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Acórdão TR Évora de 2005-02-22

2914/04-1

TribunalTribunal da Relação de Évora
Processo2914/04-1
RelatorMaria Assunção Raimundo
DescritoresMandado de Detenção Europeu, Extradição
Data do Acordão2005-02-22
VotaçãoUnanimidade
Meio ProcessualMANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
DecisãoDeferida a Execução do Mandado de Detenção Europeu

Sumário

Não tendo Portugal nas declarações que fez à Decisão Quadro incluído nenhuma em conformidade com a norma descrita no art.º 32º e tendo optado pela aplicação imediata da Decisão Quadro, regulando expressamente que o regime do Mandado de Detenção Europeu é aplicado a todos os pedidos recebidos após 1 de Janeiro de 2004 – art.º 40º da Lei 65/2003, de 23-8, que aprovou o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu, em cumprimento da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho de 13 de Junho – é líquido que os factos praticados anteriormente à referida data, perante os quais não tenha ainda recaído nenhum pedido de extradição, seguem o regime do mandato de detenção europeu se aquele pedido vier a ser formalizado após 1 de Janeiro de 2004.


Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: O Juzgado de Primera Instancia e Instrucción nº1 de …, Espanha, emitiu o presente mandado de detenção europeu contra o cidadão português A, divorciado, filho de … e de …, nascido em …, em …, e residente no …, em…, …, com vista à sua prisão e entrega no âmbito de diligências prévias 2773/03, em que se imputa ao identificado A a prática dos crimes de falsificação de documentos ( falsificação de documentos administrativos, com uso dos mesmos) e de burla – cfr. págs. 6 e 8. O Digno Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal promoveu a execução do aludido mandado ao abrigo do disposto no art. 16 nº1 da Lei 65/2003 de 23-8. Proferido o respectivo despacho liminar ( cit. art. 16 nº2), foi ouvido o detido com observância do disposto nos nºs 3, 4 e 5 do art. 18 nº5 da referida lei – cfr. fls. 330 a 32. Tendo o detido declarado não consentir na sua entrega ao Estado emissor do MDE, foi dada a palavra à Exmª Defensora Oficiosa que se limitou a requerer prazo para deduzir oposição. Deferida a pretensão, foi validada a detenção do arguido, tendo mesmo sido sujeito à medida de coacção de apresentação periódica na autoridade policial da área da sua residência, com a determinação de apresentação diária no referido posto entre as 20 e as 22 horas. Na sua oposição, o arguido deduziu as seguintes conclusões: 1- Não pode o Mandado de Detenção Europeu emitido ser aplicado ao ora Oponente. As considerações dos direitos, liberdades e garantias do arguido têm que ser, por força do n°1 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, asseguradas no exercício dos meios processuais que se lhe apliquem. II- O Princípio constante do n° 4 do art. 2° do Código Penal Português dispõe que: Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente. E este princípio deverá valer para as questões adjectivas e processuais, pois embora o art. 50 do C. P. Penal consigne que a lei processual penal é de aplicação imediata (no seu n°1), ressalva com clareza as situações em que da sua aplicabilidade imediata resulte agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa. Ora, é bom de ver que sendo o Arguido português, residindo em Portugal e não tendo qualquer ligação a Espanha, lhe seja bem curial e favorável defender-se em Portugal e em português, pelas regras nacionais, do que em Espanha e pelas regras espanholas, situação esta que naturalmente o limitaria no exercício da sua defesa e que é, assim, evitável. III O regime jurídico do mandado de detenção europeu entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004, por força do art. 40° da referida Lei 65/2003; e os alegados factos puníveis que ali se imputam ao Requerido ter-se-iam praticado em … e … (ponto 042- Data/Período da Infracção, do Mandado). O próprio processo, em Espanha, tem o n°…, sendo por isso anterior à data de entrada em vigor do regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu. IV A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável bem como a impossibilidade de aplicação ao arguido de lei posterior, se mais desfavorável, encontra abrigo constitucional no art. 29° da CRP. V- Cabe averiguar qual a lei que em concreto se mostra mais favorável ao Requerido: se a decorrente da aplicação da Lei 65/2003 vigente a partir de 1 de Janeiro de 2004 se as leis que anteriormente a esta vigoravam quanto à possibilidade da entrega de um cidadão nacional a Estado estrangeiro para efeitos penais. Ora, anteriormente à Lei 65/2003 de 23 de Agosto regiam nesta sede a Lei 144/99 de 31 de Agosto (Cooperação Judiciária internacional em Matéria Penal); e a Convenção relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, estabelecida com base no artigo K, 3 do Tratado da União Europeia, aprovada para ratificação por Resolução da Assembleia da República 40/98 de 5 de Setembro, ratificada por Decreto do Presidente da República 40/98 de 5 de Setembro, e tornado público o depósito do instrumento de ratificação pelo Aviso 61/99 de 2 de Junho de 1999. VI- A Convenção Relativa à Extradição entre Estados Membros da União Europeia (doravante designada Convenção) entrou em vigor para Portugal, nos termos do seu art. 180, n°4, em 4 de Janeiro de 1999 nas relações entre a Dinamarca, Espanha e Portugal. VII- Face a tanto, e dada a entrada em vigor do regime jurídico do Mandado de Detenção europeu só em 1 de Janeiro d as relações entre Portugal e Espanha no que à Cooperação judiciária em matéria penal e à extradição respeitavam regiam-se pelas disposições desta Convenção Relativa à Extradição e daquela Lei 144/99 de 31 de Agosto. VIII- A Resolução da Assembleia da República 40/98 de 5 de Setembro, que aprova a Convenção para Portugal, e que vigorava nos anos de 2000 e 2002, não admite a entrega do requerido para procedimento penal a Estado estrangeiro pelos crimes que alegadamente terá cometido e se lhe imputam no Mandado de Detenção; pois na sua Resolução, a Assembleia da República usou o mecanismo previsto no n°2 do art. 70 da mesma Convenção, e declarou que apenas autorizaria a extradição de cidadãos portugueses do território nacional nas condições previstas na Constituição da República Portuguesa: a)Nos casos de terrorismo e de criminalidade organizada; e b)Para fins de procedimento penal e, neste caso, desde que o Estado requerente garanta a devolução da pessoa extraditada a Portugal, para cumprimento da pena ou medida de segurança que lhe tenha sido aplicada, salvo se essa pessoa a isso se opuser por declaração expressa. O que consta no artigo 2° da falada Resolução. IX O aqui Requerido A é cidadão português; não está em causa procedimento criminal em caso de terrorismo ou criminalidade altamente organizada; logo, não há lugar a entrega ao Estado espanhol no âmbito da lei vigente ao tempo da prática dos alegados factos puníveis. A extradição de nacionais só não poderia ser recusada se Portugal não tivesse efectuado aquela declaração do no 2 do art. 70 da Convenção — mas efectuou-a; pelo que não há lugar à extradição pedida, nos termos da Convenção na sua aplicação a Portugal. X- Também nos termos da Lei 144/99 de 31 de Agosto, no que à Extradição Passiva respeita, o ora Requerido jamais seria extraditado, pois nos termos do art.32° desta Lei, a extradição é excluída, quando: (...) A pessoa reclamada tiver nacionalidade portuguesa, salvo se (...) a extradição esteja estabelecida em tratado, convenção ou acordo de que Portugal seja parte; e os factos configurem casos de terrorismo ou criminalidade internacional organizada (...).Tal resulta dos n 1,al.b) e 2 als. a) e b) do mesmo art.32° aludido. E mais: no seu n° 3, aquele artigo dispõe que, mesmo que houvesse lugar à extradição, seria apenas para fins de procedimento penal e desde que o Estado requerente garanta a da pessoa extraditada a Portugal (...) salvo se essa pessoa se opuser à devolução. XI- Ora, em parte alguma do Mandado de Detenção, nem por nenhuma outra forma, o Estado espanhol garantiu que a requerido seria, se extraditado, posteriormente devolvido a Portugal nos termos e para os efeitos daquele art. 32°, n° 3 da Lei 144/99 de 31 de Agosto. Parece ao Opoente ser evidente que, no confronto das disposições aplicáveis ao seu pedido de entrega ao estada espanhol por factos ocorridos em … e…, são objectivamente mais favoráveis à sua situação as disposições da Convenção e as da Lei 144/99 aludida; mais ainda se tivermos em conta que, nesta mesma Relação e no seu Interrogatório, o Requerido declarou que não consente na sua entrega ao Estado requerente. XII- Sendo pois este o seu interesse manifestado, e face às leis sucessivas, não nos parece que possam restar dúvidas de que a lei mais favorável é, notoriamente, a que está contida na Convenção e na Lei 144/99, que só permite a entrega do Requerido para fins de procedimento criminal em casos de terrorismo e criminalidade internacional altamente organizada; e que exige ademais que haja garantias do estado requerente quanto à devolução do Requerido a Portugal. XIII- Ora, nenhum destes requisitos se mostra verificado. O arguido/requerido é cidadão português. O crime que no Mandado se lhe assaca não é o de terrorismo ou de criminalidade altamente organizada. A extradição não está estabelecida entre Portugal e Espanha em outra convenção, tratado ou acordo, à data, que não na Convenção aludida. E nenhuma garantia está dada, mesmo que estivessem verificados aqueles requisitos, de que o estado requerente se dispunha a devolver o requerido a Portugal. XIV- Raz6es pela qual a entrega deverá ser negada. XV- Também nunca poderia haver entrega do Arguido nos termos da Lei 65/2003, mesmo que se entendesse ser esta e não aqueloutras a aplicável in casu, o que cautelarmente se alega, pois que esta lei declara expressamente no seu art. 120, n° 1 al. b) que a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando: estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu. XVI- Sucede que o Requerido se encontra constituído arguido e com Termo de identidade e residência fixado em processo que corre em Portugal com o no…. da Direcção Geral dos Impostos,. pelos mesmos factos que motivam o Mandado de Detenção, ou sejam, ter efectuado compras intracomunitárias sem abonar o correspondente IVA, com base em documentos fiscais. Assim sendo, verifica-se a circunstância de recusa prevista na al., b) do n°1 do art. 12° da Lei 65/2003 de 23 de Agosto, pelo que em exercício de soberania pode o Tribunal português recusar a entrega. Mais: pode recusar também a entrega nos termos da ai. c) da mesma disposição, pois parece-nos claro que face à existência daquele processo … pendendo em Portugal, ao M. Público teve que ser dado conhecimento dos factos, por força do disposto no art. 242°, no 1, al.b) do C. P. Penal. Sendo os factos do conhecimento do M.P, colhe aqui aplicação a referida causa de recusa da ai. c). XVII- O Mandado imputa ao Requerido a alegada prática de Falsificação de documentos administrativos e tráfico de documentos falsos nos anos de … e … (pontos 041 e 042 do Mandado). XVIII- Segundo o mesmo mandado, a pena máxima (ponto 034) dos delitos em causa é de até 3 anos de privação de liberdade. No âmbito de aplicação do mandado de detenção europeu, pode este ser emitido por factos puníveis pela lei do Estado requerente com pena ou medida de segurança de duração máxima não inferior a 12 meses (...) — art. 2 n° 1; mas a extradição só é concedida quando os factos constituam uma das infracções de a a ii puníveis com pena de duração máxima não inferior a 3 anos. — art. 2°, n° 2 da Lei 65/2003. XIX- No caso em apreço, os factos imputados ao arguido são puníveis com pena máxima até 3 anos; logo, carecem do requisito do art. 2°, n 2, referido, para que se possa conceder a extradição. E por outro lado, não estão prestadas as garantias da al. c) do art. 13° da Lei 65/2003. XX- Termos em que, se acaso se não considerasse inaplicável ao Requerido a Lei 65/2003, sempre esta teria contra a sua aplicação em concreto estes motivos acima invocados, pelo que se deverá negar a entrega. Termos em que deverá a presente oposição ser recebida e procede. Atento o alegado, sob promoção do Digno Procurador Geral Adjunto, foram efectuadas diligências no sentido de se apurar se os factos que motivam este mandado de detenção europeu, são os mesmos invocados pelo arguido na sua oposição – art. 12 al. b) da Lei 65/2003 de 23 de Agosto. Após, aquele digno magistrado emitiu parecer concluindo: 1- Independentemente da dogmática sobre qual o regime que, em concreto, lhe é mais favorável (sendo que as normas processuais penais aqui serão apenas de aplicar a título subsidiário, ou seja, exclusivamente quando perante casos omissos, o que, como veremos, nem sequer é o caso — cfr. artigos 34° da Lei n° 65/03 e 3° n°2° da Lei n° 144/99), a Decisão Quadro n° 2002/584/JAI, de 13 de Junho de 2002, veio estabelecer que qualquer Estado Membro poderia, no momento da sua aprovação, fazer uma declaração indicando que, enquanto Estado Membro de Execução, continuaria a tratar de acordo com o sistema de extradição aplicável antes de 1 de Janeiro de 2004os pedidos relacionados com factos praticados antes de uma data a especificar, que em qualquer caso não poderia ser posterior a 7 de Agosto de 2002 (cfr. artigo 32°). Sucede que Portugal, enquanto Estado Membro de Execução, não fez qualquer declaração nesse sentido (ao contrário, de resto, de muitos outros Estados Membros), assim aceitando que o regime do Mandado de Detenção Europeu seria não só de aplicação imediata 2 - Conforme se pode constatar do esclarecimento prestado a fls. 129 e seguintes, os factos em causa são abstractamente puníveis com prisão de 1 a 6 anos e multa de 6 a 12 meses (o crime de Burla p. e p. pelos artigos 248°, 249° e 2500 n° 6° do Código Penal de Espanha) e com prisão de 6 meses a 3 anos e multa de 6 a 12 meses (o crime de Falsificação de Documento p. e p. pelo artigo3920 do Código Penal de Espanha), o que preenche - e sem dúvidas — o requisito penal previsto quer no n° 1, quer no n°2° do artigo 2° da referida Lei. 3 - Compulsado e devidamente analisado todo o expediente, nomeadamente o Auto de Notícia que deu origem ao Inquérito n° … e o respectivo Anexo 1, fácil é constatar que naquele se investigam, à semelhança do que ocorre em Espanha, as transacções intracomunitárias efectuadas pelo cidadão em causa (através do respectivo Procurador) com a empresa espanhola B no mesmo período temporal e idêntico “modus operandi”, embora tais factos integrem, em Portugal, crimes de natureza exclusivamente fiscal e, em Espanha e como dito, os de Burla e Falsificação de Documentos. Cremos, assim, que no caso concreto se verifica a aludida causa de recusa facultativa de execução do presente Mandado de Detenção Europeu, que V. Exas ponderarão ser ou não de aplicar, não se devendo perder de vista que o lesado, em Portugal não é um privado (como em Espanha), mas o próprio Estado, por um lado, mas também tendo em consideração, por outro lado, a ainda incipiente fase dos aludidos Autos de Inquérito, a data de ocorrência dos factos e os curtos prazos prescricionais vigentes no nosso País. Notificado o arguido para, querendo, se pronunciar, fê-lo a fls. 204 e segs. concluindo nos termos da sua oposição junta aos autos. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir: O art. 21 da Lei 65/2003 de 23-8, sob a epígrafe “oposição da pessoa procurada”, dispõe no seu nº3 que “a oposição pode ter por fundamento o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa do mandado de detenção europeu”. O arguido, assumindo ser sua a identidade referida no mandado, vem alegar a prática de factos nos anos … e … que estão a ser investigados em Portugal e que serão os mesmos a que se refere o presente mandado. Com tal realidade, alega que face à data dos mesmos, a sua eventual extradição deveria ser feita ao abrigo da Lei 144/99 de 31-8, por lhe ser mais favorável; depois, encontrando-se pendente o Proc. nº … da Direcção Geral dos Impostos pelos referidos factos, ao abrigo do disposto na al. b) do nº1 do art. 12 da Lei 65/2003 a sua entrega deverá ser recusada, sendo certo que os crimes por que é indiciado em Espanha, são punidos com pena de prisão até 3 anos de prisão – art. 2º nº2 da Lei 65/2003 de 23-8. Vejamos: Quanto à primeira questão, a aplicação ou não da Lei 65/2003 de 23-8, temos necessariamente de nos socorrer da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia de 13 de Julho de 2002, não sem antes percorrermos, ainda que de forma muito abreviada o trajecto que levou à criação da referida Decisão Quadro e a posição em que se manteve o nosso País no domínio da cooperação judiciária internacional em matéria penal. Efectivamente antes da publicação da Lei 65/2003 de 23-8 vigorava em Portugal a Lei 144/99 de 31-8, que continha o regime interno da cooperação judiciária internacional em matéria penal, prevendo e regulando várias formas de cooperação, concretamente: a extradição, a transmissão de processos penais, a execução de sentenças penais, a transferência de pessoas condenadas a penas e medidas de segurança privativas da liberdade; vigilância de pessoas condenadas ou libertadas condicionalmente e o auxílio judiciário mútuo em matéria penal. Ora este diploma (que sucedeu ao DL. 437/75 de 16-8 e à Lei 43/91 de 22-1) vem na sequência dos compromissos assumidos por Portugal ao aprovar e ratificar a “Convenção Europeia da Extradição” do Conselho da Europa (Convenção de Paris) e ao aderir ao “Acordo entre os Governos dos Estados de União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa Relativo à supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns”, assinado em Scengen a 14 de Junho de 1985 ( Acordo de Scengen) bem como à “Convenção de Aplicação do Acordo de Scengen “, assinada em Scengen em 19 de Junho de 1990. Esta última Convenção contém disposições específicas sobre a extradição (arts. 59 a 66) que visam completar a “Convenção Europeia da Extradição” e facilitar a sua aplicação nas relações entre os Estados integrados no denominado espaço de Scengen. O Tratado de Amesterdão de 1997 ao introduzir alterações ao Tratado da União Europeia e ao manter nos seus considerandos o propósito de facilitar livre circulação de pessoas, sem deixar de garantir a segurança dos seus povos, veio introduzir a noção de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Assim, veio consignar nos seus arts. 29 e 31, que “será objectivo da União facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça mediante a instituição de acções em comum”, através, de entre outras, de “uma cooperação mais estreita entre as autoridades judiciárias e outras autoridades competentes dos Estados-Membros”, por forma a “facilitar e acelerar a cooperação entre ministérios e as autoridades judiciárias dos Estados-Membros no que diz respeito à tramitação dos processos e à execução das decisões e assegurar a compatibilidade das normas, prevenindo os conflitos de jurisdição”. Ora na prossecução deste objectivo, o Conselho Europeu de Tampere de 1999, reunindo para debater precisamente a criação do referido espaço de liberdade, de segurança e de justiça na União Europeia, veio a consignar na sua 33ª Conclusão que “um maior reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a necessária aproximação da legislação facilitariam a cooperação entre as autoridades e a protecção judicial dos direitos individuais. Pelo que, o Conselho Europeu subscrevia o princípio do reconhecimento mútuo que, na sua opinião, era a pedra angular da cooperação judiciária da União, tanto em matéria civil como penal. E, em matéria penal, na 35ª Conclusão, o Conselho Europeu não obstante instar os Estados-Membros a ratificarem rapidamente as convenções da União Europeia, de 1995 e 1996, relativas à extradição, considerou que deveria ser abolido o processo formal de extradição no que diz respeito às pessoas julgadas embora ausentes cuja sentença tivesse já transitado em julgado, bem como acelerados os processos de extradição relativos às pessoas suspeitas de terem praticado uma infracção. Ora o mandato de detenção europeu constitui a primeira concretização no domínio do direito penal do princípio do reconhecimento mútuo que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária e pretende ser um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal. E pretende ainda ser uma forma de suprimir a complexidade e a morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. Por isso a Decisão Quadro de 13 de Junho de 2002, que instituiu o Mandado de Detenção Europeu, no nº11 do seu preâmbulo refere expressamente “que o Mandado de Detenção Europeu deverá substituir, nas relações entre os Estados Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição, incluindo as disposições nesta matéria do título III da Convenção de Aplicação do Acordo de Scengen”, a cujos artigos se fez atrás referência. E na prossecução deste objectivo, o art. 32 da Decisão Quadro veio a dispor: “1. Os pedidos de extradição recebidos antes de 1 de Janeiro de 2004 continuarão a ser regidos pelos instrumentos em vigor em matéria de extradição. Os pedidos de extradição recebidos a partir de 1 de Janeiro de 2004 serão regidos pelas regras adoptadas pelos Estados-Membros de acordo com a presente decisão-quadro. Todavia, qualquer Estado-Membro pode, no momento da aprovação da presente decisão-quadro, fazer uma declaração indicando que, enquanto Estado-Membro de execução, continuará a tratar de acordo com o sistema de extradição aplicável antes de 1 de Janeiro de 2004 os pedidos relacionados com factos praticados antes de uma data que especificará. A data em questão não pode ser posterior a 7 de Agosto de 2002. A referida declaração será publicada no Jornal Oficial, podendo ser retirada a qualquer momento.” Ora Portugal nas declarações que fez à Decisão Quadro não incluiu nenhuma em conformidade com a descrita norma e na Lei 65/2003 de 23-8 que aprovou o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu – em cumprimento da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho de 13 de Junho – referiu no seu art. 40º : “o regime jurídico do mandado de detenção europeu entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004, aplicando-se os pedidos recebidos depois desta data com origem em Estados membros que tenham optado pela aplicação imediata da Decisão Quadro, do Conselho, de 13 de Junho de 2002 relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados membros, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, de 18 de Julho de 2002.” Nesta conformidade, tendo Portugal optado pela aplicação imediata da Decisão Quadro e tendo regulado expressamente que o regime do Mandado de Detenção Europeu é aplicado a todos os pedidos recebidos após 1 de Janeiro de 2004, não há qualquer dúvida em aplicar à situação dos autos o referido regime. Assim, como bem refere o digno Procurador Geral Adjunto, ao aplicar-se tal regime aos pedidos (e não aos factos) recebidos (e não os efectuados) depois de 1 de Janeiro de 2004 e sendo aqueles (os pedidos, e não os factos) as únicas circunstâncias atendíveis no momento da determinação do regime aplicável, a alegação do arguido não pode proceder. A ponderação do regime mais favorável ao arguido não tem sequer lugar - art. 5 nº 2 do Código de Processo Penal. Apreciando agora a segunda questão suscitada pelo arguido - encontrando-se pendente o Proc. nº … da Direcção Geral dos Impostos pelos referidos factos, ao abrigo do disposto na al. b) do nº1 do art. 12 da Lei 65/2003 a sua entrega deverá ser recusada, sendo certo que os crimes por que é indiciado em Espanha, são punidos com pena de prisão até 3 anos de prisão – art. 2º nº2 da Lei 65/2003 de 23-8 – concluiremos pela decisão, já que aquela questão constitui a ponderação a ter em conta para a exequibilidade do mandado. Refere o Digno Procurador Geral Adjunto na sua alegação final que no Auto de Notícia que deu origem ao Inquérito n° … da Direcção Geral dos Impostos e o respectivo Anexo 1, se investigam, à semelhança do que ocorre em Espanha, as transacções intracomunitárias efectuadas pelo arguido (através do respectivo Procurador) com a empresa espanhola B”. no mesmo período temporal e idêntico “modus operandi”. Só que a investigação criminal dos dois países, tendo embora como ponto de partida as transacções intracomunitárias entre os dois países, elas têm em cada um dos países um desenvolvimento criminoso diferente. Compulsando os autos consta-se: Fls. 87: - O arguido, como operador intracomunitário radicado em Portugal, realizou através de procurador (espanhol) diversas operações comerciais, desde …de … até … de …, com a entidade mercantil B.., para sua comercialização em Portugal. Nas facturas das ditas aquisições não foi repercutido o IVA, porque se tratavam de mercadorias destinadas a outro país comunitário e eram realizadas por um operador intracomunitário. O arguido carecia de qualquer estrutura empresarial em Portugal e suspeita-se que o arguido actuava como cabeça-de-ferro do referido procurador, tendo falsificado os documentos que o acreditavam como operador intracomunitário. A entidade B. viu-se prejudicada nas quantias referentes ao IVA no valor de 4.982.510,12 Euros. Fls. 97: - A investigação dos factos foi provocada pelos pedidos de informação da Administração Fiscal Espanhola. Consultado o Sistema VIS (fls. 138), verificaram-se aquisições efectuadas pelo arguido à entidade B. entre os anos … e …. Efectuadas diversas diligências, não se apurou a existência de qualquer estrutura empresarial capaz de corresponder a actividade com a dimensão apresentada pelo sistema VIS. Com base em critérios e cálculos evidenciados no Relatório de Inspecção Tributária, presumem-se vendas de 14.646.112,45 Euros (em…); 51.712.102,37 Euros (em…); e 16.319.816,79 (em …). Os respectivos valores de IVA e de IRS, não se encontram declarados pelo arguido. Perante estas duas realidades, não pode dizer-se que são os mesmos os factos investigados nos dois países, o de emissão e o de execução. Em Espanha, o arguido encontra-se indiciado pelos crimes de burla e de falsificação e uso de documento falso, precisamente por ter criado a aparência de operador intracomunitário e através dessa qualidade adquirido uma vantagem; e de ter falsificado e usado documentos falsos que o faziam beneficiar dessa mesma vantagem. O valor dessa vantagem é o valor do IVA que o arguido não pagou, por dele ter sido dispensado através do seu comportamento fraudulento. Em Portugal, os factos que merecerão censura penal são os resultantes das posteriores transmissões (vendas) das mercadorias adquiridas em Espanha nos termos atrás referidos, sem que tivesse sido pago o respectivo IVA – art. 1º do Código do IVA. Sendo que o IRS incide sobre o valor anual dos rendimentos de diversas categorias, onde se inclui os decorrentes do exercício de qualquer actividade comercial, e também este não teria sido declarado e pago. Entendemos assim que os factos que motivaram o presente Mandado de Detenção Europeu, não são os mesmos por que corre termos, em Portugal, o Inquérito nº … da Direcção Geral dos Impostos. Em Espanha os factos referem-se à compra de mercadorias feita sob a aparência de uma realidade que era fraudulenta. Em Portugal os factos referem-se à posterior venda dessas mercadorias, em território nacional, sem o pagamento do respectivo IVA e declaração do respectivo rendimento para efeitos de IRS. Assim, não estamos perante uma situação capaz de enquadrar uma causa de recusa facultativa de execução do Mandado de Detenção Europeu, que o art. 12 da Lei 65/2003 de 23-8 indica e que o arguido e o Digno Procurador Geral Adjunto apontam ser a do nº1 al. b). Nesta conformidade, as infracções a que aludem o Mandado de Detenção Europeu situam-se nas als. u) e z) do nº2 do art. 2º da Lei 65/2003 de 23-8, para as quais será concedida a extradição, sem controlo da dupla incriminação do facto, desde que a pena ou medida de segurança privativas de liberdade com que o Estado de emissão as pune não seja inferior a 3 anos. Ora consultado o documento de fls. 129 - transcrição dos tipos legais de crime do Código Penal Espanhol, onde se enquadram os factos denunciados -, verifica-se que são abstractamente puníveis com prisão de 1 a 6 anos e multa de 6 a 12 meses (o crime de Burla p. e p. pelos artigos 248°, 249° e 250º n° 6° ) e com prisão de 6 meses a 3 anos e multa de 6 a 12 meses (o crime de Falsificação de Documento p. e p. pelo artigo 392º), o que preenche, sem dúvidas, o requisito penal previsto quer no n° 1 quer no n°2 do artigo 2° da referida Lei, a emissão do Mandado de Detenção Europeu Em face do exposto, não havendo causas de recusa (obrigatória) do Mandado de Detenção Europeu previstas no art. 11 da Lei 65/2003 de 23-8; e mostrando-se afastada a alegada causa de recusa facultativa de execução, razões não existem para que a entrega do arguido venha a ser recusada. Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em deferir a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido pelo Juzgado de Primera Instancia e Instrucción nº1 de…, Espanha referente ao cidadão português A e, nesta conformidade, ordenam a sua entrega às autoridades espanholas para os efeitos expressos no Mandado de Detenção Europeu, observando-se o disposto nos arts. 28 e 29 da Lei 65/2003 de 23-8. Sem custas. (Processado por computador e integralmente revisto pela relatora que rubrica as restantes folhas) Évora, 22-2-2005 Mª Assunção Pinhal Raimundo (Relatora) José Maria Simão Fernando Ribeiro Cardoso

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