I. Afigura-se que a interpretação da alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, que conduziu, no caso dos autos, à rejeição liminar do recurso da impugnação da matéria de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4 da CRP. II. De acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, o n.º 1 do art. 640.º do CPC não exige que o apelante se pronuncie sobre a valoração alegadamente correcta dos meios de prova por si indicados, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada; pelo que a posição do tribunal a quo em rejeitar, também por este motivo, apreciar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto extravasa as exigências legais.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. AA e mulher, BB, intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, alegando, em síntese que: autor e réu são irmãos; por partilha efectuada na sequência de inventário que correu termos após a morte da mãe de ambos, foram adjudicados ao autor dois prédios urbanos contíguos, que identifica e descreve, que são constituídos pelos edifícios principais, diversos anexos e logradouros, os quais confrontam na estrema norte de ambos com um prédio rústico, também partilhado no mesmo inventário, e que foi adjudicado ao réu; os falecidos progenitores de autor e réu e respectivos antecessores, há mais de trinta, cinquenta e mesmo cem anos, possuíram de forma contínua, inicialmente as respectivas parcelas de terreno e as primitivas construções e, depois de neles implantarem as edificações actualmente existentes, aqueles prédios, praticando actos usuais de um proprietário à vista de toda a gente, continuamente e sem oposição de ninguém, no pressuposto de estarem a exercer um direito próprio e nessa convicção; antes da partilha esses prédios urbanos estavam na posse do réu; o réu, já depois de efectuada a partilha, procedeu, contra a vontade dos autores, a diversas modificações, que concretizaram, nos prédios adjudicados a estes, e vedou-lhes o acesso a construções/anexos e logradouros dos mesmos, causando-lhe com isso prejuízos cujo montante só poderá ser apurado quando cessar a ocupação dos mesmos pelo réu, quando se determinar o período de tempo em que se viram esbulhados de parte de tais prédios e quando se fizer um orçamento preciso das obras necessárias para os repor no estado em que se encontravam antes daquela actuação. Concluem pedindo que o réu seja condenado a: a) Reconhecer o autor como legítimo proprietário de cada um dos prédios identificados em 3º desta petição, com as áreas, limites e configurações constantes das plantas juntas supra como documentos nº 9, 12 e 16; b) Desocupar e restituir aos autores, livres de pessoas e bens, a parte da edificação que integra o prédio sito na Rua S. ..., nº 144, ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia, concelho ..., sob o artigo 258 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº 10940, bem como os currais que integram o prédio sito na mesma Rua, com o nº 146, inscrito na mesma matriz predial sob o artigo 631 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº 10960, bem como os demais anexos e os dois logradouros que integram os dois identificados prédios propriedade do autor, com as áreas, limites e configurações constantes das plantas juntas supra como documentos nº 9, 12 e 16, que abusivamente ocupa; c) Pagar aos autores uma indemnização pelos prejuízos acima referidos, no montante que vier a ser liquidado em execução de sentença. 2. O réu deduziu contestação, alegando, em síntese, que: os prédios urbanos adquiridos pelos autores não têm as áreas que constam das cadernetas e descrições prediais; durante muitos anos, os prédios urbanos agora propriedade dos autores e o prédio rústico propriedade do réu foram utilizados, pelos pais e avós dos mesmos, como se de uma única unidade se tratasse, levando a que fossem realizadas construções que ocupam, simultaneamente, mais do que um prédio; os prédios dos autores e do réu não têm linhas divisórias definidas e são todos eles confrontantes uns dos outros; ainda em vida, a mãe do autor marido e do réu doou a este último dois dos prédios, nomeadamente o prédio urbano correspondente ao artigo 258 e o prédio rústico correspondente ao artigo 570; por esse motivo, até ao termo do processo de inventário, o réu residiu na casa que lhe havia sido doada pela sua mãe; os prédios urbanos cuja propriedade pertence aos autores são apenas compostos pelas suas construções que confinam com a via pública, sendo que os logradouros e anexos existentes atrás dos mesmos foram implantados no prédio rústico propriedade do réu e as aberturas para esses logradouros feitas pelo próprio réu quando residiu no artigo 258; todas as construções e alterações efectuadas pelo réu foram levadas a efeito no seu prédio rústico ou, no urbano, quando este ainda era da sua propriedade, e pelo mesmo suportadas; atenta a possibilidade de não lhe virem a ser adjudicados os prédios urbanos, o réu optou por levar a efeito algumas alterações que impedissem, por exemplo, o acesso dos mesmos aos logradouros, uma vez que estes estavam situados no prédio rústico que era propriedade de outra pessoa; as construções anexas às moradias de que os autores são proprietários encontram-se implantadas no seu prédio rústico e são, por isso e por haverem sido por si construídas, sua propriedade; há mais de vinte anos que, por si e antecessores, vem possuindo a parcela do prédio onde se encontram implantadas tais construções, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, à vista de toda a gente, assim agindo por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre tal parcela de terreno, pelo que adquiriu a plena propriedade de tal parcela por usucapião. Na sequência de tal alegação, deduziu reconvenção na qual, referindo-se à construção por si próprio das referidas construções e à sua aquisição por usucapião da parcela de terreno onde as mesmas se encontram implantadas e alegando ainda que autores e réu são donos de prédios que confinam entre si e cujas estremas não se encontram demarcadas, deduziu os seguintes pedidos: “i. o reconvinte ser declarado proprietário da parcela de terreno onde se encontram implantadas as construções identificadas como A2, A5 e A1; ii. O reconvinte ser declarado proprietário das construções identificadas como A2, A5 e A1; iii. ser declarado que as construções identificadas como A2, A5 e A1 fazem parte do artigo rústico inscrito na matriz da ... n.º 570. iv. fixar-se as estremas, as áreas e a localização das parcelas de Autores e Réu; v. proceder-se à demarcação dos prédios objecto do presente litígio mediante a cravação de marcos no terreno”. 3. Os autores apresentaram articulado de resposta, impugnando a factualidade alegada pelo réu como fundamento da reconvenção e, nessa sequência, defenderam a improcedência desta. 4. Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador pelo qual se admitiu a reconvenção. 5. Veio a ser proferida sentença com a seguinte decisão: “Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente por provado e em consequência: A) Reconhece-se o autor como proprietário dos prédios identificados no ponto 3 a) e 3 b) desta petição, com as áreas, limites e configurações constantes das plantas juntas supra como documentos nº 9, 12 e 16, com excepção da área referida no levantamento topográfico realizado no âmbito deste processo e que já estará incluída no prédio descrito no ponto 4 dos factos provados; B) Condena-se o Réu a desocupar e restituir aos autores, livres de pessoas e bens, em conformidade com o exposto na alínea A) deste dispositivo, a parte da edificação que integra o prédio sito na Rua S. ..., nº 144, ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia, concelho ..., sob o artigo 258 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº 10940, bem como os currais que integram o prédio sito na mesma Rua, com o nº 146, inscrito na mesma matriz predial sob o artigo 631 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº 10960, bem como os demais anexos e os dois logradouros que integram os dois identificados prédios propriedade do autor. C) Determina-se a improcedência dos pedidos reconvencionais formulados em b) i, b) ii e b iii). D) Decide-se que a linha de demarcação entre os prédios descritos no ponto 3 da matéria provada e o prédio descrito no ponto 4, no que respeita à confrontação norte/sul de ambos é a linha assinalada no levantamento topográfico efectuada no âmbito deste processo e que assinala essa estrema como uma linha perpendicular com as estremas nascente e poente do prédio identificado no ponto 4 dos factos provados. E) Condena-se o Réu a pagar aos autores uma indemnização pelos prejuízos sofridos no montante que vier a ser liquidado em execução de sentença;”. 6. Inconformado, o réu interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito. 7. Por acórdão de 28.11.2022, rejeitando-se o conhecimento da impugnação da matéria de facto, foi o recurso julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. 8. Novamente inconformado, o réu interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões: «I. Recorrendo da douta Decisão de Facto proferida em 1.ª Instância, na sua minuta de apelação o ora Recorrente cumpriu de forma aceitável e com utilidade para a apreciação da matéria em discussão os ónus estabelecidos no Artigo 640.º do CPC, II. Pelo que, no seu modesto entender, o douto Acórdão ora recorrido, ao afirmar e decidir em contrário, foi, salvo sempre o devido respeito, rigorista em excesso, exponenciando aqueles ónus, assim violando o princípio da proporcionalidade; III. Desta forma, no douto Acórdão recorrido violaram-se os normativos enunciados naquele Artigo, IV. E, bem assim, violando-se igualmente a apreciação do aspecto substantivo da douta Sentença proferida em 1.ª Instância, por depender da revogação ou da validação da douta Decisão de Facto.». Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido, «determinando-se a apreciação do recurso interposto da douta Decisão de Facto da 1.ª Instância e, bem assim, e, em conformidade com a procedência ou não daquela impugnação da matéria de facto, julgando de direito, designadamente, quanto à matéria da reconvenção.». 9. Os Recorridos contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso. II – Admissibilidade do recurso Apesar de o acórdão recorrido ter confirmado integralmente a sentença da 1.ª instância, atendendo a que o objecto do recurso se restringe à parte do acórdão em que se rejeitou a apreciação da impugnação da matéria de facto por falta de cumprimento dos ónus previstos no art. 640.º do CPC, não se verificam impedimentos à admissibilidade da revista. Com efeito, vem a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal considerando que, em circunstâncias como as dos autos, ocorre uma descaracterização da dupla conforme, sendo admissível o recurso de revista, ainda que circunscrito ao conhecimento da questão da interpretação pela Tribunal da Relação do ónus de impugnação da matéria de facto por se tratar de matéria que foi apreciada pela primeira vez pelo mesmo tribunal. Neste sentido, cfr., a título exemplificativo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18-01-2022 (proc. n.º 243/18.0T8PFR.P1.S1 e proc. n.º 701/19.0T8EVR.E1.S1), de 10-02-2022 (proc. n.º 337/16.7T8CSC.L1.S1), de 05-04-2022 (proc. n.º 1916/18.3T8STS.P1.S1), de 05-07-2022 (proc. n.º 3411/19.4T8CSC.L1.S1) e de 15-09-2022 (proc. n.º 556/19.4T8PNF.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. III – Objeto do recurso Atentas as conclusões do recurso de revista e as considerações apresentadas no ponto anterior, o objecto do recurso consiste apenas na apreciação da questão da invocada violação de norma processual ao ter a Relação rejeitado o recurso da matéria de facto interposto pelo réu apelante por não cumprimento do ónus de impugnação previsto no art. 640.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do CPC. IV – Fundamentação de facto Factos dados como provados: 1 - Os autores são casados entre si no regime da comunhão de adquiridos. 2 - Para partilha da herança aberta por óbito de DD, ocorrido em ... .10.2006, da qual os aqui autor marido e réu são filhos e únicos e universais herdeiros, correu termos no Juízo de Competência Genérica ... do Tribunal Judicial da Comarca ... com o nº 32/09..... 3 - Por partilha concretizada no sobredito processo, homologada por sentença, transitada em julgado em 08.09.2017, o autor adquiriu os seguintes bens imóveis: a) Prédio composto por casa de rés-do-chão e 1.º andar, destinada a habitação sita na Rua São ..., n.º 146, freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 631 e então omisso na Conservatória do Registo Predial ..., ali relacionado sob a verba n.º 4; b) Prédio composto por casa de rés-do-chão destinada a habitação, sita na Rua São ..., n.º 144, freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 258 (antigo artigo 801) e então omisso na Conservatória do Registo predial e ali relacionado sob a verba n.º 5. 4 - Por sua vez, através da mesma partilha, o aqui réu adquiriu o prédio rústico composto por terra de semeadura e regadio, com área de 3.000 m2, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., omisso na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz predial sob o artigo 570 (antigo artigo 675). 5 - Actualmente, o prédio descrito em 3 a) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 10960, como casa de rés-do-chão e 1º andar com área descoberta, com área total de 105 metros quadrados, sendo 76 m2 de área coberta e 29 m2 de área descoberta. 6 - E da descrição matricial encontra-se descrito como casa de r/c e 1º andar, destinada a habitação com 2 divisões no r/c e seis no 1º andar, sendo a área total do terreno de 105 m2, a área de implantação do edifício de 76 m2, área bruta de construção 152 m2, área bruta dependente de 66 m2 e área bruta privativa com 86 m2, estando a aquisição a favor do autor está registada através da apresentação AP 132 de 2017/10/31. 7 – A construção que integra o imóvel 3 a) foi edificada pelos progenitores de autor e réu, durante os anos de 1954 e 1955. 8 - Aquando da partilha, na sequência de divórcio, do património comum do dissolvido casal dos progenitores de autor e réu, o prédio com entrada pelo nº 146, então ainda inscrito na matriz urbana sob o artigo 1677, era descrito como “composto de rés-do-chão e 1º andar” e “quintal”. 9 - A aquisição a favor do autor do prédio descrito em 3 b) está registada através da apresentação AP 4194 de 2017/10/20. 10 – Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º 10940/20171020, como casa de rés do chão destinada a habitação, dependências e logradouros com área total de 135 m2m sendo 95 m2 de área coberta e 40 m2 de área descoberta. 11 - A casa térrea com o nº 144 esteve inscrita na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo 801, que mais tarde deu origem ao actual artigo urbano 258. 12 - Da descrição matricial prédio é composto por casa térrea de adobos, de 4 divisões, tendo 2 portas e 2 janelas, revestida de azulejos, sendo a área total do terreno de 135 m2, a área de implantação do edifício de 95 m2, a área de construção de 95 m2, a área dependente de 15 m2 e a área bruta privativa de 80 m2. 14 - Aquando da partilha, na sequência de divórcio, do património comum do dissolvido casal dos progenitores de autor e réu, era ali descrito como sendo composto por “casa térrea”, “dependências” e “logradouro”. 15 - O réu residiu na moradia referida em 3 a) com a sua primeira mulher, desde 1983 até 1992, altura em que o casal fixou residência na Rua ..., ... .... 16 - Após o seu divórcio passou a residir na Avenida ..., também na ..., onde vem residindo desde então até hoje. 17 - No período em que habitou a casa sita na Rua S. ..., nº 146, fê-lo por tolerância da mãe, sua proprietária, e na companhia desta, a qual, após a sua construção, sempre ali manteve a sua residência permanente. 18 – A mãe do Autor marido e do Réu, doou a este último, por escritura pública realizada a 31 de março de 2006, o prédio urbano correspondente ao artigo 258 e o prédio rústico correspondente ao artigo 570. 19 - Quando foi requerido o inventário e concretizada a partilha, os bens descritos em 3 encontravam-se em poder do ora réu. 20 – O prédio com o n.º de porta 144 só foi entregue ao autor na sequência de execução para entrega de coisa certa que correu termos no próprio processo de Inventário. 21 - Os prédios referidos em 3 confinam a sul com a Rua S. ..., ... e a norte com o prédio pertença do réu, identificado em 4, ao longo de toda a estrema sul deste. 22 - Os dois referidos imóveis do autor confinam entre si, ficando a parede exterior que limita do lado nascente a edificação com rés-do-chão e primeiro andar e entrada pelo nº 146 daquela rua, encostada à parede exterior que limita do lado poente a construção térrea com entrada pelo nº 144 da mesma rua. 23 - Existindo entre aquelas duas edificações contíguas à rua, uma garagem coberta, que integra o prédio com entrada pelo nº 144, mas cuja parede limite, a poente, é a parede do prédio contíguo (nº 146), com uma porta que dá acesso à casa de R/C e 1º andar. 24 – Nessa garagem existia uma porta, na traseira, a norte, para o logradouro através do qual se acedia ao n.º 144 e ainda uma abertura. 25 - A construção que integra o imóvel descrito em 3 a) foi edificada pelos progenitores de autor e réu, durante os anos de 1954 e 1955. 26 - É composta pelo edifício principal de dois pisos, para habitação e por uns currais, nas suas traseiras a norte, que formam um “L” invertido, com a parte inferior – ou, neste caso e dado que invertido, superior – virada para nascente e por uma área de terreno descoberta, a poente e nas traseiras da casa. 27 - Para permitir que a parcela de terreno descoberta a poente da edificação tivesse uma largura que permitisse a passagem de um carro, os progenitores de autor e réu afastaram a implantação de toda a edificação para nascente e, em consequência, a esquina sul / poente ficou a 4,60 metros de distância da estrema poente da parcela de terreno e a esquina norte / poente ficou a cerca de 1,70 metros desse limite. 28 - Fazendo com que a parede poente da edificação, em vez de ficar paralela em relação à estrema desse lado e perpendicular ao eixo da via, ficasse em diagonal em relação à Rua S. .... 29 - E com que os currais deixassem de formar um “L” perfeito, mas antes “descaído” para nascente. 30 - A casa de habitação tem quatro janelas abertas na parede poente abertas para a parcela descoberta do próprio terreno. 31 - Tinha também uma porta na parede norte. 32 - Por sua vez a casa térrea para habitação com entrada pelo nº 144, descrita em 3 b) é composta por uma construção retangular paralela à Rua S. ..., a sul, para a qual tem abertos um portão, uma porta e duas janelas, 33 – Tinha também mais duas portas e três janelas abertas na parede lateral do lado nascente. 34 - Esta casa foi edificada pelos avós maternos de autor e réu, há mais de oitenta anos. 35 - Posteriormente, após o óbito da avó materna, no estado de viúva, ocorrido em 1965, os pais de autor e réu levaram a cabo nesta edificação obras de restauro e alteraram as suas divisões interiores, ali instalando dois apartamentos tipo T2, para habitação. 36 - Prolongaram a parede confinante com a Rua S. ... para poente até à parede nascente da casa com entrada pelo nº 146, na qual colocaram um portão e uma cobertura, assim edificando a actual garagem que integra o prédio com entrada pelo nº 144, onde antes existia uma parcela de terreno entre os dois edifícios. 37 - E ampliaram a casa primitiva, acrescentando-lhe uma nova edificação retangular térrea, de menores dimensões que a existente, que se desenvolve na traseira do edifício primitivo para norte deste, paralelamente e encostada à estrema nascente do prédio. 38 - Esta edificação destinava-se a apoio dos dois apartamentos existentes no corpo frontal e nela foram instalados tanques para lavar roupa, despensas e arrecadações. 39 - A norte desta nova edificação e no seu alinhamento foram ainda implantados dois galinheiros e dois currais. 40 - A parede nascente desta nova edificação não é totalmente alinhada com a parede nascente do primitivo edifício, estendendo-se mais para nascente, pelo que a sua fachada a sul, vai para além da parede traseira da primitiva edificação em cerca de 1,70 metro. 41 - Assim formando um canto, em ângulo recto, onde existia uma porta de acesso para a nova edificação, referida em 38. 42 - Na traseira, a norte, das duas edificações com entrada pelos nºs 144 e 146 existe um logradouro desde o limite nascente daquele e a estrema poente deste, nele existindo a norte dos currais, no alinhamento da casa de rés-do-chão e 1º andar, uma eira. 43 - Os falecidos progenitores de autor e réu e respectivos antepossuidores, há mais de trinta anos, cinquenta e mesmo cem anos, usaram de forma contínua inicialmente as respetivas parcelas de terreno e as primitivas construções e, depois de neles implantarem as edificações actualmente existentes, os prédios acima descritos, residindo habitual e continuadamente nas duas edificações, dando, mais tarde, de arrendamento a terceiros os dois apartamentos, anexos e logradouro que integram o prédio com entrada pelo nº 144, celebrando os respectivos contratos de arrendamento e cobrando e fazendo suas as rendas recebidas, mandando realizar e custeando as obras de conservação e manutenção dos edifícios, lavrando e plantando os terrenos correspondentes aos logradouros que os integram, criando animais nos currais e galinheiros, pagando as respetivas contribuições autárquicas e demais impostos por eles devidos. 44 - Tudo à vista de toda a gente do lugar, continuamente, sem interrupções e sem oposição de ninguém, no pressuposto de estarem a exercer um direito próprio e nessa convicção. 45 - Acontece que, em Junho de 2017, já depois de os prédios propriedade do autor lhe terem sido adjudicados no processo de inventário, o réu iniciou, sem consentimento do autor trabalhos de demolição e colocação de uma estrutura em metal na edificação mais recente e recuada do prédio inscrito sob o artigo matricial 258, prédio descrito em 3 b). 46 - O aqui autor interpelou o réu para que se abstivesse de realizar quaisquer obras no edifício que já lhe havia sido adjudicado. 47 - Não obstante, o réu prosseguiu as obras elevando o corpo mais a norte da edificação que integra tal prédio, sobre o qual colocou uma cobertura. 48 - Colocou na parte daquela parede que excede para nascente a edificação primitiva, a sul, uma porta nova na abertura já existente, sobre a qual implantou um pequeno “telheiro” com telhas de barro e tijolo de vidro, 49 - Aí colocou também uma caixa de correio e o número de porta “144 B”, apesar de não ter solicitado qualquer autorização para o efeito junto da Câmara Municipal .... 50 - O réu, sempre contra vontade do autor, arrancou o contador de água que existia na parede sul, a nascente do portão da garagem, do mesmo prédio (artigo 258) e colocou-o na parede nascente da mesma edificação. 51 - O réu tapou com tijolos as duas portas e duas das três janelas existentes na parede nascente da primitiva construção com entrada pelo nº 144. 52 - Entre a esquina norte / poente da casa de rés-do-chão e primeiro andar, com entrada pelo nº 146 colocou uma chapa metálica, não amovível, 53 - Além disso e como o Autor se apercebeu apenas quando foi empossado dos prédios que adquiriu através do inventário, o réu tapou com tijolos e cimento a porta existente na parede norte do prédio com entrada pelo nº 146, de acesso aos currais e logradouro, 54 -Vedou com tijolo e cimento a porta existente na parte de trás da garagem e tapou a abertura ampla existente na traseira (a norte) da garagem que deita para os logradouros dos dois prédios com uma parede formada por tijolos de cimento ocos. 55 - Ainda na garagem arrancou as tubagens que, a partir do contador, também arrancado, existente no exterior junto ao respectivo portão, forneciam água da companhia à casa de rés-do-chão e 1º andar, com entrada pelo nº 146. 56 - Finalmente, encerrou uma porta interior da casa térrea, com entrada pelo nº 144, que dava acesso à zona posterior do corpo mais antigo da mesma edificação e, através desta, ao logradouro do prédio 57 - A zona coberta do prédio com entrada pelo nº 144, incluindo as edificações mais antiga e mais recente, tem uma área total de implantação ao solo de 208 m2 (duzentos e oito metros quadrados). 58 - Por sua vez a casa com entrada pelo nº 146 tem uma área total de implantação ao solo de 95 m2 (noventa e cinco metros quadrados), a que acrescem 40 m2 (quarenta metros quadrados) dos currais. 59 - Com o descrito procedimento, o réu vedou e impede todo e qualquer acesso do autor: - Pelo exterior Rua S. ... – aos logradouros e anexos dos dois prédios propriedade do autor; - A uma parcela da edificação mais antiga e confinante com a rua, com entrada pelo nº 144, com uma área de 58 m2 (cinquenta e oito metros quadrados); - Ao corpo mais recente e mais recuado do mesmo edifício, com uma área de 75 m2 (setenta e cinco metros quadrados); - O acesso aos logradouros, currais e demais anexos dos dois identificados prédios do autor, pelo interior das edificações. 60 - Após o decesso da mãe de autor e réu, os dois imóveis ora reivindicados e as edificações neles implantadas mantiveram-se devolutos. 61 - A ligação de água canalizada, tal como de energia eléctrica, ao prédio de rés-do-chão e 1º andar com entrada pelo nº 146 da Rua S. ... foi requerida pela mãe de autor e réu, na qualidade de sua proprietária. 62 - O respectivo contador foi instalado no local indicado na petição inicial com base na ligação de água canalizada então requerida. 63 - Na conferência de interessados realizada em 14.10.2011, no âmbito do referido processo de inventário nº 32/09...., o aqui reconvindo, através do seu mandatário, declarou, nos termos do disposto no art. 1362º, nº 1, do CPC, que pretendia licitar os bens doados ao ora reconvinte, ali relacionados sob as verbas nºs 5 e 6. 64 - No mesmo processo, na conferência de interessados realizada em 02.06.2014, o autor licitou os bens imóveis ali relacionados sob as verbas nº 4 e 5. 65 - Desde que desocupados e recuperados, cada um dos apartamentos em que está dividido o prédio com o nº 144, bem como o edifício com o n.º 146 renderiam rendas mensais não concretamente apuradas. Factos dados como não provados: A) Durante muitos anos, os prédios urbanos agora propriedade dos Autores e o prédio rústico propriedade do Réu fossem utilizados, pelos pais e avós dos mesmos, com se de uma única unidade se tratasse, levando a que fossem realizadas construções que ocupam, simultaneamente, mais do que um prédio. B) Até ao términus do processo de inventário, o Réu residisse na casa que lhe havia sido doada pela sua mãe C) A entrada dos dois prédios dos Autores fosse uma entrada conjunta, que se efectuasse pelo portão da casa de rés-do-chão. D) A casa de primeiro andar que ora é propriedade dos Autores, quando ainda era propriedade da mãe do Réu não tivesse acesso ao lado norte, tendo sido aberta uma porta pelo Réu para aceder ao seu prédio rústico quando para lá foi morar. E) Os prédios urbanos pertencentes aos Autores sejam apenas compostos pelas suas construções que confinam com a via pública, sendo que os logradouros e anexos existentes atrás dos mesmos tenham sido implantados no prédio rústico do Réu. F) Os anexos existentes, vulgarmente denominados de currais, fossem construídos pelo próprio Réu desde 1984 até 2004, sendo que antes disso, apenas existiam as moradias principais. G) Os progenitores do Autor e do Réu construíssem a casa “em diagonal” ao eixo da via porque os pais da progenitora apenas lhe doaram a “terra” necessária a construir a casa, e nem mais um metro. I) As construções identificadas como A1, A5 e parte da A2 na planta que constitui o documento 16 junto com a petição inicial se encontrem implantadas no prédio rústico do Ré J) Desde 1984 até 2004, ininterruptamente, o aqui Réu ocupasse os prédios objecto da presente lide. K) O Réu adquirisse um contador de água para a casa com o n.º 146. L) Depois de essa casa não lhe ter sido adjudicada fosse aos competentes serviços questionar sobre a admissibilidade desta mudança para o seu prédio rústico, tendo-lhe sido referido que o podia fazer. M) Fosse por solicitação do vizinho que o réu procedesse ao fecho de duas janelas da parede nascente N) Há mais de vinte anos que o Réu, por si e os seus antecessores, venham possuindo a parcela do prédio onde se encontram implantadas as construções, A2, A5 e A1 da planta que constitui o documento 16 junto com a petição iniciaç, ininterruptamente e sem qualquer contestação, oposição ou violência de quem quer que seja, vista de toda a gente e, mormente, das pessoas residentes nas suas proximidades, com respeito geral, fazendo-o de modo pacífico, contínuo e público, perfeitamente convicto de estar a exercer um direito de propriedade sobre tal imóvel. O) A abertura referida no ponto 24 dos factos provados fosse ampla. P) Os galinheiros e currais referidos no ponto 39 dos factos provados se destinassem a ser utilizados pelos ocupantes de cada um dos ditos apartamentos, os quais plantassem, cada um, o seu pequeno quintal no logradouro do prédio. Q) Nas paredes poente das edificações referidas em 38 e 39 que integram o prédio com o nº 144 havia portas e janelas e na parede norte dessas edificações existisse uma porta todas abertas para o logradouro. R) A porta referida em 31 desse directamente para o restante logradouro. S) As habitações do n.º 144 no mercado de arrendamento valessem, cada uma, 300 € e a habitação do art. 146 valesse, no mercado de arrendamento, 600 €. V – Fundamentação de direito 1. O Tribunal da Relação rejeitou apreciar a impugnação da matéria de facto realizada pelo apelante, ora Recorrente, relativamente aos factos provados constantes dos n.ºs 26, 37, 39, 43, 44, 45 (este quanto ao segmento “na edificação mais recente e recuada do prédio inscrito sob o artigo matricial 258, prédio descrito em 3 b)”), 57, 58, 59 e 65 e relativamente aos factos não provados constantes sob as alíneas A), E), I), J), M) e N), com o fundamento de que, embora o apelante tenha cumprido os requisitos previstos nas alíneas a) e c) do art. 640.º, n.º 1, do CPC, não cumpriu o ónus previsto na alínea b) do mesmo preceito, nem o requisito previsto na alínea a) do n.º 2 do referido art. 640.º. Considerou-se no acórdão recorrido que o apelante não especificou quais os concretos meios probatórios que, quanto a cada um daqueles factos, impunham decisão diversa da recorrida. Afirma-se no acórdão recorrido: «Na verdade, o recorrente transcreve todos os depoimentos na sua totalidade e sem fazer qualquer análise sobre o conteúdo concreto de qualquer deles, não selecciona de tais depoimentos as partes que entende atinentes à sua pretensão e nem reporta ou indexa qualquer de tais depoimentos ou os documentos a que alude a qualquer dos concretos pontos de facto em causa, deste modo deixando para o tribunal de recurso a tarefa de “adivinhar” o que de tais elementos probatórios se poderá extrair e que possa servir para cada um daqueles pontos no sentido da sua pretensão probatória. Por outro lado, aquela transcrição de todos os depoimentos na sua totalidade traduz uma pretensão de nova produção de prova por depoimentos em toda a sua extensão em via de recurso, o que manifestamente viola a exigência da alínea a) do nº2 do art. 640º, de onde decorre que o recorrente deve proceder à transcrição dos excertos que, no seu entender, abonem a sua interpretação quanto a cada ponto da factualidade da sentença que pretende alterar.». Concluiu a Relação que o apelante violou, assim, as exigências previstas nas alíneas b) do n.º 1 e a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC. Insurge-se o Recorrente contra o entendimento da Relação, invocando que a apelação, no que respeita à impugnação da decisão de facto, não padece dos vícios apontados no acórdão recorrido: “[P]ois cruzou e fez um exame crítico da prova produzida oralmente [e] da prova produzida por documentos, nem pecou por excesso, ao transcrever integralmente a prova produzida oralmente, pois precisou trechos da mesma que, no seu entender, impunham decisão diversa”. Acresce que “não pode bastar e é extremamente redutor pretender-se que um simples trecho ou segmento de um depoimento possa significar, só por si, o que quer que seja, acrescendo que, transcrevendo-se uma concreta passagem, o Tribunal de Recurso apenas poderá apreciar devidamente a questão caso oiça integralmente o depoimento prestado, pois isolar-se um seu segmento, não significa nem garante que, mais adiante, o mesmo depoente não diga coisa diferente. E, se o Tribunal de Recurso tem necessariamente de ouvir e analisar a globalidade da prova, mesmo que como fundamento do recurso, se invoque, refira e transcreva apenas uma sua parcela, o ora Recorrente teve a atitude (que, no seu modesto entender, considera louvável) de transcrever a totalidade da prova produzida oralmente, para que o Tribunal de Recurso pudesse (ou possa) ponderar e valorizar (ou refutar) as conclusões e raciocínios dele, Recorrente.”. Conclui que cumpriu de forma aceitável e com utilidade para a apreciação da matéria em discussão os ónus estabelecidos no art. 640.º do CPC, pelo que o acórdão recorrido, ao afirmar e decidir em sentido contrário, foi “rigorista em excesso, exponenciando aqueles ónus, assim violando o princípio da proporcionalidade.”. Vejamos. 2. O art. 640.º, n.º 1 do CPC prescreve o seguinte: “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (...)”. Em termos gerais, na interpretação deste preceito tem a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça seguido essencialmente um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, entendendo que os ónus enunciados no art. 640.º do CPC pretendem garantir “uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido” (acórdão de 18-01-2022, proc. n.º 701/19.0T8EVR.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt). Conforme se sintetizou no acórdão de 31-03-2022 (proc. n.º 2525/18.2T8VNF-B.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt: “A apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no artº 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco.”. Neste sentido, e a título exemplificativo, vejam-se ainda os acórdãos de 20-01-2022 (proc. n.º 6234/19.7T8PRT.P1.S1), de 13-10-2022 (proc. n.º 4753/18.1T8BRG.G1.S1) e de 19-01-2023 (proc. n.º 3160/16.5T8LRS-A.L1-A.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. 3. No caso concreto dos autos, importa distinguir entre a exigência de preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas do n.º 1 do art. 640.º do CPC que integram o que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem denominado de ónus primário, “na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto”, e “a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do n.º 2 do mesmo art. 640.º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida” (acórdão de 03-10-2019, proc. n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2, disponível em www.dgsi.pt). Como se afirma nesse mesmo aresto: “Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado art. 640.º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1, als. a), b) e c) do referido art. 640.º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o n.º 2, al. a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.”. Esta orientação corresponde à jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a respeito do cumprimento do requisito previsto na alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC. Ver a título de exemplo, os acórdãos cujos sumários aqui se transcrevem, na parte relevante: - Acórdão de 31-05-2016 (proc. n.º 889/10.5TBFIG.C1-A.S1), consultável em www.dgsi.pt: “I - A admissibilidade do registo das provas produzidas no julgamento teve em vista, por um lado, alcançar um efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, e, por outro lado, constituir um instrumento adequado para satisfazer o próprio interesse do tribunal e dos magistrados. II - Todavia, para se evitar o agravamento da morosidade na administração da justiça civil, procurou adoptar-se um sistema tendente a conseguir-se o equilíbrio entre as garantias das partes e as exigências de celeridade. III - Daí os especiais ónus impostos ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, designadamente o previsto na al. a), do n.º 2, do art.640.º, do CPC – indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte. IV - Trata-se, no entanto, de um ónus secundário, que deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade. V - Deste modo, tendo a recorrente, no caso, fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados os depoimentos e do início e termo dos mesmos, conforme o estabelecido em acta, e tendo, ainda, apresentado a respectiva transcrição, da qual consta, relativamente a cada depoimento, a sua localização no instrumento técnico que incorpora a gravação da audiência, haverá que entender que está adequadamente cumprido o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes.”. - Acórdão de 06-10-2016 (proc. n.º 1752/10.5TBGMR-A.G1.S1), não publicado: “I - Atualmente, por força do que está proposto no n.º 1 do art. 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. II - Incumbe, porém, ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto o ónus de, obrigatoriamente, especificar, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida e indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso – art. 640.º do CPC – sob pena de rejeição se assim o não fizer. III - A expressão “incumbe ao recorrente (…) indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso”, há-de ser compreendida no particularizado contexto em que é denunciado o erro de julgamento da matéria de facto e tendo sempre na devida conta o pormenorizado envolvimento do modo como é especificadamente tratada e densificada a sua impugnação, isto é, relevando muito para esta exegese o modo como é proposta a alteração preconizada pelo recorrente. IV - Como tal, a recusa da reapreciação do julgamento da matéria de facto, fundamentada na omissão da indicação referida em III, só será de materializar no caso de essa denotada anotação se tornar indispensável, ou seja, quando, da envolvência circunstancial conferida ao julgador, se patentear que só com um labor comportamental acrescido e desmedido é que o juiz haverá de proceder ao exame da prova que lhe é deferido; e tal estorvo não ocorrerá sempre que esse peculiar e rogado discernimento jurisdicional, por parte do tribunal de recurso, seja suscetível de se concretizar sem o recurso a essa formal exigência normativa. V - Tendo a recorrente nas suas alegações de recurso: (i) identificado corretamente as testemunhas cujos depoimentos considerou infirmarem a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância quanto a determinados pontos da matéria de facto; (ii) indicado expressamente as passagens desses depoimentos em que fundamentou o seu recurso, tendo inclusivamente procedido à sua transcrição; e (iii) apontado o início e o fim da gravação de cada um dos depoimentos, preencheu a mesma o ónus legal de impugnação da matéria de facto previsto no art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC.”. - Acórdão de 13-10-2016 (proc. n.º 3257/13.3TBGMR.G1.S1), não publicado: “I - Existindo apenas a decisão da Relação sobre a concreta questão do incumprimento pelos apelantes, no recurso sobre a impugnação da matéria de facto, do ónus fixado no art. 640.º, n.º 1, do CPC, não se perfila a dupla conformidade que pressupõe duas apreciações sucessivas da mesma questão de direito em que a última é confirmativa, sendo, portanto, admissível a revista. II - Impugnando o recorrente a matéria de facto, o cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640.º do CPC tem de ser conformado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo-se maior relevo aos aspectos de ordem material. III - Sobre a problemática da indicação exacta das passagens, o STJ tem entendido que, não dizendo a lei como na prática deve ser feita, cumpre interpretar o preceito com cuidado, mas também com suficiente abertura e maleabilidade, tendo em conta o objectivo do preceito, que é evitar a impugnação genérica e discricionária da decisão de facto e a invocação não concretizada dos meios de prova, utilizada como meio exclusivamente dilatório. IV - Tendo a recorrente assentado a sua impugnação na documentação junta ao processo e também em depoimentos gravados que transcreveu (depoimentos esses que não são exaustivos), a tarefa de reapreciação imposta pelo art. 662.º do CPC não levanta grande dificuldade, pelo que tendo a recorrente assinalado também os pontos de facto que pretende ver reapreciados, quer nas alegações, quer nas conclusões do recurso, a falta de indicação exacta, neste contexto, das passagens da gravação não pode levar à rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, tanto mais que tal impugnação permite quer o exercício esclarecido do contraditório pelo recorrida, quer o acesso, pelo tribunal de recurso, sem dificuldade imediata, aos apontados meios de prova.”. - Acórdão de 08-11-2016 (proc. n.º 2002/12.5TBBCL.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt: “I - Apenas violações grosseiras, mormente, quando ocorre omissão absoluta e indesculpável do cumprimento do ónus contido no art. 640.º do CPC, que comprometam decisivamente a possibilidade do tribunal da Relação proceder à reapreciação da matéria de facto, a saber: a) indicação dos pontos de facto que se pretendem ver reapreciados; b) indicação dos meios de prova convocados para a reapreciação; c) indicação do sentido das respostas a alterar; d) indicação, com referência à acta da audiência de discussão e julgamento, dos depoimentos gravados em suporte digital, podem conduzir à rejeição liminar, imediata, do recurso - art 640.º, n.º 2, al. a), 1.ª parte, do CPC. II - A indicação do início e termo dos depoimentos gravados não viola o comando legal que impõe que o recorrente indique com exactidão as passagens da gravação onde constam os meios de prova aí registados.”. - Acórdão de 16-11-2017 (proc. n.º 234/14.0TBTVR.E1.S1), não publicado: “(...) II - O incumprimento da exigência contida na al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso), é sancionado com a imediata rejeição do recurso. A gravidade da cominação legal impõe que a concretização do referido ónus seja adequadamente avaliada em função da finalidade que lhe está subjacente: facilitar ao tribunal da Relação o acesso às declarações relevantes na gravação da prova. III - A ausência de indicação precisa dos minutos das declarações relevantes só determina o incumprimento do referido ónus se, no caso, ocorrer dificuldade inultrapassável pela Relação em aceder às mesmas na gravação. IV - Não se verifica tal situação se o recorrente indicar a anotação temporal do registo áudio onde se encontra gravado o depoimento de cada uma das testemunhas em que alicerça a alteração pretendida e proceder a um breve resumo do teor das declarações que considera relevantes em defesa da sua perspectiva.”. - Acórdão de 16-11-2017 (proc. n.º 499/13.5TBVVD.G1.S1), não publicado: “I - Sendo a audiência final das acções sempre gravada, a referência às “passagens da gravação” contida no art. 640.º, n.º 2, do CPC – que regula o cumprimento do ónus por parte do recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto – aponta inequivocamente para o ficheiro áudio ou vídeo em que se encontra gravada a audiência ou os depoimentos, pelo que, à luz da letra do preceito, a localização das afirmações prestadas e gravadas terá de ser feita através da referência ao tempo de gravação/reprodução, sem que a transcrição dos excertos dos depoimentos substitua a obrigatoriedade daquela indicação. II - Não obstante a apontada interpretação literal do preceito acima citado, é igualmente possível uma interpretação menos restritiva e mais flexível do mesmo, de acordo com a qual o ónus secundário de indicação das “passagens da gravação” corresponde à indicação das passagens do depoimento gravado, isto é, as concretas afirmações proferidas a propósito dos pontos de facto controvertidos, as quais, integrando-se num âmbito mais vasto – o excerto – poderão ser transcritas pelo recorrente. III - A jurisprudência do STJ tem sufragado unanimemente esta última interpretação, pelo que, para que se tenha por cumprido o indicado ónus, bastará a identificação das testemunhas, a data do depoimento, a duração deste com referência ao momento do seu início e termo e o sentido geral do mesmo, complementado com a sua transcrição total ou parcial. IV - Tendo a recorrente indicado, no recurso de apelação, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os meios de prova que, em seu entender justificam decisão diversa quanto a esses pontos – identificando as testemunhas, indicando a localização no tempo da gravação/reprodução dos respectivos depoimentos, transcrevendo-os integralmente (com excepção de um) e sublinhando alguma das suas passagens – tem-se por cumprido o ónus prescrito pelo art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, sobretudo tendo em consideração que, estando em causa uma realidade dinâmica e instantânea como é o acidente de viação, não é fácil dissecá-la em “passagens da gravação” posto que o acidente é visto, descrito e relatado por quem nele interveio ou assistiu como um todo e daí a compreensão que deve merecer a transcrição total ou quase total dos depoimentos. (...).”. - Acórdão de 18-02-2020 (proc. n.º 922/15.4T8PTM.E1-A.S1), disponível em www.dgsi.pt: “I - Estando em causa um direito fundamental, como o direito ao recurso na vertente da impugnação da matéria de facto, só em casos de erro grosseiro ou omissão essencial, que dificulte a compreensão do objeto do recurso e das questões a decidir, é que o recurso pode ser rejeitado por incumprimento do ónus previsto no art. 640.º do CPC. II - A incompletude da indicação dos meios de prova nas conclusões (onde apenas se identificou os depoimentos invocados com o nome da testemunha ou da parte) pode ser suprida pela transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para cada facto, com indicação das passagens da gravação relevantes ou pela transcrição integral, com a indicação do número do ficheiro, do momento temporal em que inicia e termina a gravação e do dia da audiência. III - A falta da indicação exata e precisa do segmento da gravação em que se funda o recurso, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC não implica, só por si, a rejeição do pedido de impugnação sobre a decisão da matéria de facto, desde que o recorrente se reporte à fixação eletrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório.”. - Acórdão de 21-06-2022 (proc. n.º 644/20.4T8LRA.C1.S1), consultável em www.dgsi.pt: “(...) III - O ónus de especificação, imposto no art. 640.º, n.º 1, als. a), b) e c), e n.º 2, al. a), do CPC, visa afastar a possibilidade de uma impugnação generalizada, e os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação, mas em todo o caso exige-se a obrigatoriedade de cerzir cada facto censurado com os elementos probatórios correspondentes. IV - Ainda que o ónus secundário (art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC) se revele deficiente, o recurso não deve ser rejeitado se o apelante indicou, embora sem integral precisão, as passagens da gravação, mas procedeu à transcrição das passagens que entendeu relevantes, a apelada compreendeu perfeitamente os fundamentos da impugnação, respondendo com a análise da prova. V - O art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que a letra diz mais do que o seu espírito, ou seja, em face do objectivo da norma, a rejeição só se impõe quando haja total omissão da indicação das passagens da gravação de cada uma das testemunhas, e por via disso se ignore em que passagens do depoimento o recorrente se baseia. A não ser assim, a norma seria materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, porque não se podendo considerar excessivo o ónus (secundário), o mesmo não sucede com a gravidade das consequências que se revela claramente excessiva e por consequência desproporcionada, quando tal deficiência não inviabiliza análise pelo tribunal, nem o contraditório da contraparte. VI – (…).”. Em suma, está em causa o respeito pelo princípio da proporcionalidade, que, de acordo com o ensinamento de Lopes do Rego («Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil», in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pág. 835), constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4 da Constituição. 4. No caso concreto dos autos, afigura-se que o acórdão recorrido não seguiu a orientação não da jurisprudência deste Supremo Tribunal explanada no número anterior do presente acórdão. Com efeito, entendeu o tribunal a quo que o apelante não cumpriu o ónus previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, nem o requisito previsto na alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, na medida em que: “[T]ranscreveu todos os depoimentos na sua totalidade e sem fazer qualquer análise sobre o conteúdo concreto de qualquer deles, não selecciona de tais depoimentos as partes que entende atinentes à sua pretensão e nem reporta ou indexa qualquer de tais depoimentos ou os documentos a que alude a qualquer dos concretos pontos de facto em causa, deste modo deixando para o tribunal de recurso a tarefa de “adivinhar” o que de tais elementos probatórios se poderá extrair e que possa servir para cada um daqueles pontos no sentido da sua pretensão probatória.”. Vejamos. 4.1. Considera-se que, apesar de a lei prever que incumbe ao apelante, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2, alínea a)), nada impede o recorrente de indicar a totalidade da gravação dos depoimentos em que se funda o recurso, procedendo à transcrição integral dos mesmos, quando tal se justificar em face dos fundamentos do recurso. No presente caso, compulsado o teor do recurso de apelação interposto pelo aqui Recorrente, verifica-se que, após proceder à transcrição integral dos depoimentos prestados na audiência de julgamento, é afirmado pelo apelante o seguinte: “[O] que é essencial — a apreciação da integralidade da produção oral de prova — pois sem isso não pode fazer-se uma apreciação da mesma quanto aos factos provados e não provados uma vez que isso não resulta de um depoimento ou de determinado segmento de um depoimento destacado dos demais, pois no caso concreto só da sua apreciação integral pode extrair-se correctamente o seu significado e alcance, em termos de se poder ver e concluir inelutavelmente que: 9.1. As partes e as testemunhas depuseram sem registo e identificação da quase totalidade dos documentos que lhes foi dado ou solicitado visualizar, sendo questionadas com expressões e referências absolutamente vagas e de concretização impossível, do género “é aqui”, “é ali”, “é por ali”, “era só esta parte”, e outras expressões do mesmo género, daí resultando a completa ininteligibilidade de grande parte, ou de parte muito significativa, senão a totalidade, daqueles depoimentos; 9.2. Em nenhum desses depoimentos foi referida qual a intenção, o pensamento, ou a convicção dos empreendedores dos acrescentos de edificação que foram sendo feitos ao longo dos anos pelos Avós e pelos Pais do Autor Marido e do Réu ou por este.”. Nas suas alegações e nas respectivas conclusões, para além da transcrição integral dos depoimentos, o apelante indica apenas uma passagem do depoimento da testemunha EE, alegando que a prova do facto da alínea M) dos factos não provados, resulta, inequivocamente, do excerto desse depoimento constante dos minutos 00:09:51 até 00:18:22 da respectiva gravação. Após debruçar-se sobre a prova testemunhal, o apelante faz alusão ao teor do relatório pericial, o qual afirma basear-se em meras suposições e no recurso à “lógica”, “para estabelecer uma linha recta perpendicular à estrema Nascente, por ser o mais racional — quando, como é da experiência comum, o mais lógico e racional é que as estremas dos prédios rústicos, como toda a gente sabe, são, por regra, irregulares e com as configurações mais inverosímeis que se possa imaginar”. O apelante indica ainda como meios probatórios que impõem decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, a certidão de um processo de inventário junta pelo próprio autor, em especial o relatório de avaliação dos bens a partilhar constante desse processo. 4.2. Deste modo, o teor do recurso de apelação revela, em primeiro lugar, que o cerne da impugnação da decisão relativa à matéria de facto assenta em outros meios probatórios que não a prova testemunhal, nomeadamente, a apreciação crítica que o apelante faz da conclusão da perícia realizada nos autos e na prova documental junta aos autos relativamente à certidão do processo de inventário. No que respeita à prova testemunhal, o apelante procurou no seu recurso abalar a credibilidade de todos os depoimentos prestados na audiência de julgamento, atendendo, de acordo com a sua alegação, à forma vaga, imprecisa e dúbia através da qual todas as testemunhas depuseram sobre a matéria dos autos que se reporta à delimitação do prédio dos autores com o prédio do réu. Daí a transcrição da totalidade dos depoimentos pois a referida alegação do apelante não se coaduna com a indicação de passagens precisas de cada depoimento, mas com a análise da globalidade da prova testemunhal produzida. Acresce que, com excepção dos depoimentos de parte, os depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento são bastante curtos, alguns de apenas poucos minutos, nenhum ultrapassando os vinte e cinco minutos de duração. Assim sendo, e de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça acima apresentada, constata-se que, no caso dos autos, a falta de indicação das passagens da gravação de cada um dos depoimentos não dificultou a compreensão do objecto do recurso de apelação e das questões a decidir, pois o próprio apelante justificou a razão pela qual indicou a totalidade dos depoimentos, procedendo também à sua transcrição integral, face às particulares circunstâncias do caso concreto da sua impugnação, nos termos acima expostos. Como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de 06-10-2016 (proc. n.º 1752/10.5TBGMR-A.G1.S1), acima citado: “A expressão posta no normativo descrito no art. 640.º, n.º 2, al. a), do CP.Civil - "incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso..." há-de ser compreendida, como nos exortam as regras da boa interpretação, no particularizado contexto em que é denunciado o erro de julgamento da matéria de facto e tendo sempre na devida conta o pormenorizado envolvimento do modo como é especificadamente tratada e densificada a sua impugnação, isto é, relevando muito para esta exegese o modo como é proposta a alteração preconizada pelo recorrente. Queremos com isto dizer que a recusa da pedida reapreciação do julgamento sobre a matéria de facto, fundamentada na omissão da “indicação exata das passagens da gravação em que se funda o seu recurso", só será de materializar no caso de essa denotada anotação se tornar indispensável, ou seja, quando, da envolvência circunstancial conferida ao Julgador, se patentear que só com um labor comportamental acrescido e desmedido é que o Juiz haverá de proceder ao exame da prova que lhe é deferido; e tal estorvo não ocorrerá sempre que esse peculiar e rogado discernimento jurisdicional, por parte do tribunal de recurso, seja suscetível de se concretizar sem o recurso a essa formal exigência normativa.”. Diversamente do que é afirmado no acórdão recorrido, entende-se que o apelante não deixou “para o tribunal de recurso a tarefa de “adivinhar” o que de tais elementos probatórios se poderá extrair e que possa servir para cada um daqueles pontos no sentido da sua pretensão probatória”, nem a “transcrição de todos os depoimentos na sua totalidade traduz uma pretensão de nova produção de prova por depoimentos em toda a sua extensão em via de recurso”. O apelante, nas suas alegações, indicou com precisão o dia da sessão de julgamento em que em cada um dos depoimentos foi prestado, o ficheiro de que consta a respectiva gravação e as horas e tempo de duração, tal como ficou consignado em acta, procedendo à transcrição integral dos depoimentos. Como referido acima, o apelante procurou apenas, com a indicação de todos os depoimentos, questionar a credibilidade dos mesmos, atendendo, segundo a sua alegação, ao carácter vago e impreciso de todas as respostas das testemunhas. Sendo certo que o cerne da impugnação do apelante assenta noutros meios probatórios. Assim, quanto à prova testemunhal, é perfeitamente inteligível o objectivo do apelante, sendo que, tratando-se de depoimentos curtos, apenas a audição integral dos mesmos permite aferir da pertinência daquela alegação, sendo essa tarefa facilitada pela transcrição integral dos depoimentos. Não se vislumbra, assim, qualquer dificuldade na compreensão do objecto do recurso sobre a matéria de facto a ponto de justificar a respectiva rejeição liminar. 4.3. Por outro lado, também não ficou dificultado o exercício do contraditório pela parte contrária. Com efeito, compulsado o teor das contra-alegações à apelação apresentada pelos autores, apesar de os mesmos terem pugnado pelo não cumprimento dos ónus previstos no art. 640.º, do CPC, não deixaram de responder ao conteúdo da apelação, mostrando a resposta que compreenderam cabalmente a intenção do apelante, contrapondo à alegação deste último que “várias das testemunhas que depuseram na audiência final identificaram, a instâncias da Meritíssima Juíza e dos mandatários das partes, a localização e limites das edificações e dos logradouros que integram os prédios em discussão através, pelo confronto com as plantas e fotografias junto aos autos.” E salientaram que “na fundamentação da sentença recorrida foram determinantes a inspecção ao local, que se encontra documentada com diversas fotografias, bem como o levantamento topográfico de fls. 287 e segs., e ainda os documentos 9 (planta cartográfica), 10 (fotografia), 11 (projecto), 12 (levantamento topográfico), 13, 14, 15 (fotografias), 16 (esquema de construções no local), 17 (fotografia)”. Pelo que “não foram essenciais para a formação da convicção do tribunal as indicações dadas pelas testemunhas quando confrontadas com documentos, mas sim os demais elementos probatórios ali referidos, nomeadamente a inspecção ao local e as fotografias então tiradas. E, à luz dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, são fundamentais para a boa decisão da causa as percepções do tribunal resultantes da prova produzida.”. Os apelados também contrariaram a alegação do apelante quanto à invocada falta de credibilidade do relatório pericial e das plantas a ele anexas e afirmaram, quanto à certidão do processo de inventário, que a perícia realizada no âmbito daquele processo: “[T]eve por objecto apenas “uma nova avaliação, desta vez colegial, dos bens relacionados”, tendo-se os peritos limitado a proceder “à vistoria aos locais”, remetendo para a descrição dos prédios realizada em anterior perícia, cujos elementos não integram a certidão junta aos autos.”. Dessa forma “os peritos que realizaram aquela avaliação não procederem à fixação das áreas e composição dos urbanos que couberam ao Autor, pois não era essa a sua função, tendo-se limitado a considerar para efeito de avaliação as áreas constantes da sua descrição matricial e registral, o que o próprio recorrente reconhece.”. Referem ainda os apelados que “os peritos não indicam a existência de edificação alguma na parcela de terreno que veio a ser adjudicada ao apelante, ali indicada como verba nº 6, mas tão só a área de edificações que no futuro poderão vier a ser licenciadas para o local.”. E concluem que “a credibilidade e força probatória da perícia realizada no processo de inventário, que teve por objecto apenas a avaliação dos bens com base na descrição que deles consta na matriz e no registo prediais, é muito menor do que a da perícia levada a cabo nos presentes autos, que, através de levantamento topográfico, visou identificar a localização, estremas, área, configuração e demais características dos mesmos bens imóveis.”. Deste modo, verifica-se que os apelados exerceram plenamente, e sem qualquer dificuldade relevante, o contraditório relativamente à impugnação da decisão relativa a matéria de facto. Refira-se a este propósito que, num outro caso analisado por este Supremo Tribunal, no qual também fora posta em causa a credibilidade dada às testemunhas de uma das partes em detrimento das arroladas pela parte contrária, e em que, tal como sucede no caso dos autos, os depoimentos foram transcritos com indicação do dia da sessão de julgamento em que foram prestados, do ficheiro de que consta a respectiva gravação e das horas e tempo de duração, se concluiu que se tinha: “[P]or observado o nível de exatidão suficiente do teor dessas gravações suscetíveis de relevar para a apreciação do caso, à luz do preceituado no art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC.” Pois “a forma como os depoimentos foram prestados e colhidos naquelas gravações, bem como a latitude da impugnação deduzida, versando nomeadamente sobre a credibilidade desses depoimentos, não se afigura de molde a exigir um minucioso parcelamento das respetivas passagens como foi entendido no acórdão recorrido, tanto mais que nem sequer tal forma de impugnação constituiu óbice ao exercício do contraditório por parte da apelada” (acórdão de 15-02-2018, proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1, publicado em www.dgsi.pt). Refira-se também que, num outro caso em que estava em causa a prova da dinâmica de um acidente de viação, e no qual também não tinham sido indicadas nas alegações de recurso de apelação as passagens da gravação de depoimentos, mas antes fornecida a transcrição integral dos mesmos, com excepção de um, concluiu-se igualmente que: “Tendo a recorrente indicado, no recurso de apelação, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os meios de prova que, em seu entender justificam decisão diversa quanto a esses pontos – identificando as testemunhas, indicando a localização no tempo da gravação/reprodução dos respectivos depoimentos, transcrevendo-os integralmente (com excepção de um) e sublinhando alguma das suas passagens – tem-se por cumprido o ónus prescrito pelo art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, sobretudo tendo em consideração que, estando em causa uma realidade dinâmica e instantânea como é o acidente de viação, não é fácil dissecá-la em “passagens da gravação” posto que o acidente é visto, descrito e relatado por quem nele interveio ou assistiu como um todo e daí a compreensão que deve merecer a transcrição total ou quase total dos depoimentos.” (acórdão de 16-11-2017, proc. n.º 499/13.5TBVVD.G1.S1, acima citado). No mesmo sentido de que a transcrição de depoimentos, sem indicação de passagens da gravação, reportando-se a impugnação à totalidade do depoimento prestado, não viola o comando normativo previsto na alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, face às circunstâncias do caso concreto, vejam-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de 29-10-2015 (proc. n.º 233/09.4TBVNC.G1.S1), de 31-05-2016 (proc. n.º 889/10.5TBFIG.C1-A.S1), ambos publicados em www.dgsi.pt, assim como os acórdãos de 26-02-2015 (proc. n.º 8423/06.5TBMTS.P1.S1), de 21-06-2016 (proc. n.º 557/12.3TBBBR.C1.S1), de 13-10-2016 (proc. n.º 3257/13.3TBGMR.G1.S1 e de 27-10-2016 (proc. n.º 617/12.0TBCMN.G1.S1), estes últimos não publicados. 4.4. Em suma, face a tudo o que acima foi exposto, afigura-se que a interpretação da alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, que conduziu, no caso dos autos, à rejeição liminar do recurso da impugnação da matéria de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que, conforme se afirmou supra, constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4 da Constituição. 5. Para além de se recusar a apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto com base na falta de cumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do art. 640.º, o acórdão recorrido entendeu também que o apelante não fez “qualquer análise sobre o conteúdo concreto de qualquer” dos depoimentos cuja transcrição foi feita na sua totalidade, afirmando a Relação que o apelante deixou “para o tribunal de recurso a tarefa de “adivinhar” o que de tais elementos probatórios se poderá extrair e que possa servir para cada um daqueles pontos no sentido da sua pretensão probatória”. O tribunal a quo parece, assim, justificar a rejeição da impugnação da matéria de facto não apenas na omissão de indicação das passagens relevantes de cada depoimento, mas também na omissão por parte do apelante de qualquer análise crítica dos meios de prova por si indicados. Vejamos. 5.1. Em matéria de cumprimento do ónus de alegação previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, afirma-se no acórdão de 17-12-2019 (proc. n.º 363/07.7TVPRT-D.P2.S1)[1], publicado em www.dgsi.pt, o seguinte: “O argumento expressamente avançado pelo acórdão recorrido para rejeitar conhecer parte da impugnação da matéria de facto não foi o incumprimento do ónus de alegação, dito primário, de especificação dos “concretos pontos de facto” considerados “incorrectamente julgados” (alínea a) do nº 1), nem dos “concretos meios probatórios” determinantes de decisão diversa (alínea b) do nº 1), nem ainda da “decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (alínea c) do nº 1), nem até mesmo do ónus, dito secundário, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso (alínea b) do n.º 2). (…) Antes enuncia o acórdão recorrido, como sendo relevante, a omissão das “razões pelas quais aqueles meios de prova conduzem à alteração pretendida”, sem, contudo, identificar, de entre os previstos nas supra reproduzidas três alíneas do nº 1 do art. 640º do CPC, o segmento normativo que a apelante incumpriu. Procurando interpretar o sentido da fundamentação do acórdão recorrido, dando-lhe um sentido útil, afigura-se ter a Relação entendido que o legislador – ao impor, na referida alínea b) do nº 1 do art. 640º do CPC, que o recorrente especifique “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” – exigiria também que o mesmo recorrente se pronunciasse sobre a valoração alegadamente correcta desses mesmos meios de prova, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada. Na interpretação da referida norma legal, não se vislumbra que tal sentido interpretativo, de acrescida exigência, encontre suporte nos elementos literal, sistemático ou teleológico da interpretação. Senão vejamos. Não encontra suporte no elemento literal da interpretação normativa porque a especificação dos concretos meios probatórios mais não é do que a identificação individualizada de cada um deles. Não encontra suporte no elemento sistemático da interpretação porque, por um lado, a lei estipulou, na alínea a) do nº 2, a especificação dos meios probatórios gravados e aí se bastou com a obrigação de o apelante indicar com exactidão as passagens da gravação e não também de indicar aquelas razões, depreendendo-se vontade deliberada em não incluir esta outra indicação no referido ónus; e porque, por outro lado, em lugares paralelos de consagração e disciplina de outros ónus de alegação recursórios, quando entendeu existir necessidade de exigir ao recorrente a exposição das razões concretas de certa alegação, o legislador o consagrou expressamente (ver maxime quanto ao ónus de alegação dos pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do nº 1 do art. 672º do CPC, a respeito da admissibilidade do recurso de revista por via excepcional) Tampouco a sobredita interpretação normativa encontra suporte no elemento teleológico da interpretação, uma vez que, exigindo-se ao tribunal da Relação que, na reapreciação da matéria de facto, proceda ao exame crítico e autónomo das provas formando a sua própria convicção (cfr. arts. 662º, nº 1, 663º, nº 2 e 607º, nº 4, todos do CPC) – não dependente portanto da convicção formada em 1ª instância nem da convicção apresentada pelo apelante – bastará para esse efeito a indicação dos meios de prova que, no entender do apelante, serão relevantes para a pretensão de ver proferida decisão de facto diversa, sendo inútil a enunciação das razões concretas conducentes a tal decisão. Esclareça-se ainda que não se afigura que a falta da indicação dessas razões conduza à afectação do princípio do contraditório, na medida em que o apelado, conhecendo os meios de prova em que o apelante sustenta a pretendida alteração da decisão relativa à matéria de facto, dispõe das condições para contraditar tal pretensão.”. No mesmo sentido, veja-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 19-02-2015 (proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1), publicado em www.dgsi.pt, no qual se defende que: “[A] insuficiência ou a mediocridade da fundamentação probatória aduzida pelo recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação.”. 5.2. Regressando ao caso sub judice, compulsado o recurso de apelação interposto pelo aqui Recorrente, verifica-se aí indicaram: os concretos pontos de facto (da matéria de facto provada e não provada) considerados incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no entender do apelante, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Nos termos expostos supra, no ponto 4. do presente acórdão, só não se indicaram as passagens da gravação em que se funda a argumentação da impugnação, procedendo-se, porém, à transcrição integral dos depoimentos prestados. Seguindo-se aqui a orientação da jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal acima apresentada, não exige a lei no referido n.º 1 do art. 640.º do CPC, que o apelante se pronuncie sobre a valoração alegadamente correcta dos meios de prova por si indicados, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada. Pelo que a posição do tribunal a quo em rejeitar, por esse motivo, apreciar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto extravasa as exigências previstas no n.º 1 do art. 640.º do CPC. 6. Em síntese, impõe-se concluir pela verificação de ofensa às normas processuais, interpretadas em função do princípio da proporcionalidade, ao ter o tribunal a quo rejeitado conhecer da impugnação da matéria de facto com fundamento no não cumprimento dos ónus previstos no art. 640.º do CPC. VI – Decisão Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido e determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores, ser conhecida a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e ser proferida decisão de direito em conformidade. Custas no recurso de revista pelos Recorridos. Custas na acção e no recurso de apelação a final. Lisboa, 27 de Abril de 2023 Maria da Graça Trigo (Relatora) Catarina Serra João Cura Mariano ____ [1] Relatado pela relatora do presente acórdão.