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Acórdão TR Évora de 2023-03-14

637/20.1T9STC.E1

TribunalTribunal da Relação de Évora
Processo637/20.1T9STC.E1
RelatorBeatriz Marques Borges
DescritoresDifamação, Facebook, Falta de Consciência da Ilicitude, Dolo Eventual
Data do Acordão2023-03-14
VotaçãoUnanimidade

Sumário

I. De acordo com a doutrina mais recente o dolo é constituído pelos elementos: - Intelectual ou cognoscitivo correspondente ao agente conhecer, saber, prever ou representar as circunstâncias dos elementos do tipo objetivo (tipo de ilícito); - Volitivo com o significado de o agente querer, ter a vontade ou o propósito de realizar o facto típico (tipo de ilícito); - Emocional correspondente ao agente conhecer o desvalor da sua conduta contra o direito (tipo de culpa). II. Os elementos intelectual e volitivo do dolo terão sempre de constar da acusação sob pena de essa factualidade não poder ser integrada em julgamento, conduzindo essa falta de narração à absolvição do arguido. III. Quanto ao dolo emocional essa descrição nem sempre carece de constar na acusação, pois a locução “bem saber o agente ser proibida por lei a sua conduta”, não é facto que deva ser autonomamente narrado na acusação quando se está perante um crime do direito penal clássico, como sucede no caso concreto de difamação dirigida propositadamente a um funcionário de um centro de saúde em exercício de funções, através do facebook. IV. Em casos como o assinalado a consciência de o agente ter agido bem sabendo tratar-se a sua conduta proibida por lei decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo: elemento intelectual e volitivo). V. Apenas no direito contraordenacional ou penal secundário ou quando se esteja perante novas incriminações não suficientemente solidificadas na comunidade é de exigir o “conhecimento da proibição legal” por parte do agente e consequentemente é obrigatória a narração na acusação desse elemento como forma de realização do dolo do tipo.


Texto Integral

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. Relatório Na Instrução n.º 637/20.1T9STC da Comarca ... Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., o Tribunal decidiu não pronunciar as arguidas AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG pelos factos e incriminação constantes da acusação particular apresentada pelo assistente HH. 1. Do processado prévio à decisão recorrida Para compreender o alcance do recurso interposto pelo assistente da decisão de não pronúncia será indicadas partes do processado prévio à decisão de não pronúncia. 1.1. Da acusação Particular O assistente HH, na fase do inquérito deduziu acusação particular com o seguinte teor (transcrição): “1. - O ora requerente constituiu-se assistente nos presentes autos tendo, por isso, legitimidade para deduzir acusação particular, o que faz ao abrigo do art. 285º, nº 1 do C.P.Penal. 2. - O ora assistente, à data dos factos, mantinha um contrato de trabalho com a U... EPE, exercendo há vários anos funções no Centro de Saúde ..., trabalhando há mais de 10 anos no setor de atendimento ao público. 3. - Ao longo dos anos e por várias vezes o ora assistente deparou-se com a insatisfação e, por vezes, com a indignação dos utentes que frequentam o Centro de Saúde em questão, pois tal acaba por ser um “dano colateral” de quem lida diariamente com o público, acabando – como sabemos – por ser quem ouve a insatisfação e os desabafos dos utentes insatisfeitos com o funcionamento do nosso Serviço Nacional de Saúde. 4. - Sempre tem o ora assistente sido tolerante a tais situações, exigindo apenas a todos os utentes o mínimo que é exigível por qualquer cidadão: que as queixas e os desabafos não passem para um campo pessoal contra o próprio, e muito menos que ofendam o mesmo, pois, em bom rigor, aquele apenas faz o seu trabalho, não estando nas suas mãos a possibilidade de resolver a maior parte das queixas dos utentes do Centro de Saúde em causa. 5. - Sucedeu que, no passado dia 23/07/2020, aconteceu uma situação com o ora assistente grave, que muito atormentou e magoou o mesmo, que passamos a relatar. Com efeito, 6. - No referido dia 23/07/2020, estava o ora assistente no seu local de trabalho sito no referido Centro de Saúde ... no atendimento ao público a desempenhar as respetivas funções, quando uma Srª de nome II se dirigiu ao mesmo e solicitou que fosse emitida uma receita que a referida senhora necessitava. 7. - O ora assistente, aplicando as normas e ordens em vigor decorrentes das medidas adotadas em virtude do combate à pandemia de Covid-19 que o país atravessava já nessa altura, informou a referida senhora que tal pedido deveria ser efetuado por email como, aliás, decorria de informação amplamente divulgada por vários meios, a qual se encontrava mesmo afixada na porta do Centro de Saúde em questão. (Doc. nº 01 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 8. - Face à informação prestada à referida senhora pelo ora assistente, a mesma ficou extremamente aborrecida, tendo saído do Centro de Saúde em questão bastante exaltada. 9. - No entanto, se tudo tivesse ficado por aí, seria apenas mais uma situação de insatisfação dos utentes que, quem acaba por ser “a cara” dos serviços, acaba por escutar. 10. – Mas, dessa vez, não foi o que sucedeu. 11. - A senhora em questão a que nos referimos supra, após sair do Centro de Saúde ..., resolveu escrever uma publicação no seu Facebook a mostrar o desagrado com o que se tinha passado, a qual deu origem a um enorme número de comentários, vários deles bastante difamatórios para a pessoa do ora assistente. 12. - Com efeito, a publicação escrita pela referida Srª II, refere-se ao ora assistente ao dizer que foi muito mal atendida pelo funcionário que a atendeu, criticando, de seguida, a forma de funcionamento implementada quanto ao modo de realização de pedido de receitas. (Doc. nº 02 pág. 1 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 13. - Mas os comentários referentes à pessoa do ora assistente que foram feitos na publicação atrás referida é que foram – muitos deles !! – bastante difamatórios. Vejamos então, 14. - A denunciada/arguida AA, comentando no Facebook a publicação a que vimos fazendo referência, escreveu o seguinte quanto ao ora assistente: “esse senhor é um mal educado e um mal formado. O livro de reclamações serve para esses casos”. (sublinhado nosso) (Doc. nº 02 pág. 4 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 15. - Por seu turno, a denunciada/arguida BB, no seguimento dos comentários atrás referidos e continuando a dirigir-se à pessoa do ora assistente escreveu o seguinte: “aqui no nosso Alentejo chama-se uma besta quadrada”. (sublinhado nosso) (Doc. nº 02 pág. 4 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 16. - No seguimento, comentou a denunciada/arguida CC a referida publicação do Facebook escrevendo quanto ao ora assistente: “é uma besta do pior”. (sublinhado nosso) (Doc. nº 02, pág. 5 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 17. - Logo de seguida, comenta a referida publicação a denunciada/arguida DD escrevendo “Esse senhor é um mal educado e um mal formado. Já uma vez lhe disse na cara, se presta para estar no atendimento que fosse embora. Mas essa pessoa se continuar assim, o nosso dever é chamar o chefe dele, para a próxima é assim que faço”. (sublinhado nosso) (Doc. nº 02, pág. 5 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 18. - Mais abaixo nos comentários, escreve a denunciada/arguida EE o seguinte: “é um mal educado, uma besta, nem devia estar lá, não têm jeito nenhum para estar no atendimento ao público”. (sublinhado nosso) (Doc. nº 02, pág. 10 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 19. - Continuando a panóplia de insultos e difamação, escreve também a denunciada/arguida FF o seguinte: “esse paspalho devia de andar a guardar cabras, e mesmo assim coitados dos animais”. (sublinhado nosso) (Doc. nº 02 pág. 12 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 20. - Sendo que, por fim, comenta ainda a denunciada/arguida GG a publicação em questão dizendo o seguinte acerca do ora assistente: “já tive várias desavenças com essa besta!!”. (sublinhado nosso) (Doc. nº 02, pág. 19 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 21. - Todos os comentários supra citados respeitam à pessoa do ora assistente, conforme se retira, desde logo, da própria publicação da supra referida II, que relata a situação que se passou nesse mesmo dia no Centro de Saúde com aquele, sendo que, para além disso, o ora assistente era – à data - a única pessoa do sexo masculino a desempenhar as referidas funções de atendimento ao público no Centro de Saúde ... (sendo que todos os outros cidadãos do sexo masculino que trabalham no Centro de Saúde em questão são médicos). 22. - Ademais, a própria II esclarece no âmbito dos vários comentários que a sua publicação originou que não estão a falar do Centro de Saúde, mas sim de uma pessoa em concreto, o ora assistente, sendo este o alvo de todos os comentários supra citados. 23. - A título de exemplo, veja-se o comentário da referida II em resposta à Srª JJ, quando diz “JJ não estamos a falar do centro, o teu comentário está fora de contexto, estamos a falar de uma só pessoa”, respondendo de seguida a referida JJ o seguinte “Eu sei…de quem falas(…)”, o que demonstra de forma clara que todos sabiam perfeitamente a quem se dirigiam todos os comentários difamatório e insultuosos supra referidos, e que pretenderam efetivamente imputar os mesmos ao ora assistente ! (Doc. nº 02, pág. 16 já junto aos presentes autos com a queixa crime apresentada pelo ora assistente, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) 24. - Para além disso, várias pessoas entre familiares e amigos do ora assistente que leram a publicação do Facebook a que vimos fazendo alusão e respetivos comentários, perceberam perfeitamente que os mesmos se dirigiam àquele, tendo inclusivamente telefonado ao mesmo de forma solidária, para perceberem o que se tinha passado que motivasse comentários tão cruéis como os supra relatados. 25. -Tal situação muito entristeceu e perturbou o ora assistente que, com os comentários supra citados, se sentiu extremamente ofendido na sua honra e humilhado, sendo “exposto” de forma pública perante todos quantos os que viram tal publicação (que foram muitos). 26. -Veja-se que o Facebook é uma rede social utilizada por milhões de utilizadores, não se coibindo as denunciadas/arguidas supra identificadas de vexar, ofender e difamar o ora assistente da forma como fizeram, com a utilização de expressões extremamente injuriosas (como a palavra “besta” a título de exemplo) que, bem sabiam, chegar a um enorme número de população atento o meio onde decidiram partilhar tais afirmações !! 27. - Se as denunciadas/arguidas consideravam ter algum tipo de razão de queixa a nível profissional do ora assistente, como aparentemente afirmam ter, teriam todo o direito de fazer valer as suas queixas e opiniões no meio próprio para o efeito: escrever no livro de reclamações como, aliás, é referido em alguns dos comentários à publicação em causa. 28. - Mas nunca, em tempo algum, poderiam as mesmas decidir, per si, ir para uma rede social, ofender e mal tratar o ora assistente, denegrindo a sua imagem quer pessoal quer profissionalmente, de forma completamente vexatória e que em nada tutela os respetivos direitos que poderiam ter, destinando-se apenas e tão só a humilhar esta pessoa e a ser cruéis !! 29. -Tal não é admissível no âmbito do nosso direito penal !! 30. - A liberdade de uns termina onde começa a liberdade dos outros, e todos temos o dever e a obrigação de respeitar os direitos dos outros. 31. - Se consideramos ter sido mal atendidos por um funcionário, temos todo o direito de reclamar dessa situação: no meio próprio para o efeito que, no caso, seria através do recurso ao livro de reclamações ! 32. - E não decidir vir escrever e tecer comentários numa rede social como os supra citados, os quais são extremamente humilhantes, vexatórios e ofensivos para a honra e consideração da pessoa do ora assistente, o que não poderá ser admissível ! 33. - Os comentários atrás citados, escritos no Facebook pelas denunciadas/ arguidas supra identificadas, ultrapassaram todos os limites do razoável, sendo extremamente difamatórios e desrespeitantes da honra e da pessoa do ora assistente e que, por isso, merecem tutela penal. 34. - Os acontecimentos supra relatados foram graves, colocaram em causa a honra e o bom nome do assistente, e deixaram-no profundamente envergonhado, uma vez que tais comentários foram lidos e vistos por um grande número de pessoas – atento o meio utilizado pelas denunciadas/ arguidas – tendo o ora assistente sido por diversas vezes confrontado por amigos, familiares e mesmo colegas de trabalho quanto a tal situação, o que muito incomodou e entristeceu o mesmo. 35. - Ora, salvo o devido respeito, era o que mais faltava permitir-se que qualquer pessoa pudesse andar nas redes sociais a difamar outrem, de forma completamente dolosa e agressiva, sendo tal extremamente grave e difamatório para a pessoa visada!! 36. - O ora assistente sentiu-se, assim, extremamente ofendido pelos nomes e expressões injuriosas que lhe foram dirigidos, os quais, para piorar, foram proferidos numa rede social a que tem acesso um sem número de pessoas. 37. - As expressões ora em causa que foram referidas pelas denunciadas/arguidas são suscetíveis de ofender um cidadão comum. 38. - As denunciadas/ arguidas, com a respetiva conduta, agiram livre, deliberada e conscientemente com intenção de injuriar e difamar o ora assistente, desiderato esse que lograram obter. 39. - Os factos ora relatados revestem natureza criminal, nomeadamente por preencherem os requisitos objetivos e subjetivos do tipo de crime de difamação, p. e p. pelos arts. 180º e 182º do C. Penal, considerando o ora assistente que foi vítima da prática de sete crimes de difamação, nos termos supra expostos. 40. - Ademais, atendendo a que o meio utilizado para a prática dos crimes atrás referidos facilita – e muito (!!) – a sua divulgação, deverá ao presente caso aplicar-se o disposto no artigo 183º nº 1 alínea a) do C.Penal que prevê que as penas previstas para o tipo de crime atrás referido sejam elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, o que desde já se requer. 41. – Os crimes de difamação são de natureza particular (cfr. art. 180º e 188º nº 1 C.Penal). 42. - Nesses termos tem o assistente legitimidade para deduzir acusação particular conforme preceitua o art. 285º C.P.Penal. Pelo exposto, cometeram as arguidas, cada uma delas, um crime de difamação, tendo o ora assistente sido vítima da prática de sete crimes de difamação (p. e p. pelos arts. 180º, 182º e 183º nº 1 alínea a) do C.Penal). (…) DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL (…)”. 1.2. Da Acusação do MP Na sequência da acusação particular apresentada pelo assistente o MP apresentou requerimento com o seguinte teor: “O Ministério Público, em processo comum e com a intervenção do Tribunal Singular, ACOMPANHA A ACUSAÇÃO PARTICULAR DEDUZIDA a fls. 217 e ss. no que refere aos factos que integram a prática do crime de injúria (que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais) contra as arguidas: AA, BB CC DD, EE FF, GG, Por considerar suficientemente indicados os fatos constantes da acusação particular que se dão por integralmente reproduzidos e que constituem as arguidas como autoras materiais, da prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º e 183.º, do Código Penal, cada uma. Prova: documental toda a constante dos autos e indicada na acusação particular. Proca: testemunhal: toda a indicada da acusação particular.(…)”. 1.3. Do requerimento de abertura da instrução apresentado pela arguida FF Não concordando com a acusação particular deduzida a arguida FF apresentou requerimento de abertura da instrução onde sustentou que a acusação particular é nula por nela se não mostrarem vertidos factos relativos ao elemento subjetivo da conduta imputada, mais concretamente o conhecimento da proibição, usualmente expressa pela locução “a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”. 2. Da decisão recorrida Na sequência do requerimento de abertura da instrução apresentado pela arguida FF o Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão (transcrição): “I. Enquadramento. Nos presentes autos, e após encerramento do inquérito, o Ministério Público, notificou o assistente HH para, querendo, deduzir acusação particular, nos termos do disposto no artigo 285º do Código de Processo Penal, o que este veio a fazer, contra AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG (fls. 217 e segs.). O Ministério Público acompanhou a acusação do assistente (desp ref. ...79) Inconformada com a acusação contra ela deduzida, veio a arguida FF, a fls. 271 e segs., requerer a abertura de instrução. Em suma, não se pronuncia sobre a prática dos factos que lhe vêm imputados e que no entender do assistente (e do Ministério Público, que acompanhou a acusação) a constituem na prática de um crime de difamação (artigos 181º, 183º e 183º, número 1, al. a) do Código Penal), mas sustenta que a acusação particular é nula por nela se não mostrarem vertidos factos que traduzem o elemento subjectivo da conduta que lhe é imputada. Admitida a instrução, não foi produzida qualquer prova, por não haver sido requerida nem se julgar pertinente às finalidades da fase processual em causa, e foi realizado o debate instrutório em obediência ao devido formalismo legal, como se alcança da respectiva acta. Impõe-se, agora, proferir decisão final, o que se fará, dando seguimento. ** II. Conhecimento de nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que se possa conhecer (artigo 308º, número 3, do Código de Processo Penal). O Tribunal é competente. As partes têm legitimidade para exercer a acção penal. Da nulidade invocada: Nos termos do disposto no artigo 285º do Código de Processo Penal, é aplicável à acusação particular o disposto nos números 3 e 7 do seu artigo 283º. No artigo 283º, número 3, do diploma, pode-se ler o seguinte: “3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…)”. Analisemos à luz deste preceito, a factualidade elencada na acusação particular de fls. 229 e segs. A conclusão a retirar é que os factos aí descritos, da maneira como o vêm, não são susceptíveis de constituir quem quer que seja em responsabilidade criminal, isto é, não constituem crime. Vejamos detalhadamente porquê. O assistente entende que por via da factualidade que descreve, terão incorrido as acusadas na prática de um crime de difamação, previsto e punível pelos artigos, artigos 181º, 183º e 183º, número 1, al. a) do Código Penal), Dispõe o artigo 180º, número 1, do Código Penal, sob a epígrafe “Difamação”, que “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.” Os bens protegidos pela norma são a honra e a consideração. A honra pode considerar-se quer numa vertente subjectiva, ou interior, que consiste no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma e numa vertente objectiva, ou exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente. Assim, actualmente, a doutrina dominante entende a honra como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior 1 2. No que respeita aos elementos objectivos do tipo de ilícito da difamação, a conduta preenche-se com a imputação indirecta (não dirigida do ofendido), de factos ou juízos desonrosos. Quando essa imputação é directa (dirigida ao ofendido) estaremos perante um crime de injúria (cfr. artigo 181º do Código Penal), sendo este o critério principal de distinção entre os dois tipos legais 3. Por honra deverá entender-se o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, por sua vez a consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública 4. No crime em análise não se protege a sensibilidade pessoal mas tão só a dignidade individual do visado, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas. Assim, a difamação não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação 5. Por via da equiparação do artigo 182º do Código Penal, os meios de execução do crime de difamação podem ser vários, neles se integrando todos aqueles que representem forma de expressão do pensamento: as palavras (orais, escritas ou reproduzidas por meios mecânicos), os desenhos, as caricaturas, as pinturas, os gestos, os sinais e as atitudes. O crime de difamação apresenta um regime especial no que toca a causas de justificação. Com efeito, estabelece o número 2 do artigo 180º supra citado que: “A conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.” Impõe-se definir em primeira linha o que se entende por interesses legítimos. Tal não se apresenta, no entanto tarefa linear, porém, entende-se que um simples interesse privado se insere nesta categoria. Assim, se alguém para provar um facto numa acção judicial tornar públicas cartas da contraparte, donde objectivamente resulte desonra para este, não existe a menor dúvida que o primeiro está a prosseguir um interesse legítimo. Em segunda linha, e para que se encontre justificada jurídico-penalmente a conduta daquele que ofende a honra de outrem, tem que se considerar que o mesmo não só prosseguia um interesse legítimo como que o mesmo prove a verdade da mesma imputação ou teve fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira. Como se vê, a lei admite a justificação mesmo que o agente não logre fazer prova da imputação. Mas, exige-se em contrapartida que o agente tivesse fundamentos sérios para, em boa fé, a reputar de verdadeira. Questão pertinente a dirimir é a determinação daquilo em que consiste esta boa fé. Não pode significar uma pura convicção subjectiva por parte do agente, mas ao invés terá que estar alicerçada numa realidade factual que a sustente. Esta realidade factual compreende a observância de um dever de se auto-instruir do agente sobre a veracidade da informação debitada, dever este que está implicitamente consagrado no número 4 do supra citado artigo 180º do Código Penal. Mas, característica fundamental da difamação, tal como da injúria, é a sua relatividade, o que quer dizer que o carácter injurioso ou difamatório de determinada palavra ou acto é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre, pelo que só em cada caso concreto se pode afirmar se há ou não comportamento delituoso. Por um lado, o princípio da mínima intervenção do direito penal impõe que sejam apenas sujeitos a um tratamento penal comportamentos que pela sua significância a nível social exijam uma reacção deste tipo por parte do estado. Como recentemente foi sublinhado pelo Tribunal da Relação de Évora em acórdão de 7-12-2012, proc. número 488/09.4TASTB.E1, disponível em www.dgsi.pt: “o direito penal reveste natureza fragmentária, “de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43).” Tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito. Assim, nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético ou menos lícito, mesmo até quando formalmente pareça integrar-se num tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. No caso, a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. E tal valoração far-se-á de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. Pois, voltando a Beleza dos Santos, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis” (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167). Também Oliveira Mendes alerta para que “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa” (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37). E há que levar em conta além do mais que a liberdade de expressão, direito consagrado no artigo 37º da Constituição da República Portuguesa e também pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem no seu artigo 10º, pode e deve ser um limite à incriminação penal objectiva pelos tipos de difamação e injúria – vide, neste sentido, o que bem recentemente se expendeu em acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/5/2013, proc. número 552/09.0GCSTB.E1, in www.dgsi.pt. No que tange aos elementos subjectivos do tipo, este é um crime doloso, a que basta, para uma plena imputação subjectiva, mesmo o mero dolo eventual, estando arredadas do âmbito subjectivo as condutas negligentes 6. Tem-se vindo a entender assim, que não se exige qualquer elemento subjectivo especial para a verificação do ilícito, nomeadamente, que o agente queira especificamente ofender a honra ou consideração alheias. Ora compulsada a acusação particular, verifica-se assistir razão à arguida FF. Com efeito, a prática de um ilícito criminal importa o preenchimento não só do elemento objectivo, mas também do elemento subjectivo, este que por sua vez se subdivide nos elementos cognitivo e volitivo. Num primeiro passo, o agente tem que ter conhecimento das obrigações que a lei para si impõe, o que se traduz no elemento cognitivo. Num segundo passo, o agente há-de, dolosamente ou negligentemente, não ter conformado a sua vontade com as obrigações legais, o que se traduz no elemento volitivo. Pois bem, da narração descrita na acusação particular, podemos depreender que as arguidas agiram livre, voluntária e conscientemente (tal vem expressamente referido no artigo 38º). Mas, impõe-se a questão, sabiam que a suas acções constituíam crime (elemento cognitivo)? O assistente nunca no-lo diz de forma expressa (veja-se a este propósito o descrito nos artigos 38º donde resulta à saciedade tal omissão) e em boa verdade, tal também não pode ser presumido. A ideia de um “dolus in re ipsa”, que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção, é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo 7. Ainda que se defenda a acepção de que o elemento cognitivo se pode supor existente quando os elementos típicos do crime em causa já entraram na consciência colectiva, sempre haverá de aceitar que noutras situações, e designadamente aquelas em que o erro possa ser seriamente equacionado, a consciência da ilicitude deve factualmente constar da acusação. Foi defendido pelo Tribunal da Relação de Évora (acórdão de 17/9/2013, proc. 97/11.8PFSTB.E.1) que se este facto (normalmente descrito sob a fórmula corrente “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei”) constar da acusação, o tribunal tem que se pronunciar sobre o mesmo, sob pena de nulidade da sentença. Ora, no presente caso, em que o erro podia seriamente ser equacionado, em face do conflito de interesses presente nos autos (por um lado, o direito das assistentes à honra, à consideração e ao bom nome e por outro lado, o direito das arguidas à sua liberdade de expressão) pode-se questionar com toda a razoabilidade sobre se as arguidas tinham a certeza de que estavam a praticar algum crime. Ou se ao invés, julgavam legitimada a sua actuação. Tal como se referiu, não vem o elemento cognitivo claramente descrito na acusação particular, ficando, perante a descrição feita no artigo 38º, margem para dúvidas sobre a sua real existência. Entende-se assim no caso concreto que, em face das especificidades do caso concreto, era imperioso que viesse descrito na acusação o elemento cognitivo do dolo das arguidas, afim de poder ser sujeito a prova. E, nunca caberia ao tribunal presumir a existência de factos de que depende a punição de uma conduta, tal como não caberia nunca ao Ministério Público suprir a deficiência em que consiste tal omissão (cfr. a este respeito, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Outubro de 2009, proc. número 584/07.2GCETR.P1, in www.dgsi.pt). Na realidade e como resulta do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência número 1/2015 (in Diário da República, 1.ª série — N.º 18 — 27 de janeiro de 2015), “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal” (sublinhado da minha autoria). E nesta senda, mais recentemente, veio o Tribunal da Relação do Porto, em caso de contornos semelhantes ao vertente, a referir que “A acusação tem que conter todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (ou medida de segurança) - art. 283º, nº 3, do CPP -neles se incluindo o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime (…) O princípio da vinculação temática, ao fixar o objeto do processo, impede o suprimento - por recurso à alteração substancial dos factos - dos elementos em falta, designadamente os subjetivos, cuja falta, na acusação, impõe a nulidade desta.” (Ac. de 9-3-2020, proc. número 1435/18.8T9VNF.G1, in www.dgsi.pt). Em suma: A falta de preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo de um qualquer tipo criminal positivado radica na falta de punibilidade da conduta. De facto, a imputação tem que ser absoluta em si, com efeito, se se imputam factos donde resulte a existência dos elementos objectivo e subjectivo, na sua integralidade, esses factos tem que vir claramente discriminados, para que o acusado deles se possa defender. Ora, não existe na acusação qualquer referência factual relativa ao elemento subjectivo cognitivo de um qualquer tipo criminal. Estamos então, perante uma acusação manifestamente infundada, na acepção que resulta do disposto no artigo 311º, números 3, al. d), o que determinaria a sua rejeição pelo tribunal de julgamento, caso não tivesse tido lugar a instrução. Tal circunstância consubstancia nulidade da acusação (artigo 283º, número 3, al. b) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 285º número 3, do mesmo diploma). Tal nulidade é insanável. De facto, é uma consequência da estrutura acusatória do processo a definição do seu thema decidendum pela acusação. Sendo certo que a instrução não tem por finalidade directa a fiscalização ou complemento da actividade de investigação e recolha de prova realizada no inquérito. E tanto assim é, que é nula a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial aos descritos na acusação – artigo 309º, número 1, do Código de Processo Penal. O acusador, no caso, o assistente, requer ao tribunal a submissão a julgamento do acusado pela prática dos factos que obrigatoriamente tem que descrever na acusação, em conformidade com as disposições legais aplicáveis, que também deve (obrigatoriamente) indicar. E não o fazendo, não cabe ao juiz, quer de instrução, quer de julgamento, uma vez verificada a omissão de factos que constituam crime, convidar o acusador particular ou o Ministério Público a acrescentá-los, caso se admitisse tal faculdade, admitir-se-ia a comissão de uma grave violação dos princípios que conformam o nosso processo penal, designadamente, a sua estrutura acusatória. No que a este aspecto concerne, foi exemplificativamente referido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em douto aresto de 30 de Janeiro de 2007, proc. 10221/2006-5, disponível em www.dgsi.pt que “perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal – leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido. Ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem uma terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito. O mesmo se passa com o juiz de instrução. Requerida esta fase pelo arguido para contrariar a acusação pública, ou particular nos casos de procedimento dependente de acusação particular, o JIC, chegado o momento de sobre ela decidir, ou considera que aquela contém todos os elementos essenciais e que há “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena …” e, então, profere despacho de pronúncia, ou faz um juízo negativo e profere despacho de não pronúncia. Não pode ordenar, perante a insuficiência de factos, que os autos voltem ao MP – ou ao acusador particular – para que seja completada a acusação.” A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. artigo 308º, número 1 do Código de Processo Penal). Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face de tais indícios, seja, em termos de prognose, muito provável a futura condenação dos arguidos ou que esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. artigo 283º, número 1 ex vi artigo 308º, número 2, ambos do mesmo diploma)[1]. É assim exigível que a peça acusatória assente num mínimo de indícios que sustentem um juízo de razoabilidade e de probabilidade de condenação do arguido em julgamento. Ora não constituindo os factos descritos na acusação particular, na sua integralidade, crime, nunca poderia, às arguidas ser aplicada em sede de julgamento qualquer pena ou medida de segurança, pelo que importa, ao abrigo do disposto no artigo 308º, número 1 do Código de Processo Penal, proferir despacho de não pronúncia relativamente aos factos que lhes são imputados na acusação particular de fls. 217-224. A decisão de não pronúncia, atendendo aos motivos, deve aproveitar às demais arguidas que não requereram abertura de instrução (artigo 307º, número 4, do Código de Processo Penal). Impõe-se, pois, proceder em conformidade. (…) Pelo exposto, e tendo presentes todas as supra aludidas considerações e normas jurídicas invocadas, decido não pronunciar as arguidas AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG pelos factos e incriminação constantes da acusação particular apresentada pelas assistentes.(…)”. 3. Do recurso 2.1. Das conclusões do assistente Inconformado com a decisão do JIC o assistente interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): “a. No entendimento do assistente, ora recorrente, as considerações vertidas na decisão instrutória por parte do Mmo Juiz do Tribunal “a quo” acerca dos elementos objetivos que devem estar reunidos por forma a uma determinada factualidade revestir gravidade suficiente para merecer tutela penal não deverão ser atendidas na presente fase processual, pois tal apreciação competirá ao Juiz que presidir a audiência de julgamento que venha a ter lugar, e não ao Juiz de Instrução; b. A apreciação da gravidade das condutas em causa para efeitos de se saber se as mesmas merecem tutela penal, nem sequer foi alegada no requerimento de abertura de instrução deduzido pela arguida, pelo que a decisão instrutória extravasa, totalmente, os factos que lhe foram colocados para sua apreciação no âmbito da instrução a que ora nos reportamos; c. Pelo que todas as considerações tecidas pelo Mmo Juiz do Tribunal “a quo” a esse respeito nos parecem, salvo o devido respeito, desenquadradas, não competindo ao mesmo, nos termos supra expostos, analisar as mesmas na fase processual em que nos encontramos; d. Por outro lado, considera o ora recorrente que a acusação particular por o mesmo apresentada nos presentes autos não é manifestamente infundada, não sendo, por isso, nula, uma vez que se encontram alegados todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime em causa nos presentes autos, nomeadamente, o elemento cognitivo e volitivo do dolo, não sendo obrigatório o recurso a locuções pré concebidas e conclusivas acerca da consciência da ilicitude por parte das arguidas; e. Com efeito, o elemento intelectual ou cognitivo do dolo encontra-se expressamente referido na acusação particular quando na mesma se escreve que “as denunciadas/arguidas com a respetiva conduta agiram livre, deliberada e conscientemente com intenção de injuriar e difamar o ora assistente, desiderato esse que lograram obter” o qual “se sentiu extremamente ofendido na sua honra e humilhado”, e ainda “não se coibindo as denunciadas/arguidas supra identificadas de vexar, ofender e difamar o assistente da forma como fizeram, com a utilização de expressões extremamente injuriosas (…)”, afirmando-se assim, o conhecimento das arguidas de que as imputações formuladas têm caráter ofensivo da honra do assistente; f. Também o elemento emocional ou volitivo do dolo se encontra alegado na acusação particular deduzida pelo ora recorrente, afirmando-se a vontade das arguidas de agir em conformidade com tal conhecimento, ou seja, querendo a imputação ou a formulação do juízo correspondente, agindo, nas palavras da acusação, com essa intenção; g. Face a todos esses elementos vertidos na acusação particular, cremos que se mostram alegados todos os elementos subjetivos do tipo de crime ora em causa, pelo que, salvo melhor entendimento, não existe qualquer razão para a mesma ter sido recusada e considerada nula pelo Mmo Juiz do Tribunal “a quo”; h. Com efeito, tem sido entendimento dominante da nossa jurisprudência que a expressão supra referida traduzida na frase “sabendo as arguidas que a sua conduta é proibida e punida por lei” (ou outra equivalente) não tem necessariamente que se encontrar expressa na acusação deduzida contra determinado arguido; i. Relativamente a tipos de crime cuja ilicitude é conhecida de todos – como é o caso do crime de difamação em causa nos presentes autos – a alegação na acusação do conhecimento da proibição legal não é indispensável à acusação; j. Do teor de todos os factos elencados na acusação particular deduzida pelo assistente, resultam claros os factos praticados pelas arguidas, o desvalor com que as mesmas agiram, a intenção das mesmas de ofender, difamar, injuriar o assistente, tanto que o fizerem numa rede social, para que um grande número de população tivesse acesso a tais factos, não se reportando a comentários feitos em particular, ou com um reduzido número de pessoas. k. Resulta da factualidade descrita na acusação que obviamente as arguidas sabiam que os nomes e expressões que dirigiram à pessoa do assistente eram ofensivos do mesmo, sendo que o conhecimento de tal ilicitude por parte das arguidas resulta da imputação, ao assistente, de condutas e expressões a que qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa um caráter proibido e de reprovação social, tendo tido a clara intenção de denegrir a imagem do assistente, tal como, efetivamente, fizeram; l. Pelo que todos os elementos necessários à imputação às arguidas da prática do crime de difamação de que vêm acusadas estão vertidos no texto da acusação particular apresentada pelo assistente, não fazendo qualquer sentido rejeitar-se a mesma por apenas não conter as supra referidas “fórmulas antigas” obtidas através de frases pré concebidas e conclusivas, sendo que, o que verdadeiramente importa, é que a acusação contenha todos os factos que permitam imputar-se o crime em questão às arguidas em causa, o que foi cumprido na acusação ora em causa; m. Por outro lado, diga-se ainda que tão pouco tem aplicação ao caso dos autos a jurisprudência fixada pelo nosso Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015, porquanto o mesmo respeita a omissão na acusação de outros factos essenciais que não os que se referem aos integradores do conhecimento da ilicitude. n. Nesse sentido, veja-se, a título de exemplo, o disposto nos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 13/06/2018, em que é relatora a Drª Maria Dolores da Silva e Sousa e pelo Tribunal da Relação de Évora, datado de 26/10/2021, em que é relatora a Drª Beatriz Marques Borges; o. Face a tudo o que supra se expôs, acredita-se que o Mmo Juiz do Tribunal “a quo”, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos no art. 311º nº 3 alínea d) e 283º nº 3 alínea b) (aplicável ex vi art. 285º nº 3) do nosso C.P.Penal, pois interpretou tais normas como sendo exigível ao assistente mencionar, de forma expressa, na sua acusação, a consciência da ilicitude através do uso de fórmulas/ frases habitualmente utilizadas, sendo que, no entendimento do ora recorrente, tal não resulta do teor das normas supra citadas, pois os factos alegados pelo assistente na acusação particular consubstanciam a prática do crime de difamação por parte das arguidas, estando alegados todos os requisitos objetivos e subjetivos do tipo de crime em causa; p. Não se mostrando exigível a referência expressa da consciência da ilicitude através do uso de locuções pré concebidas; q. Por outro lado, é também nosso entendimento de que o Mmo Juiz do Tribunal “a quo” violou o disposto no art. 17º nº 2 do C.Penal, pois ao decidir como decidiu, considerou que as arguidas poderão ter agido sem consciência da ilicitude, partindo do pressuposto que esse erro não lhes era censurável, sendo que, no entendimento do assistente, ora recorrente, as arguidas agiram com plena consciência da ilicitude das suas condutas, sendo certo que, neste tipo de crimes (que integram os crimes do chamado direito penal clássico) ainda que as mesmas agissem sem consciência da ilicitude das suas condutas – o que apenas se admite como mera hipótese de raciocínio – sempre esse erro acerca da ilicitude lhes seria censurável e, por isso, punível, nos termos previstos no art. 17º nº 2 do C.Penal, pois qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa a prática dos factos perpetrados pelas arguidas a um caráter proibido e de reprovação social; r. Pelo que, pelos motivos fácticos e jurídicos invocados, deveriam as arguidas ter sido pronunciadas pela prática dos crimes de difamação de que vêm acusadas. Nestes termos e nos demais de direito aplicável, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, deve a douta decisão instrutória proferida pela Mmo Juiz do Tribunal “a quo” ser revogada, substituindo-se por outra que pronuncie as arguidas pela prática dos crimes de difamação de que vêm acusadas.”. 2.2. Das contra-alegações da arguida Respondeu a arguida defendendo o acerto da decisão recorrida, embora sem apresentar conclusões por artigos. 2.3. Das contra-alegações do Ministério Público Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição): “1- Os factos objectivos descritos na acusação particular carecem de dignidade penal. 2- O relato dos factos integradores do tipo de ilícito subjectivo: a) são incompletos, por omissão total do elemento cognoscitivo; b) e são vagos e contraditórios na descrição do elemento volitivo. 3- Por tudo, deve ser mantida a decisão de não pronúncia proferida pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal.”. 2.4. Do Parecer do MP em 2.ª instância Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo assistente. 2.5. Da tramitação subsequente Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência. Cumpre apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Objeto do recurso De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso. 2. Questão a examinar Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer consiste em saber se a não inserção na acusação da expressão “a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal” implica a omissão do elemento emocional do dolo com a consequente não pronúncia da arguida pela prática de um crime de difamação publicitada através do facebook. 3. Da apreciação do recurso interposto pelo assistente Apreciemos, então, a questão suscitada, tema já pela relatora deste Acórdão abordado no processo 89/98.0TBELV.E1, a propósito do crime de dano qualificado[2] e no Acórdão 1/21.2PBFAR.E1 relativo ao crime de ameaça agravada[3]. 3.2.1. O elemento subjetivo do tipo do crime de ameaça agravada Na decisão recorrida considerou-se que a acusação não continha factos suficientes que permitissem imputar de forma objetiva a prática de um crime de difamação por parte da arguida FF que num comentário por si publicado no facebook e dirigindo-se ao aqui recorrente/assistente escreveu “esse paspalho devia de andar a guardar cabras, e mesmo assim coitados dos animais”. O Tribunal a quo, concluiu pela não pronúncia da arguida recorrente e das restantes seis arguidas (não recorrentes) por não constar da acusação a expressão “a(s) arguida(s) atuou(ram) sabendo que a(s) sua(s) conduta(s) era(m) proibida(s) por lei”. Destacou o Tribunal a quo que faltando este elemento caracterizador do dolo na narração da acusação os restantes factos nela descritos não constituíam crime, sendo insuscetíveis de serem integrados em julgamento por via dos artigos 358.º ou 359.º do CPP. Fundamentou, inclusive, o decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 1/2015[4]. O citado AUJ do STJ debruça-se sobre dois Acórdãos que decidiram de maneira oposta a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação e onde o crime em causa era o de injúria. A questão analisada pelo apontado Aresto do STJ traduziu-se em saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito, nomeadamente o dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao artigo 358.º do CPP (alteração não substancial dos factos) integrar os elementos em falta. Salientou-se no AUJ 1/2015 tratar-se tal questão de um dos problemas mais complexos, controversos e basilares do processo penal. O AUJ 1/2015 descreveu a jurisprudência publicada sobre as consequências da falta do elemento subjetivo do dolo em crimes como os de injúria, dano, violência doméstica, difamação e denúncia caluniosa. Num dos Acórdãos[5] ali referenciado, a propósito de um crime de injúria, é referido não constar da acusação a menção “ao conhecimento de a conduta ser proibida” (embora dela constasse a alusão à arguida ter agido com manifesta intenção de atingir a ofendida na sua honra e consideração), tendo-se nele concluído não ser possível na audiência de julgamento, por recurso ao artigo 358.º do CPP, integrar os elementos respeitantes ao tipo subjetivo do ilícito. Ainda num outro Acórdão da Relação do Porto de 16.6.2012[6], referenciado pelo AUJ 1/2015, relativo ao crime de dano, foi considerada a necessidade de, no requerimento para abertura de instrução, constarem os factos constitutivos do tipo subjetivo, enquanto integrante do tipo de culpa, sendo esse elemento necessário para a punibilidade. Nele se considerou a correção da decisão proferida pelo JIC que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por total omissão de elementos referentes à consciência de ilicitude. Depois de no AUJ ser analisada a doutrina e a jurisprudência sobre o tema o STJ tomou posição sobre o conflito jurisprudencial salientando que de entre os elementos do tipo subjetivo de ilícito estão os relacionados com o dolo ou a negligência. No concernente ao dolo este é definido legalmente no artigo 14.º do CP, sendo que, de acordo com a doutrina tradicional[7], o dolo é composto por um elemento intelectual e um volitivo ou emocional. Já para a corrente mais recente[8] o dolo desdobrar-se-ia em três elementos: o intelectual, o volitivo e o emocional. O AUJ 1/2015 optando por aderir a esta última corrente concluiu que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código Processo Penal”. Assim, o dolo, na tese acolhida pelo AUJ 1/2015, será constituído pelos elementos: - Intelectual ou cognoscitivo correspondente ao agente conhecer, saber, prever ou representar as circunstâncias dos elementos do tipo objetivo (tipo de ilícito); - Volitivo com o significado de o agente querer, ter a vontade ou o propósito de realizar o facto típico (tipo de ilícito); - Emocional correspondente ao agente conhecer o desvalor da sua conduta contra o direito (tipo de culpa). Estes elementos do dolo terão de constar da acusação sob pena de essa factualidade não poder ser integrada em julgamento, conduzindo essa falta de narração à absolvição da arguida. O AUJ 1/2015, todavia, salienta que quanto ao dolo emocional essa descrição nem sempre carece de constar na acusação, indicando os casos dos crimes de homicídio, ofensas corporais, furto, injúrias. Dando como exemplo concreto o do Acórdão do STJ de 7.10.1992 relativo a um crime de homicídio onde, embora não constasse qualquer referência na matéria de facto ao conhecimento que o arguido teria ou não da proibição legal, foi considerado que “tendo o arguido agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de desconhecer o desvalor da sua conduta”. No AUJ 1/2015 conclui-se depois que apenas no direito contraordenacional ou penal secundário ou quando se esteja perante novas incriminações não suficientemente solidificadas na comunidade é de exigir o “conhecimento da proibição legal” por parte do agente e consequentemente é obrigatória a narração na acusação desse elemento como forma de realização do dolo do tipo. Revertendo ao caso em apreciação neste recurso onde está em causa a indiciada prática de crimes de difamação, atentemos à matéria constante da acusação particular relativa à arguida recorrente: “2. - O (..) assistente, à data dos factos, mantinha um contrato de trabalho com a U... EPE, exercendo há vários anos funções no Centro de Saúde ..., trabalhando há mais de 10 anos no setor de atendimento ao público. (…) 6. - No (…) dia 23/07/2020, estava o (…) assistente no (…) Centro de Saúde ... no atendimento ao público a desempenhar as respetivas funções, quando (…) II se dirigiu ao mesmo e solicitou que fosse emitida uma receita que (…) necessitava. 7. - O ora assistente, aplicando as normas e ordens em vigor decorrentes das medidas adotadas em virtude do combate à pandemia de Covid-19 que o país atravessava (…) informou a referida senhora que tal pedido deveria ser efetuado por email como (…) decorria de informação (…) divulgada por vários meios, a qual se encontrava mesmo afixada na porta do Centro de Saúde em questão. (Doc. nº 01 (…) 8. - Face à informação prestada (…) pelo (…) assistente, a mesma ficou extremamente aborrecida, tendo saído do Centro de Saúde em questão bastante exaltada. (…) 11. - A senhora em questão (…), após sair do Centro de Saúde ..., resolveu escrever uma publicação no seu Facebook a mostrar o desagrado com o que se tinha passado, a qual deu origem a (…) comentários (…). 12. - (…) a publicação escrita (…), refere-se ao ora assistente ao dizer que foi muito mal atendida pelo funcionário (…) criticando, de seguida, a forma de funcionamento implementada quanto ao modo de realização de pedido de receitas. (Doc. nº 02 pág. 1 já junto) (…) 13. - (…) os comentários referentes à pessoa do ora assistente que foram feitos na publicação atrás referida (…) foram – muitos deles (…) difamatórios. 19. - (…) escreve (…) a denunciada/arguida FF o seguinte: “esse paspalho devia de andar a guardar cabras, e mesmo assim coitados dos animais”. (Doc. nº 02 pág. 12 já junto) (…)” 34. - Os acontecimentos (…) relatados (…) colocaram em causa a honra e o bom nome do assistente, e deixaram-no (…) envergonhado, uma vez que tais comentários foram lidos e vistos por um grande número de pessoas (…) tendo o (…) assistente sido por diversas vezes confrontado por amigos, familiares e mesmo colegas de trabalho quanto a tal situação, o que muito incomodou e entristeceu o mesmo. (…) 36. O (…) assistente sentiu-se (…) ofendido pelos nomes e expressões (…) que lhe foram dirigidos, os quais, para piorar, foram proferidos numa rede social a que tem acesso um sem número de pessoas. 37. - As expressões ora em causa que foram referidas pelas denunciadas/arguidas são suscetíveis de ofender um cidadão comum. 38. - As denunciadas/ arguidas, com a respetiva conduta, agiram livre, deliberada e conscientemente com intenção de injuriar e difamar o ora assistente, desiderato esse que lograram obter.”. Da fórmula utilizada na acusação resulta ter a arguida a intenção (querer) livre, voluntária e conscientemente escrito e publicado no facebook o comentário “esse paspalho devia de andar a guardar cabras, e mesmo assim coitados dos animais” (elemento intelectual ou cognoscitivo do dolo), correspondente ao agente conhecer as circunstâncias dos elementos do tipo objetivo (tipo de ilícito). No concernente ao elemento volitivo com o significado de o agente ter a vontade ou o propósito de realizar o facto típico (tipo de ilícito) este também se encontra expresso na acusação, quando ali se refere que a arguida teve a intenção de difamar o assistente. Já quanto ao elemento emocional do dolo correspondente ao agente conhecer o desvalor da sua conduta contra o direito (tipo de culpa) a acusação é omissa, embora, como assinalado dela constem claramente os elementos intelectual e volitivo. A locução “bem saber o agente ser proibida por lei a sua conduta”, não é todavia facto que deva ser autonomamente narrado na acusação (embora o possa ser de modo a evitar recursos como o interposto neste processo) quando se está perante um crime do direito penal clássico[10], como sucede no caso concreto de difamação dirigida propositadamente a um funcionário de um centro de saúde em exercício de funções. Em casos como o assinalado a consciência de a arguida ter agido bem sabendo tratar-se a sua conduta proibida por lei decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo: elemento intelectual e volitivo).[11] O assistente funcionário público prestou uma informação a uma utente, que desagradada pela forma como foi atendida publicou no facebook um comentário sobre o sucedido, provocando uma série de comentários escritos de vários utilizadores (onde o apelidaram designadamente de “besta”; “mal educado”; “mal formado”; “besta do pior”, “besta quadrada”). Nessa sequência, de acordo com a acusação particular, a arguida com a intenção de difamar o assistente publicou também um comentário no facebook utilizando a expressão “esse paspalho devia de andar a guardar cabras, e mesmo assim coitados dos animais”. A questão que se coloca em relação à proteção do bem jurídico, “honra” (inclui não só a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade com o a inerente à pessoa independentemente do seu estatuto social[12]), é a de saber se, no caso, está suficientemente solidificada na consciência da comunidade que uma pessoa média escrevendo no facebook tais comentários sabe que pratica um crime de difamação. Ora, se essas expressões se dirigiam a um funcionário de um centro de saúde em exercício de funções não podia a arguida ignorar que a sua atuação seria punida criminalmente, além do mais quando no próprio enunciado da acusação particular até consta que a arguida atuou conscientemente com a intenção de difamar o assistente (cf. artigo ponto 38. parte final da acusação particular transcrita em I., 1.1. deste Acórdão). A omissão da fórmula estereotipada da acusação “atuou conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida por lei” não pode justificar o não recebimento da acusação, porquanto alicerça-se, neste tipo de crime (difamação), apenas na experiência da vida e da normalidade, sendo certo constar da acusação particular que a arguida “atuou conscientemente com a intenção de difamar o assistente”, daí resultando necessariamente ser sabedora que aquelas expressões concretas eram adequadas a denegrir a imagem, o bom nome e a reputação do assistente enquanto funcionário de um centro de saúde. Tal como no Acórdão desta Relação de Évora de 6.2.2018 relatado por António Latas, com data posterior à publicação do Acórdão Uniformizador 1/2015, é apreciada uma situação similar à do presente recurso, onde a acusação apenas é “omissa” na descrição do elemento emocional (dolo do tipo de culpa). Assim, e em síntese, tratando-se a difamação de um crime do direito penal clássico não tinha de constar da acusação[13], nem de ser alegado, no caso concreto, que a arguida “bem sabia que a sua conduta era proibida por lei”, pois a consciência da proibição legal decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo)[14]. Chegados a este ponto, como consequência da conclusão alcançada deve a decisão recorrida ser totalmente revogada e substituída por outra que pronuncie a arguida FF, pela prática do crime de difamação com publicidade dos artigos 180.º e 183.º, n.º 1, alínea a) do CP. Sem prejuízo do referido, situação distinta e não discutida, pois não se reportava à arguida recorrente, é a de saber se a utilização de expressões como “mal educado” e “mal formado” (cf. facto 14. constante da acusação particular) é conduta não punível face ao disposto no artigo 180.º, n.º 2, alínea b) ou se é admissível por se encontrar abrangida pela liberdade de expressão, situação, todavia, que cumprirá apurar em julgamento. III. DECISÃO Nestes termos e com os fundamentos expostos: 1. Concede-se provimento ao recurso interposto pelo assistente e em consequência, revoga-se o despacho de não pronuncia proferido, que deverá ser substituído por outro que pronuncie a arguida FF pela prática do crime de difamação. 2. Sem custas. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários. Évora, 14 de março de 2023.Beatriz Marques Borges - Relatora João Carrola Maria Leonor Esteves_______________________________________________ [1] Entendimento este já propugnado por Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1º Vol., 1974, pag. 133. [2] Disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtre . [3] Disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtre. [4] Publicado no DR 1.ª série, n.º 18 de 27 de janeiro de 2015. [5] Do Tribunal Relação de Guimarães de 16.10.2004 proferido no processo 1245/04-1. [6] Proferido no processo 414/09.PAMAI-B.P1. [7] É a este propósito indicado Eduardo Correia como o defensor da tese tradicional. [8] Como defensor da tese mais recente é indicado Figueiredo Dias. [9] Sublinhado nosso. [10] Cf. Acórdão da RE de 6.2.2018, proferido no Processo 54/16.8T9CBA.E1, relatado por António Latas e disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtre. [11] O Desembargador António Latas, no Acórdão da RE de 6.2.2018, refere que a locução “consciência da ilicitude” só assume autonomia quando se discute a falta de consciência da ilicitude, enquanto causa de exclusão da culpa (artigo 17.º do CP). No AUJ 1/2015 (P. 593) afirma-se que “o conhecimento da proibição não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” e será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo ilícito criminal”. [12] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 723 ISBN 978-972-54-0489-8. [13] Sem prejuízo de o MP e assistente o poder fazer com vista a evitar absolvições e recursos numa matéria que tem suscitado tanta controvérsia. [14] Cf. neste sentido Ac. RE de 6.2.2018, relatado por António Latas.

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