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Acórdão TR Porto de 2010-11-23

49/07.2TBRSD.P1

TribunalTribunal da Relação do Porto
Processo49/07.2TBRSD.P1
Nº ConvencionalJTRP000
RelatorM. Pinto dos Santos
DescritoresAcção de Investigação de Paternidade, Investigação de Maternidade, Direito à Declaração da Maternidade, Direito à Declaração da Paternidade, Imprescritibilidade do Direito, Segurança Jurídica, Abuso de Direito
Nº do DocumentoRP2010112349/07.2TBRSD.P1
Data do Acordão2010-11-23
VotaçãoUnanimidade
Privacidade1
Meio ProcessualAPELAÇÃO.
DecisãoConfirmada a Decisão.
Indicações Eventuais2ª SECÇÃO
Área Temática.

Sumário

I - O actual art. 1817° do CCiv., na redacção dada pelo art. 1° da Lei 14/2009, de 01/04, bem como o art. 3º desta Lei, são materialmente inconstitucionais, por contrariarem, respectivamente, o princípio da imprescritibilidade do direito à obtenção/declaração, por parte do respectivo interessado, da maternidade e/ou da paternidade [neste caso «ex vi» do art. 1873°] e o da não retroactividade de leis restritivas de direitos com tutela constitucional [que só podem ocorrer perante a salvaguarda de direitos com melhor ou idêntica tutela constitucional, o que não é o caso], proclamados nos arts. 18° nos 2 e 3 e 26° n° 1 da CRP. II - Subjacentes à alteração estabelecida no art. 10 da Lei 14/2009, relativamente àquele preceito do CCiv., estiveram considerações ligadas à segurança jurídica e à paz familiar do pretenso pai e/ou da pretensa mãe, as quais, porém, cedem no confronto com o princípio da imprescritibilidade do direito acima indicado, de maior dignidade constitucional. III - A improcedência da acção de investigação de paternidade [ou de maternidade] pode resultar de uma actuação do investigante que se enquadre na figura do abuso de direito.


Texto Integral

Pc. 49/07.2TBRSD.P1 – 2ª Secção (1 agravo e 1 apelação) _______________________________ Relator: Pinto dos Santos Adjuntos: Des. Ramos Lopes Des. Maria de Jesus Pereira * * * Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório: B………. instaurou, em 07/03/2007, a presente acção de investigação da paternidade, com processo ordinário, contra C………., pedindo que se declare que este é o seu pai e que o mesmo seja condenado a reconhecê-la como filha. Para tal alegou factualidade tendente a demonstrar que nasceu em consequência de relações sexuais de cópula completa havidas entre o réu e a sua (da autora), entretanto, falecida mãe, D………., no decurso do namoro que ambos mantiveram entre si, que a gravidez da sua progenitora foi do conhecimento público e que a generalidade dos habitantes da freguesia onde aqueles residiam e onde o réu sempre continuou a morar sabem que a demandante é filha deste e como tal sempre a trataram e reputaram. Além disso, acrescentou que propôs esta acção em consequência do que decidiu o acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/06, de 10/01, que pôs termo ao prazo de caducidade legalmente estabelecido para a propositura das acções de investigação da paternidade. O réu, devidamente citado, contestou a acção, por excepção e por impugnação. No primeiro caso, invocou expressamente a figura do abuso de direito, alegando que o que move a autora não é o apuramento da sua paternidade, mas sim e unicamente a obtenção de uma decisão com finalidade patrimonial, embora implicitamente também tenha arguido a caducidade do direito da demandante, por ela saber desde os seus 12 anos, segundo o relatado na p. i., que o marido de sua mãe não era o seu pai e nunca o ter procurado a ele, réu, para apurar se era ou não o seu progenitor. No segundo, impugnou a essencialidade da factologia alegada pela autora, incluindo o relacionamento sexual com a mãe desta e que seja seu pai. Pugnou, por isso, pela improcedência da acção com as demais consequências legais. A autora replicou defendendo a improcedência das excepções arguidas pelo réu. Proferido despacho saneador, foram seleccionados os factos assentes e foi elaborada a base instrutória, sem reclamação das partes. A fls. 93-94, a autora ampliou o pedido, pretendendo a rectificação do seu registo de nascimento, fazendo-se dele constar a data correcta do seu nascimento - 19 de Julho de 1942 - e que o seu pai é o réu, C……….. Tal ampliação do pedido foi admitida. Por decesso do réu, a acção foi suspensa e, por apenso, foi a sua cônjuge, E………., habilitada como sua única e universal herdeira. No prosseguimento dos autos, requereu a ré habilitada, em 08/06/2009, que se passasse de imediato à prolação de sentença, sem produção de prova em julgamento, por entender que com a recente entrada em vigor da Lei nº 14/2009 o direito da autora teria de ser declarado extinto, por há muito ter caducado. Este requerimento foi, no entanto, indeferido por despacho do Mmo. Juiz titular do processo. De tal despacho recorreu, de agravo, a ré habilitada, tendo culminado as respectivas alegações com as seguintes conclusões: “1ª. Não pode a agravante conformar-se com tal decisão que, não obstante abordar e ponderar todas as questões que se colocam na situação sub judice, integralmente ressalvado fica o respeito por opinião e entendimento diferente, concluiu mal, uma vez que fez, pura e simplesmente, tábua rasa quer dos prazos agora estabelecidos pela nova redacção dada às normas em apreço, que não foram objecto de declaração de inconstitucionalidade, quer da própria natureza dos direitos fundamentais subjacentes à declaração de inconstitucionalidade, quer ainda da jurisprudência dominante no STJ. 2ª. Como se extrai da respectiva exposição de motivos, a alteração legislativa operada aos arts. 1817º e 1842º do CC, por força da Lei nº 14/09, de 01/04, teve na sua essência não só o direito à identidade pessoal, que é um dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrado no ordenamento jurídico português e que se traduz na garantia da unidade individualizada que diferencia e identifica cada pessoa como um indivíduo, singular e irredutível. Sendo uma das suas consequências essenciais o direito à historicidade pessoal que se traduz num direito ao conhecimento da identidade dos progenitores. A identidade pessoal inclui, assim, os vínculos de filiação e abarca na sua dimensão um direito à investigação da paternidade ou da maternidade; como a questão mais debatida que este direito suscita e que é a dos prazos de proposição das acções de investigação da paternidade e maternidade. 3ª. Tendo em devida consideração o contexto constitucional exposto, bem como as decisões jurisprudenciais proferidas pelo Tribunal Constitucional, pondo termo à inconstitucionalidade, este diploma procede à alteração dos prazos para a proposição da acção de investigação da maternidade e impugnação da paternidade previstos nos artigos 1817º e 1842º do Código Civil. 4ª. Este novo diploma, de forma cuidadosa, sensata e ponderada, põe termo ao vazio legal criado pelo mencionado Acórdão, tendo em consideração quer o direito ao conhecimento da paternidade ou maternidade constitucionalmente consagrado, mas ponderando, igualmente, os interesses em causa susceptíveis de afectar os valores respeitantes à certeza e à segurança jurídicas. 5ª. Constituindo jurisprudência pacífica que o exercício do direito à identidade pessoal e à investigação da paternidade / maternidade deve ter em consideração quer as finalidades do investigante, quer as legítimas expectativas criadas pelos herdeiros do investigado. 6ª. Dúvidas não subsistindo que a nova redacção dos artigos 1817º e 1842º do CC, que se traduziu no alargamento dos prazos consagrados para o direito de investigação da paternidade / maternidade, veio fundir as duas correntes jurisprudenciais do Tribunal Constitucional, por se encontrarem agora devidamente ponderados direitos e interesses contrapostos. 7ª. Não padecendo pois tais normas de qualquer inconstitucionalidade. 8ª. E o certo é que ainda não foi solicitado ao Tribunal Constitucional que se pronunciasse sobre as mesmas. 9ª. O estabelecimento da paternidade importa sobretudo quando os filhos são pequenos para diminuir o impacto da «ilegitimidade» na formação da sua personalidade, o que não é certamente o caso da agravada que quando intentou a presente acção contava já com 67 anos de idade. 10ª. A agravada não só confessa no seu articulado que aos 12 anos de idade tomou conhecimento de quem era o seu pai, como refere que aos 19 anos de idade veio a Resende onde as pessoas alegadamente lhe apontariam o falecido C………. como seu pai. 11ª. Da matéria alegada na p. i. resulta que a agravada teve conhecimento da sua suposta ascendência e filiação natural dentro do prazo estabelecido na lei para o exercício do direito de acção. 12ª. Faculdade que podia ter exercido até aos 24 anos de idade, por até aqui vigorar o Código de Seabra que limite temporal algum colocava ao exercício do direito de acção; não a exercendo, a agravada abdicou da mesma. 13ª. Pretender exercer esse direito aos 67 anos de idade, quando o podia ter exercido até aos 24, não faz qualquer sentido e não deixa dúvidas sobre as verdadeiras intenções da agravada que nunca demonstrou qualquer interesse em conhecer ou relacionar-se com o falecido C………., mas antes e apenas em apontar o seu prédio para familiares e amigos. 14ª. A decisão recorrida não só interpretou incorrectamente os artigos 1817º e 1842º do CC, na redacção que lhes foi introduzida pela Lei nº 14/09, de 01/04, como não soube conciliar os vários direitos ou interesses em conflito. Nestes termos, (…), deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se a caducidade do exercício do direito de acção de investigação da paternidade, pela agravada, (…)”. Dos autos não consta que a autora tenha respondido às alegações da agravante. Realizou-se depois a audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual foi oficiosamente aditado um novo quesito à base instrutória, e, no final da mesma, após produção da prova, foi proferido despacho de resposta aos quesitos da base instrutória, sem reclamação das partes. Foi posteriormente proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e declarou que a autora, B………., é filha do entretanto falecido, mas devidamente habilitado, C……….. Inconformada com o assim decidido, interpôs a ré habilitada o recurso de apelação em apreço, em cujas alegações, além de ter apresentado 12 conclusões iguais às 12 primeiras com que culminou as alegações do recurso de agravo (alterando apenas as expressões «agravante» e «agravada» por «apelante» e «apelada»), acrescentou, ainda, as seguintes conclusões: “(…) 13ª. Da análise que a apelante faz da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, foram incorrectamente julgados os factos vertidos nos nºs 9º, 19º, 20º e 23º da base instrutória. 14ª. Resultando a convicção da recorrente, relativamente ao nº 9º da base instrutória, quer da confissão da própria vertida nos articulados, quer dos depoimentos dos irmãos da apelada, testemunhas Indicadas por esta para responder a tal matéria, ou seja, da D. F………. e do Sr. G………., cujos depoimentos se encontram registados, através do sistema de gravação digital, que referiram, peremptoriamente, que todos tiveram conhecimento do facto quando a Recorrida começou a namorar, aos 18 anos, com o Senhor com quem veio a viver mais tarde, mas que esta já o saberia em data anterior. 15ª. Pelo que a resposta a dar a este quesito teria que ser que, pelo menos aos 18 anos de idade, a autora teve conhecimento que o seu pai não era o marido da mãe. 16ª. E daí que se afigure à recorrente que esta "não resposta" ao nº 9º da base instrutória seja incorrecta e diferente das respostas dadas aos demais quesitos, que foram adaptadas aos factos provados, isto é, aos depoimentos das testemunhas, mais parecendo pretender deixar um vazio, adaptável aos prazos recentemente estipulados na nova lei. 17ª. No que diz respeito aos nºs 19° e 20º da base instrutória, tendo em consideração as respostas dadas aos nºs 16º e 17º, para as quais remete, só poderiam dar-se como provados, resultando tais factos do depoimento das testemunhas arroladas pela própria apelada, H……….; I……….; F………. e G………., cujos depoimentos se encontram registados, através do sistema de gravação digital, que responderam afirmativa e peremptoriamente a tal matéria. 18ª. Considerando-se estes quesitos incorrectamente julgados, prejudicada ficará, também a resposta dada ao quesito nº 23º da base instrutória. 19ª. Na verdade o facto de a apelada só em 2001 haver procurado o pretenso pai, quando confessa no seu próprio articulado que conhecia a sua identidade desde os 12 ou, pelo menos, desde os 19 anos de idade, revela, por si só, sem necessidade de mais considerações, o interesse que tinha pelo mesmo e a importância que dava à sua verdadeira filiação. 20ª. O próprio irmão da apelada, Sr. G………., referiu que há cerca de 2 anos atrás tinha vindo a Resende com aquela, que não visitou o pai, tendo-se limitado a indicar-lhe o prédio pertencente a este. 21ª. A matéria quesitada sob o nº 23º da base instrutória deveria ter sido dada como provada, pois as motivações de cada um avaliam-se por factos, por atitudes e as adoptadas pela recorrida não permitiam dar outra resposta àquele quesito. 22ª. Do exposto resulta que a sentença sub judice para além de não haver apreciado correctamente os meios probatórios constantes do processo, interpretou incorrectamente os artigos 1817° e 1842° do CC, na redacção que lhes foi dada pela Lei nº 14/09, de 01/04, demonstrando não saber conciliar os vários direitos ou interesses em conflito. Nestes termos, (…), deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida com as legais consequências, (…)”. Não decorre dos autos que a autora-apelada tenha apresentado contra-alegações.* * *II. Questões a apreciar e decidir: O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente [art. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 4 do C.Proc.Civ., na redacção aqui aplicável, anterior às alterações introduzidas pelo DL 303/2007, de 24/08, já que a acção foi intentada antes de 01/01/2008] e este Tribunal não pode conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não se colocam, sendo certo que o que se aprecia são questões e não razões ou argumentos de recorrente e/ou recorrida e que não se visa a criação de decisões sobre matéria nova. Por isso e seguindo a ordem estabelecida no art. 710º nº 1, 1ª parte, do CPC, as questões que teremos que apreciar são as seguintes: - Relativamente ao agravo, importará saber se a redacção dada pela Lei nº 14/2009 ao art. 1817º do CCiv. é aplicável a esta acção (ex vi» da remissão do art. 1873º) e se, por via disso, o direito da autora a intentar se mostra caducado. - No que tange à apelação, haverá que saber (nesta parte já não se conhecerá das questões que também são objecto do agravo): ● Se há que alterar as respostas dadas aos quesitos 9º, 19º, 20º e 23º da BI; ● E se a pretensão da autora devia ter sido julgada improcedente, pelo menos com base na figura do abuso de direito (implicitamente invocada pela apelante nas conclusões 19ª e segs. das suas alegações). * * *III. Factos provados: Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos: 1) No livro de assentos de nascimento da Conservatória do Registo Civil de Resende, referente ao ano de 1943, encontra-se registado o nascimento de C………. como ocorrido no dia 19 de Maio de 1943, em ………., Resende [alínea A) da Matéria de Facto Assente]. 2) A autora foi registada como sendo filha de D………., sendo omissa a paternidade [al. B) da MFA]. 3) D………. faleceu em 8 de Fevereiro de 1990, na freguesia de ………., Gondomar [al. C) da MFA]. 4) O réu C………. nasceu no dia 21 de Dezembro de 1917, na freguesia de ………., Resende [al. D) da MFA]. 5) A mãe da autora viveu em ………. [resposta ao quesito 2º da Base Instrutória]. 6) O réu C………. viveu em ………. [resp. ao ques. 3º da BI]. 7) A mãe da autora e o falecido réu C………. tiveram uma relação de namoro [resp. aos ques. 4º e 5º da BI]. 8) A mãe da autora e o falecido réu C………. mantiveram relações sexuais de cópula nos primeiros 120 dias dos trezentos que precederam o nascimento da autora [resp. aos ques. 6º e 7º da BI]. 9) Em consequência de tal relacionamento nasceu a autora [resposta ao quesito 7º-A, aditado na audiência de julgamento]. 10) A autora até determinada altura da sua vida julgou que o seu pai era o marido da sua mãe [resp. ao ques. 9º da BI]. 11) A mãe da autora e esta foram viver para Lisboa [resp. ao ques. 13º da BI]. 12) … Onde estabeleceram a sua vida familiar [resp. ao ques. 14º da BI]. 13) Em 2001, a autora contactou o réu [resp. aos ques. 16º e 17º da BI]. 14) A autora propôs a presente acção já depois da morte da sua mãe [resp. ao ques. 22º da BI].* * *IV. Apreciação das questões indicadas em II: 1. O agravo. No recurso de agravo que interpôs, a ré habilitada sustenta que o Tribunal de 1ª instância andou mal ao não ter aplicado ao caso «sub judice» o regime legal criado com a entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 01/04, que, designadamente, alterou a redacção do art. 1817º do CCiv. [que é o preceito que aqui nos interessa considerar, face à remissão do art. 1873º do mesmo Código, por estamos perante acção de investigação de paternidade, como já atrás se referiu; tal Lei alterou também a redacção do art. 1842º que para aqui não é chamado] que, relembremos, na redacção anterior, dada pelos DL’s 496/77, de 25/11 e 21/98, de 12/05, havia sido declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, de 10/01. Aquela Lei 14/2009 veio dar ao referido preceito a seguinte redacção: “1 – A acção de investigação de maternidade [também de paternidade, acrescentamos nós, «ex vi» do art. 1873º] só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. 2 – Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no artigo 1815º, a acção pode ser proposta nos três anos seguintes à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório. 3 – A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: a) Ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade [ou a paternidade] do investigante; b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no nº 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe [ou pelo pretenso pai]; c) Em caso de inexistência de maternidade [ou paternidade] determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação. 4 – No caso referido na alínea b) do número anterior, incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da acção”. A Lei em referência veio, assim, pôr termo a um vazio de pouco mais de três anos em que a propositura de acções de investigação de maternidade e de paternidade não esteve condicionada por qualquer prazo de caducidade [precisamente deste que foi proferido o citado Ac. do Trib. Const. que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos prazos que até então o normativo em apreço fixava para a instauração de tais acções]. E o desacordo da agravante [e apelante, já que também suscita a mesma questão nas alegações/conclusões da apelação, como se disse atrás] é tanto maior por ser a própria Lei 14/2009 que, no seu art. 3º, estabelece que “a presente lei aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”. Era o caso dos autos que haviam sido instaurados em 07/03/2007 [cfr. carimbo aposto na primeira página da p. i.] e que em 02/04/2009 [data em que aquela Lei entrou em vigor, conforme resulta do seu art. 2º] ainda não haviam sido submetidos a julgamento nem neles havia sido, consequentemente, proferida sentença final. Contudo, com o devido respeito pelo entendimento da agravante, bem andou o Tribunal «a quo» ao ter recusado a aplicação ao caso do regime proclamado na dita Lei 14/2009. Isto apesar de ainda não ser conhecida qualquer decisão do Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade quer da nova redacção que ali foi dada ao art. 1817º [e ao art. 1842º], quer do seu art. 3º, pois os Tribunais Comuns, de acordo com o permitido pelo art. 204º da CRP, também podem (melhor, devem) não aplicar normas de um determinado diploma por as considerarem/reputarem inconstitucionais ou violadoras de princípios consagrados na Constituição da República. E é precisamente o que acontece com aqueles dois preceitos – art. 1817º, na nova redacção e art. 3º daquela Lei – que são claramente inconstitucionais, como aliás já o salientou o Supremo Tribunal de Justiça em, pelo menos, três doutos arestos [Acórdãos de 08/06/2010, proc. 184/08.5TVLSB-A.L1.S1, de 21/09/2010, proc. 495/04 -3TBOR.C1.S1 e do mesmo dia 21/09/2010, proc. 4/07.2TBEPS.G1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj] e como também já se decidiu em inúmeros acórdãos dos Tribunais da Relação [cfr., i. a., Acórdãos desta Relação do Porto de 15/03/2010, proc. 123/08.8TBMDR.P1 e de 14/07/2010, proc. 1587/06.0TVPRT.P1, disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp, da Relação de Lisboa de 09/02/2010, proc. 541/09.4TCSNT.L1, in www.dgsi.pt/jtrl e da Relação de Coimbra de 23/06/2009, proc. 1000/06.2TBCNT.C1, de 16/03/2010, proc. 528/08.4TBOBC.C1 e de 06/07/2010, proc. 651/06.0TBOBR.C1, disponíveis in www.dgsi.pt/jtrc]. Comecemos pelo art. 3º da Lei 14/2009. Já dissemos que em consequência da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, declarada no Ac. do Trib. Const. nº 23/2006, a propositura de acções de investigação de paternidade [hipótese que aqui interessa considerar] deixaram de estar sujeitas a qualquer prazo de caducidade. Esta acção foi instaurada precisamente quando nenhum prazo condicionava a sua propositura, pois em 07/03/2007 estava-se em pleno vazio decorrente do proclamado no indicado acórdão. Considerar agora que a mesma ficaria sujeita aos novos prazos anunciados pela Lei 14/2009 [o que se traduziria numa aplicação retroactiva desta] frustraria “a confiança depositada pela autora – confiança que a levou a propor a acção – num entendimento consolidado, segundo o qual o direito não estaria sujeito a prazo de caducidade” e constituiria “uma evidente violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança legítima ínsitos no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da Constituição da República”, “protecção de confiança que radica no direito dos cidadãos tomarem decisões e haverem feito planos de vida com fundamento em expectativas de continuidade de comportamentos dos poderes públicos, fundadas e ou justificadas em boas razões, e logo não poderem ser confrontados com súbitas mudanças de rumo a menos que exigíveis por um interesse público que pelo seu valor ou importância sobreleve aquelas expectativas privadas” [excerto retirado do Ac. do STJ de 21/09/2010, supra citado, o qual, por sua vez, também alude ao estudo de Maria Lúcia Amaral, in “A Forma da República”, 182-184]. Aliás, a aplicação retroactiva da dita Lei poderia colocar os autores de acções que estivessem pendentes à data da sua entrada em vigor em posição mais desfavorável que a daqueles que só as intentassem depois do início de vigência da mesma. Basta pensar num caso que poderia enquadrar-se na previsão das als. b) ou c) do nº 3 do actual art. 1817º; o autor de uma acção instaurada após a entrada em vigor da Lei 14/2009 não deixaria de alegar factualidade adequada para poder beneficiar do prazo mais alargado ali contemplado; mas o autor de acção que estivesse pendente em tribunal a 02/04/2009 certamente não teria alegado quaisquer factos para esse efeito já que quando a propôs a mesma não estava sujeita a qualquer prazo de caducidade e, por isso, não tinha que justificar os motivos que o levaram a intentá-la, por ex., 20, 30 ou mais anos depois de ter atingido a maioridade. Ora, não estando subjacente à Lei 14/2009 qualquer interesse público que pelo seu valor ou importância sobreleve às legítimas expectativas criadas pela inconstitucionalidade dos prazos que o art. 1817º (resultante da Reforma de 1977) previa, a aplicação retroactiva dos novos prazos anunciados naquela Lei, nos termos previstos no seu art. 3º, importaria inequívoca violação do estatuído no nº 3 do art. 18º da CRP que prescreve que “as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (…) não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”. Isto, portanto, quanto à inconstitucionalidade (material) do art. 3º da Lei 14/2009, impeditiva da sua aplicação retroactiva. Passemos à inconstitucionalidade do próprio art. 1817º do CCiv., na redacção dada por tal Lei. Voltemos ao Ac. do Trib. Const. nº 23/2006. Na origem da inconstitucionalidade que declarou esteve, como se exarou na sua fundamentação, o entendimento de que as acções de investigação de maternidade e de paternidade são imprescritíveis por visarem o reconhecimento de um direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no art. 26º da CRP [Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo 1, pgs. 284-285, definem a identidade pessoal como aquilo que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de outras por uma dada vivência pessoal e o direito a essa identidade como um direito fundamental e que tem como componente essencial a identidade genética, e consideram que o conhecimento e reconhecimento da paternidade e da maternidade integram e são uma das dimensões relevantes desse direito]. Aliás, já antes, no Ac. nº 486/2004, de 07/06, o Trib. Const., relativamente ao prazo do nº 1 do art. 1817º então vigente, referia que “tem-se verificado uma progressiva, mas segura e significativa, alteração dos dados do problema constitucionalmente relevantes a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, designadamente, com o impulso científico e social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, e a generalização dos testes genéticos de muito elevada fiabilidade” e que “esta alteração não deixa incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade” [esta ideia da imprescritibilidade das acções de investigação da maternidade e da paternidade foi reafirmada em vários outros acórdãos do Tribunal Constitucional, de que são exemplos os nºs 11/2005, de 09/03 e 282/2005, de 04/08]. Contrariando esta tendência sucessivamente reafirmada pelo citado Tribunal, a Lei 14/2009, prevendo embora prazos mais dilatados que os que permitia o art. 1817º na redacção dada pela Reforma de 1977, não deixa de constituir um volte-face e um manifesto recuo àquele princípio da imprescritibilidade das ditas acções [e direitos que com elas se visam acautelar]. E é evidente que na sua origem estive uma ideia ou um objectivo de segurança jurídica e a protecção da «paz da família do pretenso pai ou da pretensa mãe. Só que, como o STJ já frisou [nos Acs. de 17/04/2008, proc. 08A474 e de 21/09/2010, supra mencionado], “conflituando o direito ao conhecimento da ascendência e verdade biológica com a «tranquilidade» do suposto pai (e muito menos de herdeiros a defenderem interesses puramente patrimoniais), sempre deveria prevalecer o primeiro já que (…) esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se insere no direito de personalidade, é um direito inviolável e imprescritível”, e não podem “privilegiar-se direitos patrimoniais perante os direitos pessoalíssimos de personalidade e de identidade e os danos eventualmente causados à reserva da vida privada e familiar do pretenso pai não ficarão agravados com o decurso do tempo” [cfr. também Guilherme de Oliveira, in “Caducidade das Acções de Investigação” – Comemorações dos 35 anos do Código Civil, vol. I, pg. 29 e segs. e 53]. E no que diz respeito à defesa da paz da família do pretenso pai [caso que nos interessa] ou do seu agregado familiar, não deixam também de ser principalmente interesses de ordem patrimonial que lhe estão subjacentes [as expectativas dos herdeiros conhecidos e o evitar de acções com o propósito de «caça fortunas»], os quais, como decorre do que atrás se disse, devem claramente ceder no confronto com o direito pessoalíssimo à identidade pessoal do investigante, de muito maior dignidade constitucional que o da protecção da paz familiar do investigado e/ou dos interesses e expectativas dos herdeiros deste. Por isso é que, como salientam os doutos arestos do STJ supra referenciados, o direito do investigante à descoberta e/ou à declaração da sua ascendência parental não pode ter entraves temporais ao seu exercício, podendo apenas sofrer restrições em casos em que este exercício constitua um abuso de direito, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé ou pelo fim social daquele direito – art. 334º do CCiv. -, como acontecerá necessariamente nos casos em que se demonstre que o único objectivo do investigante é a obtenção de benefícios patrimoniais decorrentes do acesso, como herdeiro, ao património do pretenso pai, em posterior liquidação resultante do seu decesso. Daí que outra solução não reste senão a de considerar que o actual art. 1817º, na redacção dada pela indicada Lei, ao fixar prazos para a propositura de acções de investigação de maternidade e de paternidade [neste caso, «ex vi» do disposto no art. 1873º], contraria abertamente o prescrito nos arts. 18º nº 2 e 26º nº 1 da CRP que proíbem restrições ao direito à identidade pessoal, a não ser em casos que visem salvaguardar outros direitos ou interesses de maior ou idêntica protecção / garantia constitucional - que não acontece com a simples defesa da segurança jurídica e da «paz familiar do pretenso pai» ou do seu agregado familiar -, sendo, por via disso, materialmente inconstitucional. Como tal, nenhuma censura merece o entendimento perfilhado pelo Tribunal «a quo» quer no despacho que motivou a interposição do agravo, quer na sentença final, impondo-se, outrossim, o não provimento daquele primeiro recurso e, bem assim, a improcedência do recurso de apelação, este na parte em que, reproduzindo as alegações e conclusões do agravo, também pugnava pela aplicação ao caso «sub judice» do regime fixado na referida Lei 14/2009.* *2. A apelação. 2.1. Se há lugar à alteração das respostas dadas aos quesitos 9º, 19º, 20º e 23º da BI. A apelante, nas conclusões 13ª e segs. das alegações, impugna parte da matéria de facto que vem dada como provada, mais propriamente as respostas que foram dadas aos quesitos 9º, 19º, 20º e 23º da BI, sustentando que deviam ter sido afirmativas, embora com uma ligeira limitação no que diz respeito ao primeiro. Mostram-se cumpridos [considerando, em conjunto, o corpo da motivação e as conclusões] os ónus impostos pelas als. a) e b) do nº 1 do art. 690º-A do CPC [na versão aqui aplicável], pois a recorrente indicou os concretos factos que considera incorrectamente julgados e quer ver reapreciados, referiu os concretos meios de prova em que assenta a sua discordância relativamente ao que foi decidido e fundamentou a sua dissensão [não mencionou os segmentos do registo (cd) onde estão gravados os excertos dos depoimentos em que se estriba, mas a tal não estava obrigada porque as actas da audiência de julgamento também não o fizeram]. Antes de abordarmos directamente a questão enunciada, importa recordar que o nº 1 do art. 712º do CPC estabelece que “a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”. E o nº 2 acrescenta, ainda, que “no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”. Quanto aos concretos poderes de reapreciação da prova nesta 2ª instância, particularmente quando está em questão, como no caso «sub judice», a reapreciação da prova gravada [em sistema vídeo ou áudio], dominou, até há pouco tempo, uma tese restritiva que sustentava que os Tribunais da Relação não podiam procurar uma nova convicção, antes deviam limitar-se a apreciar se a do julgador «a quo», vertida nos factos provados e não provados e na fundamentação desse seu juízo valorativo, tinha suporte razoável no que a gravação permitiria percepcionar e em conjugação com os demais elementos probatórios que os autos fornecessem. Ou seja, o Tribunal da Relação teria que cingir a sua actividade [de reapreciação da matéria de facto] ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, restringindo os poderes de alteração da matéria fáctica aos casos de flagrante desconformidade com os elementos de prova disponíveis [neste sentido, cfr., i. a., os Acs. desta Relação do Porto de 10/07/2006, proc. 0653629 e de 29/05/2006, proc. 0650899, publicados in www.dgsi.pt/jtrp; no primeiro decidiu-se que “a apreciação da prova na Relação envolve riscos de valoração de grau mais elevado que os que se correm em 1ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade, (…) já que a transcrição dos depoimentos e até a sua audição, quando gravados, não permite colher, por intuição, tudo aquilo que o julgador alcança quando tem a testemunha ou o depoente diante de si”, pois neste caso “pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade ou não do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe; em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga, que afinal é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos”; no segundo sentenciou-se que “existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencie e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por qualquer outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”; em sentido idêntico vejam-se, ainda, os Acs. desta Relação de 04/04/2005, proc. 0446934, in www.dgsi.pt/jtrp e do STJ de 20/09/2005, de 27/09/2005 e de 29/11/2005, todos in www.dgsi.pt/jstj]. Mais recentemente formou-se uma tese mais ampla que, embora reconheça que “a gravação dos depoimentos áudio ou vídeo não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal «a quo»”, designadamente, o modo como as declarações são prestadas, “as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória” e que existem “aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia”, entende, ainda assim, que na reapreciação da prova as Relações têm “a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição”. E quando o Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova ali produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção [a que também está sujeito], “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” [assim, Abrantes Geraldes, in Reforma dos Recursos em Processo Civil, Revista Julgar, nº 4, Janeiro-Abril/2008, pgs. 69 a 76; idem, mesmo Autor, in Recursos em Processo Civil – Novo Regime, 2008, pgs. 279 a 286, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 2008, pg. 228, e Acs. do STJ de 01/07/2008, proc. 08A191, de 25/11/2008, proc. 08A3334, de 12/03/2009, proc. 08B3684 e de 28/05/2009, proc. 4303/05.0TBTVD.S1, todos in www.dgsi.pt/jstj]. Cremos, com o devido respeito pelos defensores da primeira, que é esta segunda orientação que deve ser seguida, pelos mais amplos poderes de reapreciação da prova que confere à 2ª instância, sem descurar, contudo, as limitações atrás referenciadas face ao mais favorável posicionamento do julgador da 1ª instância perante a prova produzida oralmente em julgamento. Retornando ao caso «sub judice», vejamos então a factualidade que está em causa. Os quesitos da BI em questão tinham a seguinte redacção: ● 9º: “Até aos 12 anos de idade, a autora julgou que o seu pai era o marido da sua mãe?”. ● 19º: “A autora nunca procurou o réu para apurar se este era seu pai?”. ● 20º: “… A não ser há cinco anos atrás?”. ● 23º: “A autora propôs a presente acção unicamente com motivações de ordem patrimonial?”. Estes, após a produção da prova, obtiveram do Tribunal «a quo» as seguintes respostas: ● 9º: “Provado apenas que a A. até determinada altura da sua vida julgou que o seu pai era o marido da sua mãe”. ● 19º e 20º (com o 21º): “Provado apenas o que consta das respostas aos artigos 16º e 17º”. Ou seja, apenas o que ora consta do nº 13 do ponto III deste acórdão. ● 23º: “Não provado”. Por estarmos no âmbito de uma acção de estado, cuja matéria está excluída da disponibilidade das partes, é evidente que qualquer confissão da autora relativamente à factologia em apreço não pode ser aqui [nem o podia ser na 1ª instância] atendida/valorada – art. 354º als. a) e b) do CCiv.. Procedemos, por isso, à audição dos depoimentos das testemunhas indicadas pela apelante nas suas alegações/conclusões [H………., I………., F………. e G………..s, sendo que a primeira está casada com um primo da autora, a segunda é filha desta e as terceira e quarta são irmãos da autora]. Contudo, tais depoimentos apenas nos permitem concretizar um pouco mais a resposta ao quesito 9º, pois do que declararam, principalmente a duas últimas [os dois irmãos da autora que foram inquiridos em julgamento], consegue-se concluir, com a necessária segurança, que a autora teve conhecimento que o marido de sua mãe não era o seu pai pelo menos por volta dos seus 19-20 anos, quando ela começou a namorar, como disseram os seus irmãos. Por isso, a resposta ao quesito 9º e, por inerência, o nº 10 dos factos provados descritos no ponto III deste acórdão, deve passar a ser a seguinte: “A autora até, pelo menos, por volta dos seus 19-20 anos, julgou que o seu pai era o marido da sua mãe”. Mas dos depoimentos das ditas quatro testemunhas [únicas em que a apelante se estriba para demonstrar o erro na valoração da prova por parte da 1ª instância que invoca] nada se alcança, com certeza e segurança, que permita respostas aos restantes quesitos no sentido pretendido pela apelante. Quanto aos quesitos 19º e 20º, o que daqueles testemunhos se afere é que a autora procurou e esteve com o réu C………. em casa deste em 2001 [altura em que foi a ………. – Resende, onde não ia há alguns anos] e que a ele se apresentou como filha, mas que ele a tratou mal e não a aceitou como tal. Mas nenhuma de tais testemunhas afirmou que antes dessa data a autora não tenha procurado o réu para saber se ele era efectivamente pai dela, já que sobre este ponto demonstraram total ignorância [as duas últimas – os seus irmãos – disseram que quando ela tinha cerca de 19-20 anos foi à referida localidade, mas que desconhecem se nessa altura ela contactou ou procurou contactar o réu]. Daí que o que disseram apenas permita [e permitiu à 1ª instância] dar como provado o que consta do nº 13 do ponto III deste acórdão [para onde remeteu a resposta ali dada aos quesitos 19º e 20º da BI], mas não já que o contacto ocorrido em 2001 entre a demandante e o réu C………. tenha sido o primeiro entre eles, nem, por conseguinte, que ela nunca o tivesse procurado contactar antes dessa data, que era o que estava em causa nos apontados quesitos da BI. E no que concerne ao quesito 23º nunca poderia ser dada resposta de «provado», como defende a apelante, por não decorrer, directa ou indirectamente, de nenhum dos mencionados depoimentos que a autora tenha visado, com a propositura desta acção, única ou principalmente a obtenção de benefícios de natureza patrimonial, ainda que deferidos no tempo para depois da morte do identificado C……….. Como tal, nenhuma censura merecem as respostas dadas aos quesitos 19º, 20º e 23º da BI, as quais, consequentemente, se mantêm inalteradas. Por conseguinte, só relativamente à resposta ao quesito 9º procede a impugnação da matéria de facto constante da apelação.* *2.2. Se a actuação da autora configura o exercício abusivo do direito ao reconhecimento da sua paternidade. A apelante não põe em causa a bondade da solução jurídica encontrada na sentença recorrida face à factualidade que vinha dada como provada; até porque ficou demonstrado, ante os inequívocos 99,99994% de probabilidade da paternidade apurados no “relatório da perícia de investigação biológica de filiação” junto a fls. 86 a 90 [correspondentes a uma «paternidade praticamente provada»], que a autora nasceu em consequência de relações sexuais de cópula que a sua mãe e o ora falecido C………. mantiveram entre si nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento – factos dos nºs 8 e 9. E tal solução – de que a demandante é filha daquele - não fica minimamente beliscada com a pequena alteração aqui feita, nesta 2ª instância, à resposta ao quesito 9º da BI. Embora sem o apelidar como tal, o que a apelante parece querer sustentar nas conclusões 19ª e segs. das suas alegações, é que o exercício do direito de investigação/reconhecimento da paternidade por parte da autora é, no caso concreto, abusivo e que, por causa disso, a acção devia ter improcedido. Vejamos se lhe assiste razão. O art. 334º do CCiv. considera que age em abuso de direito ou que é ilegítimo o exercício de um direito “quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Para que o exercício de um direito seja abusivo exige-se, assim, que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder ou, dito de outro modo, que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça. Basta que o excesso se verifique objectivamente, não se exigindo que o agente tenha consciência dele. Mas só haverá abuso de direito se houver contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito. E no preenchimento dos conceitos constantes da parte final do referido normativo - de «boa fé», «bons costumes» e «fim social ou económico» - haverá que atender, quanto aos dois primeiros, “às concepções ético-jurídicas dominantes” e, quanto ao último, nos “juízos de valor positivamente consagrados na própria lei” [cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 1998, pgs. 564-565 que cita também Manuel de Andrade; veja-se tb Coutinho de Abreu, in “Do Abuso de Direito”, 1999, pgs. 15 a 47, que entende que há abuso de direito “quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”]. O abuso de direito comporta várias cambiantes ou modalidades, das quais se destaca, por ser a que aqui importa considerar [e é também a que mais vezes é invocada nos processos judiciais], a do «venire contra factum proprium», ou da conduta contraditória. Dentro desta distinguem-se: o «venire» negativo, em que o agente “manifesta uma intenção ou, pelo menos, gera uma convicção de que não irá praticar certo acto e, depois, pratica-o mesmo” [ainda que o acto em causa seja permitido por integrar o conteúdo de um direito subjectivo] e o «venire» positivo, em que “o agente em causa demonstra ir desenvolver certa conduta e, depois, nega-a”, podendo estas actuações dizer respeito quer ao exercício de um determinado direito potestativo, quer ao exercício de um direito subjectivo comum. No fundo, nesta modalidade, o abuso de direito ocorre quando alguém exerce um direito em contradição com uma conduta [sua] anterior em que a outra parte tenha legitimamente confiado, vindo esta, com base na confiança gerada e de boa fé, a programar a sua vida e a tomar decisões na convicção de que aquele direito já não seria exercido [assim, Meneses Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo I, 2000, pgs. 250-255 e Tomo IV, 2005, pgs. 275-297; mesmo Autor, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, vol. II, pgs. 742-745 e Baptista Machado, in “Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium”, RLJ ano 118, pgs. 169, 227 e 228]. Desta descrição decorre que o «venire contra factum proprium» demanda: ● em primeiro lugar, um comportamento anterior, suficientemente inequívoco/concludente no seu conteúdo, da parte que exerce o direito que seja susceptível de gerar uma situação objectiva de confiança no destinatário [parte contrária]; ● depois, uma actuação deste destinatário, objectivamente justificada, baseada na boa fé e na confiança gerada por aquele comportamento; ● finalmente, um comportamento posterior daquele primeiro declarante, objectivamente contraditório com o inicialmente manifestado. Tendo por referência estes parâmetros e olhando para o caso «sub judice», o que vemos é que não existe qualquer comportamento da demandante que seja inequívoco de que ela, alguma vez, tenha demonstrado o propósito de não instaurar acção de investigação da paternidade contra o réu primitivamente demandado nestes autos, particularmente depois do acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional ter posto fim, com a declaração de inconstitucionalidade que referimos em 1 deste ponto IV, à existência de prazos para instauração de tais acções e de ter sido reconhecida a imprescritibilidade do direito do investigante à descoberta da sua identidade pessoal. E os motivos que poderão ter levado a autora a não ter intentado esta acção nos prazos que o art. 1817º do CCiv. estabelecia, na redacção dada pela Reforma de 1977, são desconhecidos e tanto podem ter ficado a dever-se a ela própria, como a condicionalismos relativos à sua mãe [por ex., não a ter querido melindrar com uma tal acção em vida dela] ou até ao entretanto falecido réu, seu verdadeiro pai. O simples facto de terem decorrido mais de 40 anos desde que atingiu a maioridade e de há muito ter deixado passar os prazos que aquele artigo, na dita redacção, concedia para a instauração da acção de investigação da paternidade, não traduz(em), por si só [tanto mais que não ficou provado, nos seus precisos termos, o que se questionava nos quesitos 19º, 20º e 21º da BI], um comportamento inequívoco da autora com aptidão suficiente [e adequada] para gerar no réu a confiança segura de que ela já não lhe instauraria uma acção desta natureza. Se assim fosse, de nada valeria o princípio da imprescritibilidade proclamado no aludido acórdão do Trib. Const. [e noutros de cariz semelhante] e a «extinção» dos prazos que o referenciado normativo prescrevia em consequência da declaração de inconstitucionalidade de tais entraves. Aliás, foi na sequência desse acórdão que muitas acções de investigação da paternidade foram intentadas apesar de os prazos que o art. 1817º previa para tal [na referida redacção] já há muito terem caducado. Considerar-se agora que o mero decurso do tempo [com ultrapassagem dos prazos que o art. 1817º estabelecia] corresponderia a um comportamento concludente de que o titular do respectivo direito já não proporia a acção, seria como que retirar pela janela aquilo que o Tribunal Constitucional quis conceder, de porta aberta, aos filhos sem paternidade declarada nos seus assentos de nascimento, retirando-se grande parte da utilidade decorrente da dita declaração de inconstitucionalidade. E quanto a um eventual propósito de «caça fortunas» por parte da autora, que poderia tornar abusivo o exercício do direito à obtenção/declaração da paternidade, por ofender manifestamente os limites da boa fé e o fim social inerente a tal direito, também nada ficou provado, uma vez que o quesito 23º da BI obteve resposta negativa. De tudo flúi que não se vislumbra abuso no exercício, pela autora, do direito à obtenção/declaração da sua paternidade e que, por via disso, a apelação tem que improceder e a douta sentença recorrida que ser confirmada.* *Síntese conclusiva do que fica exposto: ● O actual art. 1817º do CCiv., na redacção dada pelo art. 1º da Lei 14/2009, de 01/04, bem como o art. 3º desta Lei, são materialmente inconstitucionais, por contrariarem, respectivamente, o princípio da imprescritibilidade do direito à obtenção/declaração, por parte do respectivo interessado, da maternidade e/ou da paternidade [neste caso «ex vi» do art. 1873º] e o da não retroactividade de leis restritivas de direitos com tutela constitucional [que só podem ocorrer perante a salvaguarda de direitos com melhor ou idêntica tutela constitucional, o que não é o caso], proclamados nos arts. 18º nºs 2 e 3 e 26º nº 1 da CRP. ● Subjacentes à alteração estabelecida no art. 1º da Lei 14/2009, relativamente àquele preceito do CCiv., estiveram considerações ligadas à segurança jurídica e à paz familiar do pretenso pai e/ou da pretensa mãe [conforme se trate de acção de investigação da paternidade ou da maternidade], as quais, porém, cedem no confronto com o princípio da imprescritibilidade do direito acima indicado, de maior dignidade constitucional. ● A improcedência da acção de investigação de paternidade [ou de maternidade] pode resultar de uma actuação do investigante que se enquadre na figura do abuso de direito. Mas para tal não basta o simples decurso do tempo e a ultrapassagem dos prazos que o art. 1817º fixava [na redacção resultante da Reforma de 1977 que vigorou até à declaração, com força obrigatória geral, da sua inconstitucionalidade], ainda que se trate de acção proposta mais de 40 anos depois da autora investigante ter atingido a maioridade.* * *V. Decisão: Nestes termos, os Juízes desta secção cível da Relação do Porto acordam em: 1º) Julgar não provido o agravo e improcedente a apelação (não obstante a parcial procedência da impugnação da matéria de facto), com a consequente confirmação da sentença recorrida. 2º) Condenar a agravante e apelante nas custas.* * * Porto, 2010/11/23 Manuel Pinto dos Santos João Manuel Araújo Ramos Lopes Maria de Jesus Pereira

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