O crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punível pelo artigo 187.º do Código Penal, pode ser cometido através de escrito.
Processo com o NUIPC 5259/19.7T9CBR.C1-A.S1 Acórdão de fixação de jurisprudência Acordam, em conferência, no Pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça: I RELATÓRIO 1 – AA, arguido nestes autos com n.º 5259/19.7T9CBR.C1-A.S1, veio, em 28.10.2022, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.09.2022, proferido em recurso neste mesmo processo e transitado em julgado em 13.10.2022, invocando oposição entre aquele e o acórdão de 20.02.2019, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 316/17.7T9SEI.C1, transitado em julgado em 27.03.2019 2. Recebido o recurso no Supremo Tribunal de Justiça, a 5.ª secção, em conferência, julgou verificada a oposição de julgados por acórdão de 11-05-2023 e decidiu pelo prosseguimento do recurso. 3. Cumprido o disposto no artigo 442.º, n.º 1, do CPP (doravante CPP), o arguido recorrente extrai das suas alegações as seguintes conclusões que se transcrevem ipsis verbis: «CONCLUSÕES: 1. A questão jurídica que o recorrente pretende ver esclarecida por meio de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência é a de saber se o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelos artigos 187.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a) e b) do Código Penal, pode ou não ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal. 2. À luz da lei penal portuguesa e da própria Constituição, entende o recorrente, na senda do acórdão fundamento, que tal resposta terá de ser forçosamente negativa, considerando-se não penalmente protegida a ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva cometida por escrito, gesto ou imagem. 3. Na medida em que este entendimento é o único que assegura o integral cumprimento do princípio basilar da legalidade, princípio este que constitui um dos baluartes das garantias constitucionais dos cidadãos e sobre o qual assenta todo o nosso ordenamento jurídico-penal. 4. Com efeito, o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto no artigo 187º do Código Penal, encontra-se inserido, tal como os crimes de difamação e injúria, previstos nos artigos 180.º e 181.º do mesmo diploma, no Capítulo VI - Dos Crimes Contra a Honra. 5. Todavia, ao contrário do que sucede com estes dois últimos crimes, em que o legislador expressamente consagrou a equiparação à difamação e injúrias verbais as feitas por escrito, gesto, imagens ou qualquer outro meio de expressão (veja-se o disposto no artigo 182.º do C.P.), inexiste relativamente ao crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva uma qualquer norma que alargue as margens da punibilidade do tipo aos tais comportamentos escritos, gestuais, por imagem, ou outro tipo de expressão distinta da verbal. 6. Sendo que a norma remissiva do artigo 187.º, n.º 2, do Código Penal não inclui o mencionado artigo 182.º 7. Partindo do pressuposto de que o legislador se exprime com clareza e com rigor na definição de cada tipo legal de crime, esta ausência de remissão expressa do artigo 187.º, n.º 2, para o artigo 182.º não pode deixar de ser encarada como uma opção político-criminal do legislador. 8. E, como tal, levará a que não se possa considerar penalmente protegida a ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva cometida por escrito, gesto ou imagem, sob pena de violação do princípio da legalidade. 9. Termos em que, salvo o devido respeito por melhor opinião, deve ser fixada jurisprudência no sentido de que o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelos artigos 187.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a) e b) do Código Penal, não pode ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal.» 4. O senhor Procurador-Geral Adjunto neste STJ, apresentou alegações, pronunciando-se: 4.1. Pela não verificação dos requisitos substanciais previstos no artigo 437.º do CPP – oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito –, motivo pelo qual o recurso extraordinário interposto deve, em conferência, ser rejeitado [artigos 440.º, n.ºs 3 e 4 e 441.°, n.° 1, do C.P.P]», o que faz assentar, em síntese, nas seguintes razões: - Em ambos os acórdãos, em cada caso concreto, são diferentes as situações de facto, como diferentes são as normas jurídicas interpretadas e aplicadas. Efectivamente, no caso do acórdão recorrido, estamos perante um caso em que, perante os factos dados como provados na sentença, se entendeu estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal previstos nos artigos 187.º n.º 1 do CP e 183.º n.º 1 alíneas a) e b) do CP. Considerou-se, ainda, que o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, não obstante o artigo 187.º do CP ao não remeter para o artigo 182.º, pode ser praticado por meio escrito. Por sua vez, o acórdão fundamento entendeu que a acusação particular não descrevia “factos que constituem os elementos objectivos do tipo legal de crime em apreço.” E, considerando ser este um motivo de rejeição da acusação, nos termos do n.º 3 do artigo 311.º do CPP; manteve a decisão da 1ª instância. No acórdão recorrido, o preceito cuja interpretação está em causa é o artigo 187.º n.º 3 do CP; no acórdão fundamento, o preceito cuja interpretação está em causa é o artigo 311.º do CPP. É verdade que o acórdão fundamento – embora essa questão não fosse objecto do recurso –, na sua fundamentação, afirmou que «aliás, mesmo que existissem factos necessários ao preenchimento do tipo legal de crime previsto no artigo 187.º, n.º 1 do Código Penal, sempre poderemos dizer que, esses factos não preencheriam também os elementos objectivos do crime porquanto o arguido fê-lo através da de uma carta, ou seja por escrito e o artigo 187.º do Código Penal não remete expressamente para a equiparação prevista no artigo 182.º do Código Penal». Contudo, é sabido que a jurisprudência do STJ considera que a oposição de julgados, para efeitos de recurso de fixação de jurisprudência, deve respeitar à decisão e não aos seus fundamentos (Vide acórdão do STJ, de 17.06.2010, processo n.º 1/08.0 FAVRS.E1-A.S1; acórdão do STJ, de 27.06.2019, Processo n.º 1958/15.0T9BRG.G1-A.S1). O mesmo será dizer que, no acórdão fundamento, não se decidiu se o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a) e b) do Código Penal, pode ou não ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal, embora em sede de fundamentação tal questão tivesse sido aventada. 4.2. Quanto ao mérito da questão suscitada, resumimos do seguinte modo a sua posição: - A letra da lei constitui um ponto de partida para descobrir o pensamento nela contido, pois é através das “palavras na sua recíproca ligação e segundo as regras gramaticais aplicáveis” que se procura surpreender um significado (interpretação literal); - Contudo, há ainda que atender à interpretação lógica ou racional, não se podendo perder de vista que o legislador exerce a sua atividade com uma determinada finalidade e que a lei deve ser compreendida de maneira a melhor corresponder à consecução do resultado que o legislador quis acolher; - Em sede de Direito Penal há que ter especiais cuidados no que concerne à interpretação da lei por força do princípio da legalidade; - O crime previsto e punível pelo artigo 187.º n.º 1 Código Penal tem como elemento objetivo a afirmação ou propalação de factos inverídicos, condutas que implicam, necessariamente, o uso da linguagem; - A linguagem permite que nos expressemos tanto de forma oral como escrita pelo que, decorre dos próprios termos linguísticos utilizados, que a conduta de “afirmar ou propalar” factos inverídicos, quer oralmente quer por escrito, está dentro dos limites da norma acima referida; - Em termos de legística, não existe necessidade de se estabelecer uma remissão para o artigo 182.º do Código Penal ou da criação de uma norma correspondente que alargue as margens de punibilidade aos comportamentos escritos, uma vez que aquela interpretação não ultrapassa o sentido literal possível dos termos linguísticos; - Não há uma simetria absoluta entre os crimes de difamação e injúria, por um lado, e o de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva por outro, dado que utilizarem terminologias diferentes e estarem concebidos de forma diferente, pelo que não há que estabelecer entre eles um total paralelismo; - Para os artigos 180.º e 181.º Código Penal houve necessidade de criar a norma do artigo 182.º do CP porque, destes preceitos, não decorria claramente que os factos suscetíveis de afetar a honra ou consideração pudessem ser praticados através de escrito, por gestos ou imagens; - De facto e como explica Maia Gonçalves, o artigo 182.º revela «a preocupação de colmatar brechas numa matéria em que a imaginação tem sido fértil em descobri-las, e assim os autores de toda a sorte de insinuações torpes escaparam às malhas da lei penal pelo caminho tortuoso da aplicação analógica.»; - Neste conspecto, uma leitura articulada do artigo 187.º com os artigos 180.º n.º 1, 181.º n.º 1 e 182.º do Código Penal, leva a concluir que a ausência de remissão do primeiro para este último preceito não tem o sentido e alcance que lhe quer dar o acórdão fundamento; - Da leitura dos artigos 187.º n.º 2 e 183.º do Código Penal resulta que o legislador quis que determinadas condutas, por serem potencialmente mais lesivas do bem jurídico protegido, fossem punidas mais severamente; - A interpretação de que o artigo 187.º n.º 1, ao estabelecer “afirmar” ou “propalar” factos inverídicos, pressupõe apenas um comportamento oral leva a uma incongruência do sistema jurídico, dado que seriam punidas ações menos lesivas dobem jurídico e, outras, bem mais graves e de impacto bem mais negativo, ficariam de fora; - Na verdade e a título de mero exemplo, se alguém, num colóquio restrito a um certo grupo de pessoas, afirmasse que, numa determinada esquadra, os polícias espancam os detidos e apropriam-se da droga apreendida, cometeria o crime; mas, nesse mesmo entendimento, se alguém, através de uma notícia num jornal diário, de grande tiragem nacional e que poderia ser lida e relida por toda a gente, afirmasse e divulgasse esses mesmos factos, não cometeria qualquer crime; - Segundo as regras gerais de interpretação há que presumir que o legislador sabe o que diz, diz o que quer dizer e que, ao criar um sistema, fá-lo de forma coerente e com sentido e, portanto, tais incongruências não podem resultar da interpretação da lei; - Tanto em relação à génese da norma como em relação ao pensamento jurídico-penal que envolveu a sua criação, há que concluir que se pretendeu punir tanto comportamentos escritos como verbais, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo, serviço ou pessoa coletiva, na medida em que ambos são suscetíveis de ofender o bem jurídico protegido; - A interpretação que se propugna é a que melhor corresponde à consecução do resultado a que o legislador quis atender com a norma (bom-nome de organismo, serviço ou pessoa coletiva); - Esta interpretação da lei penal situa-se dentro do sentido literal possível dos termos linguísticos utilizados na redação do texto do artigo 187.º n.º 1 do Código Penal e não constitui interpretação extensiva, não alarga quaisquer margens de punibilidade e não viola o princípio da legalidade; - Nestes termos, deve ser fixada jurisprudência no seguinte sentido: “O crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punível no artigo 187.º Código Penal, pode ser cometido verbalmente ou através de escrito.» 5. Colhidos os vistos legais, o presente processo foi a conferência do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos previstos no artigo 443.º, do CPP. II - FUNDAMENTAÇÃO A. PRESSUPOSTOS DO RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA 6 – Verificação dos pressupostos do recurso de fixação de jurisprudência Uma vez que o Pleno pode decidir em sentido oposto ao da conferência da secção (artigo 692.º, n.º 4, do Código de Processo Civil – CPC -, ex vi do artigo 4.º do CPP), cumpre apreciar novamente aqueles pressupostos. Vejamos. 6.1. Dos artigos 437.º/1/2/3 e 438.º/1/2, do CPP, resulta, tal como é entendimento pacífico da jurisprudência do STJ (vd. por todos, PEREIRA MADEIRA Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2016, 2.ª edição revista, pág. 1439 e ss.), que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende, antes de mais, da verificação dos seguintes pressupostos formais: - Legitimidade [e interesse em agir] do recorrente, o que se verifica no caso presente, porquanto o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ora recorrido, negou provimento ao recurso aí interposto pelo arguido ora recorrente, AA, da decisão de 1.ª instância que o condenara pela prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a) e b), do Código Penal (doravante C. Penal); - Tempestividade do recurso, o que se verifica no caso presente, pois conforme certidão junta aos autos (refª ......09), o acórdão recorrido transitou em julgado a 13.10.2022 - 10 dias depois de o recorrente se presumir ter sido notificado daquele (03.10.2022), por ser o acórdão insuscetível de recurso ordinário, pelo que, apresentado em 28.10.22, foi o presente recurso interposto no prazo de 30 dias fixado no artigo 438.º, n.º 1, CPP; - Identificação do acórdão fundamento, ou seja, o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontrará em oposição, indicando que aquele acórdão, proferido pelo TRC em 20.02.2019, no âmbito do processo 316/17.7T9SEI.C1, se encontra publicado em www.dgsi.pt; - Trânsito em julgado do acórdão fundamento, que ocorreu em 27.03.2019, conforme certidão junta aos presentes autos em 3.11.22 (refª ......09). 6.2. Preenchidos os apontados pressupostos de ordem formal, impõe-se verificar agora o preenchimento dos respetivos pressupostos substanciais: - Que dois acórdãos do STJ, das relações ou de uma das relações e do STJ, hajam sido proferidos no domínio da mesma legislação; - Que ambos os acórdãos hajam decidido a mesma questão de direito; - Que a decisão de ambos os acórdãos assentes em soluções opostas para a mesma questão de direito, requisito este que se desdobra em três outros pressupostos ou requisitos, conforme vem sendo entendido na jurisprudência e doutrina: - Que as decisões em oposição sejam expressas e não meramente tácitas ou implícitas; - Que os dois acórdãos assentem em soluções opostas da mesma questão de direito e a partir de idêntica situação de facto. - Que a oposição se verifique entre duas decisões e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra, pressuposto a que se dedicará maior atenção. Vejamos, então, da verificação dos enunciados pressupostos substanciais no caso concreto. 6.2.1. No caso presente, não há dúvida de que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação relevante, pois tanto o acórdão da Relação de Coimbra de 28.09.2022 – acórdão recorrido -, como o acórdão da Relação de Coimbra de 20.02.2019 - acórdão fundamento -, foram proferidos na vigência da atual redação do artigo 187.º do C. Penal, que prevê o crime de Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, cuja 1.ª versão foi introduzida no C. Penal pelo DL 48/95, de 15 de março, apenas alterada pela Lei 59/2007, de 4 de setembro, sendo certo que é sobre a interpretação daquela norma incriminadora que se suscita a invocada oposição de julgados. 6.2.2. É igualmente fora de dúvida que tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento pronunciaram-se em termos opostos sobre a mesma questão de direito, que é a de saber se – no que releva para o caso concreto - o crime de Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva previsto no artigo 187.º C. Penal pode ser cometido por escrito, como julgou o acórdão recorrido, ou se aquele tipo legal não contempla tal hipótese, como, inversamente, entendeu o acórdão fundamento, conforme melhor se constata do trecho daquela decisão que se transcreve infra (6.2.4.1) . 6.2.3 Do mesmo modo, as soluções de direito opostas não assentam em diferentes situações de facto, pois tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento pronunciaram-se inequivocamente sobre situações de facto idênticas. Na verdade, a pretensa ofensa ao tipo legal previsto no artigo 187.º do C. Penal teve por base a emissão de escrito contra pessoa coletiva em ambos os casos, concluindo o tribunal recorrido ser tal conduta punível pelo artigo 187.º do C. Penal e o acórdão fundamento em sentido oposto, ou seja, no sentido de que o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a) e b), do C. Penal, não pode ser cometido por escrito. 6.2.3.1. Quanto à referência do MP no tribunal recorrido ao diferente enquadramento processual em que ambos os acórdãos foram proferidos, em virtude de o acórdão recorrido ter decidido recurso de condenação proferida em 1.ª instância após audiência de julgamento e o acórdão fundamento ter decidido recurso interposto de despacho do juiz de julgamento que, nos termos do artigo 311.º, n.º 3, al. d), do CPP, rejeitou acusação particular por ser a mesma manifestamente infundada em virtude de os factos não constituírem crime, é tal diferença irrelevante no caso presente. Tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento puseram termo ao processo (cf. artigo 97.º n.º 1, als. a) e b), CPP), ainda que em fases processuais diversas, sem que esta circunstância interfira com a constatação de que os dois acórdãos, relativamente à mesma questão de direito, assentaram em soluções opostas, conforme exige o artigo 437.º ao enunciar os fundamentos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Como diz o ora recorrente na resposta a que se reporta o artigo 417.º, n.º 2, do CPP, «… pese embora sejam diferentes as fases processuais em que a questão se coloca (…) em ambos os acórdãos (recorrido e fundamento) a questão material central que foi (para além do mais) colocada à consideração dos decisores foi a de saber se as cartas enviadas pelos arguidos constituíam ou não crime p. e p. pelo artigo 187.º do C. P.». A questão suscitada na resposta do MP no tribunal recorrido e no parecer do MP no STJ, remete-nos antes para a questão de saber se, dados os termos em que foi proferido o acórdão fundamento, se verifica a necessária oposição entre decisões e não entre decisão e fundamentos, como é geralmente qualificada, que passamos a analisar. 6.2.4. Com efeito, cumpre ajuizar se tem razão o MP no STJ ao afirmar que no acórdão fundamento não se decidiu se o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelos artigos 187.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a) e b), do C. Penal, pode ou não ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal, uma vez que - como diz - tal questão não foi objeto do recurso e só em sede de fundamentação foi aventada, o que afastaria a verificação de oposição de julgados, pois é sabido que a jurisprudência do STJ considera que a oposição de julgados, para efeitos de recurso de fixação de jurisprudência, deve respeitar à decisão e não aos seus fundamentos (vd. acórdão do STJ, de 17.06.2010, processo n.º 1/08.0 FAVRS.E1-A.S1; acórdão do STJ, de 27.06.2019, processo n.º 1958/15.0T9BRG.G1-A.S1). Vejamos. 6.2.4.1. Em primeiro lugar, não tem razão o MP ao pretender que a questão de saber se o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelos artigos 187.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a) e b), do C. Penal, pode ou não ser cometido por escrito – no que ao caso importa - não foi objeto do recurso decidido pelo acórdão fundamento e só em sede de fundamentação foi aventada. Na verdade, apesar de o acórdão fundamento não indicar expressamente as questões que entendia constituírem o objeto do recurso a decidir, resulta suficientemente do seu teor - tal como do confronto com o despacho de 1.ª instância, então recorrido -, que o acórdão fundamento identificou e apreciou a questão de saber se o crime p. e p. pelo artigo 187.º do C. Penal podia ser praticado por escrito ou se apenas podia ser cometido verbalmente (oralmente) enquanto elemento objetivo do tipo, juntamente com os demais elementos típicos objetivos, ou seja: - A afirmação ou propalação de factos inverídicos; - Que sejam suscetíveis de ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança da entidade vítima e - Que o agente ativo não tenha fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos - inverídicos - como verdadeiros. Com efeito, é o que pode ler-se do amplo trecho do acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 20.02.2019, no âmbito do processo 316/17.7T9SEI.C1que, como aludido, julgou improcedente recurso do despacho proferido em 1.ª instância que rejeitara acusação particular nos termos do artigo 311.º, n.º 3, d), do CPP, ou seja, por entender ser a acusação manifestamente infundada por os factos não constituírem crime, decisão esta que vem fundamentada – no que respeita ao crime p. e p. pelo artigo 187.º do C. Penal aqui em causa – nos termos que a seguir se transcrevem: «(…) No caso vertente é imputado ao arguido a prática de um crime p. e p. pelo artigo 187.º do C.Penal. … São elementos objetivos do tipo a afirmação ou propalação de factos inverídicos; que esses mesmos factos sejam suscetíveis de ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança da entidade vítima; e que o agente ativo não tenha fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos - inverídicos - como verdadeiros. (…) No caso vertente e tendo presente os elementos objetivos do tipo temos que concluir que os mesmos não constam da acusação particular. Na verdade da acusação particular não resultam descritos factos que constituem os elementos objetivos do tipo legal de crime em apreço. (…) Estamos, portanto, perante uma carta escrita pelo arguido aos assistentes em que se manifesta em relação aos estatutos de uma fundação dos quais na sua opinião não estão a ser respeitados. As expressões utilizadas não consubstanciam a imputação de qualquer facto, pelo que não se mostram preenchidos os elementos objectivos do crime p. e p. pelo artigo 187.º do Cod Penal Aliás, mesmo que existissem factos necessários ao preenchimento do tipo legal de crime previsto no artigo 187.º, n.º 1 do Código Penal, sempre poderemos dizer que, esses factos não preencheriam também os elementos objetivos do crime porquanto o arguido fê-lo através da de uma carta, ou seja por escrito e o artigo187º do Código Penal não remete expressamente para a equiparação prevista no artigo 182.º do Código Penal. Conforme podemos ler no douto Acórdão do TRL de 24-01-2013 "O tipo objetivo deste crime preenche-se com a afirmação ou divulgação de "factos inverídicos", capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança, não abarcando a imputação de "juízos de valor" ofensivos, como sucede nos crimes de difamação e injúria. Este específico aspeto não é tão linear como à primeira vista poderia parecer na medida em que, ao invés do que sucede com os crimes de difamação e injúria previstos nos artigos 180.º e 181.º do Código Penal, inexiste relativamente à ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva prevista no artigo 187.º do mesmo diploma uma qualquer norma que alargue as margens de punibilidade do tipo aos comportamentos escritos, gestuais, por imagem, ou outro tipo de expressão distinta da verbal. E o certo é que a norma remissiva do artigo 187.º, n.º 2 do Código Penal não inclui o artigo 182.º do mesmo diploma. Esta ausência da remissão para o artigo 182.º implica que se considere em princípio não penalmente protegida a ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva cometida por escrito, gesto ou imagem. Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa 2008. p, 509), outra interpretação "violaria o princípio da legalidade". (Ac da Rel. Porto cit. e que seguimos) No mesmo sentido o douto acórdão do TRP de 3-4-2013 onde podemos ler, no seu sumário, "IV - "Afirmar ou propalar" factos inverídicos pressupõe que a ofensa seja feita verbalmente, tanto mais que, o n.º 2 do artigo 187.º do CP não remete para o disposto no artigo 182.º do CP, o que significa que o legislador não quis que esta última referida norma fosse também correspondentemente aqui (artigo 187.º do CP) aplicável. Mesmo em relação aos crimes previstos nos artigos 180.º e 181.º do CP, caso não existisse a equiparação consagrada no artigo 182.º do CP, a difamação ou injúria feitas, por exemplo, por escrito também não eram punidas." Portanto, os factos narrados na acusação não constituem crime.» - FIM DE CITAÇÃO. Após este trecho, o acórdão fundamento passou a analisar o teor da acusação particular no que concerne à imputação ao arguido de dois crimes de injuria e de difamação agravada previstos e puníveis pelos artigos 180.º e 181.º , ambos do C. Penal, alegadamente praticados na pessoa dos assistentes pessoas singulares, relativamente aos quais entende que «… não se vislumbra quaisquer factos passíveis de atentarem contra a honra ou a dignidade dos assistentes» [concluindo que] não se mostra preenchido quer o elemento objetivo do crime de difamação, quer o do crime de injúrias imputado ao arguido.» O acórdão fundamento afirma por fim, que: «Nessa medida, bem andou o tribunal ao rejeitar a acusação. Nestes termos, se decide, negando provimento ao recurso, confirmar o despacho recorrido.» 6.2.4.2. Ou seja, contrariamente ao que parece entender o MP no STJ, não obstante as diferenças formais entre a estrutura do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, constata-se que não só o acórdão fundamento autonomizou e apreciou a questão de direito substantivo de saber se o uso da expressão não verbal (não oral), é elemento do tipo objetivo previsto no artigo 187.º do C. Penal, como deixou claro na sua fundamentação (supra transcrita) - nomeadamente com recurso a jurisprudência e doutrina que citou - , o seu entendimento sobre aquela questão jurídico substantiva, pronunciando-se, tal como o despacho de 1.ª instância sobre o qual incidiu o recurso, no sentido de aquele mesmo tipo legal não contemplar a sua comissão por meio de escrito. Entendimento este que foi co-determinante da sua decisão de julgar improcedente o recurso, confirmando o despacho de 1.ª instância que, nos termos do artigo 311.º, n.º 3, al. d), do CPP, rejeitara a acusação particular por ser a mesma manifestamente infundada em virtude de os factos descritos na acusação a rejeitar não constituírem crime, dado que (como se diz no acórdão fundamento): - A carta enviada não continha afirmação ou propalação de factos inverídicos; - Que fossem suscetíveis de ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança da entidade vítima; - Que o arguido, que a enviou, tivesse fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos - inverídicos - como verdadeiros, e - Porque o tipo legal previsto no artigo 187.º do C. Penal apenas pune ofensas feitas oralmente, não abrangendo as feitas por escrito, gesto ou imagem. O acórdão fundamento assentou, pois, a sua decisão na atipicidade da conduta descrita na acusação particular rejeitada pelas concretas razões de facto e de direito agora sumariadas, entre as quais se conta a solução que adotou relativamente à questão de direito agora enunciada em último lugar - o tipo legal previsto no artigo 187.º do C. Penal apenas pune ofensas feitas oralmente, não abrangendo as realizadas por escrito, gesto ou imagem – ainda que a falta de um só daqueles elementos do tipo objetivo fosse suficiente para ditar a improcedência do recurso decidida pelo acórdão fundamento. 6.2.4.3. A particularidade do acórdão fundamento relativamente ao acórdão recorrido encontra-se, pois, na circunstância de a improcedência do recurso assentar ali numa pluralidade de razões de ordem fáctica e jurídica fundamentadoras da sua conclusão sobre a (a)tipicidade da conduta descrita na acusação particular face ao disposto no artigo 187.º do C. Penal (entre as quais se conta a posição assumida relativamente à (não) punição de “ofensa” por meio de escrito). Já a decisão do recurso objeto do acórdão recorrido, relativamente ao preenchimento do tipo criminal dos artigos 187.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, als. a) e b), do CP, assentou apenas no entendimento de que nada obsta ao «…preenchimento do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, do CP, por outro qualquer meio que não verbal (no caso em apreço, por escrito) …». A circunstância de o acórdão fundamento assentar a decisão do recurso numa pluralidade de razões de ordem jurídica, incluindo a posição que adotou no sentido - oposto ao acórdão recorrido - , de a falta de previsão típica de eventual ofensa praticada por meio não verbal, não desqualifica a solução que adotou sobre a questão jurídica claramente controvertida para efeitos da verificação da oposição de julgados a que se reporta o artigo 437.º do CPP, pois qualquer daqueles fundamentos de ordem jurídica é suficiente para fundamentar, por si, a decisão de improcedência do recurso assumida no acórdão fundamento. Com efeito, sem cuidar aqui de interpretação mais ampla e detalhada, não poderá deixar de entender-se cum grano salis a exigência de que a oposição entre as soluções para a mesma questão de direito, a que se reporta o artigo 437.º do CPP, respeite a oposição entre decisões e não entre os seus fundamentos (como se refere no parecer do MP no STJ) ou entre a decisão e os fundamentos, pois, em rigor, é na fundamentação do acórdão decisório que se expõem os motivos de direito que fundamentam a decisão, como paradigmaticamente se diz no artigo 374.º, n.º 2, do CPP. Deste modo, as diferentes soluções para a questão de direito hão de encontrar-se enunciadas, apreciadas e decididas na parte do acórdão dedicada à fundamentação do recurso ou no seu dispositivo ou decisão, embora esta última parte da sentença apenas contenha, em regra, a enunciação, positiva ou negativa, sobre o provimento ou procedência, total ou parcial, do recurso, para além de outras questões que aí sejam decididas (vd. artigo 375.º do CPP), sem indicação ou enunciação da fundamentação de facto e direito em que assenta a decisão, a qual, repita-se, foi antes exposta noutra parte do acórdão: a fundamentação. O que se exige é que a solução adotada para a questão de direito em oposição constitua fundamento efetivo da decisão proferida. 6.2.4.4. Ou seja, a distinção em sede de fundamentos ou pressupostos da fixação de jurisprudência, parece dever fazer-se antes entre fundamentação determinante para a decisão proferida, num e noutro acórdão (nestes termos, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos (Regime do Decreto-Lei n.º 303/2007 ), Quid Juris, 2009 p. 315), não bastando a oposição entre meros argumentos ou razões de direito que não fundamentem, por si (independentemente da invocação de outros fundamentos com igual peso), a solução de direito adotada em ambos os acórdãos, máxime quando se trate de meros obiter dicta. Na verdade, como se diz no acórdão do STJ de 2 de outubro de 2014 (rel. Lopes do Rego), em termos que nos parecem válidos para o processo penal, «(…)2. O preenchimento deste requisito [que exista um conflito jurisprudencial, suscetível de ser dirimido através do recurso extraordinário previsto no artigo 688.º do CPC], supõe que as soluções alegadamente em conflito: - Correspondem a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental: implica isto, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica - não integrando contradição ou oposição de acórdãos o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respetiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados; - Têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto; - A questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto – não relevando os casos em que se traduza em mero obiter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica.». No caso vertente, a tomada de posição do acórdão fundamento no sentido de não ser punível pelo artigo 187.º do C. Penal potencial ofensa feita por escrito, não constitui mero obter dictum ou argumento lateral, antes se assume como uma das razões jurídicas - paritariamente exposta e fundamentada ao lado de outras -, em que assentou o julgamento do acórdão fundamento sobre a atipicidade da factualidade descrita na acusação rejeitada. 6.2.4.5. Note-se, por último - em obiter dictum que julgamos justificar-se -, que o entendimento ora exposto relativamente à relevância da oposição de direito entre apenas um de uma pluralidade de fundamentos que tenham determinado a decisão proferida pelo acórdão fundamento, e a solução jurídica unitariamente seguida no acórdão recorrido, não colide com a natureza e efeitos próprios dos acórdãos de fixação de jurisprudência, contrariamente ao que se verificaria caso se seguisse entendimento simétrico para o acórdão recorrido. Com efeito, sendo o acórdão de fixação de jurisprudência eficaz no processo em que o recurso para fixação de jurisprudência foi interposto (artigo 445.º do CPP), não pode conceber-se fixação de jurisprudência que não permitisse a revisão da decisão recorrida quando a decisão uniformizadora fosse contrária à adotada no acórdão recorrido (artigo 445.º, n.º 2), o que efetivamente se verificaria, pois conhecendo apenas de um de diversos fundamentos igualmente determinantes da decisão recorrida (como sucede no caso presente), o AFJ não podia levar à alteração da decisão recorrida porque esta subsistiria assente em algum ou alguns dos restantes fundamentos que a tivessem determinado. Diferentemente, nada obsta a que a oposição de julgados verificada relativamente apenas a um dos fundamentos determinantes da decisão tomada no acórdão fundamento dê origem a fixação de jurisprudência nos termos do artigo 437.º do CPP, pois salvaguarda-se desse modo a finalidade uniformizadora da fixação de jurisprudência em oposição, sem afetar minimamente o seu papel, concomitante, de remédio jurídico por via de recurso relativamente ao acórdão recorrido (artigo 445.º, n.ºs 1 e 2 ), uma vez que a decisão do acórdão fundamento em nada é alterada pela fixação de jurisprudência. Nada obsta, pois, à solução assimétrica – diga-se assim, na medida em que é diversa para o acórdão fundamento e para o acórdão recorrido – nos casos de pluralidade de fundamentos de direito igualmente determinantes para a decisão do recurso. Conclui-se, pois, pela verificação de todos os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário de jurisprudência, incluindo a referida oposição de julgados, em conformidade com o disposto no artigo 437.º, n.º 1, do CPP, porquanto os acórdãos assentam em soluções opostas, a partir de idêntica situação de facto, sendo expressa a oposição das respetivas decisões relativamente à incriminação da afirmação ou propalação de factos por escrito nos termos do artigo 187.º, pois só esta questão estava em causa em ambos os acórdãos, não se reportando nenhum deles a ofensa por gestos, imagens ou outros meios de expressão. Em face do exposto, considera-se verificada a necessária oposição de julgados. B. DELIMITAÇÃO DA QUESTÃO DE DIREITO A DECIDIR E ARGUMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO E DO ACÓRDÃO FUNDAMENTO. 7. A questão objeto da fixação de jurisprudência Conforme vimos, concordando o acórdão recorrido e o acórdão fundamento em que o crime previsto no artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal (a que pertencem todas as normas sem indicação de outra proveniência), pode ser cometido oralmente, ou seja, através da palavra dita ou falada, decidiram ambos, de forma oposta, questão jurídico-penal que concretamente enfrentaram, ou seja, a questão de saber se aquele crime pode ser cometido por escrito. No caso sub judice, a vexata quaestio assenta em interpretação oposta do artigo 187.º, n.º 1, por parte do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, inserindo-se cada um dos acórdãos em oposição em corrente jurisprudencial de que são exemplos paradigmáticos. 7.1. O acórdão recorrido, na linha da corrente jurisprudencial em que se insere, considerou, em síntese, que: - Deve partir-se da interpretação da norma típica, para concluir se é necessária a dita equiparação entre o afirmar ou propalar factos (inverídicos, ofensivos da credibilidade, do prestígio ou confiança devidas a organismo ou serviço que exerça autoridade pública, instituição ou corporação, e sem fundamento para em boa-fé os reputar verdadeiros), por via verbal, à mesma afirmação ou propalação por outros meios (no caso, por escrito); - Uma equiparação formal como aquela a cuja inexistência o recorrente se arrima é simplesmente desnecessária: o próprio tipo base já contempla a atuação mediante escrito; - [Com efeito] afirmar ou propalar são ações que, por sua natureza, podem lograr o resultado a que tendem não apenas oralmente como também por outros meios a tanto aptos (postular ou difundir um facto), e até em particular e para o que aqui nos importa através de escrito (especialmente idóneo). 7.1.1. No mesmo sentido do acórdão recorrido decidiram anteriormente os seguintes acórdãos das relações, todos acessíveis em www.dgsi.pt: - Acórdão do TRP, de 11.09.2013, Processo n.º 4581/10.2TAVNG.P1, relator (abreviadamente rel.) Pedro Vaz Pato; - Acórdão TRP, de 02.10.2013, Processo n.º 4213/12.4 TDPRT.P1, rel. Neto de Moura; - Acórdão do TRP, de 20.11.2013, Processo n.º 5803/11.8TDPRT.P1, rel. Maria Manuela Paupério; - Acórdão TRL, de 05.04.2016, Processo n.º 7106/14.7 TDLSB.L1-5, rel. Jorge Gonçalves; - Acórdão TRP, de 08.03.2017, Processo n.º 454/14.8 TABRG.P2, rel. Lígia Figueiredo; - Acórdão TRL, de 17.05.2017, Processo n.º 95/15.2PEPDL.L1, rel. Jorge Raposo; - Acórdão TRP, de 18.03.2020, Processo n.º 2270/17.6 T9VFR.P1, rel. Maria dos Prazeres Silva; Já depois de proferido o acórdão recorrido (28.09.22), foram ainda proferidos os seguintes acórdãos das relações no mesmo sentido: - Acórdão TRL, de 15.12.2022, Processo n.º 2063/18.3T9ALM.L1.9, rel. Paula Penha; - Acórdão do TRL, de 11.05.2023, Processo n.º 3958/20.0T9SXL.L1-9, rel. Paula Penha. 7.2. Por sua vez, o acórdão fundamento considerou e decidiu, em síntese, que: - "Afirmar ou propalar" factos inverídicos pressupõe que a ofensa seja feita verbalmente, tanto mais que, o n.º 2 do artigo 187.º do CP não remete para o disposto no artigo 182.º do CP, o que significa que o legislador não quis que esta última referida norma fosse também correspondentemente aqui (artigo 187.º do CP) aplicável. Mesmo em relação aos crimes previstos nos artigos 180.º e 181.º do CP, caso não existisse a equiparação consagrada no artigo 182.º do CP, a difamação ou injúria feitas, por exemplo, por escrito também não eram punidas." Estamos perante uma carta escrita pelo arguido aos assistentes em que se manifesta em relação aos estatutos de uma fundação dos quais na sua opinião não estão a ser respeitados. Portanto, os factos narrados na acusação não constituem crime. Outra interpretação "violaria o princípio da legalidade». 7.2.1. No mesmo sentido do acórdão fundamento foram proferidas as seguintes decisões das relações, todos acessíveis em www.dgsi.pt: - Acórdão do TRL, de 08.09.2010, Processo n.º 4962/08.1TDLSB.L1-3, rel. Maria José Costa Pinto; - Acórdão do TRP, de 23.05.2012, Processo n.º 1429/09.4 PIPRT.P1, rel. Ernesto Nascimento; - Decisão Sumária do TRP, de 03.04.2013, Processo 1354/12.1 TAMTS.P1, rel. Maria do Carmo da Silva Dias. 7.3. Breve delimitação negativa das questões a desenvolver. Claramente identificado o problema jurídico a dirimir e os principais fundamentos de ambos os entendimentos jurídico-penais em oposição, estamos em condições de desenvolver os questões que maior relevância assumem na concreta fixação de jurisprudência a decidir, o que inclui referência perfunctória aos elementos da interpretação relevantes, cujo respeito é condição para a consistência e segurança da interpretação enquanto procedimento adequado à compreensão do pensamento legislativo (artigo 9.º, n.º 1, C. Civil) traduzido na norma jurídica, in casu, na norma jurídico-penal cuja importância é particularmente notória no caso presente. Quanto a outras problemáticas suscitadas pela interpretação do artigo 187.º que não importam diretamente à decisão a proferir, como sejam a definição precisa do bem jurídico protegido pela norma, a questão de saber se as pessoas coletivas (grosso modo) podem ser sujeito passivo dos crimes de difamação (artigo 180.º) e injúria (artigo 181.º) ou se o artigo 187.º abrange ofensa praticada por meio de expressão não verbal em sentido amplo (i.e. por meio de expressão diferente da palavra dita ou escrita, ou seja, por meio de gestos, imagens ou quaisquer outros), far-se-ão meras referências de enquadramento. 8. Vejamos 8.1. – Considerações gerais sobre interpretação da lei - breve excurso. O artigo 9.º do Código Civil, com a epígrafe “Interpretação da lei”, que é norma válida para todos os ramos do direito, incluindo o direito penal, dispõe sobre os critérios, fatores ou elementos da interpretação que, no essencial, continuam a ser reconhecidos como tal – elementos literal, sistemático, histórico e teleológico -, nos seguintes termos: «1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.». 8.1.1. O elemento literal da interpretação. O artigo 9.º atribui, pois, à letra da lei duas funções essenciais: por um lado, a letra da lei é, necessariamente, o ponto de partida da interpretação, pois a linguagem é o meio pelo qual o legislador se expressa na norma; por outro lado, o texto legal impede uma interpretação que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal. Em direito penal estas exigências são impostas pelo princípio da legalidade, consagrado, nos seus diversos corolários, no artigo 29.º da CRP e pelo artigo 1.º do C. Penal. A letra da lei como ponto de partida da interpretação relaciona-se diretamente com a exigência constitucional de que a norma criminalizadora tenha de constar de uma lei, que entre nós é da exclusiva competência da Assembleia da República (salvo autorização ao Governo - artigo 165.º, 1, c), da CRP), emanação direta da soberania do povo, para cumprir a ratio de garantia política do cidadão face ao poder punitivo estadual, que costuma traduzir-se no brocardo latino nullum crimen sine lege scripta – v., por todos, Jorge Miranda-Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p.327. À exigência de que a interpretação da lei penal tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, corresponde o respeito pelo sentido literal possível, ou seja, o sentido que não está para além do sentido literal linguisticamente possível e é claramente excluído por ele (K.Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 5.ª ed., FCG, lisboa, 2009) e que, enquanto limite da interpretação em direito penal (nullum crimen sine lege stricta), fundamenta a proibição de analogia expressa no artigo 1.º, n.º 3, do C. Penal, em razão da qual «… não pode reivindicar-se de interpretação uma qualquer solução jurídica, por mais indicada axiológica e teleologicamente, que já não encontre apoio no texto da lei» - cf. Costa Andrade, O Princípio Constitucional «nullum crimen sine lege» e a analogia no campo das causas de justificação, RLJ A. 134.º, 2001, n.ºs 3924 e 3925 p. 72. 8.1.2. O elemento ou critério racional ou teleológico da interpretação corresponde essencialmente às preocupações ou finalidades que a norma procurou atingir (Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, Arménio Amado-Editor Sucessor, Coimbra 1987, p. 27), às necessidades de ordem social que visou satisfazer, o que em direito penal pressupõe a definição do bem jurídico protegido e da concreta forma de proteção visada pela norma incriminadora. A propósito deste elemento da interpretação, Larenz, (ob. cit. p. 471) enfatiza a importância do princípio de que à igualdade de previsões valorativas deve corresponder igualdade de tratamento legislativo. Refere o autor: «De entre os critérios de interpretação teleológico-objetivos, que decorrem dos fins objetivos do direito, mais rigorosamente da ideia de justiça, cabe uma importância decisiva ao princípio da igualdade de tratamento do que é (segundo as valorações gerais do ordenamento jurídico) igual (ou de sentido idêntico). A diferente valoração de previsões valorativamente análogas aparece como uma contradição de valoração, que não é compaginável com a ideia de justiça, no sentido de igual medida”. Evitar tais contradições de valoração é, portanto, uma exigência tanto para o legislador como para o intérprete, o que no caso presente convoca sobretudo a diferença de tratamento jurídico-penal implicada pela posição seguida pelo acórdão fundamento ao concluir pela atipicidade da ofensa escrita face à clara incriminação da ofensa praticada através da palavra falada, pois seria patente a contradição material entre a punição da ofensa oral e a impunidade da ofensa escrita, sendo certo que a ofensa escrita será certamente a forma mais corrente da ofensa à pessoa coletiva (grosso modo), quer na sua forma simples (artigo 187.º, n.º 1), quer sob a forma qualificada do artigo 183.º, ex vi do artigo 187.º, n.º 2. Não esquecemos que em direito penal tais contradições de valoração podem ter de ser aceites pelo intérprete, por força das limitações decorrentes do princípio da legalidade, máxime quando a interpretação adequada a evitá-las não cabe no sentido possível das palavras, mas como veremos não é, seguramente, o que se passa com a letra do tipo legal incriminador no caso sub judice. No caso concreto, importa sobremaneira destacar a importância da interpretação da lei com efetivo apelo aos critérios ou elementos da interpretação, não podendo deixar de salientar-se a relevância do elemento literal na interpretação penal. Não só porque está vedado ao intérprete ir além do sentido possível das palavras com a consequente violação do princípio da legalidade no seu corolário nullum crimen sine lege strita, como referido, mas também para prevenir o desrespeito do âmbito da criminalização validamente expresso pelo legislador, o que se verifica quando não é devidamente valorado o sentido mínimo da letra da lei penal incriminadora, criando por via jurisprudencial lacunas de punibilidade não suportadas pela vontade legislativa expressa, ainda que, porventura, revelando deficiências ao nível sistemático ou outro, superáveis pela consideração articulada dos diversos elementos da interpretação pertinentes ao caso. 8.1.3. O elemento sistemático da interpretação, a que Larenz se refere como o “contexto significativo da lei” (ob. cit. pp 457-462), parte do princípio de que «…cada proposição jurídica só se infere, as mais das vezes, quando se considera como parte da regulação a que pertence». Nas palavras de Manuel de Andrade (ob. cit. p. 27) o intérprete deve recorrer «…à conexão das disposições legais e preferir a interpretação mercê da qual a lei apresente a estrutura mais consequente e organicamente correta; e em particular havemos de tomar em consideração o encadeamento das diversas leis, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas». 8.1.4. Por seu lado, o chamado elemento histórico da interpretação «…abrange a história dos respetivos institutos e, em particular, o seu regime jurídico no direito imediatamente anterior à lei que se trata de interpretar» – cf. M. Andrade, ob. cit. p. 29. Trata-se de tirar as possíveis consequências do momento histórico em que apareceu a lei, para a determinação do seu atual sentido, ali incluindo os respetivos trabalhos preparatórios que, por vezes, constituem contributos muito relevantes quer do ponto de vista heurístico, quer na eliminação de dúvidas reconhecidas. 8.1.5. Antes de prosseguirmos, impõe-se-nos uma precisão terminológica relativamente ao que, em geral, se entende por expressão ou comunicação verbal. Com efeito, num primeiro sentido possível, mais amplo, expressão verbal corresponde à comunicação realizada através de palavras, por oposição às formas ou meios de expressão diferentes das palavras: gestos, imagens, ou quaisquer outras. Neste primeiro sentido, expressão verbal opõe-se, pois, a expressão não verbal, “que se utiliza de outros meios de expressão que não as palavras” (vd..Dicionário Houaiss) e pode assumir a forma oral ou escrita. Por outro lado, também se utiliza expressão verbal como sinónimo de expressão oral, que usa a palavra dita, opondo-se então à expressão escrita e todas as demais e é com este último sentido que o código penal a utiliza no artigo182.º ao dispor que “À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”. 8.2. – Posto isto, passamos à apreciação do elemento literal da interpretação, seguida de uma breve referência aos antecedentes legislativos, à história próxima, do artigo 187.º, para melhor enquadramento da respetiva incriminação, antes da análise dos restantes elementos relevantes para a sua interpretação quanto à questão a decidir, nomeadamente de ordem sistemática, com destaque para a apreciação do argumento retirado da ausência de remissão para o artigo 182.º pelo n.º 2 do artigo 187.º, ainda que sem especiais preocupações com a ordem da respetiva exposição, na verdade, como pode ler-se em A. Castanheira Neves, Interpretação Jurídica in Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 31985, p 691, a questão de saber « …como se conjugam todos esses elementos numa mesma interpretação ou qual a relação que entre eles aí deve ser pensada (…) é um ponto para que a teoria tradicional não logrou uma solução . (…) Nesta perspetiva [prático-normativa e problemático-concreta] o relevo dos elementos da interpretação só pode ser aquele que o problema concreto justifique, ou melhor, normativo-argumentativamente solicite. Que o mesmo é dizer que terá maior relevo ou polarizará a interpretação aquele elemento que, perante os pontos problemáticos especificamente acentuados no caso concreto, tenha maior força argumentativa na utilização da norma como critério de solução desses pontos.» No caso concreto, há de ser, pois, sobretudo o elemento gramatical, enquadrado pelos demais elementos da interpretação, máxime os elementos sistemático e teleológico, a guiar-nos na procura da solução correta para oposição de julgados a decidir. 8.2.1. O texto do artigo 187.º. É a seguinte a redação atual do artigo 187.º, tal como esta resulta das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 04/09 (negrito acrescentado na numeração e epígrafe): «Artigo 187.º Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva 1. Quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismos ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias. 2. — É correspondentemente aplicável o disposto: a) No artigo 183.º e b) Nos n.ºs 1 e 2 do artigo 186.º» Por sua vez, a redação atual dos artigos 183.º e 186.º é a seguinte: «Artigo 183.º - Publicidade e calúnia 1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou, b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo. 2 - Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.». «Artigo 186.º – Dispensa de pena 1 - O tribunal dispensa de pena o agente quando este der em juízo esclarecimentos ou explicações da ofensa de que foi acusado, se o ofendido, quem o represente ou integre a sua vontade como titular do direito de queixa ou de acusação particular, os aceitar como satisfatórios. 2 - O tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido. 3 - Se o ofendido ripostar, no mesmo acto, com uma ofensa a outra ofensa, o tribunal pode dispensar de pena ambos os agentes ou só um deles, conforme as circunstâncias.». 8.2.2. O elemento literal da interpretação Sendo as palavras o instrumento do legislador para dar expressão à criação legislativa, a descrição do tipo objetivo do artigo 187.º delimita as condutas puníveis ao descrevê-las como afirmação ou propalação de factos inverídicos, sendo certo que, em termos gramaticais, semânticos, afirmar significa declarar com firmeza, dizer (algo) assumindo o caráter de verdade do que é dito, sustentar, asseverar; assegurar a veracidade ou a existência de (algo); já propalar significa tornar público, divulgar, espalhar, reiterar (v. Dicionário Houaiss), propagar (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001. Por outro lado, ao reduzir o objeto da conduta típica a factos, o tipo legal exclui da incriminação legal meras valorações ou juízos sobre as pessoas e entidades protegidas, o que aliado às particularidades do bem jurídico protegido, que não se confunde com a honra, marca a individualidade deste crime em face dos crimes contra a honra propriamente ditos. No que concerne à questão fulcral para a presente fixação de jurisprudência, parece claro que tanto a afirmação de factos como a sua propalação, a que se refere o artigo 187.º, n.º 1, abrangem, no seu significado comum na língua portuguesa, pelo menos a utilização de palavras, ou seja, a linguagem verbal no seu sentido mais amplo (com que se distingue de outras linguagens, formas ou meios de expressão - linguagem gestual, por imagens, por sons, entre outras), como vimos, abarcando, pois, a expressão por meio de palavras ditas ou escritas. Ao reportar-se à afirmação ou propalação de factos, sem outras especificações quanto ao meio de expressão usado pelo agente, o tipo legal refere-se na sua literalidade, no seu sentido mais comum, pode dizer-se mesmo no seu sentido mínimo, pelo menos à afirmação ou propalação de factos através de palavras, sejam elas ditas ou escritas. Por isso, no que importa à presente fixação de jurisprudência (sem cuidar, pois, de eventuais problemas interpretativos relativamente a linguagens diferentes da linguagem verbal em sentido amplo), a letra do artigo 187.º não limita a incriminação a uma das duas formas da expressão verbal, nomeadamente à expressão oral, pois afirmar ou propalar factos alberga no seu sentido comum tanto a forma oral como a forma escrita. 8.2.3. No mesmo sentido do elemento literal, apontam outros elementos da interpretação, associados às formas de proteção do bem jurídico visadas pela incriminação do artigo 187.º, relativamente ao qual será consensual a consideração de que o mesmo artigo protege, como bem jurídico, a credibilidade, prestígio e confiança dos organismos e serviços que exerçam autoridade pública, bem como de instituição ou corporação, independentemente de exercício de poderes de “imperium”. Esta proteção faz-se mediante a incriminação da afirmação ou propalação de factos inverídicos capazes de ofender o bem jurídico protegido, com o que não se exige a efetiva lesão do bem jurídico (pelo que não é um crime de dano), nem a efetiva colocação em perigo do bem jurídico protegido (por isso não é um crime de perigo concreto ), embora não se baste com a mera potencialidade abstrata de lesão do bem jurídico pelos factos inverídicos afirmados ou propalados, exigindo-se a comprovação, no caso concreto, da aptidão genérica daqueles factos para lesar a credibilidade, o prestígio ou a confiança, respetivas. O que leva a considerá-lo, de acordo com a classificação dogmática dos crimes de perigo em crimes de perigo abstrato, de perigo abstrato-concreto e de perigo concreto, entre os chamados crimes de perigo abstrato-concreto, também designados pelas noções próximas de crime de aptidão ou de perigo hipotético. Sendo assim, desde que os factos inverídicos concretamente imputados ou propalados sejam aptos para ofender o bem jurídico concretamente colocado em perigo com as palavras expressas pelo agente, faltaria explicação minimamente plausível para que as palavras proferidas oralmente preenchessem o tipo legal mas tal não sucedesse com as palavras escritas. Tal diferença de tratamento representaria clara contradição de valorações, pois deixaria de punir-se a imputação e propalação de factos através de meio (a escrita) mais frequente face às ofensas praticadas por via oral, que tendem a ser residuais, como deixariam de punir-se as condutas potencialmente mais lesivas (por meio da escrita), quer por via da prática do crime simples (187.º, n.º 1), quer do crime qualificado pelo artigo 183.º, n.º 1, al. a) (meios que facilitem a sua divulgação) e n.º 2 (através de meio de comunicação social), ex vi do artigo 187.º, n.º 2. 8.2.4. Apreciação do argumento assente na ausência de remissão do artigo 187.º, n.º 2, para o artigo 182.º, assumido pelo acórdão fundamento. Reconhecido que, do ponto de vista semântico, a afirmação ou propalação de factos coloca no mesmo plano a palavra oral e a palavra escrita, na medida em que ambas as formas de expressão são igualmente abrangidas pelo significado corrente que lhes é reconhecido - tanto se afirmam ou propalam factos inverídicos oralmente como por escrito –, como vimos, e que do ponto de vista sistemático a exclusão da incriminação da palavra escrita constituiria verdadeira contradição entre as valorações subjacentes à incriminação do artigo 187.º, é altura de analisarmos o argumento retirado pelo acórdão fundamento da ausência de remissão do artigo 187.º, n.º 2, para o artigo 182.º, que parece estar na origem da sua posição no caso concreto. Argumento que, tendo presente o teor do artigo 182.º - «À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão» -, consiste na suposição de que a ausência de remissão do artigo 187.º, n.º 2, para o artigo 182.º, não poderia deixar de ser encarada como opção político-criminal do legislador de não punir no artigo 187.º ofensas praticadas por escrito ou outros meios de expressão, como gestos, imagens ou quaisquer outras, não podendo considerar-se, assim, penalmente protegida a ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva cometida por escrito, gesto ou imagem, sob pena de violação do princípio da legalidade. Vejamos então o que dizer deste argumento. 8.2.4.1. O raciocínio subjacente à posição assumida pelo acórdão fundamento, encontra-se sumariamente explicitado no seguinte trecho de Renato Militão1/2 « … tal como sucede nos crimes de difamação e de injúria, a prática do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva [artigo 187.º ] implica necessariamente o uso da palavra dita» -, raciocínio que pressupõe que o texto dos artigos 180.º e 181.º, por um lado, e do artigo 187.º, por outro, exprimiriam de modo gramaticalmente equivalente entre si que as respetivas condutas típicas apenas abrangem a utilização da palavra dita ou falada. Com efeito, só desse modo pode dizer-se com o autor que o (“necessário”) alargamento das margens da punibilidade representado pelo artigo 182.º relativamente aos artigos 180.º (Difamação) e 181.º (Injúria), é igualmente indispensável para a incriminação pelo artigo 187.º de ofensas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão. Este raciocínio assenta, logicamente, em duas premissas, que se impunha demonstrar: - A prática dos crimes de difamação e de injúria sem a equiparação operada no artigo 182.º, implica necessariamente (exclusivamente) o uso da palavra dita ou falada; - Também a prática do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva [artigo 187.º] sem a equiparação operada no artigo 182.º, implica necessariamente (exclusivamente) o uso da palavra dita ou falada. Ora, antecipando conclusões a benefício de maior clareza do raciocínio, a demonstração destas premissas não foi procurada pela posição assumida no acórdão fundamento e, em verdade, estas premissas não são confirmadas pela sua análise. 8.2.4.2. Desde logo, mesmo que pudesse afirmar-se que do texto dos artigos 180.º e 181.º resulta, gramaticalmente, que os crimes de difamação e injúria implicariam necessariamente o uso da palavra dita ou falada (o que nos parece muito duvidoso como, sumariamente veremos), a verdade é que a análise perfunctória da letra do artigo 187.º permitiria concluir (tal como fez o acórdão recorrido e os que o antecederam), que o texto desta norma não limitava gramaticalmente a conduta típica às ofensas praticadas através da palavra falada. Com efeito, a conduta típica objetivamente descrita artigo 187.º, n.º 1, - afirmação ou propalação de factos inverídicos - abrange indistintamente tanto as ofensas proferidas oralmente (verbalmente, na letra do artigo 182.º) como as feitas por escrito, de acordo com o significado comum das palavras na língua portuguesa, tal como vimos a propósito do elemento literal ou textual da interpretação do artigo 187.º. Assim, o primeiro reparo de ordem metodológica a fazer ao entendimento assumido pelo acórdão fundamento, é que este não procurou sequer demonstrar a suposta similitude entre os textos da incriminação da difamação e da injúria e da norma incriminadora da ofensa a organismo, serviço ou pessoas coletiva, pelo que ficou por demonstrar a premissa em que assentou a conclusão – explícita ou implícita - de que a prática do crime tal como prevista no artigo 187.º, n.º 1, implica necessariamente o uso da palavra dita. E tanto bastaria para que, em interpretação metodologicamente adequada, se afastasse a interpretação da norma incriminadora do artigo 187.º seguida pelo acórdão fundamento por respeito à relevância da letra da lei como significado mínimo imposto pelo princípio da legalidade na sua vertente nullum crimen sine lege strita, pois a letra do artigo 187.º não permite aquela conclusão, como vimos. 8.2.4.3. No entanto, também a interpretação da letra dos artigos 180.º e 181.º conduz a idêntica conclusão quanto ao infundado da primeira das premissas supra identificadas, apesar de o texto do artigo 182.º sugerir, em termos literais e lógicos, que os crimes de difamação e injúria implicariam necessariamente o uso da palavra dita ou falada ao equiparar à difamação e injúria verbais (orais) todos os restantes meios de expressão, incluindo a escrita, potenciando, assim, o risco de se dar por demonstrado o que se impunha demonstrar, pelo que não pode tomar-se aquela hipótese interpretativa como certa. Com efeito, a análise gramatical dos respetivos textos não confirma que as palavras usadas nos artigos 180.º e 181.º limitem a incriminação à expressão oral (contrariamente ao fortemente induzido pelo artigo 182.º), desde logo porque o artigo 180.º descreve a conduta objetiva do crime de difamação como sendo a de alguém que, dirigindo-se a terceiro, impute a outra pessoa um facto ou formule sobre ela um juízo, ou reproduza tal imputação ou juízo, o que, do ponto de vista semântico, não circunscreve a conduta típica à utilização da palavra e, menos ainda, à palavra dita, não escrita. Por outro lado, o artigo 181.º, que descreve a conduta típica objetiva do crime de injúria como consistindo na imputação presencial de factos a outra pessoa ou dirigindo-lhe palavras, uns e outras ofensivos da sua honra e consideração, sempre contempla, no mínimo, tanto a palavra falada ou dita como a palavra escrita, pois nada na letra e na razão de ser do preceito afastariam a hipótese de alguém dirigir presencialmente a outro palavras escritas, mesmo sem a equiparação do artigo 182.º. Por último, sempre se diga que os trabalhos preparatórios disponíveis não permitem descortinar razões particulares que pudessem ter levado o legislador a adotar o sentido mais restrito de difamação e injúria verbais (no sentido de palavra falada ou dita) como termo de equiparação no artigo 182.º, apesar de os artigos 180.º e 181.º não circunscreverem a sua previsão à forma mais restrita de praticar a ofensa (oral). Da letra dos artigos 180.º e 181.º resulta, antes, que o legislador terá construído os tipos legais de difamação e de injúria como crimes de realização livre, rectius, não vinculada à expressão oral (no que aqui importa), conforme reconhece Faria Costa (in Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª ed., 2012, p. 939) e afirmava igualmente, por outras palavras, Maia Gonçalves (Código penal português, 8.ª edição, 1995, p ob. cit. p. 661 ao referir que os artigos 180.º e 181.º “…não particularizam qualquer tipo de execução do crime”. Parece dever concordar-se, então, com a opinião destes autores quando não identificam a razão de ser da norma de equiparação com a necessidade estrita de assegurar a punição da difamação e da injúria através do alargamento da punibilidade tal como esta se encontraria efetivamente prevista nos respetivos tipos legais (artigos 180.º e 181.º). Parece mais plausível que o legislador, desde momento recuado dos trabalhos preparatórios do C. Penal de 1982, teve sobretudo a preocupação de «…tornar claro e inequívoco que as difamações e as injúrias levadas a cabo através de escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão são, na verdade, verdadeiros e reais crimes contra a honra” – Faria Costa, ob. e loc. citado. Preocupação de abrangência e completude na incriminação dos crimes de Difamação e Injúria que terá sido genericamente assumida pelo legislador, sem cuidar de eventual discrepância ou redundância entre a letra dos artigos 180.º e 181.º, por um lado, e do artigo 182.º por outro, pelo menos em relação a algum dos meios de expressão neste referidos, justificando-se assim, pelo menos em parte, as palavras de Maia Gonçalves, para quem o artigo 182.º «…afigura-se desnecessário, porque os anteriores, relativos à difamação e à injúria, não particularizam qualquer meio de execução do crime [revelando-se no entanto] a preocupação de colmatar brechas numa matéria em que a imaginação tem sido fértil em descobri-las …»– cf. ob. citada p. 661. A presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do C. Civil) não pode deixar de ceder perante o, decisivo, elemento literal das normas incriminadoras corroborado por todos os demais elementos da interpretação. 8.2.4.5. Assim, da apreciação do argumento assumido pelo acórdão fundamento no sentido de a falta de remissão do artigo 187.º, n.º 2 para o artigo 182.º implicar que o artigo 187.º, n.º 1, não previsse a incriminação da ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva praticada por escrito ou por algum dos outros meios previstos no mesmo artigo 182.º, sob pena de violação do princípio da legalidade, concluímos que aquele argumento parece ficar a dever-se a um duplo viés, lógico e metodológico, em que incorreu a posição jurídica assumida no acórdão fundamento, não podendo retirar-se dele a conclusão que fundamentou a decisão ora em oposição com a proferida no acórdão recorrido. 8.2.5. Origem do artigo 187.º. Vejamos agora se os respetivos antecedentes históricos podem corroborar as anteriores conclusões no sentido da autonomia e autossuficiência do artigo 187.º face aos artigos 180.º, 181.º e 182.º. 8.2.5.1. O artigo 187.º foi introduzido no Código Penal pela revisão levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, dispondo a versão originária do Código Penal de 1982 de disposição equivalente, a qual também não contemplava especialmente a punição de crimes contra a honra das pessoas coletivas, embora se considerasse, nas palavras de Maia Gonçalves (ob. cit. p. 667), que «… durante a vigência da versão originária do Código de 1982 tanto a doutrina como a jurisprudência inclinaram-se acentuadamente para a [possibilidade de as pessoas coletivas serem sujeitas passivo dos crimes de difamação e injúria]». Os trabalhos preparatórios do C. Penal de 1982 revelam, porém, nas «Atas das 6.ª e 7.ª sessões, que tiveram lugar em 30.06.1966», que o Anteprojeto incluía então no artigo 183.º um tipo legal de crime com a epígrafe, “Ofensa de pessoas coletivas” com texto próximo do atual artigo 187.º. Norma que coexistia naquele Anteprojeto com os tipos legais de Difamação (artigo 176.º) e Injúria (artigo 177.º) e ainda com o artigo 178.º (sem epígrafe) que tinha praticamente a mesma redação do atual artigo 182.º, a que correspondia o artigo 166.º da versão originária do C. Penal de 1982, cujo teor era o seguinte: - «À difamação ou injúria verbais serão equipadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão». O referido artigo 183.º do Anteprojeto de 1966 (idêntico ao atual artigo 187.º do C. Penal) não viria a passar para o novo Código Penal de 1982, sem que - tanto quanto podemos ver - aqueles trabalhos deixem rasto das razões da opção de não incluir no código a incriminação da “Ofensa de pessoa coletiva” ou equivalente. Porém, a coexistência no Anteprojeto de 1966 de norma praticamente igual ao atual artigo 182.º com um preceito que incriminava então a Ofensa de pessoa coletiva e, ainda, com as normas incriminadoras da Difamação e da injúria, não deixa de ser elemento a ter em conta na apreciação das relações eventualmente existentes (ou não) entre o artigo 182.º e a incriminação do 187.º, no atual C. Penal. Isto é, constituindo aqueles antecedentes razão para afastar eventual hipótese de mero lapso ou inconsideração do legislador de 1995 ao introduzir no C. Penal o atual 187.º sem remeter no seu n.º 2 para o artigo 182.º (atual), há que encarar seriamente a hipótese de aquela ausência de remissão ficar, antes, a dever-se a duas hipóteses alternativas, que se excluiriam reciprocamente: - A razões substantivas que justificassem a limitação da incriminação do artigo 187.º às ofensas orais, razões essas que não se vislumbram nem o acórdão fundamento adianta; ou - Ao propósito legislativo deliberado (já aparentemente presente no Anteprojeto, em 1966), de deixar ao atual artigo 187.º, enquanto norma incriminadora, a integral definição da conduta punível com base nos elementos pertinentes da interpretação (com natural relevância para o elemento literal). Em todo o caso, independentemente de se lograr, ou não, o apuramento das razões concretas que levaram o legislador histórico a não prever no n.º 2 do artigo 187.º remissão para a norma de equiparação do artigo 182.º, era esta a situação a encarar objetivamente de acordo com as regras da interpretação, sendo certo que não se tratava sequer de situação inédita envolvendo estes tipos penais. Na verdade, o C. Penal de 1886 também não dispunha de norma de equiparação equivalente ao artigo 182.º do C. Penal/1982, quer relativamente à incriminação da difamação e da injúria, em geral, quer à incriminação da “Difamação e injúria contra corporação com autoridade pública” prevista no artigo 411.º do C. Pena/1886 (que abrangia parte da incriminação do atual artigo 187.º). Assim, sabendo-se que Anteprojeto do C. Penal de 1982 incluía em 1966 preceito semelhante ao atual artigo 187.º (que coexistia com a incriminação autónoma da Difamação e da Injúria), e que a norma do artigo 178.º do anteprojeto, em 1966, correspondente ao atual artigo 182.º (referia-se apenas a estes dois tipos de crimes , deixando de fora qualquer referência ao crime de Ofensa de pessoas coletivas” que constava em 1966 do artigo 183.º do Anteprojeto de então – vd. supra), nada teria de surpreendente ou excecional que o legislador de 1995, partindo da autonomia e autossuficiência do artigo 187.º atual, tivesse deixado o artigo 182.º fora das remissões do n.º 2 daquele artigo. 8.2.5.2. Posto isto, cabe ainda fazer uma referência breve ao contributo dos trabalhos da comissão de revisão do Código Penal de 1982 que antecederam o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, para melhor enquadramento das questões que se discutem a propósito do bem jurídico protegido pelo artigo 187.º, ainda que tal definição só lateralmente contribua para a presente fixação de jurisprudência, ao permitir compreender mais claramente a individualidade, amplitude e relevância da incriminação do artigo 187.º entre o capítulo dos crimes contra a honra em que se insere. E, nessa medida, a autonomia e a eventual exclusividade desta norma incriminadora face aos crimes de Difamação e Injúria e, portanto, face à norma de equiparação do artigo 182.º, para que também por esse motivo o artigo 187.º não teria de remeter. Com efeito, mostrou-se consensual nos trabalhos de revisão do C. Penal de 1982, a ideia de que com a nova norma incriminatória (atual artigo 187.º) protegiam-se valores que não se incluíam, em rigor, no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria (F. Dias), protegendo-se antes um bem jurídico especial (Ferreira Ramos), algo de mais (ou algo diferente) do que a honra (F. Dias), como seriam interesses patrimoniais postos em causa pela ofensa típica, ainda que, nas palavras de Sousa Brito, seja possível encontrar no âmbito de proteção da norma uma dupla faceta: a já assinalada, mas também algo de muito semelhante à honra quando está em causa ofensa a uma corporação ou organismo (cf. Atas citadas pp 278-9 e 504, sendo os interpolados da nossa responsabilidade). Costa Andrade justificava a inserção do artigo 185.º de então naquele capítulo [Dos crimes contra a honra], por razões de contiguidade sistemática. Em aberto fica(va), ainda, a questão de saber se as pessoas jurídicas podem ser sujeito passivo não só do tipo legal de crime do artigo 187.º , mas também do crime de difamação do artigo 180.º (e, quiçá, do crime de injúria do artigo 181.º), o que é indissociável da questão de saber se a proteção contra as ofensas à credibilidade, o prestígio ou a confiança dispensada pelo artigo 187.º, esgotará o âmbito de proteção penal das pessoas jurídicas contra as ofensas à sua consideração social, excluindo, pois, a possibilidade de as pessoas coletivas e demais sujeitos passivos do crime neste artigo 187.º serem sujeito passivo dos crimes de difamação e injúria e, consequentemente, de serem puníveis, por essa via, os juízos de valor, as meras opiniões, que o artigo 187.º indubitavelmente exclui. Afigura-se-nos, porém, que a questão da compatibilidade da incriminação do artigo 187.º com a incriminação de ofensa a toda e qualquer pessoa coletiva pelas normas incriminatórias dos artigos 180.º (difamação) e 181.º (Injúria), não dispensa discussão mais aprofundada, que não devemos assumir aqui. 8.2.5.3. Antes de dar por concluído o breve excurso sobre as origens do artigo 187.º, cabe apenas lembrar que a sua versão atual foi introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, que alterou a ordem da epígrafe originária («Ofensa a pessoa coletiva, instituição, corporação, organismo ou serviço») bem como a anterior ordem dos sujeitos protegidos, ficando agora claro que a referência legal ao exercício de autoridade pública respeita apenas a organismo ou serviço, nisso se traduzindo a única alteração introduzida pelo legislador de 2007, conforme pode ler-se da exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 98/X que deu origem à Lei 59/2007: « No âmbito dos crimes contra a honra, é introduzida apenas uma alteração, na descrição típica da ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço. Distingue-se entre pessoa colectiva, instituição ou corporação, por um lado, e organismo ou serviço, por outro, apenas se exigindo quanto a estes últimos o exercício de autoridade pública. Superam-se, assim, divergências sobre o âmbito da norma e reconhece-se que todas as pessoas colectivas podem ser atingidas na sua credibilidade e merecem idêntica tutela.». 8.2.6. Posto isto, deixam-se então, sumariamente, as principais razões que fundamentam a fixação de jurisprudência no sentido do decidido pelo acórdão recorrido e acórdãos das relações que o antecederam: - Contrariamente ao entendimento do acórdão fundamento, a ausência de remissão do artigo 187.º, n.º 2, para o artigo 182.º, é irrelevante para a determinação da conduta típica de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva praticada por escrito. - Metodologicamente, a interpretação da norma incriminadora contida no artigo 187.º deve partir da sua letra, resultando do elemento literal da interpretação, corroborado pelos demais elementos da interpretação apreciados, que a afirmação e a propalação de factos prevista no artigo 187.º, n.º 1, abrangem no seu significado comum a utilização de palavras, ou seja, a linguagem verbal no seu sentido mais amplo, que abarca tanto a expressão por meio de palavras ditas como escritas, independentemente do que possa entender-se, igualmente por via de interpretação do artigo 187.º, quanto à tipicidade da utilização de gestos imagens ou qualquer outro meio de expressão, aspeto de que não se cuida no presente acórdão. 8.2.7. Assim, mantém-se o acórdão recorrido, impondo-se fixar jurisprudência no sentido de o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punível pelo artigo 187.º do Código Penal, poder ser cometido através de escrito. III - DISPOSITIVO Em face do exposto, o Pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, decide fixar a seguinte jurisprudência, confirmando, assim, o acórdão recorrido: «O crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punível pelo artigo 187.º do Código Penal, pode ser cometido através de escrito.» Sem custas. * Cumpra-se o disposto no n.º 1 do artigo 444.º do CPP. Supremo Tribunal de Justiça, 8 de novembro de 2023 António Latas (Relator) Jorge Gonçalves João António Gonçalves Fernandes Rato Vasques Osório Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo Albertina das Dores Nunes Aveiro Pereira Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira José Luís Lopes da Mota Nuno António Gonçalves Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida Sénio Manuel dos Reis Alves Ana Maria Barata de Brito Orlando M. J. Gonçalves Pedro M. Branquinho Ferreira Dias Leonor do Rosário Mesquita Furtado Teresa Almeida Ernesto Carlos dos Reis Vaz Pereira Agostinho Soares Torres Maria do Carmo Silva Dias (voto vencida, conforme declaração que junto) ******* Declaração de voto de vencida Proc. n.º 5259/19.7T9CBR.C1-A.S1 Voto vencida, uma vez que entendo (com o devido respeito, que é muito, por opinião diversa) que o crime previsto no n.º 1 do artigo 187.º (Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva) do Código Penal (e, portanto, ressalvada a situação prevista na alínea a) do seu nº 2), não pode ser cometido através de escrito. Vejamos. Estamos no domínio do direito penal substantivo, onde a definição do tipo legal cabe em exclusivo ao legislador ordinário e, não ao intérprete, não sendo admissíveis interpretações que alarguem o âmbito de punibilidade, isto é, são proibidas interpretações que possam ser tidas como extensivas in malam partem e, nessa medida, ofensivas do princípio da legalidade (art. 1.º, n.º 1 e n.º 3, do CP)1. Trata-se de matéria sensível uma vez que está em causa um dos princípios fundamentais do Direito Penal, por todos conhecido, “nullum crimen sine lege praevia scripta”, com assento constitucional (art. 29.º, n.º 1 e n.º 3, da CRP) que pressupõe, em resumo, a existência de uma lei formal prévia que criminalize a conduta, exigindo-se clareza na definição do tipo legal, particularmente uma nítida e bem determinada descrição do facto punível, desde logo para criar segurança jurídica, até dos próprios cidadãos perante o poder punitivo estadual, para além de se esperar a devida separação de poderes (no que aqui agora interessa, entre o poder legislativo e o poder judicial), assim também se evitando, ao mesmo tempo, inconstitucionalidades. Na oposição de julgados aqui em apreciação, importa saber (na nossa perspetiva) se, perante os termos (menos claros) da descrição do facto punível do tipo legal previsto no art. 187.º do CP, o segmento “afirmar ou propalar” factos inverídicos contida no seu n.º 1 encerra ou não, em si mesmo, uma lacuna de punibilidade, ou melhor, uma lacuna de incriminação (por não consentir que nele se inclua a comissão através de escrito ou outras formas equiparadas não previstas, à semelhança do que se passa na norma de equiparação aludida no art. 182.º do CP). Será que a falta de concretização ou a não utilização de outras expressões (diferentes de “afirmar ou propalar”) menos ambíguas dirão alguns (ou, acrescentamos nós, que fossem menos vocacionadas para a expressão oral como estas são), significam que o legislador pretendeu admitir todos os meios ou até não precisava de dizer mais nada ou, antes quis limitar, na sua forma mais simples (a prevista no art. 187.º, n.º 1, do CP), a punibilidade do crime considerando a qualidade do sujeito passivo, sendo que na forma agravada, prevista na alínea a), do n.º 2, do mesmo art. 187.º do CP, com a remissão correspondente para o art. 183.º, do mesmo código, portanto, no caso do crime cometido com publicidade e calúnia, então já admitiu, além da forma verbal, também a forma escrita (como acontece, por exemplo, quando o sujeito ativo escreve uma notícia no jornal, cometendo o crime do art. 187.º do CP)? Ou seja, precisando melhor: será que no n.º 1 do art. 187.º (ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva) do CP, ao prever esse crime, na sua forma simples, desenhou-o de forma a não poder ser cometido através de escrito (por a letra da lei, no seu n.º 1, não comportar, nem incluir esse meio de ação na descrição típica de “afirmar ou propalar” factos inverídicos…) e, no art. 187.º, n.º 2, al. a), do CP, ao prever a forma qualificada ou agravada do mesmo crime (quando refere que é correspondentemente aplicável o art. 183.º do mesmo código), aí sim, admite que, também, pode ser cometido através de escrito? Poder-se-á dizer que, mesmo na forma simples, se deveria aceitar hoje em dia a interpretação (como a defendida neste AFJ) no sentido de estar incluído o cometimento do crime através de escrito. Mas, na nossa perspetiva, como explicaremos a seguir, foi intenção do legislador não punir o crime, quando cometido através de escrito, na sua forma simples (portanto na previsão apenas do art. 187.º, n.º 1, do CP), atento o princípio da intervenção mínima, aliado ao caráter fragmentário do direito penal e, considerando igualmente a própria qualidade do sujeito passivo, tendo presente que neste caso tem de haver uma maior tolerância perante a crítica feita a uma “entidade abstrata”2 e, daí também, a necessidade de compatibilizar outros direitos constitucionais que estejam em conflito. Com efeito, nas sociedades democráticas, a crítica que é feita, por exemplo, a “entidades abstratas”, por poder envolver matéria de interesse público, tem limites mais amplos (do que a de um particular), na medida em que os seus atos estão sujeitos a um controlo atento das pessoas que compõem a comunidade. O que igualmente significa que terá de existir uma maior tolerância perante a crítica feita a uma entidade abstrata e daí, também, a necessidade de compatibilizar os direitos constitucionais em conflito3. Claro que o facto de qualquer pessoa ser titular da liberdade de expressão e, nessa medida, ser livre de criticar matérias de interesse coletivo, exige que «a expressão da crítica não ultrapasse determinados limites»4. De qualquer modo, não se pode confundir a instituição/pessoa coletiva com quem a representa ou nela exerce determinadas funções. Nessa perspetiva, importa distinguir quando se está perante um crime de injúria (art. 181.º do CP) ou difamação (art. 180.º do CP), eventualmente agravado (art.184.º do CP) ou quando se está perante o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva (art. 187.º do CP). Podemos aceitar que, atualmente, face à evolução e acesso de todos às tecnologias de informação (que estão em constante evolução), maiores danos podem surgir para o bem jurídico protegido, mesmo nessa dimensão mais simples (art. 187.º, n.º 1, do CP), existindo, assim, uma lacuna incriminadora que, foi criada e apenas pode ser superada/ultrapassada pelo legislador (Assembleia da República – art. 165.º, n.º 1, al. c), da CRP), sob pena de violação do princípio da legalidade e do princípio da separação de poderes, sendo este último quando, como aqui sucede, se pretende fazer uma interpretação que vai além do teor literal da norma e do limite possível das conclusões interpretativas teleológicas que dela se podem retirar. Diremos, ainda, que na interpretação do tipo legal não se pode esquecer o princípio da dignidade penal e que a intervenção penal ocorre como ultima ratio, não podendo o juiz substituir o legislador, alargando as margens da incriminação, aplicando a norma penal para além do que é consentido pelo texto legal. E, ainda que o crime previsto no art. 187.º do CP, tenha elementos (como é natural e próprio de cada singular incriminação) que o distinguem dos crimes de difamação (art. 180.º do CP) e de injúria (art. 181.º do CP), o que é certo é que os três (tal como o crime previsto no art. 185.º do CP) se inserem sistematicamente no capítulo “dos crimes contra a honra”, o que significa que o legislador encontrou, também, entre eles pontos comuns que fez com que os agrupasse dentro da mesma área (capítulo VI do título I do livro II do Código Penal). Vejamos então o crime previsto no art. 187.º do CP, tendo em atenção que não se pode dissertar sobre a sua dimensão e versatilidade, sem previamente o caracterizar minimamente. O núcleo do bem jurídico que se quer proteger nesta incriminação é, como diz Faria Costa5, “a ideia de bom nome” do sujeito passivo (que, desde a reforma de 2007, é o organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação), bom nome que se assume “como uma realidade dual. De um lado, suporte indesmentível para que a credibilidade, o prestígio e a confiança possam existir. De outra banda, resultado dessas mesmas e precisas realidades ético-socialmente relevante”. Acrescenta o mesmo Autor, no seu comentário ao art. 187.º, ter como «ponto de referência, para a compreensão e determinação do bem jurídico em estudo a ideia de exterioridade. O que conta, neste contexto, é a imagem real que os “outros” têm da pessoa colectiva. O seu prestígio, credibilidade e confiança dependem muito da forma como a comunidade valora as actuações da pessoa colectiva ou instituição», acabando por concluir que é a “valoração que a comunidade faz da actuação” do sujeito passivo “que constitui a pedra angular para uma correcta e ajustada compreensão do bem jurídico em análise.” Sujeito ativo do crime previsto no art. 187.º, n.º 1, do CP é qualquer pessoa (trata-se, nessa perspetiva, de crime comum) e sujeito passivo é claramente, desde a reforma de 2007, “organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação”. Portanto, no tipo previsto no artigo 187.º do CP o que se protege é a entidade coletiva (organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação), sendo que quem a representa, caso seja afetada na sua honra e consideração, é protegido pelos crimes de difamação e injúria, eventualmente (caso se verifiquem os respetivos pressupostos) agravados. Para que se verifique o tipo objetivo de ilícito é necessário o preenchimento dos seguintes pressupostos: a) sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos; b) que esses factos inverídicos (que foram afirmados ou propalados pelo sujeito ativo sem ter fundamento, para, em boa fé, os reputar verdadeiros) são capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo. Resumidamente diremos que a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao sujeito passivo aferem-se em função da sua atuação e modo como é visto pela comunidade (considerando o juízo que é feito pelo homem médio). A credibilidade exige cumprimento da lei, com seriedade, isenção e eficiência, o prestígio tem a ver com as qualidades do sujeito passivo, com o seu mérito designadamente quando comparado com outras entidades que desempenham idêntica atividade e a confiança com o reconhecimento do seu valor, atenta a forma correta como atua6. A nível do tipo subjetivo exige-se o dolo genérico em qualquer das suas modalidades. Trata-se de crime de mera atividade (o que significa que, a sua consumação, não depende da verificação de um dano), assumindo igualmente a categoria de crime abstrato-concreto (na medida em que basta que a conduta/ação seja apta ou idónea a criar perigo para o bem jurídico protegido)7. Do exposto resulta, que nesta incriminação (art. 187.º, n.º 1, do CP) pune-se quem afirmar ou propalar (“sem ter fundamento, para, em boa fé, os reputar verdadeiros”) “factos inverídicos” que são aptos ou idóneos (“capazes”) de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo. Tal como o tipo está construído, diremos que “afirmar ou propalar” (factos inverídicos) pressupõe que a ofensa ao sujeito passivo seja feita de forma oral ou verbal (n.º 1), tanto mais que, o n.º 2 do art. 187.º do CP não remete para o disposto no art. 182.º do CP (na qual se estabelece que “À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”), o que significa que o legislador não quis que esta última referida norma fosse também correspondentemente aplicável à incriminação ora em análise (art. 187.º do CP). O que também é reforçado pelo facto de, mesmo em relação aos crimes de difamação e de injúria (arts. 180º e 181º do CP), caso não existisse a equiparação consagrada no art. 182º do CP, a difamação ou injúria feitas, por exemplo, através de escrito (que é o que nos interessa aqui), também não eram punidas (por isso o legislador teve a necessidade de, em relação àquelas incriminações, fazer a referida equiparação)8. Aliás, como diz Paulo Pinto de Albuquerque9, “A norma remissiva do artigo 187.º, n.º 2, não inclui o artigo 182.º, pelo que a ofensa da entidade abstrata cometida por escrito, gesto ou imagem não está penalmente protegida. Outra interpretação violaria o princípio da legalidade.” Na mesma linha, a propósito do art. 182.º do CP, o mesmo Autor10 nota que “A cláusula de equiparação visa prevenir problemas colocados pelo princípio da legalidade na interpretação dos artigos precedentes.” E, não é de estranhar esse entendimento até porque também não integra o tipo objetivo de ilícito do art. 187.º do CP afirmar ou propalar “juízos11” inverídicos (mesmo sem ter fundamento, para, em boa fé, os reputar verdadeiros), ainda que esses juízos sejam capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo que, neste caso, é uma entidade abstrata (e não uma pessoa singular). O facto dessa conduta não ser punida pelo tipo autónomo previsto no art. 187.º do CP, não significará que não possa ser punida por outra incriminação, desde que se verifiquem os respetivos pressupostos (e, vem isto a propósito, de se colocar a questão da pessoa coletiva poder ser sujeito passivo de crime de difamação, por exemplo, desde que estejam preenchidos todos os seus requisitos, tal como parte da doutrina reconhece e, ainda que a jurisprudência esteja dividida12). O que se compreenderá atenta a natureza e autonomia das incriminações que se inserem neste capítulo “dos crimes contra a honra”, respetivos bens jurídicos protegidos, relação de continuidade que poderá existir entre alguns deles e modo como podem ser executadas as ofensas. No caso particular do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva (art. 187.º do CP), até considerando a qualidade do sujeito passivo (que é uma “entidade abstrata”, com determinadas características que a distinguem da pessoa singular) a “ofensa” terá de assumir relevo bastante para se poder concluir que tem aptidão para afetar o bem jurídico protegido. E, essa idoneidade tem de existir mesmo na forma simples de cometimento do crime, ou seja, na previsão contida no art. 187.º, n.º 1, do CP, tendo presente, que considerando toda a engenharia interpretativa que for feita, respeitando o elemento literal da norma incriminadora, bem como os demais critérios de interpretação (art. 9.º do CC), não conseguimos descortinar no texto da norma que seja permitido ir além do uso da “palavra dita” (ou seja, quanto a nós, a interpretação consentida vai no sentido da conduta de “afirmar ou propalar” ser preenchida através da linguagem verbal no sentido estrito e, portanto, naturalmente em sentido oposto ao da linguagem escrita, únicos tipos de linguagem em discussão neste AFJ). Dir-se-á que, para o legislador, a conduta de “afirmar ou propalar” factos inverídicos na forma prevista no art. 187.º, n.º 1, do CP, só assume ressonância e tem idoneidade para afetar o bom nome do sujeito passivo (que aqui não é a pessoa individual, mas antes o organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação), sendo então merecedora de tutela penal, quando é feita verbalmente (sendo aqui indiferente a presença ou a ausência do sujeito passivo, que apesar de ser uma entidade abstrata, pode estar representada). Nada no texto da incriminação, considerando a sua configuração, a sua inserção sistemática, a sua natureza, o bem jurídico protegido, consente deduzir que, quando no n.º 1 do art. 187.º do CP, o legislador se refere a “afirmar ou propalar” factos inverídicos (…), está a admitir uma “realização ou execução livre”, por qualquer meio, designadamente, pelo escrito. Isto, até em contraponto, com a forma qualificada/agravada, onde aí sim, prevê que o mesmo crime possa ser cometido pela forma escrita (art. 187.º, n.º 2, al. a), do CP), estabelecendo que é “correspondentemente aplicável o disposto no artigo 183.º”. Veja-se que, nomeadamente, o art. 183.º, n.º 2, do CP, prevê o cometimento do crime através de meios da comunicação social (abrange, por exemplo, meios audiovisuais, que não apenas o escrito), o que traduzindo maior publicidade, merece maior punição/agravação. E, no art. 183.º, n.º 1, al. a), do CP, a conduta descrita (a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação) revela maior publicidade, o que agrava a conduta por atingir de forma mais intensa o bem jurídico protegido. Mas, no âmbito deste tipo de crimes, em que em geral está em causa o bom nome, protegidos sistematicamente no mesmo capítulo, apesar da singularidade que existe entre cada um deles, o legislador estabeleceu algumas normas comuns e, sabendo exprimir-se corretamente, quando quis referir-se a meios execução da conduta típica que atingem de forma mais intensa os bens jurídicos protegidos nas diversas incriminações, assim o referiu expressamente, nomeadamente, na previsão de agravações comuns para os diferentes tipos legais (como sucedeu, por exemplo, além do próprio art. 183.º, nos arts. 187.º, n.º 2, al. a) e 185.º, n.º 2, al. b), do CP). Também quando o legislador entendeu que um determinado crime podia ser cometido por qualquer meio (ou seja, que é de realização livre), assim o desenhou, o que sucedeu, particularmente no âmbito das incriminações que incluiu neste capítulo VI, com a prevista no art. 185.º (ofensa à memória de pessoa falecida) do CP, onde no n.º 1, desde a revisão de 1995, passou a prever expressamente: Quem, por qualquer forma, ofender gravemente a memória de pessoa falecida, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias. Repare-se que a revisão de 1995 foi precisamente a que introduziu o crime previsto no art. 187.º do CP, pelo que se o legislador quisesse que este fosse de realização livre, assim o teria desenhado (mas não foi isso que fez). Este entendimento também não é contrariado pelo argumento histórico, nomeadamente, no que se refere aos trabalhos preparatórios do CP de 1982, que tiveram lugar em 30.06.1966, indicados no AFJ, onde se previa o art. 183.º, “com texto próximo do atual”, embora apenas à forma simples do art. 187.º, n.º 1, do CP que, todavia, não passou para o CP, na versão de 1982. Aliás, posteriormente, na discussão dos trabalhos de revisão, particularmente em 27.03.1990, onde a incriminação já aparece com uma configuração mais próxima da atual, Jorge de Figueiredo Dias13, chama à atenção para a finalidade da nova norma penal (então art. 185.º), referindo que o objetivo era “criminalizar acções (os rumores), não atentatórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma determinada pessoa colectiva, valores que não se incluem, em rigor, no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria.”, acrescentando ainda Costa Andrade, nessa altura, que se justificava “a sua inserção neste capítulo por razões de contiguidade sistemática.” Portanto, neste capítulo “dos crimes contra a honra”, quando desenhou cada uma das incriminações que nele incluiu, o legislador estava bem ciente do modelo que deveria adotar para cada uma delas, sabendo exprimir-se corretamente e, quando quis configurar crimes de realização livre, assim os desenhou, como sucedeu com o previsto no art. 185.º do CP. Por isso, também, é que, quando desenhou os crimes de difamação e injúria, configurou-os baseando o seu preenchimento como verbais, cometidos por palavras, na forma oral (distinguindo-os por a conduta ilícita ocorrer essencialmente na presença ou na ausência do sujeito passivo, até tendo em atenção a natureza do bem jurídico protegido), mas utilizando outra norma (art. 182.º do CP) para alargar “as margens de punibilidade”. Essa norma (art. 182.º do CP) mostra bem (em contraponto) que os crimes de difamação e injúria foram concebidos pelo legislador como “verbais” (até tendo em atenção a época em que foram projetados, onde eram remotas e inacessíveis as TI) e, de todo o modo, não foram desenhados como de “realização livre”, pois, se assim fosse, bastava dar outra redação àquelas incriminações e, nem sequer era necessária a referida norma a fazer a equiparação (que então era destituída de sentido e inútil). A própria existência do art. 182.º do CP contraria a ideia de que os crimes de difamação e de injúria são de realização livre e, nessa medida, podemos afirmar que não se pode transpor idêntico raciocínio para a incriminação prevista no art. 187.º do CP e, chegar mesmo a sustentar que, era “irrelevante” qualquer remissão para o art. 182.º do CP, “para a determinação da conduta típica da ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva praticada por escrito.” Ao contrário, diremos que as incriminações previstas apenas nos arts. 180.º, 181.º e 187.º, n.º 1, deste capítulo “dos crimes contra a honra”, na sua forma simples, perante os critérios interpretativos apontados, foram desenhadas para serem cometidos por palavras, na forma verbal, oral e, daí a necessidade da norma do art. 182.º (equiparação) do CP, ainda que esta apenas abranja (por vontade do legislador) a difamação e a injúria verbais. Não conseguimos, pois, acompanhar o raciocínio daqueles que defendem que o crime previsto no art. 187.º, n.º 1, do CP, podia ser cometido por qualquer meio, dada a falta de especificação quanto ao meio de expressão usado pelo agente. É que o legislador no art. 187.º, n.º 1, do CP, especificou o meio de expressão usado pelo sujeito ativo: “afirmar ou propalar” factos inverídicos (…); o que não equivale a particularizar que seria através de escrito, como foi interpretado sem aquele mínimo de correspondência possível na letra da lei, em ofensa do princípio da legalidade, perante a referida lacuna de incriminação. Nessa perspetiva, entendo que o crime previsto no art. 187.º, n.º 1, do CP não pode ser cometido através de escrito (o que, de qualquer modo, não impede que, a conduta possa ser punida por outra incriminação, desde que se verifiquem os respetivos pressupostos para o efeito). * Processado em computador, elaborado e revisto integralmente por mim (art. 94.º, n.º 2, do CPP). * STJ, 08 de Novembro de 2023 Maria do Carmo Silva Dias ___________________________ 1. Ver, assim, também Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, Teoria Geral do Crime, 3ª edição, Universidade Católica Editora, Porto, 2016, pp. 175 e 176.↩︎ 2. Expressão usada por Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5ª edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2022, p. 829.↩︎ 3. Neste sentido, entre outros, Ac. do TEDH de 22.01.2015, no caso Pinto Pinheiro Marques c. Portugal.↩︎ 4. Neste sentido, entre outros, Acs. do TEDH de 20.04.2004, no caso Amihalachioaie c. Moldova e de 16.11.2004, no caso Karhuvaara e Iltalehti c. Finlândia.↩︎ 5. Faria Costa, in AAVV, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2012, pp. 982 e 983.↩︎ 6. Esclarece Faria Costa, ob. cit., pp. 986 e 987, que “Uma instituição é credível quando, pela actuação dos seus órgãos ou membros, se mostra cumpridora das regras, actua em tempo e de forma diligente e, sobretudo, quando a sua prática corrente se mostra séria e imparcial. Esta qualificação de imparcialidade é particularmente importante já que, como se sabe (…) parte do universo das instituições que estão aqui em causa tem que se inserir no exercício da autoridade pública. Uma instituição tem prestígio, sempre que, pelos comportamentos dos seus órgãos ou membros, ela se impõe, no domínio específico da sua actuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve. Uma instituição é digna de confiança quando pela sua génese e actuações posteriores se apresente, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar. Esta será talvez a qualificação que mais depende do juízo externo. Quer isto significar, de forma clara e indubitável, que a confiança é um valor que se pode construir mas está dependente, de maneira quase lábil e tantas vezes incontrolável, de representação externa que façam das instituições em apreço.”↩︎ 7. Ver Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 829.↩︎ 8. Assim, também, Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, Sociedade Editora, Lisboa, 2008, p. 487, aceitando (tal como refere Faria Costa) que o art. 182.º, é uma “norma de equiparação”, acrescentam que “os modelos desenhados nos artigos 180.º e 181.º reportam-se a comissão por palavras. Atribui-se agora à comissão por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão uma posição de equivalência em face daquelas. E é assim que, ao cabo, se faz um conjunto liberto de toda a execução vinculada, onde não falta mesmo uma cláusula geral.”↩︎ 9. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., 2022, p. 830.↩︎ 10. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., 2022, p. 820.↩︎ 11. O crime de difamação (art. 180º, nº 1, do CP) pune quem dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ofensivo da sua honra ou consideração, mas também a formulação sobre ela de um juízo ofensivo da sua honra ou consideração (ou, ainda, reproduzir uma tal imputação ou juízo).↩︎ 12. Ver Jorge de Figueiredo Dias, in Código Penal Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, Rei dos Livros, Lisboa, 1993, p. 279, Faria Costa, ob. cit., pp. 980 e 981, Oliveira Mendes, O Direito à Honra e A Sua Tutela Penal, Almedina, Coimbra, 1996, pp. 107 a 110 e, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 820, indicando jurisprudência em sentido contrário.↩︎ 13. Jorge de Figueiredo Dias, in Código Penal Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, cit. p. 279.↩︎ ______________________________________________________ 1. - Cf. Sobre a Tutela Penal da Honra das Pessoas Coletivas, Julgar Online, março de 2016, p. 33, continuando o autor o seu raciocínio nos seguintes termos: «Ora, o art. 187º, nº 2, do CP, remete para as normas do art. 183º e dos nºs. 1 e 2 do art. 186º desse Código, mas não já para a norma do art. 182º do mesmo diploma, a qual, como vimos oportunamente, amplia as margens da punibilidade da difamação e da injúria, equiparando à difamação e à injúria verbais as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão. Deste modo, numa louvável harmonização entre o direito à honra objetiva ou exterior das entidades coletivas e o direito de informar do agente e em obediência ao princípio da intervenção mínima do direito penal, o tipo objetivo do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva apenas pode ser representado por condutas verbais (86) (87)».↩︎ 2. Pinto de Albuquerque, por sua vez, refere-se à questão nos seguintes termos, «A norma remissiva do artigo 187º nº2 não inclui o artigo 182º, pelo que a ofensa de entidade abstrata cometida por escrito, gesto ou imagem não está penalmente protegida. Outra interpretação violaria o princípio da legalidade.». (Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa 2008. p, 509).↩︎