legítima (digamo-lo sem rodeios: ancorada de pleno no exercício legítimo da liberdade de expressão!) era a prática da castração de gatos de tenra idade. 3.31. Quanto ao argumento, todavia na sentença também alinhado, de que a recorrente deveria ela mesma colocar reservas à veracidade da incapacitação dos bichos que criticou, porque a assistente explora uma clínica veterinária, intrinsecamente ligada ao cuidado dos animais e seu bem-estar, e assim não é crível, à luz das regras da experiência comum, que se entregasse a práticas consubstanciadoras de maus tratos a animais e ainda os publicasse, esse mostra-se de uma inocuidade total. Mais uma vez, não está aqui em causa, em preciso sentido técnico penal, uma imputação da comissão (aliás maciça) de crimes de maus tratos a animais de companhia que se levasse a cabo na clínica da assistente nem em boa verdade isso minimamente seria configurável, crimes que de resto nem em boa verdade seriam com aqueles procedimentos e em gatos ferais minimamente configuráveis (cfr. supra, II/3/3.7, in fine). A recorrente limita-se a entender, ela mesma, e é inteiramente livre de fazê-lo, que intervir assim sobre os bichos é de algum modo incapacitá-los e, assim, maltratá-los; em rigor, isso é um juízo de valor, não uma afirmação/propalação de factos, e no que tange às pessoas colectivas, e no âmbito do art. 187.º, n.º 1, do CP, não é dispensada tutela contra juízos de valor (como na sentença e em sede de enquadramento geral não deixara de ser referido); a recorrente tem a mesma inteira liberdade de exprimi-lo. 3.32. Por último, mesmo dando de barato que pelo menos em certos sectores de opinião que no tema entram em contenda, no público em geral como particularmente nos donos de animais que pudessem recorrer aos serviços próprios da assistente, a confiança, prestígio, credibilidade e o mais desta última possam ver-se beliscadas com a formulação daquele juízo de valor (que é provido de base fáctica, sendo a questão de saber se correcto ou incorrecto toda outra e que no caso nada monta), seguramente não é o que por si legitima a conclusão pela tipicidade da conduta. Na verdade, e mesmo admitindo que pudesse afirmar-se ser a expressão em causa uma pura imputação de facto desvalioso e com as mais características, recordemos que foi proferida no contexto de comentário a uma publicação em que a própria assistente sustentava a correcção de tal prática. Na discussão aberta, a recorrente, ao dizer (escrever) a frase “incapacitar o bicho, quem vos dá o direito”, limita-se a manifestar a sua discordância, criticando, e isso é o núcleo do que a liberdade de expressão protege. 3.33. Em suma, se interpretado no sentido de integrar tipicamente uma expressão como aquela que concretamente está aqui em apreço, os art. 187.º, n.º 1 e 2, e 183.º, n.º 1, al. a), do CP, far-se-iam inconstitucionais, por violação do art. 10.º, n.º 2, da CEDH, e dos art. 8.º, n.º 2, 16.º, n.º 1, e 37.º, n.º 1, da CR, por limitação desproporcionada da liberdade de expressão de quem a proferiu (a recorrente), e isso é quanto sobeja para concluir que não pode ser essa a interpretação correcta. A conduta da recorrente não preencheu o tipo de crime em causa, logo no plano da objectiva tipicidade, de sorte que também nisto se impõe agora a respectiva absolvição, também nessa medida e em conformidade se revogando a decisão recorrida. III – Decisão À luz do exposto, decide-se: a) Concedendo provimento ao recurso da arguida DD, absolvê-la agora dos crimes de difamação com publicidade, p. e p. pelos art. 180.º, n.º 1 e 2, 182.º e 183.º, n.º 1, als. a) e b), do CP (contra a assistente GG), e de ofensa a pessoa colectiva com publicidade, p. e p. pelos art. 187.º, n.º 1 e 2, al. a), e 183.º, n.º 1, als. a) e b), do CP (contra a assistente “CB...”), e bem assim absolvê-la da condenação no pedido de indemnização civil pela primeira das assistentes formulado, o qual fica inteiramente improcedente; b) Negando provimento ao recurso da arguida AA, quanto a esta manter a sentença recorrida. Não tributar a arguida DD (art. 513.º, n.º 1, a contrario, do CPP), mas no caso da arguida AA fixar em quatro UCs a taxa de justiça devida (art. 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais). Notifique. * Coimbra, 12 de Outubro de 2022 Assinado eletronicamente Pedro Lima (relator) Jorge Jacob (1.º adjunto) Eduardo Martins (2.º adjunto) [1] Reproduzindo aqui igualmente essa parte da fundamentação: “No que concerne à imputação pela arguida à assistente da prática de factos consubstanciadores do crime de maus tratos a animais – cf. facto provado em 52 –, a arguida não logrou provar a veracidade de tais imputações nem tampouco demonstrar que atuou com a diligência necessária e desejável para que o Tribunal pudesse atestar a sua boa fé na reputação de tais factos como verdadeiros. Com efeito, como decorre do n.º 4 do art. 180.º, do CP, o agente está adstrito a um dever de esclarecimento que inclui, como refere UU – ob. cit., p. 791 – o dever de ouvir a pessoa visada, desde que esta esteja em condições de pronunciar sobre o que lhe é imputado. Ora, a assistente não só publicou um vídeo, na mesma página de Facebook, a explicar os benefícios da esterilização pediátrica, como respondeu a diversos comentários que foram sendo feitos na publicação original, esclarecendo dúvidas e questões que lhe eram colocadas por diversos utilizadores. Aqui chegados, concluímos que a arguida não podia simplesmente ignorar toda a panóplia de informação disponibilizada pela assistente, médica veterinária de profissão, arrogando-se a única detentora da verdade e utilizando as suas convicções pessoais sobre factos que extravasam a sua área de saber, imputando, levianamente, a prática de factos ilícitos à assistente, sem um mínimo de base factual passível de sustentar essa imputação. É que, como já referimos supra, uma coisa é alguém manifestar-se publicamente acreditando que algum procedimento pode trazer malefícios ou não ser correto do ponto de vista ético, outra absolutamente distinta é imputar a prática de um crime à pessoa que leva a cabo esses procedimentos, sem sequer lograr esclarecer cabalmente, junto das autoridades credenciadas para o efeito ou atendendo aos argumentos da parte visada, se o que afirma tem uma base factual minimamente objetiva”.