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Acórdão STJ de 2012-01-10

193/09.1TBPTL.G1.S1

TribunalSupremo Tribunal de Justiça
Processo193/09.1TBPTL.G1.S1
Nº Convencional1.ª SECÇÃO
RelatorMoreira Alves
DescritoresInvestigação de Paternidade, Prazo de Propositura da Acção, Prazo de Caducidade, Inconstitucionalidade
Nº do DocumentoSJ
Data do Acordão2012-01-10
VotaçãoUnanimidade
Privacidade1
Meio ProcessualREVISTA
DecisãoNegada a Revista

Sumário

I - O estabelecimento da paternidade insere-se no acervo dos direitos pessoalíssimos, entre os quais, o de conhecer e de ver reconhecida a verdade biológica da filiação, a ascendência e marca genética de cada pessoa. II - Contém, em si mesmo, por isso, o direito de investigar a maternidade ou paternidade. III - Tal direito fundamental tem protecção constitucional, como vertente que é, do direito à integridade moral, à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (arts. 16.º, 18.º, 25.º, n.º 1, e 26.º da CRP). IV - O Estado não pode, pois, restringir o assentamento da filiação/identidade pessoal, através de prazos de caducidade, sejam eles quais forem. V - O direito de investigar a paternidade ou maternidade é, portanto, imprescritível, não se justificando qualquer limite temporal para o seu exercício. VI - O douto Ac. do TC n.º 26/2006, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 1 do art. 1817.º do CC “… na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante”, apesar da aparente limitação do seu segmento decisório, contém em si a ideia de imprescritibilidade das acções que tenham por objecto o reconhecimento judicial da paternidade ou maternidade. VII - A redacção actual do n.º1 do art. 1817.º do CC, conferida pela Lei n.º 14/2009, é também ela inconstitucional, por violação dos arts. 16.º, n.º 1, 18.º, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da CRP.


Texto Integral

Relatório No Tribunal Judicial da Comarca de Ponte de Lima, AA intentou a presente acção declarativa de investigação da paternidade, com processo ordinário, contra BB*Alegou em resumo: — o A. nasceu em 24/1/1949, e foi registado como sendo filho de CC, não se fazendo menção da paternidade. — Porém, o A. é filho do R., como lhe foi confessado por sua mãe (falecida em 25/5/1971). — A mão do A. e o R. iniciaram e mantiveram relações sexuais nos finais de 1947 que perduraram durante grande parte do ano de 1948, até à altura em que a mãe do A. confessou ao R. estar grávida dele. — Durante esse período, a mãe do A. e o R. mantiveram relações sexuais frequentes, em consequência das quais aquela ficou grávida do A.. — Durante esse período, a mãe do A. apenas com o R. manteve relações sexuais. Termina pedindo que seja reconhecido ao A. a paternidade biológica do R..*O R. contestou, defendendo-se desde logo por excepção, invocando a caducidade da acção, ao abrigo do disposto no Art. 1817º n.º 1 do C.C., na redacção que lhe foi conferida pela Lei 14/2009 de ¼, que se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, segundo o Art.º 3 do referido diploma.*O A. replicou.*Proferiu-se despacho saneador, que, conhecendo da excepção, a julgou procedente por aplicação do Art.º 1817º n.º 1 do C.C., na redacção da Lei 14/2009, e Art.º 3º deste diploma. Em consequência, absolveu o R. do pedido.*Inconformado recorreu o A..*A Relação, conhecendo da apelação, julgou-a procedente, e consequentemente, improcedente a excepção peremptória de caducidade do direito de acção do A., revogando a decisão recorrida.*Como resulta dos autos a acção foi instaurada em 27/2/2009, depois da publicação no D.R. do Ac. do T.Constitucional n.º 23/2006 de 2/2, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do Art.º 1817º do CC., (aplicável ao caso por força do disposto no Art.º 1873º) e antes da publicação da Lei 14/2009 de 1/4, que alterou a redacção anterior dos Art.ºs 1817º e 1842º do C.C.. Assim, em consequência da referida declaração de inconstitucionalidade e da nova lei, o prazo geral para instaurar a acção de investigação da maternidade ou paternidade deixou de ser de 2 anos para passar a 10 anos, contados a partir da maioridade ou emancipação do investigante. Partindo da análise do mencionado Ac. do Tribunal Constitucional e demais jurisprudência sobre o assunto da mesma proveniência bem como da Lei 14/2009, o acórdão recorrido optou por não considerar inconstitucional a nova redacção do n.º 1 do Art.º 1817º do CC.. Considerou, porém, que a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral do dito preceito, repristinou a norma equivalente anterior, revogada pelo legislador do C.C. de 1966, ou seja a norma do Decreto n.º 2 de 1910, que determinava que a acção de investigação da paternidade ou maternidade só podia ser intentada em vida do pretenso pai ou mãe ou dentro do ano posterior à sua morte, concluindo, então, que, no caso concreto, sendo o pretenso pai (ora R.) vivo, a acção foi intentada tempestivamente. No entanto, confrontado com a norma de direito transitório do Art.º 3º da nova lei 14/2009, que expressamente determina a sua aplicação aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o acórdão recorrido chamou à colação as regras dos Art.ºs 12º n.º 1, 297 e 331 n.º 1 do C.C., à luz dos quais teceu as seguintes considerações: «O art.º 3º da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, embora mande aplicar as alterações por ela introduzidas aos artigos 1817 e 1842 do Código Civil aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (2/4/2009), não indica a forma como essa aplicação retroactiva deve ser efectuada, pelo que a esta são, subsidiariamente, aplicáveis o n.º 1 do art.º 12º e o n.º 1 do art.º 297º, ambos do Código Civil. - Nos termos do n.º 1 do art.º 12 do C.C., ainda que seja atribuída eficácia retroactiva à lei, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. - Ora, como nos termos do art.º 331º n.º 1, do Código Civil, a propositura da acção no prazo legal impede a caducidade do direito de acção e como este efeito impeditivo de caducidade, por força do disposto no n.º 1 do art.º 12º do C.C., fica ressalvado, no caso de publicação de nova lei com eficácia retroactiva, o direito do apelante, a investigar a sua paternidade, através desta acção, não caducou, em consequência da posterior publicação e vigência da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril. - E, caso o apelante, à data da entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, não tivesse instaurado esta acção de investigação da sua paternidade, ainda disporia, para o efeito, do prazo de dez anos, a contar da data da entrada em vigor (02/04/2009) daquela Lei, uma vez que esta Lei, relativamente ao repristinado artigo 130º do Código Civil de 1867, na redacção introduzida pelo D.L. n.º 2, de 25/12/1910, diminuiu o prazo legal para propositura da acção de investigação da paternidade, caso em que, por força do disposto no n.º 1 do art.º 297º do Código Civil, o novo prazo de dez anos se conta a partir da data da entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, ou seja, a partir de 02/04/2009 .....».*É contra o assim decidido pelo acórdão recorrido que se insurge o R., dele recorrendo, portanto, de revista para este S.T.J..*Conclusões*Oferecidas tempestivas alegações, formulou o recorrente as seguintes conclusões:*«1- Com o devido respeito, o douto acórdão recorrido errou ao decidir julgar improcedente a excepção de caducidade invocada pelo ora recorrente, porquanto; 2- Ressalvados os limites constitucionais, o legislador não está impedido de atribuir eficácia retroactiva às normas jurídicas por ele emanadas. 3 - O n.° 1 do artigo 12° do Código Civil tem um carácter subsidiário, só se aplicando nos casos em que o legislador não regula expressamente a aplicação no tempo da lei nova. 4 - A Lei 14/2009 de 01/04 contém uma norma de carácter transitório no seu artigo 3°, segundo a qual, o disposto naquela Lei é aplicável aos processos pendentes. 5- Contendo a lei nova, 14/2009, uma norma de carácter transitório que regula expressamente a sua aplicação no tempo, vedada está a aplicação do n.° 1 do artigo 12° do CC. e a presunção nele estabelecida. 6- Por consequência, também, fica prejudicada a aplicação do artigo 331° do Código Civil, isto porque, é a própria lei nova, através da norma de carácter transitório do seu artigo 3° a destruíra sua aplicabilidade a este caso. 7- O douto acórdão recorrido errou ao considerar que caso o recorrido ainda não tivesse instaurado a acção de investigação da sua paternidade antes da entrada em vigor da Lei 14/2009 ainda teria o prazo de 10 anos a contar da data de entrada em vigor desta Lei por força do artigo 297° do CC. 8- O prazo previsto no artigo 130° do Código de 1987, que o douto acórdão recorrido considerou repristinado por força do acórdão n.° 23/2006 do Tribunal Constitucional, não é passível de ser comparado, em termos da sua extensão temporal, com o prazo previsto na lei nova n.° 14/2009 de 01/04. 9- Uma vez que, o artigo repristinado faz depender o exercício do direito de acção de um facto incerto quanto ao momento da sua verificação, facto esse que é justamente a vida do pretenso pai. 10- Pelo que, o prazo nele previsto é tanto mais longo quanto maior for a longevidade do pretenso progenitor. 11- Com o devido respeito, o douto acórdão recorrido, também, errou ao não ter em conta todo o corpo da actual redacção do artigo 1817° do CC. 12- Uma vez que a actual redacção do artigo 1817° do CC. possibilita a interposição da acção de investigação da paternidade para além do prazo de 10 anos referido no seu n.° 1., conforme o disposto na sua Al. b) do n.° 3. 13- Pelas razões expostas, não podemos afirmar que a actual redacção do n.° 1 do artigo 1817° tenha vindo diminuir o prazo para a interposição da acção de investigação da paternidade. 14- Assim, ao não podermos estabelecer uma comparação, quanto à sua extensão, entre o prazo da norma repristinada e o prazo da lei nova, 14/2009 de 01/04, afastada está, também, a aplicabilidade ao presente caso do artigo 297° do Código Civil. 15- Ao julgar improcedente a excepção de caducidade do direito de acção invocada pelo ora recorrente, o douto acórdão recorrido violou a lei substantiva, porquanto, errou ao aplicar os artigos 12°, 297° 331° do Código Civil, quando devia ter aplicado o artigo 3° da Lei 14/2009 de 1 de Abril e artigos1817° e 1873° do Código Civil. Termos em que se requer a V. Ex.as se dignem revogar o douto acordo recorrido, mantendo-se a decisão proferida na douta sentença de 1ª instância. Assim se fazendo JUSTIÇA.».* Em conformidade com o despacho que antecede (fls. 169), o recorrente pronunciou-se sobre a questão da constitucionalidade/inconstitucionalidade da Lei 14/2009, quando alargou de 2 para 10 anos o prazo do n.º 1 do Art. 1817º do C.C.. É a questão que a seguir abordaremos, embora em sentido contrário, ao defendido pelo recorrente.*Fundamentação*Como se vê das conclusões a única questão suscitada é a de saber se a acção de investigação da paternidade aqui em causa caducou, como pretende o recorrente, ou é tempestiva como decidiu o acórdão recorrido.*Na aplicação do direito não está o tribunal sujeito às alegações das partes e deve mesmo apreciar as questões de direito que sejam do conhecimento oficioso, como é o caso (Art.º 333º do C.C.) e, sobretudo, não pode aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (Art.º 24º da C.R.P.), o que significa que deve apreciar a inconstitucionalidade das normas, em princípio aplicáveis ao caso, quando tal questão seja pertinente.*A matéria de facto em equação está suficientemente descrita no antecedente relatório e vimos já qual foi, perante ela, a solução jurídica adoptada pelo acórdão recorrido. Diga-se, desde já, que, concordando embora com a decisão (a acção é tempestiva), não acolhemos a fundamentação em que se apoia. Não interessará, no entanto, apreciar e rebater, ponto por ponto, a aliás douta argumentação do acórdão sob censura, porquanto, para nós, a questão põe-se a montante e passa, à partida, pela inconstitucionalidade de qualquer norma que estabeleça um prazo legal para que o filho possa investigar a verdade biológica da sua filiação. Por isso mesmo, a solução de repristinar as normas do Decreto n.º 2 de 1910, ensaiada no acórdão recorrido, esbarraria com a mesma questão da sua conformidade com a Constituição em vigor, desde logo, porque não se deixa de estabelecer um prazo para o exercício do direito de acção, ainda que condicionado a um facto futuro certo quanto à sua verificação, mas incerto quanto ao momento ou ao tempo em que se verifica (isto é, à morte do pretenso pai).*Consequentemente, a inconstitucionalidade que defendemos estende-se igualmente, à nova formulação do n.º 1 do Art.º 1817º de C.C. conferida pela Lei 14/2009, na medida em que, alargando o prazo de caducidade (de 2 para 10 anos) manteve uma limitação temporal para a propositura da acção. Daí a sua inaplicabilidade ao caso concreto, sem necessidade de chamar à colação o disposto nos Art.ºs 12º, 297º e 331º do C.C..*Resta justificar a orientação defendida, no sentido de que os prazos de caducidade impostos ao investigante, obstando que, a todo o tempo, obtenha o reconhecimento judicial da sua ascendência biológica se traduzem numa restrição, violadora dos princípios constitucionais consagrados nos Arts. 18º n.º 2, 26º n.º 1 e 36º n.º 1 da C.R.P., ou, dito por outras palavras, configuram uma restrição desproporcionada do direito à identidade das pessoas.*Recuperamos, aqui, na parte que ora interessa, a argumentação utilizada pelo Ac. deste Supremo Tribunal de 21/9/2010 (495/04 – 3TBOR.C!.S1) relatado pelo Ex.mo Cons. Sebastião Povoas e no qual foram adjuntos os aqui relator e 1º adjunto, que no essencial se reproduzirá. Vejamos.*Começará por se invocar o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 1 do Art.º 1817º do C.C. (redacção anterior à Lei 14/2009), na medida em que estabelecia um prazo de caducidade de 2 anos para a propositura da acção de investigação da paternidade, com o terminus a quo na maioridade do investigante.*Tal aresto, acolheu, reproduzindo-a, a argumentação do Ac. n.º 486/2004 de 7/7, do mesmo Alto Tribunal, a qual, por sua vez, havia sido confirmada pelo Ac. 11/2005 de 12/1 e sufragada pelas decisões sumárias 114/2005 de 9/3 e 288/2005 de 4/8.*Como consta das decisões referidas, ponderou-se, a respeito do prazo de caducidade estabelecido no n.º 1 do Art.º 1817º do C.C., que, apesar de a jurisprudência constitucional anterior ao Ac. 486/2004, ter sempre decidido pela constitucionalidade da fixação do prazo de caducidade estabelecido no citado preceito, a verdade é que se tem verificado «... uma progressiva, mas segura e significativa, alteração dos dados do problema constitucionalmente relevantes a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, designadamente, com o impulso científico e social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, e a generalização dos testes genéticos de muita elevada fiabilidade. Esta alteração não deixa incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade.” (…) “…nota-se também um movimento cientifico e social em direcção ao conhecimento das origens, com desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, que tem acentuado a importância dos vínculos biológicos (mesmo se porventura com exagerado determinismo). O desejo de conhecer a ascendência biológica tem sido tão acentuado, que se assiste a movimentações no sentido de afastar o segredo sobre a identidade dos progenitores biológicos, mesmo nos casos de reprodução assistida.» *Ora, tal “alteração dos dados do problema constitucionalmente relevantes ...”, que as citadas decisões desenvolvem exaustivamente, aponta claramente para a solução da imprescridibilidade da acção de investigação da paternidade/maternidade, ou seja, para a falta de justificação e de proporcionalidade que modernamente apoiem a existência de prazos de caducidade condicionando a instauração de tais acções. Não se ignora que o Ac. n.º 23/2006, refugiando-se no princípio do pedido, afirmou que, no caso, “... está apenas em apreciação o prazo de dois anos a contar da maioridade ou emancipação e não a possibilidade de um qualquer outro limite temporal para a acção de investigação da paternidade” não constituindo, por isso, objecto do recurso de constitucionalidade, “apurar se a impossibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente conforme ...”, acabou por não tomar posição directa sobre a referida imprescribilidade no seu segmento decisório, deixando, assim, margem para uma interpretação restritiva a permitir a substituição do prazo previsto no preceito declarado inconstitucional, por outro ou outros prazos mais alargados, como fez a Lei 14/2009, fazendo ressurgir a questão que a final, não ficou definitivamente resolvida.*Mas, por outro lado, considerando que o referido acórdão, acolhendo a argumentação do anterior Ac. 486/2004, confrontou e rejeitou a jurisprudência constitucional que até aí vinha sendo seguida, toda no sentido da conformidade constitucional do n.º 1 do Art.º 1817 do C.C., rebatendo-a nos seus fundamentos, ponto por ponto, com argumentação utilizada pelos defensores da não caducidade ou imprescritibilidade da acção de investigação da paternidade/maternidade, parece legítima a interpretação extensiva do dito aresto constitucional. Dir-se-á, como se fez no acórdão que vimos seguindo, que o referido aresto deve ser lido no seu todo e, se interpretado em coerência, só pode concluir-se que “minus dixit” no seu segmento final. No fundo, está implícito no referido Ac. a ideia da imprescritibilidade das acções onde esteja em causa o reconhecimento de paternidade ou maternidade, por respeito ao direito fundamental à identidade pessoal.* De qualquer modo, a verdade é que o estabelecimento da paternidade se insere no acervo dos direitos pessoalíssimos, entre os quais, o de conhecer a verdade biológica, a ascendência e marca genética, enfim, a inserção de cada um, numa genealogia com relevantes reflexos sociais e históricos. Trata-se, em suma, do direito à integridade moral e à identidade pessoal, direitos inalienáveis e absolutos, sempre garantidos pelos Art.ºs 25º n.º 1 e 26º n.º 1 da Constituição da R. Portuguesa. Como conclui Paulo Otero, a identidade pessoal tem uma dimensão absoluta ou individual, sendo infugível, indivisível e irrepetível e uma dimensão relativa, com a “história “ ou “memória” de cada um, própria e exclusiva da sua identidade (in “Personalidade e Identidade Pessoal e Genética de Ser Humano – um perfil constitucional de bioética –).*Da mesma forma, como observam os Prof. Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito à identidade pessoal, tal como está consagrado no Art.º 26º n.º 1 da Constituição, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores pode fundamentar em si um direito à investigação da paternidade e da maternidade (cof. Const. da Rep. Port. Anotada – 4ª ed. I – 462).*E outra não é a conclusão a que tem chegado a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que nunca pôs em dúvida que, seja do direito à integridade pessoal, em particular do direito à integridade moral (Art. 25º n.º 1), seja do direito à identidade pessoal, pode e deve extrair-se um verdadeiro direito fundamental ao conhecimento da paternidade/maternidade. Aliás, um tal direito, inclui o direito à identidade genética própria e, em consequência ao conhecimento dos vínculos de filiação “no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo factor genético” (cof. Prof. Jorge Miranda e Dr. Rui Medeiros in Const. da Rep. Port. Anotada – 2005, I, 204/205).*Aderindo, sem reservas, a estas reflexões e à conceptualização do direito a conhecer a sua ascendência e de estabelecer um vínculo biológico conducente ao estabelecimento de um vínculo jurídico, parece poder concluir-se com segurança, que o Estado não pode limitar o assentamento da filiação/identidade pessoal, com limitação de prazos independentemente da sua duração, extensão e “terminus ad quem”. Aliás, vai nesse sentido a mais recente jurisprudência deste S.T.J., como pode ver-se, para além do Ac. já citado e cuja argumentação temos vindo a reproduzir, no essencial, dos seguintes arestos: — Ac. do S.T.J. de 14/12/2006 – 06A2489; — Ac. do S.T.J. de 23/10/2007 – 07A2736; — Ac. do S.T.J. de 31/1/2007 – 06A4303; — Ac. do S.T.J. de 17/4/2008 – 08A474; — Ac. do S.T.J. de 8/6/2010 – Proc. 1847/08; — Ac. do S.T.J. de 21/9/2010 – Proc. 4/07; — Ac. do S.T.J. de 27/1/2011 – Proc. 123/08 ou — Ac. do S.T.J. de 6/9/2011 – Proc. 1167/10 (subscrito como 2º adjunto pelo aqui relator).*Todos afirmando que o direito à identidade pessoal, nele incluído o direito de conhecer e ver reconhecida a sua ascendência biológica, configura um direito de índole pessoalíssima e imprescritível consagrado constitucionalmente, daí que o estabelecimento de prazos de caducidade, sejam eles quais forem, a condicionar a instauração de acções de investigação de paternidade/maternidade, traduzem-se em restrições desproporcionadas ao direito à identidade pessoal e ao direito à integridade moral, violadoras da Constituição.*Só assim não seria se essas restrições pudessem ser tidas como proporcionais, o que passa por analisar os fundamentos que tem sido utilizados neste sentido. Destacam-se, de entre eles: — a segurança jurídica dos pretensos pai e herdeiros; — a perda ou “envelhecimento” das provas, e — o escopo “caça fortunas”.*São, no entanto, facilmente rebatíveis.* Quanto ao primeiro, bastaria dizer-se que conflituando o direito ao conhecimento da ascendência e verdade biológica com a “tranquilidade” do suposto pai (e muito menos de herdeiros a defenderem interesses puramente patrimoniais), sempre deveria prevalecer o primeiro já que, como se afirmou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2008 – 08 A474 – “esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito de personalidade é um direito inviolável e imprescritível”. Refere ainda o mesmo aresto que “países como a Itália, a Espanha e a Áustria, optaram pela imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade, por considerarem que “a procura do vínculo omisso do ascendente biológico é um valor que prevalece sobre quaisquer outros relativos ao pretenso progenitor.” Mas mais diremos quanto a esta primeira “razão”: O Prof. Guilherme de Oliveira (in “Caducidade das Acções de Investigação”, 53) refere que a garantia de segurança jurídica “tem sentido principalmente no âmbito patrimonial de onde emergiu, afinal, todo o direito civil”. (…) “Os eventuais onerados precisam, de um ponto de vista da sua organização patrimonial de saber a partir de que momento é que podem confiar na propriedade do bem adquirido, na disponibilidade de uma soma em dinheiro, ou a partir do momento em que já não precisam de estar financeiramente prevenidos para proceder a um pagamento, ou orçamentar uma despesa de indemnização.” Mas não poderão privilegiar-se direitos patrimoniais perante os direitos pessoalíssimos de personalidade e de identidade e os danos eventualmente causados à reserva da vida privada e familiar do pretenso pai não ficarão agravados com o decurso do tempo. *Quanto ao chamado “envelhecimento” das provas, trata-se de razão completamente irrelevante hoje em dia. De facto, se, em 1966, e ainda em 1977, não era fácil a determinação exacta da filiação biológica, o certo é que na última reforma o legislador já concedeu consagrar expressamente como meios de prova “os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados”. Quanto aos primeiros, recorria-se à conjugação dos grupos sanguíneos (ABO e factor Rhesus) que apenas garantiam uma possibilidade ou uma exclusão, sendo utilizados, sobretudo, para a criação das “dúvidas sérias” referidas no n.º 2 do artigo 1871.º citado. Tinham, entretanto, sido abandonados os exames antropológicos e, de alguma forma, os heredobiológicos, considerados apenas com vocação auxiliar da prova. (cf., a propósito, o Cons. Simões Correia, “Da Investigação da Paternidade Ilegítima”, 1935, 151-157; Dr. Vítor Pereira Nunes, in “Tratado de Filiação Legitima e Ilegítima”, 1963, 638 e ss. e Cons. Santos Silveira, ob. cit., 377). O grande avanço da ciência surge com o ADN (em português, ácido desoxirribonucleico) ou DNA (em inglês, deoxyribonucleic acid) como composto orgânico cujas moléculas contém as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos e de alguns vírus, cuja estrutura molecular foi descoberta em conjunto pelo norte americano James Watson e pelo britânico Francis Crick, prémios Nobel da Fisiologia/Medicina, juntamente com Maurice Wilkins, em 1962. Com aplicações na engenharia genética, na bioinformática, na nanotecnologia, na história e na antropologia, é na medicina legal – áreas criminal e civil – que através da determinação da impressão genética (ou perfil de ADN) que se torna de alta fiabilidade a identificação de pessoas, já que cada uma possui uma codificação diferente de instruções escritas, sendo que a dupla cadeia polinucleatídica constitui a molécula de ADN, cuja sequência de nucleatídeos codifica as instruções hereditárias, organizadas em genes, que codificam as inúmeras proteínas existentes nas células. (cf., v.g., W L Miller “Use of recombinant DNA technology for the production of polypeptides”, 1979, 118, 153-74; D. Job, “Plant biotechnology in agriculture”, 2002, 84 (11), 1105; Pierre Baldi, “Bioinformatics”; The Machine Learning Approach”, MIT Press, 2001; P Yin, R F Horiadi e S. Choi, “Programming DNA Tube Circumferences”, apud “Science”, 321, 824; Yaakov Kleiman “The Cohanim/DNA Connection: The fascinating story of how DNA studies confirm an ancient biblical tradition”, 2000; e, na parte que aqui mais releva, A. Jeffreys, Wilson V., Thein S., “Individual – Specific fingerprints of human DNA”, 1985, in “Nature”, 316 e “DNA Identification in Mass Fatality Incidents”, National Institute of Justice”, 2006). Na investigação de paternidade a fiabilidade é quase total (superior a 99,99%). Ao contrário, se os perfis genéticos do filho e do presumível pai não coincidem em pelo menos dois dos indicadores submetidos à análise a paternidade é improvável em 100%. Do exposto resulta que, actualmente, a paternidade biológica é determinável com todo o rigor e fiabilidade. *Assim, actualmente, para além do que se disse a respeito do ADN, pode afirmar-se que, mesmo quando muitos anos depois, o pretenso pai tem de ser exumado, tal não impede a recolha de material genético (restos obtidos no seu meio, envelopes, selos; no meio hospitalar; biopsias, doações de sangue; em exumação, grandes ossos e dentes ou testes indirectos com reconstituição do perfil genético a partir de amostras de parentes do falecido) que até pode existir sob outras formas no meio familiar em peças de vestuário (vestígios de sangue, de esperma e de outros fluidos) ou como memória resguardada (v.g., cabelos com raiz) que, em princípio, não são impeditivos da perícia médico-forense. Mas o “envelhecimento” da prova sempre poderia invocar-se para qualquer outro tipo de lide intentada decorrido muito tempo, sendo que tal não impôs, só por si, o estabelecimento de prazos de caducidade para accionar. (vejam-se, v.g., certas lides reivindicatórias, a busca do trato sucessivo e a demonstração de algumas formas originárias de adquirir). Ainda se diria, como o Prof. Guilherme de Oliveira, que “morrem as testemunhas, mudam os lugares, é certo, mas nada disso altera verdadeiramente o caminho que as acções seguem e que hão de seguir cada vez mais no futuro”.*Finalmente no que se refere ao argumento de “caça fortunas”, se é certo que nem sempre o propósito ou o fim que se pretende obter com a lide é pio e límpido. Porém, e para tal limitar/obviar existem, entre outros, os institutos substantivos do abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil) de outro tipo de actuações abusivas (artigos 269.º e 1482.º do Código Civil) da fraude à lei, em sede de aplicação de normas de conflitos (artigo 21.º do Código Civil) e adjectiva da litigância de má fé ou mesmo temerária (artigo 456.º do Código de Processo Civil). Aliás, o legislador de Macau no Código Civil aí elaborado (Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto) e ainda vigente na actual R.A.E.M., dispôs a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade (n.º 1 do artigo 1677.º) acautelando expressamente o “caça fortunas” ao dispor, no artigo 1656.º a ineficácia patrimonial do estabelecimento da filiação em acção de investigação se intentada “decorridos mais de 15 anos após o conhecimento dos factos dos quais se poderia concluir a relação de filiação (n.º1, a)) ou quando “as circunstâncias tornem patente que o propósito inicial que moveu a declaração ou a proposição da acção foi o da obtenção de benefícios patrimoniais.” Diz-se, a propósito, na “Breve Nota Justificativa” desse diploma que com a norma “pretendeu-se criar mecanismos que impedissem, em casos limite, os efeitos perversos resultantes da constituição tardiamente negligente do vínculo de filiação com propósitos de mero enriquecimento patrimonial” (…) permitindo a limitação dos “resultados indirectos que estariam normalmente associados à constituição do vínculo de filiação.” Esta solução que, poderia ser ponderada em futura revisão da lei, foi colhendo apoios, mesmo com afastamento do princípio da indivisibilidade ou da unidade do estado, como o Dr. Jorge Duarte Pinheiro, in “Cadernos de Direito Privado”, 15.º, 52. *Note-se, que, já em 1999, a Provedoria da justiça recomendou que a lei fosse alterada no sentido de “a par da existência de prazos para a propositura da acção com fins patrimoniais, ser consagrada a imprescritibilidade para a propositura de acções de investigação da paternidade/maternidade, desde que os efeitos pretendidos sejam de natureza meramente pessoal” (Recomendação do Provedor de Justiça n.º 36/B/99 de 22/12/99). Na sequência, foi apresentado um projecto de lei (Projecto n.º 92/IX) pelo partido “Os Verdes”, publicado no DAR II S n.º 18 de 4/7/2002, que aditava ao Art.º 1817º um n.º 7, em que se dispunha “... desde que os efeitos pretendidos sejam de natureza meramente pessoal, a acção de investigação de maternidade pode ser proposta a todo o tempo”. Tal iniciativa legislativa acabou por caducar.*Para além do que se deixou referido há ainda que ponderar que o direito à verdade da filiação biológica não é só do investigante, mas é também do Estado.*A ordem pública impõe o impedimento dirimente absoluto do casamento entre duas pessoas parentes na linha recta ou no segundo grau da linha colateral (artigo 1602.º do Código Civil). E fá-lo não só no propósito de vedar relações incestuosas “com todas as razões de ordem ética, eugénica e social que fazem dessa proibição um dos tabus mais profundos da humanidade” (cf. Prof. Pereira Coelho, in “Curso de Direito da Família”, 1987, 274). Ora, não aceitando – por razões de menor relevância – o reconhecimento jurídico do vínculo biológico, abre-se uma porta para admitir o incesto, com toda a sua carga negativa para a sociedade. Por isso, sempre que haja demonstração da paternidade biológica, também é do interesse do Estado e da sociedade o seu inevitável reconhecimento legal. * Com toda a certeza, foram todos os progressos científicos referidos, bem como a evolução social entretanto verificada, que está na base da revisão da posição doutrinária do Prof. Guilherme de Oliveira, que, tendo chegado a defender a justeza e conveniência de estabelecer prazos de caducidade para a instauração das acções de investigação da paternidade/maternidade, hoje reconhece que a questão tem de ser equacionada noutros parâmetros, afirmando que, “Nesta balança em que se reúnem argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade de acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso. Desde logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura em exagero; e com isso têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica. Nestas condições, o «direito à identidade pessoal» e o «direito à integridade pessoal» ganharam uma dimensão nova que não pode ser desvalorizada”. Conclui, assim, ser sustentável “alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos Art.ºs 1817º e 1873º do C. Civil”, tornando-se o direito dos filhos investigantes exercitável a todo o tempo, durante a sua vida contra o suposto pai ou contra outros legitimados em seu lugar. (cof. Caducidade das Acções de Investigação, apud “Comemorações dos 35 anos do C. Civil e dos 25 anos de Reforma de 1977 – Vol. I; cof. também do mesmo antes e de Francisco Pereira Coelho – Curso de Direito de Família – Vol. II – 247/254). No mesmo sentido da inconstitucionalidade de normas que estabeleçam prazos de caducidade para a instauração das mencionadas acções, pronuncia-se expressamente Jorge Duarte Pinheiro no douto Comentário que fez ao Ac. do T. Constitucional n.º 23/2006, publicado nos Cadernos de Direito Privado – n.º 15 – 32 e seg. – , onde pode ler-se “num ordenamento como o nosso, em que a acção de investigação da paternidade ou maternidade constitui o meio que assiste ao pretenso filho para obter o reconhecimento judicial da sua ascendência biológica, penso que os prazos de caducidade configuram uma restrição desproporcionada do direito à identidade pessoal, mais precisamente do direito à identidade pessoal relativa ou à historicidade pessoal, consagrado no Art.º 26º n.º 1, da C.R.P.”.* Postas estas prévias considerações há, então, que concluir que arredados os antigos fundamentos que justificaram, em certo momento histórico, o estabelecimento dos aludidos prazos de caducidade, por actualmente, completamente irrelevantes, porque não podem sobrepor-se à dignidade e dimensão constitucional do direito fundamental à identidade e integridade pessoal ou ao direito ao desenvolvimento da personalidade, que em si mesmos incluem o direito de conhecer e ver reconhecido a ascendência biológica e marca genética de cada pessoa, ou porque os eventuais inconvenientes que a indagação do vínculo de filiação possa acarretar na esfera jurídica dos pretensos progenitores ou na dos seus herdeiros, podem ser acauteladas pelo recurso a outros meios jurídicos, que não contendam com os referidos direitos fundamentais, porque proporcionais aos interesses em confronto, há que concluir, dizíamos, que a fixação de tais prazos de caducidade condicionantes da instauração das acções de investigação da paternidade ou maternidade, são manifestamente inconstitucionais porque violam, de forma desproporcionada, os referidos direitos fundamentais (Art.ºs 16º n.º 1, 18º n.º 2, 26º n.º 1 da C.R.P.).*Como assim, declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral do n.º 1 do Art. 1817º do C.C., na redacção anterior, pelo citado Ac. n.º 23/2006, não deixa de ser inconstitucional (pelas mesmas razões substanciais), a nova redacção do preceito, conferida pela Lei 14/2009, que se limitou a substituir o prazo de 2 anos pelo prazo de 10 anos. Por isso se desaplica ao caso concreto a nova redacção do n.º 1 do Art.º 1817º do C.C., o que significa que a presente acção de investigação da paternidade não caducou, como pretende o recorrente, sendo antes tempestiva, devendo, portanto, prosseguir seus ulteriores termos.* Fica assim prejudicada, a questão de aplicação da norma transitária prevista no Art.º 3º da Lei 14/2009, como é óbvio.* Todavia, sempre se dirá que a solução do caso concreto não se alteraria, caso se tivesse por conforme com os princípios constitucionais, o novo prazo de caducidade de 10 anos constante da nova redacção do n.º 1 do Art.º 1817º do C.C. (situação que se equaciona apenas como mera hipótese de raciocínio).*O Art.º 3º da Lei 14/2009, determina que a presente lei aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor. Quer dizer, impõe a sua aplicação retroactiva a tais processos pendentes. Ora, no caso concreto, a acção deu entrada no Tribunal numa altura em que, tendo sido já declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, do n.º 1 do Art,º 1817º do C.C., ainda não tinha sido publicada a Lei 14/2009, que deu nova redacção ao referido preceito. Significa que, à data da instauração da acção, a norma do n.º 1 do Art.º 1817º, por força daquela declaração de inconstitucionalidade, foi, pura e simplesmente eliminada do nosso ordenamento jurídico, razão porque deixou de existir o prazo geral para a propositura das acções de investigação da maternidade ou paternidade (ou, para quem defenda a represtinação do direito anterior, a acção podia sempre ser intentada durante a vida do pretenso pai, sendo certo que, no caso dos autos, este está vivo, sendo, pois, o R.). Foi, por conseguinte, à luz deste regime vigente à data, que o A. intentou a presente acção, sendo certo que, então, nenhuma dúvida se podia colocar quanto à sua tempestividade.*Assim sendo, como se diz no Ac. deste S.T.J. de 21/9/2010 (que apreciou questão idêntica à hipótese ora considerada), “a aplicação retroactiva desta lei (refere-se a Lei 14/2009) aos processos pendentes à data da entrada em vigor ... frustra a confiança depositada pelo autor – confiança que o levou a propor a acção – num entendimento consolidado, segundo o qual o direito não estaria sujeito a prazo de caducidade”. Nesta conformidade parece evidente que, na verdade, a aplicação ao caso dos autos da norma transitória (Art.º 3º da Lei 14/2009) constituiria flagrante violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança legítima, ínsitos no princípio do Estado democrático, decorrente do Art.º 2º da Const. Da Rep. Port..*Por outro lado, dada a dimensão constitucional conferida ao direito à identidade pessoal, com todo o conteúdo normativo que acima lhe assinalámos, mesmo que se admitisse ser conforme com as normas constitucionais de protecção desse direito, o estabelecimento de prazos de caducidade, condicionantes da instauração de acções de investigação da maternidade ou paternidade (já vimos que não aderimos a uma tal orientação, que apenas consideramos como mera hipótese de trabalho), e por isso se concluísse pela não inconstitucionalidade do n.º 1 do art.º 1817º, na nova formulação (Lei 14/2009), o certo é que a sua aplicação retroactiva a processos pendentes, (após um período de quase dois anos em que esse prazo geral não existiu) instaurados legítima e tempestivamente durante esse período de carência legislativa, iria afectar negativamente, de forma substancial, as posições jurídicas subjectivas dos titulares de tal direito, que ficariam impedidos, por força da nova lei, de prosseguirem as investigações que antes podiam levar por diante. Nestas circunstâncias, a lei nova nunca poderia ter efeito retroactivo, como expressamente determina o n.º 3 do Art. 18 da Constituição da Rep. Port..*Quer dizer, a norma transitória do Art. 3º da Lei 14/2009, sofreria, então, de manifesta inconstitucionalidade por violação dos Art.ºs 2º e 18º n.º 3 da Constituição, na exacta medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo de caducidade (10 anos) previsto na nova redacção do n.º 1 do Art.º 1817º do C.C..*Aliás, foi exactamente neste sentido que, perante idêntica situação, se pronunciou o Tribunal Constitucional, no douto Ac. n.º 164/2011, publicado no D.R. – 2ª Série – n.º 93 de 13/5/2011, decidindo «Julgar inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 18 da Constituição, a norma constante do Art.º 3º da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor o prazo previsto na nova redacção do artigo 1817º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código;».*Por conseguinte, mesmo na hipótese ora equacionada, nunca seria de aplicar retroactivamente a nova redacção do n.º 1 do Art.º 1817º do C.C., pelo que a acção em causa, intentada antes da entrada em vigor da Lei 14/2009, seria tempestiva e teria de prosseguir.* Conclusões1ºO estabelecimento da paternidade insere-se no acervo dos direitos pessoalíssimos, entre os quais, o de conhecer e ver reconhecida a verdade biológica da filiação, a ascendência e marca genética de cada pessoa;2ºContém, em si mesmo, por isso, o direito de investigar a maternidade ou paternidade;3ºTal direito fundamental tem protecção constitucional, como vertente que é, do direito a integridade moral, à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (Art.ºs 16º, 18º, 25º n.º 1 e 26º n.º 1 da C.R.P.);4ºO Estado não pode, pois, restringir o assentamento da filiação/identidade pessoal, através de prazos de caducidade, sejam eles quais forem.5ºO direito a investigar a paternidade ou maternidade é, portanto, imprescritível, não se justificando qualquer limite temporal para o seu exercício.6ºO douto Ac. do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, que declarou a inconstitucionalidade, como força obrigatória geral, do n.º 1 do Art.º 1817º do C. Civil “... na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante”, apesar da aparente limitação do seu segmento decisório, contém em si a ideia da imprescritibilidade das acções que tenham por objecto o reconhecimento judicial da paternidade ou maternidade.7ºA redacção actual do n.º 1 do Art.º 1817º do C. Civil, conferida pela Lei 14/2009, é também ela inconstitucional, por violação dos Art.ºs 16º n.º 1, 18º, 25º n.º 1, 26º n.º 1 e 36º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.* Decisão*Termos em que, acordam neste S.T.J., em negar revista, confirmando o acórdão recorrido, embora com fundamentação jurídica diversa.*Custas pelo recorrente.*Lisboa, 10 Janeiro de 2012. Moreira Alves (Relator) Alves Velho Paulo Sá

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