1. Constitui causa de pedir nas acções de investigação da filiação o facto jurídico da procriação biológica, e esta pode ser demonstrada de forma directa, através dos exames hematológicos ou outros métodos cientificamente comprovados, ou de forma indirecta através do recurso das presunções legais estabelecidas no artigo 1871.º do Código Civil, ou de presunções naturais ou judiciais, apelando às regras de experiência comum; 2. Extrai-se do artigo 1801º do Código Civil o princípio da liberdade da prova, pelo que, no âmbito do processo de investigação da filiação, sempre será, não só admissível, como até, sempre que possível, exigível, a realização de testes de ADN, os quais face ao avanço da ciência médica e da genética constitui a forma mais fiável de estabelecimento do vínculo biológico. 3. O direito à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1 da CRP, associa-se ao direito de constituir família, consagrado no artigo 36.º, n.º 1 da CRP, abrangendo ambos na sua esfera de protecção o direito ao conhecimento da paternidade e o direito à constituição e/ou destruição do respectivo vínculo jurídico e destina-se, fundamentalmente, a tutelar o direito do filho que pretende conhecer a sua identidade biológica, a sua ascendência e proveniência familiar. 4. Inexiste qualquer discriminação negativa do homem em razão do género, no que respeita ao estabelecimento da filiação biológica, nos casos em que uma pessoa com pai ou mãe desconhecido pode ser seu filho, visto que é possível proceder ao reconhecimento judicial de tal filiação – a paternidade ou maternidade biológica – contra a vontade do possível progenitor, pois tal resulta, em relação ao pretenso pai, dos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil, e, em relação à pretensa mãe, dos artigos 1808.º, n.º 4, e 1814.º do mesmo diploma. 5. Não interfere com o princípio da igualdade o facto de a mulher poder, dentro de certas condições, interromper voluntariamente a gravidez, independentemente da vontade do putativo pai, e este não poder recusar, após o nascimento, o estabelecimento do vínculo jurídico da paternidade.
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I. RELATÓRIO O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou, em 13.11.2015, contra ABÍLIO ....., residente na ……, acção de investigação oficiosa de paternidade, em processo comum e na forma ordinária, através da qual pede se declare para todos os efeitos legais que a menor MARIA ....é filha do réu e que seja ordenado à Conservatória do Registo Civil de Loures o averbamento do reconhecimento judicial dessa paternidade e da avoenga paterna no assento de nascimento da menor. Fundamentou, o Mº Pº, no essencial, esta sua pretensão da forma seguinte: 1. No dia 7 de Dezembro de 2013, na freguesia de Loures, nasceu a menor Maria …, que foi registada apenas como filha de Sofia ..., encontrando-se omissa a paternidade. 2. A menor é também filha do réu, com quem a progenitora manteve uma relação de namoro, entre 31 de Julho de 2012 e meados de Abril de 2013. 3. Durante os primeiros 120 dias que precederam o nascimento da menor, a mãe desta só manteve relações sexuais com o réu. 4. Foi efectuado exame pericial para investigação de parentesco biológico, que conduziu a uma probabilidade de 99,99999997 do réu, ser o pai. 5. Deve ser declarado que a Maria ....é filha do réu Abílio... e ser ordenado à CRC de Loures o averbamento do reconhecimento judicial dessa paternidade e da avoenga paterna, no assento de nascimento da menor. Citado, o réu apresentou contestação, em 04.01.2016, assumindo ter mantido um relacionamento amoroso com a mãe da menor, mas alegou que o mesmo terminou durante os primeiros 120 dias que precederam o nascimento e que desconhece se a progenitora da menor teve relações sexuais com outros homens, além do réu, ao que acresce o facto de o resultado do relatório pericial não ter revelado uma probabilidade de 100% de o réu ser o progenitor da menor Maria …. Pediu ainda o réu, na sua contestação, a realização de novo exame pericial de cariz hematológico, a suportar através do apoio judiciário por este requerido e que, sendo indeferido o exame pericial, seja a acção julgada improcedente e, consequentemente, indeferidos os pedidos formulados. O M.ºP.º teve vista no processo, em 03.02.2016, e opôs-se à realização de novo exame pericial hematológico e requereu a condenação do réu em indemnização e multa a favor do Estado. Por requerimento de 17.03.2016, o réu veio desistir do exame pericial que havia solicitado na sua contestação. Por despacho de 12.04.2016, foi considerado prescindido o pedido de realização de novo exame pericial e prejudicado o pedido de condenação em multa ou indemnização a favor do Estado. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio, selecionados os factos assentes e enunciados os temas da prova. Foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, em 16.05.2016, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, em 08.07.2016, constando do Dispositivo da Sentença, o seguinte: Face do exposto, e ao abrigo das citadas disposições normativas, julga-se totalmente procedente, por provada, a presente acção, e, consequentemente: a) declara-se a menor Maria ....filha do Réu Abílio...; b) ordena-se o averbamento da respectiva paternidade e da avoenga paterna no Assento de Nascimento da menor. Custas pelo R., sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Notifique e registe. Após trânsito, comunique à Conservatória do Registo Civil de Loures. Valor da acção: € 30.000,01. Inconformado com o assim decidido, o réu interpôs, em 29.09.2016, recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada. São as seguintes as CONCLUSÕES do recorrente: i. Não se conformando com a sentença proferida pelo douto tribunal a quo, o réu vem interpor o presente recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, da decisão proferida, pois, no seu entender, a sentença sub judice padece do vício de inconstitucionalidade material por violação do disposto no artigo 13.º, n.º 2 da CRP, na medida em que interpretou os artigos 1865.º, n.º 5 e 1869.º e seguintes do CC, no sentido de que é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor. ii. A respeito da temática sub judice importa observar o teor do artigo 67.º, n.º 2, alínea d), da CRP. iii. A identidade de interesses e a semelhança das situações entre o direito da mulher à determinação do momento adequado para exercer a maternidade (ou não, ou mesmo nunca) e o aqui discutido direito do homem a determinar o momento adequado para exercer a paternidade (ou não, ou mesmo nunca), implicará que todos os argumentos aplicados à situação da mulher aquando dos referendos efectuados em Portugal em torno da I.V.G. e aquando da subsequente decisão do legislador de a despenalizar, nos termos referidos no artigo 142.º, n.º 1, al. e), do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, seja aplicável agora, de modo semelhante, ao homem. iv. Os interesses (ou critério de determinação da igualdade relativa) subjacentes à vontade de não procriar são substancialmente iguais para mulheres e homens – a autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade – sendo estes interesses que o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro RUI MOURA RAMOS referiu no seu voto de vencido no Acórdão n.º 75/2010, do TC. v. E nem se invoque, em defesa da interpretação apresentada pela douta sentença, o "interesse do menor" ou o direito do mesmo à sua identidade/filiação. vi. A declaração de inconstitucionalidade das citadas normas não implica uma violação do direito ao nome, até por nada obrigar, actualmente, a que os apelidos da menor sejam, também, os do pai, pois a lei admite que a criança possa ter apelidos só da mãe, como resulta do artigo 1875.º, n.º 1 do CC. vii. Pelo Acórdão n.º 401/2011 do TC foi decidido que o direito a conhecer a paternidade biológica (ou direito ao conhecimento das origens genéticas) e o de estabelecer o respectivo vínculo jurídico, não são valores absolutos, tendo de ser compatibilizado com outros, como o da reserva da vida privada. viii. Note-se que mesmo no nosso ordenamento jurídico se prevê, em alguns casos, a relativização do vínculo genético: artigo 1839.º, n.º 3 do CC, não é permitida a impugnação da paternidade com fundamento em inseminação artificial ao cônjuge que nela consentiu, e, na Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, o teor do artigo 10.º, n.º 2, os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vai nascer e o do artigo 21.º, o dador de sémen não pode ser havido como pai da criança que vier a nascer, não lhe cabendo quaisquer poderes ou deveres em relação a ela. ix. Dúvidas não subsistirão de que, no nosso ordenamento jurídico, se mostra consagrada a autodeterminação parental da mulher, pois está legalmente consagrada a possibilidade de a mulher optar pela interrupção voluntária da gravidez até à décima semana - cf. Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, que alterou a redacção do artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal, aditando ainda ao mesmo a alínea e). x. Sendo que a vontade do homem não é acautelada juridicamente nos casos em que este pretenda que o filho nasça e a mulher não, abortando. xi. Não só a mulher é livre de não ter um filho que o homem quer, como também é livre de o ter quando o homem não o quer, como no caso dos autos. xii. No mencionado Acórdão n.º 75/2010 do TC foi tido em devida conta que para a mulher o respeito pela vida intrauterina não se traduz apenas, como para terceiros, num dever de omitir qualquer conduta que a ofenda, vindo também a implicar, após o nascimento, na vinculação, por largos anos, a deveres permanentes de manutenção e cuidado para com um outro, os quais oneram toda a sua esfera existencial. xiii. Tendo a interrupção voluntária da gravidez, por mera opção da mulher, sido introduzida no ordenamento jurídico e considerada compatível com o teor dos artigos 24.º (direito à vida), 25.º (direito à integridade pessoal) e 36.º (família, casamento e filiação) da CRP enquanto corolário do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e do direito à reserva da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1, C.R.P.), ficou consagrada a tutela do direito à autodeterminação negativa em sede de procriação, para a mulher, discriminando o homem em razão do sexo atentos os artigos 1865.º, n.º 5 e 1869.º e seguintes do CC, na interpretação de que é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor. xiv. De facto, resultou provado que apesar de não ser vontade do ora recorrente que a menor nascesse, tendo o mesmo manifestado vontade de a progenitora efectuasse uma interrupção voluntária da gravidez, a progenitora recusou “abortar” e, contra a vontade do pretenso progenitor, levou a gravidez até ao fim, vindo a menor MARIA ....a nascer na sequência da mesma. Como tal, a decisão de interromper (ou não) voluntariamente a gravidez e dar à luz (ou não) a menor foi tomada única e exclusivamente por iniciativa da progenitora da menor. xv. Porém, os presentes autos de reconhecimento judicial da paternidade foram instaurados oficiosamente sem que o pai tivesse prestado qualquer consentimento para o efeito. Dai decorre que, por um lado, a progenitora da menor teve oportunidade de decidir sozinha, e sem qualquer intervenção do ora recorrente, se levava ou não a cabo a interrupção voluntária da gravidez e, consequentemente, se daria ou não à luz a menor Maria ….. xvi. Diferentemente, o ora recorrente, cuja posição nunca foi atendida para efeitos de decisão quanto a eventual interrupção voluntária da gravidez, viu contra si instaurado oficiosamente o presente processo de reconhecimento judicial da paternidade, sem que tenha a isso dado qualquer consentimento. xvii. O ora recorrente sempre foi tratado nestes autos, bem como nos de averiguação oficiosa da paternidade, como se de um criminoso se tratasse, apenas pelo simples facto de não ter levado a cabo a perfilhação voluntária da menor (vide, a este respeito, sucessivas posições do Ministério Público e sugestão de aplicar ao ora recorrente indemnização ou multa a favor do Estado pelo simples facto de o réu ter sugerida a realização de novo exame pericial). xviii. Entende o recorrente que o tratamento diferenciado concedido à progenitora e ao pretenso pai é manifestamente atentatório do princípio da igualdade em razão do sexo, previsto no artigo 13.º, n.º 2 da CRP. xix. Pelo exposto, requer-se a V. Exas. que seja declarada inconstitucional a interpretação feita pela douta sentença sub judice aos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º e seguintes do Código Civil, segundo a qual é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor, na medida em que a mesma viola o principio da igualdade em razão do sexo, previsto no artigo 13.º, n.º 2 da CRP e, consequentemente, seja revogada a decisão proferida e anulado todo o processado nos presentes autos, desde o seu início. Pediu, por isso, o apelante, que o recurso seja julgado procedente e, em consequência, seja revogada a sentença proferida, bem como declarada inconstitucional a interpretação feita na sentença aos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º e seguintes do Código Civil, segundo a qual é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor, na medida em que a mesma viola o principio igualdade em razão do sexo, previsto no artigo 13.º, n.º 2 da CRP e, consequentemente, seja anulado todo o processado nos presentes autos, desde o seu início. O Ministério Público apresentou contra-alegações, em 28.11.2016, propugnando pela manutenção da sentença recorrida, que se revela justa e equilibrada, não merecendo qualquer reparo, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES: i. Quanto à diferença de tratamento entre a Mulher e o Homem existente no nosso ordenamento jurídico, no que se refere aos aspectos referidos pelo recorrente, designadamente, quanto à possibilidade de escolher os momentos da maternidade e da paternidade, parece-nos ser possível defender tal posição (com aliás o faz o recorrente), contudo, sempre se dirá (e esta é talvez a pedra de toque de toda a questão suscitada pelo recorrente) que qualquer ordenamento jurídico deve tratar de forma igualo que é igual e de forma diferente o que é diferente. No caso, é diferente a situação da maternidade daquela da paternidade, desde logo e, sobretudo, porque é o corpo da Mulher que está em causa, não fazendo sentido (salvo o devido respeito por melhor opinião), na sociedade moderna e igualitária em que vivemos, obrigar uma mulher a ter um filho que não deseja ou obrigar uma mulher a fazer lima interrupção voluntária de gravidez, relativamente, a um filho que deseja. ii. De qualquer modo, salvo o devido respeito, aquela é uma discussão académica que não releva, directamente, para a situação em apreço nos autos, desde logo porque, tendo a menor Maria .. nascido, o que está em causa agora são os direitos da menor. iii. A este propósito refere o recorrente "E nem se invoque, em defesa de interpretação apresentada pela douta sentença, o "interesse do menor" ou o direito do menor à sua identidade/filiação"." Contudo, não explicita por que razão não se deve invocar tais aspectos, sendo certo que, actualmente, o direito da família em Portugal é, todo ele, enformado pelo conceito (ainda que juridicamente indeterminado) de "superior interesse do menor." iv. Quanto ao que o recorrente designa por "relativização do vínculo genético", tratase, salvo melhor opinião de uma discussão ociosa que não releva para a questão em apreço nestes autos, como resulta dos exemplos dados pelo próprio recorrente que se refere à "inseminação artificial", situação que nada tem a ver com aquela em apreciação nestes autos. v. Refere ainda o recorrente que "Não só a mulher é livre de não ter um filho que o homem quer, como também é livre de o ter quando o homem não o quer, como no caso dos autos." Trata-se de um argumento reversível (e falacioso, pois o que está em causa nos autos já não é a discussão sobre a decisão de ter ou não um filho, mas sim de _ tendo o filho nascido _ o perfilhar), pois que também se pode alegar que não faz sentido obrigar uma mulher a ter um filho que não deseja ou obrigar uma mulher a fazer uma interrupção voluntária de gravidez, relativamente, a um filho que deseja. vi. Menciona o recorrente que existe uma discriminação entre o Homem e a Mulher, "em razão do sexo, atentos os artigos 1865, nº5 e 1869º e seguintes do Código Civil, na interpretação de que é passível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor." A este respeito, dir-se-á que, de facto, o que está em causa é o interesse do menor, não existindo qualquer discriminação entre a Mulher e o Homem, desde logo porque o contrário também é possível, isto é, também é possível "proceder ao reconhecimento judicial da maternidade contra a vontade da pretensa progenitora. De facto, o Código Civil prevê também nos seus artigos 1808º e segs, a existência de averiguações oficiosas de maternidade com um regime em tudo semelhante ao da averiguação oficiosa da paternidade, existindo, aliás uma remissão de um regime para outro: cf. art.1868º do Código Civil. vii. Quanto áquilo que o recorrente designa por "sucessivas posições do Ministério Público e sugestão de aplicar ao ora recorrente indemnização ou multa a favor do Estado pelo simples facto de o réu ter sugerido a realização de novo exame pericial", dir-se-á que o recorrente fundamentou o referido pedido no facto de "o relatório pericial no âmbito do processo de averiguação oficiosa (de paternidade) não (ter revelado) uma probabilidade de 100% de o réu ser o progenitor da menor MARIA ....(cf. fls. 35, art.9º)", terminando mencionando que "o exame deverá ser suportado a expensas do apoio judiciário requerido pelo réu" (cf. fls.36, alínea A). viii. De facto é do conhecimento geral que os exames periciais de investigação de parentesco biológico e concretamente de paternidade, nunca dão uma probabilidade de cem por cento. Deste modo, a realização de novo exame, para além de configurar um acto inútil (uma 'vez que o resultado seria o mesmo e note-se que o resultado do exame existente nos autos dá uma probabilidade de 99,99999997% de o recorrente ser o pai da menor Maria …, consubstanciava objectivamente, à data do requerido, uma manobra dilatória. De facto, os referidos exames nunca resultam em uma probabilidade de cem por cento, desde logo, porque se trata precisamente disso: de uma probabilidade; se o resultado pudesse ser de cem por cento, não era uma probabilidade (entendida em sentido estrito), era uma certeza. ix. Termina o recorrente solicitando que seja "declarada inconstitucional a interpretação feita pela douta sentença sub judice dos artigos 1865°, nº 5 e 1869° e seguintes do Código Civil, segundo a qual é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor, na medida em que a mesma viola o princípio da igualdade em razão do sexo, previsto no artigo 13°, nº 2 da CRP e, consequentemente, seja revogada a decisão proferida e anulado todo o processado nos presentes autos, desde o seu início." Como já se disse não há qualquer discriminação (para além daquela que resulta do facto de questões diferentes deverem ser tratadas de forma diferente e questões iguais de forma igual), desde logo porque a nossa Lei civil, tal como prevê a existência de acções visando averiguar oficiosamente a paternidade, também prevê a existência de acções visando averiguar oficiosamente a maternidade, existindo até um artigo (o art.1868° do Código Civil) que prevê a remissão de um regime para outro, o que realça até a igualdade de tratamento. Em suma, a douta sentença de fls.75 a 81 dos autos, ao declarar: Que "a menor MARIA ....é filha do Réu Abílio..." Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões: i) DA ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE; ii) DO VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE QUE ALEGADAMENTE PADECE A SENTENÇA RECORRIDA, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 13º, Nº 2 DA CRP, AO INTERPRETAR OS ARTIGOS 1865º, Nº 5 E 1869º E SS DO CÓDIGO CIVIL NO SENTIDO DE QUE É POSSÍVEL PROCEDER AO RECONHECIMENTO JUDICIAL DA PATERNIDADE CONTRA A VONTADE DO PROGENITOR.III . FUNDAMENTAÇÃO A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Foi dado como provado na sentença recorrida, o seguinte: 1. No dia 7 de Dezembro de 2013, na freguesia e concelho de Loures, nasceu a menor Maria. 2. A menor foi registada na Conservatória do Registo Civil de Loures, tendo sido lavrado, em 11 de Dezembro de 2013, o assento de nascimento n.º 4319 do ano de 2013. 3. Do referido assento consta que a menor é filha de Sofia .... 4. Efectuado exame pericial para investigação do parentesco biológico, conduziu a uma probabilidade de 99,99999997% de o Réu ser o pai. 5. O R. e a progenitora da menor conheceram-se através do “facebook”, iniciando contactos amorosos em Julho de 2012. 6. Vieram a começar uma relação de namoro entre data concretamente não determinada de Julho de 2012 e até meados de Abril de 2013. 7. O namoro foi assumido por ambos perante a família da mãe da menor, passando o indigitado pai a frequentar com frequência a casa onde vivia a mãe da menor. 8. O indigitado pai pernoitava quase diariamente em casa da progenitora. 9. Desde o início do namoro que começaram a relacionar-se sexualmente. 10. Entre 10 de Fevereiro e 10 de Junho de 2013, a mãe da menor só manteve relações sexuais com o réu. 11. Não existe notícia de que, nesse período, se tenha relacionado com outro homem. 12. A progenitora teve conhecimento de que estava grávida em inícios de Abril de 2013, estando o indigitado pai presente quando da realização do teste. 13. De imediato, o réu manifestou vontade de que a progenitora efectuasse uma interrupção voluntária da gravidez, o que esta veio a recusar. 14. O nascimento do menor veio a ocorrer no termo da gravidez que sobreveio à sua mãe, em consequência de tais relações sexuais. 15. Apesar do resultado do exame referido em 4., o Réu recusou-se a perfilhar a menor. 16. Entre o Réu e a mãe da menor não existem laços de parentesco ou afinidade.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Como é entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, constitui causa petendi nas acções de investigação da filiação, o facto jurídico da procriação – cfr., a título meramente exemplificativo Acs. STJ de 19.01.1993 (Pº 082375), de 20.07.2003 (Pº 04A1974) e de 09.09.2010 (Pº 2799/08.7TBVCD.P1.S1), todos acessíveis em www,dgsi.pt. A procriação biológica pode ser demonstrada de forma directa, através dos exames hematológicos ou outros métodos cientificamente comprovados a que alude o artigo 1801.º Código Civil, ou de forma indirecta através do recurso das presunções legais estabelecidas no artigo 1871.º CC, ou de presunções naturais ou judiciais, apelando às regras de experiência comum, quando, à falta de exames de sangue ou de presunções legais, impende sobre o autor o ónus de alegar e provar o trato sexual entre o investigado e a mãe da criança, no período legal da concepção, e que tais relações foram exclusivas por parte desta. Extrai-se, assim, do citado artigo 1801º do Código Civil o princípio da liberdade de prova, pelo que, no âmbito do processo de investigação da filiação, sempre será, não só admissível, como até, sempre que possível, exigível a realização de testes de ADN. Face ao estado actual da ciência e ao avanço da ciência médica e da genética, o exame de ADN constitui a forma mais fiável de estabelecimento do vínculo biológico – v. Ac. STJ de 23.02.2012 (Pº 994/06.2TBVFR.P1.S1), Ac. R.L. de 17.09.2009 (Pº 486/2002.L1-2), este último de que foi relatora a ora relatora, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.; cfr. também sobre a natureza probatória desse exame científico, CARLOS LOPES DO REGO, O ónus da prova nas acções de investigação da paternidade: prova directa e indirecta do vínculo da filiação”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, vol.I, 782-785. No caso em análise, ficou demonstrada a procriação biológica, através de prova directa - exame pericial teste de paternidade elaborado pelo Serviço de Genética e Biologia Forenses, SGBF-S -concomitantemente com a prova testemunhal, ficando provado o relacionamento sexual entre o réu e a mãe da menor, no período legal de concepção – v. Nºs 1, 4, 6 a 9 da Fundamentação de Facto. E a ainda que o teste de paternidade em causa não lograsse propiciar uma certeza absoluta, ou seja, não sendo – e nem o poderia ser - de 100%, uma probabilidade de paternidade de 99.99999997%, tem se se considerar como praticamente provada. De todo o modo, para afastar a presunção decorrente da alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, teria o réu de demonstrar a exceptio plurium, ou seja, que a mãe da menor durante o mesmo período, teve relações sexuais com outro ou outros homens, o que manifestamente se não provou – v. neste sentido Acs. do STJ de 28.5.2002, CJ STJ X, 2, 92 e de 23.09.2008, acessível no citado sítio da Internet – provando-se, ao invés que, entre 10.02.2013 e 10.06.2013 a mãe da menor só manteve relações sexuais com o réu – v. Nº 10 da Fundamentação de Facto. Mas, na realidade, o réu/apelante que, inicialmente, colocou em causa a paternidade, afastou essa defesa e, desconsiderando em absoluto, a questão fundamental que está aqui em causa - o direito que tem a menor Maria …, como qualquer criança, após o seu nascimento, à sua identidade, ao seu nome, ao cabo e ao resto, ao conhecimento da sua paternidade biológica - veio agora suscitar, no recurso, a questão da inconstitucionalidade material de que, do seu ponto de vista, padece a decisão recorrida, na interpretação que se mostra efectuada dos artigos 1865º, nº 5 e 1869º e ss do Código Civil, por violação do artigo 13º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, questão que não suscitou na contestação que apresentou e que somente agora veio abordar. É consabido que o recurso jurisdicional visa modificar a decisão proferida e não criar soluções sobre matéria nova, estando vedado aos tribunais superiores apreciar questões não colocadas nas instâncias inferiores. Decorre dos artigos 676º, nº. 1, e 690º, nº. 1, ambos do CPC, e é jurisprudência pacifica, que os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia sobre questões novas. Às partes não é, portanto, lícito suscitar questões que não hajam sido objecto da decisão recorrida, não podendo o tribunal de recurso pronunciar-se sobre questões ali não decididas, excepto nas situações em que a lei expressamente determine o contrário, ou naquelas em que a matéria em causa seja de conhecimento oficioso. Ora, a questão da inconstitucionalidade apenas agora colocada pelo apelante, não obstante não haja sido suscitada, nem apreciada pelo Tribunal a quo, não consubstancia uma questão nova, já que sendo a mesma de conhecimento oficioso, dela pode este Tribunal da Relação conhecer em sede de recurso. Invoca o apelante a inconstitucionalidade material da interpretação efectuada na sentença recorrida, no que concerne aos artigos 1865º, nº 5 e 1869º, ambos do Código Civil, por violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 13º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, defendendo que não é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor. Fundamenta o apelante o seu argumentário, basicamente, na invocação da igualdade substancial dos interesses de mulheres e homens relativamente à vontade de procriarem e na consagração da tutela do direito à autodeterminação negativa em sede de procriação, para a mulher, descriminando o homem em razão do sexo. Vejamos se lhe assiste razão. Preceitua o artigo 1865º do Código Civil, sob a epígrafe “Averiguação oficiosa” e no que aqui interessa que: (…) 5 – Se o tribunal concluir pela existência de provas seguras da paternidade, ordenará a remessa do processo ao agente do Ministério Público junto do tribunal competente, a fim de ser intentada a ação de investigação. E, nos termos do artigo 1869º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Investigação da paternidade”, “A paternidade pode ser reconhecida em ação especialmente intentada pelo filho se a maternidade já se achar estabelecida ou for pedido conjuntamente o reconhecimento de uma e outra. Constitui, pois, a acção de investigação de paternidade prevista nos citados normativos o único meio destinado à efetivação do direito fundamental ao estabelecimento do vínculo jurídico da paternidade biológica. Como já antes se teve o ensejo de aflorar, o apelante parece olvidar que as acções de investigação de paternidade radicam no direito fundamental à identidade pessoal, direito esse pessoalíssimo, indisponível e inalienável que, embora não absoluto, se encontra ao serviço do núcleo essencial da pessoa humana, como tem sido reiteradamente defendido na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – cfr. a título meramente exemplificativo, Acs. de 09.04.2013 (Pº 187/09.7TBPFR.P1.S1), de 03.11.2015 (Pº 253/11.9TBVZL.L1.S1), 09.03.2017 (Pº 759/14.8TBSTB.E1.S1), todos acessíveis no citado sítio da Internet. Conforme se mencionou no aludido Acórdão do STJ de 03.11.2015 “O direito à identidade pessoal e o direito à integridade pessoal (…) engloba[m] o que se denomina os direitos de personalidade, estando o seu conteúdo delimitado, além do mais, pelo direito do indivíduo à sua historicidade pessoal, implicando necessariamente o direito ao conhecimento da identidade dos seus progenitores, aqui se fundando, logicamente, o direito à investigação da paternidade.” (…). Este direito à identidade pessoal, na sua asserção absoluta, traduz a infungibilidade, indivisibilidade e irrepetibilidade do ser enquanto pessoa humana, embora igual a todos os outros nos direitos e deveres, é único e diferente dos demais, na sua complexa humanidade” Semelhante entendimento tem sido defendido pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente no Ac. n.º 401/2011, de 03.11.2011, (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110401.html), ao referir que: “A ascendência assume especial importância no itinerário biográfico, uma vez que ela revela a identidade daqueles que contribuíram biologicamente para a formação do novo ser. O conhecimento dos progenitores é um dado importante no processo de auto-definição individual, pois essa informação permite ao indivíduo encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afectiva ou fisiológica, revelando-lhe as origens do seu ser. É um dado importantíssimo na sua historicidade pessoal. Como expressivamente salienta Guilherme de Oliveira, «saber quem sou exige saber de onde venho» (em “Caducidade das acções de investigação”, ob. cit., pág. 51), podendo, por isso dizer-se que essa informação é um factor conformador da identidade própria, nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo. Mas o estabelecimento jurídico dos vínculos da filiação, com todos os seus efeitos, conferindo ao indivíduo o estatuto inerente à qualidade de filho de determinadas pessoas, assume igualmente um papel relevante na caracterização individualizadora duma pessoa na vida em sociedade. A ascendência funciona aqui como um dos elementos identificadores de cada pessoa como indivíduo singular. Ser filho de é algo que nos distingue e caracteriza perante os outros, pelo que o direito à identidade pessoal também compreende o direito ao estabelecimento jurídico da maternidade e da paternidade.” Com efeito, a jurisprudência constitucional tem reiteradamente referido que o direito ao conhecimento da paternidade biológica e o direito à constituição e/ou destruição do respectivo vínculo jurídico cabem no âmbito de protecção, quer do direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no artigo 26º, nº 1 da CRP, quer no direito fundamental de constituir família, plasmado no artigo 36º, nº 1 da CRP. No Acórdão do T.C. n.º 309/2016, de 18.05.2016 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160309.html), mostra-se exarado que: No âmbito normativo do direito à identidade pessoal reconhecido pela Constituição, além do direito natural à diferença de cada ser humano, decorrente do caráter único, indivisível e irrepetível de cada pessoa humana concreta, que tem expressão mais relevante no direito ao nome, inclui-se o direito à “historicidade pessoal”, expresso na relação de cada pessoa com aquelas que lhe deram origem. Nesta dimensão relacional, em que a pessoa humana também se define em função de uma “memória” familiar conferida pelos antepassados, extrai-se o direito ao conhecimento da progenitura, de que resulta, além do mais, o direito à investigação da paternidade ou da maternidade (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed. pág. 462). Realmente, a atribuição do direito à identidade pessoal pressupõe e visa em primeira linha satisfazer os interesses próprios da pessoa que pretende conhecer a identidade dos seus progenitores e constituir o respetivo vínculo de filiação correspondente à verdade biológica.” E, mais à frente, ainda se refere no citado aresto que: “Ao direito à identidade pessoal pode associar-se o direito a constituir família, ou com ele também conflituar o direito à proteção da família constituída. O primeiro, consagrado no artigo 36.º, n.º 1 da Constituição, abrange, ao lado da família conjugal, a família natural, resultante do facto biológico da geração, o qual compreende o direito a estabelecer as correspondentes relações de paternidade e maternidade. O direito a constituir família reclama assim a disponibilização de meios jurídicos que permitam estabelecer o vínculo de filiação – ação de investigação de paternidade –, e recusa a existência de impedimentos desrazoáveis que impossibilitem ao filho biológico aceder ao estatuto jurídico correspondente.” É certo que a verdade biológica, que estrutura todo o sistema legal da filiação, não é um princípio dotado de valor absoluto, que o leve a sobrepor-se a outros interesses dignos de tutela. E assim se considerou no mencionado acórdão do TC nº 309/2016, ao estabelecer como interesses dignos de tutela susceptíveis de contrariar o princípio da verdade biológica, o interesse concreto do filho, o interesse de não perturbar a “paz das famílias” ou a estabilidade sócio-afetiva de uma relação jurídica que não tenha fundamento em vínculos biológicos. É o que acontece quando o Código estabelece a paternidade do marido por presunção legal (artigo 1826.º) ou sujeita as ações de investigação de paternidade e de impugnação de paternidade a prazos de caducidade (artigos 1917.º e 1842.º), situações em que a “verdade jurídica” pode não ser coincidente com a “verdade biológica”. Porém, ainda que o apelante pretendesse defender o direito à sua identidade pessoal, como sendo susceptível de poder abranger o seu eventual direito a renunciar à parentalidade (o que é altamente discutível), tal dimensão individualista teria de ser postergada, pela prevalência que resulta da CRP da tutela do direito do filho de conhecer a sua identidade biológica, a sua ascendência e proveniência familiar, atenta a concordância prática entre esses dois direitos – direito à identidade pessoal em confronto com o direito à identidade pessoal do filho. Afirmou-se no Ac. T.C. nº 346/2015, de 23.06.2015 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20150346.html que: “No atual ordenamento jurídico português, a ação de investigação de paternidade prevista nos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil constitui o único meio destinado à efetivação do direito fundamental ao estabelecimento do vínculo jurídico da paternidade biológica, sendo também o meio mais eficaz de satisfação do direito ao conhecimento da ascendência biologicamente verdadeira quando o suposto pai recusa qualquer colaboração. Apesar de não estarmos perante um direito absoluto que não possa ser confrontado com valores conflituantes, podendo estes exigir uma tarefa de harmonização dos interesses em oposição, ou mesmo a sua restrição (v.g. artigos 1987.º do C. Civil, 10.º, n.º 2, e 21.º, da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, ou o estabelecimento de prazos de prescrição no artigo 1817.º do Código Civil), o seu conteúdo exige necessariamente uma situação de sujeição do progenitor, ao qual não assiste um espaço de autodeterminação pela negativa. O Direito do filho ao estabelecimento do vínculo jurídico da paternidade, em correspondência com a verdade biológica, é incompatível com um reconhecimento da autodeterminação parental neste domínio.”. Não se vislumbra, portanto, que o direito à identidade pessoal ou à autodeterminação do réu possam ou devam prevalecer sobre esses mesmos direitos, analisados na perspectiva do filho e do seu direito a conhecer a sua filiação biológica, direito este que será sempre sobreponível, posto que a natureza não absoluta deste direito não impede que o mesmo seja afirmado apenas pelo facto de o réu não pretender o reconhecimento da paternidade contra a sua vontade. Mas, invoca ainda o apelante, desta feita explicitamente, que o reconhecimento da paternidade contra a sua vontade viola o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, quando confrontado com os direitos legalmente reconhecidos à progenitora, invocando, para tanto, a igualdade substancial de mulheres e homens relativamente à vontade de procriarem e a consagração da tutela do direito à autodeterminação negativa em sede de procriação, para a mulher, descriminando o homem em razão do género. E, se é verdade que, antes do nascimento do filho, a mulher poderá ter, reunidos os requisitos legais, a faculdade de abortar livremente, não carecendo do consentimento do pai, não parece possível defender, como pretende o apelante, que após o nascimento da criança, a igualdade de género possa vir a ser reposta através da rejeição da imposição do vínculo da paternidade. É manifesto que carece o apelante de qualquer razão. Urge, antes de mais, fazer apelo ao entendimento que tem sido dado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, sempre que está em causa uma alegada violação do princípio da igualdade. Diz-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 39/88, de 09.02.1988 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/19880039.html) que: “O princípio da igualdade é um corolário da igual dignidade de todas as pessoas, sobre a qual gira, como em seu gonzo, o Estado de Direito democrático (cf. artigos 1° e 2° da Constituição). A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objectivo, "reconduz-se na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade" acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29). O princípio da igualdade não proíbe e, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n° 2 do artigo 13°. Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados. O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado, quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante. Também no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 362/2016, de 08.06.2016 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20160362.html), que igualmente citou o aludido Ac. TC nº 39/88, se refere que: “Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum). Importa, pois, concluir que a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado, mas apenas as discriminações negativas atentatórias da dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento arbitrárias e, portanto, sem uma qualquer razão justificativa. Vejamos, então, se as consagradas medidas legislativas invocadas pelo apelante contém em si diferenciações de tratamento, em razão do género, que se apresentam como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante. É certo que o legislador ordinário, através da Lei nº 16/2007, de 17.04 reconheceu a autodeterminação parental da mulher ao permitir que esta opte, reunidas as condições previstas na lei, pela interrupção voluntária da gravidez até à décima semana. Porém, tal não permite concluir que, para se verificar uma igualdade de tratamento baseada no género, se teria de assegurar ao pai biológico o direito de rejeitar a paternidade do filho nascido contra a sua vontade, baseado na igualdade na decisão de procriar, como parece propugnar JORGE MARTINS RIBEIRO, Direito do Homem a Rejeitar a Paternidade de Filho Nascido contra a sua Vontade, Coimbra Editora, 2003, estudo que, segundo afirma o próprio autor, se propõe chamar à atenção para a subalternização da vontade do homem, no que toca à decisão de não ter ou de ter um filho, mas que, no entanto, não deixa de salientar a evidente diferença biológica e a razoável interpretação do princípio da igualdade. Esta problemática foi já colocada ao T.C. que, no Ac. nº 346/2015, de 23.06.2015 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20150346.html), decidiu não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil, na interpretação de que é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor. Após estabelecer a evolução histórica sobre a preocupação com o direito da autodeterminação parental do homem, fundamentou o aludido aresto do T.C. a sua decisão, da forma seguinte: “ (…) a constelação de interesses e valores em jogo na definição da licitude penal do ato de interrupção voluntária da gravidez por parte da mulher é substancialmente diversa daquela que preside aos termos da participação do homem no estabelecimento do vínculo jurídico da paternidade de criança já nascida. Na verdade, naquela primeira situação está sobretudo em discussão a possibilidade do legislador preferir, como meio de proteção da vida intrauterina numa fase inicial da gravidez em que a mulher e o nascituro ainda se apresentam como uma unidade, “ganhar” a grávida para a solução da preservação da potencialidade de vida, através da promoção de uma decisão refletida, mas deixada, em último termo, à sua responsabilidade, em vez de optar pela crua ameaça com uma punição criminal, de resultado comprovadamente fracassado (cfr. Acórdão n.º 75/10, acessível em www.tribunal constitucional.pt). O reconhecimento de autonomia decisória à mulher sobre o prosseguimento da gravidez, exercido em determinadas circunstâncias previstas na lei, não resulta de uma superiorização do direito à autodeterminação, funcionando antes esse reconhecimento como uma via alternativa de proteção ao nascituro recém-concebido. Daí que sejam totalmente imprestáveis os fundamentos que presidiram à solução consagrada na Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, para fundamentar um pretenso direito do homem a rejeitar a paternidade de filho após o seu nascimento. Por igual razão não colhe a alegação de que o facto do reconhecimento jurídico da paternidade poder ser efetuado sem o consentimento do pai, constitui uma descriminação em razão do sexo, proibida pelo artigo 13.º, n.º 2, da Constituição, face à possibilidade conferida à mãe de, por sua decisão, interromper a gravidez nas primeiras dez semanas, uma vez que não estamos perante situações valorativamente iguais, sob nenhum ponto de vista, pelo que não é possível identificar um termo de comparação que permita fazer operar o princípio da igualdade. Este princípio já foi convocado na verificação da constitucionalidade da própria solução introduzida pela Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, com fundamento na omissão da exigência de participação do progenitor masculino no processo de formação da decisão sobre a interrupção da gravidez, existindo aí efetivamente uma identidade valorativa de situações. Concluiu-se que, nos casos em que nessa altura (dez semanas de gravidez) a paternidade já poderia ser reconhecida, “a solução normativa consistente na inexigibilidade do consentimento do progenitor para a realização da interrupção da gravidez prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal não envolve qualquer desqualificação arbitrária da paternidade enquanto valor social eminente, nem se apresenta carecida de justificação objetiva e racional, em termos de poder ser considerada violadora do princípio da igualdade. A solução está, por assim dizer, na “natureza das coisas”, por condicionada pela realidade biológica da gestação humana.” Entendeu-se que “a colocação da possibilidade de realização da interrupção voluntária da gravidez, com sujeição ao regime previsto nessa norma, na dependência do assentimento de ambos os progenitores não poderia deixar de equivaler à atribuição ao progenitor masculino de um direito de veto. Não sendo concebível a previsão da possibilidade de recurso aos tribunais para dirimir uma eventual divergência entre a grávida e o progenitor acerca da realização, nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, de uma interrupção da gravidez desejada pela primeira e indesejada pelo segundo, um princípio de direção conjunta do destino do embrião ou do feto redundaria aqui na atribuição ao progenitor da prerrogativa de, por ato unilateral e discricionário, impedir a aplicação daquela alínea e, com isso, reconvocar a proteção do direito penal, submetendo, com isso, a grávida à ameaça da pena – apesar de esta ter sido considerada, pelo legislador de 2007, instrumento não necessário de tutela da vida intrauterina até às 10 semanas de gravidez.” (Acórdão n.º 75/10 acima citado). Ora, tendo-se entendido que existia uma justificação para um tratamento diferenciado dos progenitores na decisão de prosseguimento da gravidez nas primeiras dez semanas, não faz qualquer sentido que, numa pretensa lógica de compensação, aquele a quem não se assegurou a participação naquela decisão, fique liberto do dever de assumir a paternidade do filho que entretanto nasceu, sob invocação do princípio da igualdade. Tal solução não só não é exigida pelo princípio da igualdade, o qual tem como pressuposto a qualificação das situações em comparação como iguais, como seria ela própria geradora de desigualdade e redundaria num sacrifício injustificado do direito fundamental de uma pessoa já nascida ver estabelecido o vínculo jurídico da paternidade. Por estas razões não ofende qualquer parâmetro constitucional, designadamente o princípio da igualdade, as normas constantes dos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil, interpretadas com o sentido de que é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor, devendo o recurso interposto ser julgado improcedente. Assim, e concordando-se integralmente com o decidido no supra referido Acórdão do Tribunal Constitucional nº 346/2015, sempre se dirá que inexiste qualquer discriminação negativa do homem em razão do género nas normas indicadas pelo apelante, já que, quanto ao estabelecimento da filiação biológica, nos casos em que uma pessoa, com pai ou mãe desconhecido, pode ser seu filho são iguais, ou seja, é possível proceder ao reconhecimento judicial de tal filiação – a paternidade ou maternidade biológica – contra a vontade do possível progenitor, pois tal resulta, em relação ao pretenso pai, dos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil e, em relação à pretensa mãe, dos artigos 1808.º, n.º 4, e 1814.º do mesmo diploma, como, de resto, foi salientado, e bem, na declaração de voto inserta no citado Acórdão do T.C.. Destarte, improcede a apelação, e inexistindo qualquer fundamento para a formação do pretendido juízo de inconstitucionalidade, declara-se que a interpretação efectuada na sentença recorrida, no que concerne aos artigos 1865º, nº 5 e 1866º, ambos do Código Civil, não padece de qualquer inconstitucionalidade material, razão pela qual se mantém a decisão recorrida nos seus precisos termos. O apelante será responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido (v. fls. 51). IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida. Condena-se o apelante no pagamento das custas respectivas, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido. Lisboa, 25 de Maio de 2017 Ondina Carmo Alves – Relatora Pedro Martins Lúcia Sousa