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Acórdão TR Porto de 2014-12-17

1565/11.7TBMCN.P1

TribunalTribunal da Relação do Porto
Processo1565/11.7TBMCN.P1
Nº ConvencionalJTRP000
RelatorMárcia Portela
DescritoresAcção de Investigação de Paternidade, Prazo para a Instauração da Acção
Nº do DocumentoRP201412171565/11.7TBMCN.P1
Data do Acordão2014-12-17
VotaçãoMaioria com 1 Vot Venc
Privacidade1
Meio ProcessualAPELAÇÃO
DecisãoConfirmada
Indicações Eventuais2ª SECÇÃO
Área Temática.

Sumário

I - O n.º 1 do artigo 1817.º, CC, na redacção conferida pela Lei n.º 14/2009, ao estabelecer que a acção de investigação de paternidade deve ser intentada durante a menoridade do investigante, ou nos 10 anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, não padece de inconstitucionalidade. II - O Tribunal Constitucional esteve dividido nesta matéria até à prolação do acórdão do Plenário n.º 401/2011, Cura Mariano, nos termos do artigo 79.º D da Lei 28/82, que, por uma maioria de 7 contra 6, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, CC, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante. III - Trata-se de um acórdão do Plenário, com intervenção de todos os juízes, portanto, em que a questão foi amplamente debatida, tendo sido ponderados os diversos argumentos, com a profundidade habitual deste Tribunal. IV - Nessa medida, pelo seu especial valor, esta decisão deve ser acatada até que seja apresentada razão que justifique a sua revisão. V - Posteriores decisões deste Tribunal acerca desta questão foram decididas em conformidade com este acórdão, como sucedeu, por exemplo, nos acórdãos 446/2011, Carlos Pamplona de Oliveira, de 476/2011, Ana Maria Guerra Martins, e 545/2001, Maria Lúcia Amaral, acórdãos que contaram com o voto de Conselheiros outrora vencidos.


Texto Integral

Apelação n.º 1565/11.7TBMCN.P1 Acordam no Tribunal da Relação do Porto 1. Relatório B… intentou, em 2011.11.02, contra C… acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária para investigação da paternidade, pedindo no essencial que se decida que é filho do R., com fundamento em presunções legais de paternidade — a posse de estado a que se refere alínea a) do n.º 1 do artigo 1871.º CC, e a existência de relações sexuais do pretenso progenitor com a sua mãe durante o período legal de concepção a que se refere a alínea e) do n.° 1 do mesmo artigo. Contestou o R., excepcionando a caducidade da acção, por na sua actual redacção o artigo 1817.º, n.º 1, CC dispor que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. Assim, uma vez que o autor nasceu em 1973.03.17 a sua maioridade ocorreu em 1991.03.17, razão pela qual na data da propositura da presente acção já havia decorrido tal prazo de 10 anos. Impugnou também a factualidade alegada pelo autor na sua petição inicial. Replicou o A., sustentando que o seu direito não está sujeito a qualquer prazo de caducidade, por força do disposto nos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, e 26.º, n.º 1, CRP, donde resulta que o actual artigo 1817.º CC, na redacção dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, é materialmente inconstitucional, por contrariar o princípio da imprescritibilidade do direito à obtenção/declaração, por parte do respectivo interessado, da paternidade. Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou procedente a excepção peremptória de caducidade do direito de acção e se absolveu o R. do pedido contra ele formulado. Inconformado, apelou o A., apresentando as seguintes conclusões: «1º O estabelecimento da paternidade insere-se no acervo dos direitos pessoalíssimos, entre os quais, o de conhecer e ver reconhecida a verdade biológica da filiação, a ascendência e marca genética de cada pessoa; 2º Contém, em si mesmo, por isso, o direito de investigar a maternidade ou paternidade; 3º Tal direito fundamental tem protecção constitucional, como vertente que é, do direito à integridade moral, à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (arts. 16º, 18º, 25º, nº 1 e 26º, nº 1 da C.R.P.) 4º O Estado não pode, pois, restringir o assentamento da filiação/identidade pessoal, através de prazos de caducidade, sejam eles quais forem. 5º O direito a investigar a paternidade é, portanto, imprescritível, não se justificando qualquer limite temporal para o seu exercício. 6º O douto Ac. do Tribunal Constitucional nº 23/2006, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do nº 1 do art. 1817º do C. Civil “… na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante”, apesar da aparente limitação do seu segmento decisório, contém em si a ideia da imprescritibilidade das acções que tenham por objecto o reconhecimento judicial da paternidade ou maternidade. 7º A redacção actual do nº 1 do art. 1817º do C. Civil, conferida pela Lei 14/2009, é também ela inconstitucional, por violação dos arts. 16º, nº 1, 18º, 25º, nº 1, 26º, nº 1 e 36º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. Contra-alegou o R., pugnando pela manutenção do decidido. 2. Fundamentos de facto A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos, que não foram objecto de impugnação: 1. B… nasceu em 17 de Março de 1973. 2. Encontra-se registado como sendo filho de D… e de pai incógnito. 3. A acção para investigação da paternidade deu entrada em juízo no dia 2 de Novembro de 2011. 3. Do mérito do recurso O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se em saber se o do n.º 1 do artigo 1817.º, CC, na redacção conferida pela Lei n.º 14/2009, ao estabelecer que a acção de investigação de paternidade deve ser intentada durante a menoridade do investigante, ou nos 10 anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, padece de inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade do anterior prazo de dois anos a contar da maioridade ou emancipação previsto no n.º 1 do artigo 1817.º CC foi declarada, com força obrigatória e geral pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, Paulo Mota Pinto. A consequência da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória e geral consta do artigo 282.º, n.º 1, CRP: o efeito da declaração de inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória e geral é a repristinação da norma que ela tenha revogado. No entanto, face às questões de ordem constitucional que suscitava a repristinação da norma revogada, como nos dá conta o acórdão do STJ, de 2011.11.15, Martins de Sousa, www.dgsi.pt.jstj, proc. 49/07.2TBRSD.P1.S1, a jurisprudência dos tribunais superiores, designadamente o STJ, se inclinou no sentido de que a acção de investigação de paternidade é imprescritível, não sendo aplicável o prazo de prescrição ordinária, como tem sido entendimento dos Tribunais superiores, em especial o STJ. A título meramente exemplificativo refira-se os acórdãos do STJ, de: — 2012.09.20, Serra Batista, www.dgsi.pt.jstj, proc. 1847/08.5TVLSB-A.L1.S1; — 2012.05.24, Granja da Fonseca, www.dgsi.pt.jstj, proc. 37/07.9TBVNG.P1.S1; — 2009.07.07, Oliveira Rocha, www.dgsi.pt.jstj, proc. 1124/05.3TBLGS.S1; — 2008.07.03, Pires da Rosa, www.dgsi.pt.jstj, proc. 07B3451; — 2008.04.17, Fonseca Ramos, proc. 08A474; — 2007.10.23, Mário Cruz, www.dgsi.pt.jstj, proc. 07A2736; — 2007.01.31, Borges Soeiro, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06A4303; — 2006.12.14, Alves Velho, www.dgsi.pt.jstj, proc.06A2489. Entretanto, foi publicada a Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que estabeleceu novos prazos para a investigação de paternidade: dez anos posteriores à maioridade ou emancipação (n.º 1), três anos a contar de diversas situações enunciadas nos n.ºs 2 e 3. O Tribunal Constitucional esteve dividido nesta matéria até à prolação do acórdão do Plenário n.º 401/2011, Cura Mariano, nos termos do artigo 79.º D da Lei 28/82, que, por uma maioria de 7 contra 6, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, CC, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante. Trata-se de um acórdão do Plenário, com intervenção de todos os juízes, portanto, em que a questão foi amplamente debatida, tendo sido ponderados os diversos argumentos, com a profundidade habitual deste Tribunal. Nessa medida, pelo seu especial valor, esta decisão deve ser acatada até que seja apresentada razão que justifique a sua revisão. Aliás, posteriores decisões deste Tribunal acerca desta questão foram decididas em conformidade com este acórdão, como sucedeu, por exemplo, nos acórdãos 446/2011, Carlos Pamplona de Oliveira, de 476/2011, Ana Maria Guerra Martins, e 545/2001, Maria Lúcia Amaral, acórdãos que contaram com o voto de Conselheiros outrora vencidos. Por todo o exposto, e sem necessidade de maiores considerandos, não padece de inconstitucionalidade a norma do artigo 1817.º, n.º 1, CC, na redacção da Lei 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que estabelece um prazo de dez anos para a propositura da acção de investigação de paternidade, contado da maioridade ou da emancipação do investigante, pelos fundamentos constantes do acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 401/2011, Cura Mariano, para que se remete. 4. Decisão Termos em que, julgando a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida. Custas pelo A.. Porto, 17 de Dezembro de 2014 Márcia Portela M. Pinto dos Santos Rodrigues Pires (Vencido, nos termos da declaração que junta e corresponde à fundamentação jurídica do projecto que elabora enquanto relator) ____________ Sumário 1. O n.º 1 do artigo 1817.º, CC, na redacção conferida pela Lei n.º 14/2009, ao estabelecer que a acção de investigação de paternidade deve ser intentada durante a menoridade do investigante, ou nos 10 anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, não padece de inconstitucionalidade. 2. O Tribunal Constitucional esteve dividido nesta matéria até à prolação do acórdão do Plenário n.º 401/2011, Cura Mariano, nos termos do artigo 79.º D da Lei 28/82, que, por uma maioria de 7 contra 6, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, CC, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante. 3. Trata-se de um acórdão do Plenário, com intervenção de todos os juízes, portanto, em que a questão foi amplamente debatida, tendo sido ponderados os diversos argumentos, com a profundidade habitual deste Tribunal. 4. Nessa medida, pelo seu especial valor, esta decisão deve ser acatada até que seja apresentada razão que justifique a sua revisão. 5. Posteriores decisões deste Tribunal acerca desta questão foram decididas em conformidade com este acórdão, como sucedeu, por exemplo, nos acórdãos 446/2011, Carlos Pamplona de Oliveira, de 476/2011, Ana Maria Guerra Martins, e 545/2001, Maria Lúcia Amaral, acórdãos que contaram com o voto de Conselheiros outrora vencidos. Márcia Portela ____________ Voto Vencido A questão que se discute no presente recurso reconduz-se a apurar se a acção de investigação de paternidade que foi proposta pelo autor B… é tempestiva, como este o pretende, ou se, pelo contrário, caducou, como sustenta o réu C… e foi entendido na decisão recorrida. Sucede que a resposta a esta questão passa forçosamente pela posição que se tomar quanto à conformidade do prazo exigido pelo art. 1817º, nº 1 do Cód. Civil para a sua propositura com a Constituição da República. O art. 1817º, nº 1 do Cód. Civil, na sua anterior redacção, foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral na medida em que previa, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos arts. 16º, nº 1 e 18º, nº 2 da Constituição da República (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional nº 23/2006, de 10.1.2006 – Diário da República, I-A, de 8.2.2006). Por essa razão, através da Lei nº 4/2009, de 1.4, procedeu-se à alteração do dito art. 1871º, nº1, passando a sua redacção a ser a seguinte: «A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.» Prazo este aplicável às acções de investigação da paternidade por força do disposto no art. 1873º do Cód. Civil. Ora, como a maioridade se atinge aos dezoito anos, conforme decorre do art. 130º do Cód. Civil, a acção de investigação passou a poder ser proposta até aos 28 anos do investigante (salvo as situações previstas no nº 3 do art. 1817º que não relevam para a situação dos autos), o que significa que o prazo foi alongado em oito anos. Só que o simples alongamento do prazo não silenciou as posições dos que entendem que não devem existir quaisquer limitações temporais à investigação da verdade biológica da filiação, considerando-as, por isso e desde logo, como inconstitucionais. Chamado a pronunciar-se sobre a questão, o Tribunal Constitucional, reunido em Plenário, por maioria (com sete votos a favor e seis votos contra), tirou o Acórdão nº 401/2011, de 22.9.2011, em que decidiu não julgar inconstitucional a norma do nº 1 do art. 1817º, do Cód. Civil, na redacção da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de paternidade, por força do art. 1873º do Cód. Civil, prevê um prazo de 10 anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.[1] Porém, a questão continua a colocar-se, face ao significativo número de decisões tanto do Supremo Tribunal de Justiça, como das Relações, que se vêm distanciando do entendimento do Tribunal Constitucional. Entre estas, refere-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.2012 (proc. nº 193/09.1 TBPTL.G1.S1., disponível in www.dgsi.pt), cujo sumário se passa a reproduzir: “I – O estabelecimento da paternidade insere-se no acervo dos direitos pessoalíssimos, entre os quais, o de conhecer e de ver reconhecida a verdade biológica da filiação, a ascendência e marca genética de cada pessoa. II – Contém, em si mesmo, o direito de investigar a maternidade ou paternidade. III – Tal direito fundamental tem protecção constitucional, como vertente que é, do direito à integridade moral, à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (arts. 16º, 18º, 25º, nº 1, e 26º da CRP). IV – O Estado não pode, pois, restringir o assentamento da filiação/identidade pessoal, através de prazos de caducidade, sejam eles quais forem. V – O direito de investigar a paternidade ou maternidade é, portanto, imprescritível, não se justificando qualquer limite temporal para o seu exercício. VI – O douto Ac. do TC nº 26/2006, que declarou a inconstitucionalidade, como força obrigatória geral, do nº 1 do art. 1817º do CC (…), apesar da aparente limitação do seu segmento decisório, contém em si a ideia de imprescritibilidade das acções que tenham por objecto o reconhecimento judicial da paternidade ou maternidade. VII – A redacção actual do nº 1 do art. 1817º do CC, conferida pela Lei nº 14/2009, é também ela inconstitucional, por violação dos arts. 16º, nº 1, 18º, 25º, nº 1, 26º, nº 1 e 36º, nº 1, da CRP.” Semelhante entendimento, no sentido da inconstitucionalidade da actual redacção do nº 1 do art. 1817º do Cód. Civil, foi ainda seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente, nos Acórdãos de 14.1.2014 (proc. 155/12.1 TBVLC-A.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.), de 15.11.2011 (proc. nº 49/07.2 TBRSD.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt), de 27.1.2011 (proc. 123/08.8 TBMDR.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt), de 21.9.2010 (proc. nº 4/07.2 TBESP.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) e de 8.6.2010 (proc. nº 1847/08.5 TVLSB-A.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.). Já posicionando-se favoravelmente à constitucionalidade do prazo do art. 1817º, nº 1 do Cód. Civil, na redacção da Lei nº 4/2009, de 1.4., há a referir, por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012 (proc. nº 367/10.2 TBCBC-A.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) e de 9.4.2013 (proc. nº 187/09.7 TBPFR.P1.S1., disponível in www.dgsi.pt.). A favor da tese da constitucionalidade alinham-se argumentos essencialmente centrados na segurança jurídica, valor este que não poderá ser posto em causa por uma atitude desinteressada do investigante e, por isso, não é injustificado nem excessivo fazer recair sobre o titular do direito um ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação, não se devendo prolongar, através de um regime de imprescritibilidade, uma situação de indesejável incerteza. Já os que se pronunciam em sentido oposto, a favor da inconstitucionalidade, alegam que a natureza dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família reclama a sua vigência plena em todo o ciclo de vida do titular. A ideia de “sancionar” a inércia ou pouca diligência do investigante deve ser vista como estranha ao instituto da caducidade, devendo entender-se que só o estabelecimento da admissibilidade de propositura da acção de investigação de paternidade durante a vida dos interessados – investigante e investigado – dará plena satisfação ao direito consagrado no artigo 26.º, nº 1 da CRP, sendo possível e legítimo que o investigante tenha razões fundadas para só numa data mais tardia decidir-se pela instauração da referida acção. Eventuais excessos na utilização deste direito à verdade biológica sempre serão impedidos através do recurso a institutos como o do abuso do direito. Prosseguindo, diremos que a nossa opção já foi tomada no sentido da inconstitucionalidade da actual redacção do art. 1817º, nº 1 do Cód. Civil quando fizemos declaração de voto no âmbito do Acórdão proferido em 10.12.2013 (proc. nº 165/13.1 TBVRL.P1, disponível in www.dgsi.pt.), seguindo entendimento que, embora longe da unanimidade, se mostra maioritário no Tribunal da Relação do Porto. Apoiou-se essa declaração no Acórdão da Relação do Porto de 9.4.2013 (proc. nº 155/12.1 TBVLC-A.P1, disponível in www.dgsi.pt.), cuja argumentação aqui se recupera e à qual se adere. Escreve-se o seguinte neste aresto: “(…) Considerando a protecção conferida pela CRP ao direito fundamental da identidade pessoal e da protecção da família que nos parece dever ser considerada num patamar relevante, num crescendo que se vem construindo com a própria evolução do Direito, nesta era dita do pós-legalismo que relativiza as coordenadas ditadas pela segurança jurídica, entendemos, numa perspectiva actualista do que é a concepção da pessoa humana nas sociedades modernas, dever existir hoje uma protecção à indagação da verdade biológica que se prolongue pelo tempo de vida do investigante. O Prof. António Hespanha vem, justamente, alertando para esta mudança de um paradigma legalista para um paradigma pluralista; valoriza-se hoje, também por força da intrusão de diferentes “direitos” (o direito da União Europeia, por exemplo) a ponderação das várias perspectivas possíveis numa recusa de soluções unidimensionais; na insistência na provisoriedade e precariedade das soluções jurídicas encontradas e na necessidade do seu contínuo contraste com as sensibilidades jurídicas da comunidade. Diz o Autor em causa “ao contrário do que muitos pensam, a certeza do direito, a sua estabilização em soluções mais consensuais e duradouras, passa justamente por aqui, por uma análise profunda e não superficial, apressada ou automática, dos interesses e sensibilidade jurídicas em jogo.” (António Manuel Hespanha, O caleidoscópio do Direito. O direito e a justiça nos nossos dias, Coimbra, Almedina, 2010, 2ª ed., pg.29). Ora, esta precariedade assumida e pensada a partir do seu questionamento constante, própria desta era pós-legal, mais nos alerta para a devida ponderação da sensibilidade jurídica da comunidade em relação a este direito à verdade biológica. Nesta senda, os argumentos a favor desta “imprescritibilidade em vida”, (…), afiguram-se-nos incontornáveis na justa medida em que o estabelecimento da paternidade pertence ao núcleo restrito dos direitos pessoalíssimos, enquanto direito a conhecer a respectiva ascendência e marca genética, com relevantes reflexos sociais e históricos. Estamos, portanto, perante o direito à integridade moral e à identidade pessoal, direitos inalienáveis e absolutos, sempre garantidos pelos Art.ºs 25º n.º 1 e 26º n.º 1 da Constituição da R. Portuguesa. Desta forma, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito à identidade pessoal, tal como está consagrado no Art.º 26º n.º 1 da Constituição, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores constitui fundamento bastante para erigir um direito à investigação da paternidade (cf. CRP Anotada, 4ª ed., Vol. I, pg. 462). Em termos comparados, embora as soluções sejam variadas e não uniformizáveis, destaque-se, ainda assim, que países como a Itália, a Espanha e a Áustria, optaram pela imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade, por considerarem que “a procura do vínculo omisso do ascendente biológico é um valor que prevalece sobre quaisquer outros relativos ao pretenso progenitor.” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2008). Do mesmo modo acontece com jurisdições tão distintas como a brasileira, a suíça ou a macaense, esta com uma solução inovadora: embora estas acções possam ser propostas a todo tempo se o forem passados 15 anos do conhecimento dos factos que poderiam induzir a paternidade, retira-se-lhe os efeitos patrimoniais: ficam apenas estabelecidos os pessoais, evitando assim o fenómeno dos caça-heranças. Note-se que esta possibilidade regulada pela legislação macaense (Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto) encontrará igualmente guarida no enquadramento normativo português devidamente aplicado por uma jurisprudência atenta através dos institutos substantivos do abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil) de outro tipo de actuações abusivas (artigos 269.º e 1482.º do Código Civil) da fraude à lei, em sede de aplicação de normas de conflitos (artigo 21.º do Código Civil) ou, na lei processual, através da litigância de má fé ou mesmo temerária (artigo 456.º do Código de Processo Civil). No que concerne ainda à questão ao prejuízo decorrente da devassa, décadas depois, da intimidade da família do investigado bem como à necessidade de não permitir o “envelhecimento” das provas no âmbito da investigação da paternidade, importa explicar que, a nosso ver, esses constrangimentos já não ocorrem por força da evolução da ciência em especial através do que resulta da investigação do ADN (em português, ácido desoxirribonucleico) ou DNA (em inglês, deoxyribonucleic acid) cujas moléculas contém, em si, as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos. Na verdade, enquanto num passado ainda recente o apuramento da suposta paternidade implicava a audição de testemunhas ou a prova documental decorrente da leitura de cartas íntimas no universo familiar com a consequente apreciação da vida privada dos intervenientes, incluindo os hábitos sexuais da mãe do investigado ou a relação deste com a família do pretenso pai, a verdade é que actualmente a prova a aduzir é bem diversa e imensamente mais fiável. Assim, o grau de certeza no estabelecimento da paternidade é quase total (superior a 99,99%). E, ao contrário, se os perfis genéticos do filho e do presumível pai não coincidem em pelo menos dois dos indicadores submetidos à análise a paternidade é improvável em 100%. Esta averiguação faz-se, em sede laboratorial, sem curar de saber dos pormenores íntimos de quem quer que seja e sem intrusão na vida privada dos envolvidos na averiguação. Ora, este carácter asséptico da pesquisa através do ADN permite defender, com maior sustentabilidade, a compaginabilidade da mesma, independentemente do período temporal decorrido na medida em que não será necessário indagar do passado íntimo dos visados. Sem esse escrutínio intrusivo, de modo fundamentado e seguro, poderá, pois, assegurar-se, em vida do requerente, a possibilidade de intentar este tipo de acções judiciais. Deste modo, igualmente será possível respeitar os motivos que possam conduzir o interessado a uma indagação mais tardia, muitas vezes assentes em estimáveis considerandos atinentes com a própria evolução dos seus afectos e daqueles que o rodeiam, em especial a mãe do investigado.” Por conseguinte, seguindo-se a posição que se deixa expressa, entende-se que a redacção actual do art. 1817º, nº 1 do Cód. Civil é inconstitucional, por violação dos arts. 26º, nº 1 e 36º, nº 1 da Constituição da República[2], o que conduz, no presente caso, à não caducidade do direito de investigar a paternidade. Idêntica posição mostra-se também sustentada nos Acórdãos desta Relação do Porto de 3.6.2014 (proc. 1261/12.8 TBSTS.P1, disponível in www.dgsi.pt.), de 13.3.2014 (proc. 956/10.5 TBSTS-D.P1, disponível in www.dgsi.pt. – com voto de vencido), de 26.11.2012 (proc. 1906/11.7 /2AVR.P1, disponível in www.dgsi.pt – com voto de vencido) e de 7.2.2012 (proc. 407/07.2 TBVCD.P1, disponível in www.dgsi.pt), não se ignorando, porém, que no sentido oposto da constitucionalidade do art. 1817º, nº 1 do Cód. Civil, com o que não concordamos, se pronunciaram nesta mesma Relação do Porto os Acórdãos de 10.12.2013 (proc. nº 165/13.1 TBVRL.P1, disponível in www.dgsi.pt – com voto de vencido) e de 30.10.2012 (proc. nº 787/06.7 TBMAI.P1, disponível in www.dgsi.pt.).[3] Assim, não tendo caducado o direito do autor intentar a presente acção de investigação de paternidade, teria determinado que a acção prosseguisse os seus ulteriores trâmites processuais, considerando procedente o recurso interposto. ___________ [1] Este entendimento tem vindo a ser seguido em posteriores decisões do Tribunal Constitucional, as quais remetem na sua fundamentação para o Acórdão nº 401/2011. [2] No art. 26º, nº 1 da Constituição da República consagra-se o direito à identidade pessoal e no art. 36º, nº 1 do mesmo diploma o direito a constituir família. [3] Nas demais Relações há que reconhecer um predomínio de decisões no sentido da constitucionalidade do art. 1817º, nº 1 do Cód. Civil (por ex., Ac. Rel. Lisboa de 13.2.2014, proc. 9388/10.4 TBCSC.L1-2; Ac. Rel. Lisboa de 17.10.2013, proc. 3444/11.9 TBTVD.L1-8; Ac. Rel. Guimarães de 10.7.2014, proc. 1057/10.1 TBEPS.G1; Ac. Rel. Guimarães de 10.7.2014, proc. 1974/13.7 TBFAF.G1; Ac. Rel. Guimarães de 4.6.2013, proc. 180/11.0 TBVRM.G1; Ac. Rel. Guimarães de 16.5.2013, proc. 223/10.4 TBVCT.G1; Ac. Rel. Coimbra de 21.9.2010, proc. 445/09.0 T2OBR.C1, todos disponíveis in www.dgsi.pt), embora surjam também decisões sustentando a inconstitucionalidade da referida norma (Ac. Rel. Guimarães de 28.2.2013, proc. 733/12.9 TBFAF.G1 – com voto de vencido; Ac. Rel. Lisboa de 9.2.2010, proc. 541/09.4 TCSNT.L1-7; Ac. Rel. Coimbra de 11.1.2011, proc. 146/08.7 TBSAT.C1 – no qual se propõe um prazo alargado de 20 anos, a contar da maioridade do investigante, para intentar a acção, todos disponíveis in www.dgsi.pt.) Rodrigues Pires

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