Apura logo

Acórdão TR Lisboa de 2009-04-02

486-D/2002.L1-8

TribunalTribunal da Relação de Lisboa
Processo486-D/2002.L1-8
RelatorCatarina Manso
DescritoresInventário, Arrolamento, Bens Comuns, Divórcio por Mútuo Consentimento
Nº do DocumentoRL
Data do Acordão2009-04-02
VotaçãoUnanimidade
Meio ProcessualAGRAVO
DecisãoProvido

Sumário

1.Devem ser relacionados como bens comuns os bens arrolados, como preliminar da acção de divórcio. 2. Existindo no divórcio por mútuo consentimento uma relação de bens comuns, estes têm de ser relacionados, no processo de inventário conforme dispõe o art. 1419,nº2 do CPC.


Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa I – Decretado pelo Tribunal Judicial do C… o divórcio por mútuo consentimento, que dissolveu o casamento celebrado entre A e B, foi requerido inventário para partilha dos bens comuns do casal. Apresentada a relação de bens pelo cabeça de casal (ex-cônjuge marido), veio a interessada B reclamar designadamente contra a falta de bens na relação, alegando que os bens em falta eram comuns, tendo aliás sido descriminados como tal na relação de bens apresentada para efeitos de divórcio por mútuo consentimento e ainda que alguns deles constavam do auto de arrolamento que foi requerido e decretado. O cabeça de casal respondeu à reclamação, dizendo que uma parte dos bens em falta pertenciam a terceiro, e os outros eram próprios dele.  Foi indeferida a pretensão da requerente, com o fundamento de que não constitui caso julgado a relação apresentada no divórcio por mútuo consentimento, quanto aos bens comuns, conforme decisão de 5.2.2007. Não aceitando essa decisão a requerente interpôs recurso. Foi designado dia para produção de prova relativamente a outros bens. Com a designação de dia para a conferência de interessados, mandou-se subir o recurso. Nas alegações a requerente concluiu: - nos autos de arrolamento nº 486-A/2002 foram arrolados diversos bens e nos termos do n.º 3 do art. 426° do C.P.C., "o auto de arrolamento serve de descrição no inventário a que haja de proceder-se". O cabeça de casal, ali Requerido, foi notificado nos termos do nº 5 do art. 385° do C.P.C. e, nos termos do art. 388° do C.P.C., não recorreu, nem deduziu oposição à providência de arrolamento decretada; - a interessada B requereu que o cabeça de casal fosse notificado para relacionar os bens identificados nas verbas nº 1, 2 e 48 da relação de bens do divórcio, bem como os bens identificados nas verbas n°s 4, 5, 6, 37, 38, 40, 41, 42, 44, 46 relação de bens do divórcio, correspondentes, respectivamente, às verbas n°s 43, 44, 45, 32, 33, 35, 36, 37, 39 e 41 do auto de arrolamento; - notificado deste requerimento, veio o cabeça de casal requerer a junção aos autos de três documentos, alegadamente, comprovativos que os bens descritos sob as verbas n°s 43, 44 e 45 do auto de arrolamento, que foram arrolados como sendo comuns do casal e fazendo parte integrante do património comum do casal a partilhar nos presentes autos, se encontravam registados em nome de terceiros, in casu, a favor de (D), tio do cabeça de casal A; - a interessada C veio pronunciar-se sobre os referidos documentos, e veio, ainda, requerer que fosse aplicada ao cabeça de casal A a sanção a que aludem o n.º 1 do art. 2096° do Cód. Civil e o nº 4 do art. 1349° do C.P.C., perdendo o cabeça de casal A a sua meação nos bens comuns, em suma, com os seguintes fundamentos;             - a propriedade dos bens declarados e reconhecidos como comuns; - a relação de bens não pode constituir um nada jurídico, algo de irrelevante e insusceptível de vincular as partes (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.06.2004, in www.dgsi.pt, processo nº 912/04-2); - o despacho recorrido violou o disposto no art. 1419° nº 1 alínea b) do C.P.C. e o disposto nos art.s 352° e segs. do Cód. Civil; - os bens constantes das verbas n°s 1, 2, 4, 5, 6, 37, 38, 40, 41, 42, 44, 46 e 48 da relação de bens do divórcio apresentada no âmbito do processo de divórcio convolado em divórcio por mútuo consentimento, são bens comuns do casal e devem ser aditados pelo cabeça de casal à relação de bens; - mais deve julgar-se que o cabeça de casal e interessado A está a ocultar dolosamente a existência de bens no património conjugal, com a intenção dolosa de se apropriar dos mesmos bens e como tal deve decidir-se que o cabeça de casal A está a sonegar a existência daqueles bens, aplicando-se a sanção civil a que alude o n.º 1 do art. 2096° do Cód. Civil e o n.º 4 do art. 1349° do C.P.C., perdendo a sua meação nos mesmos. Factos Remete-se para os factos relevantes do relatório para a decisão dos autos. A requerente reclamou na verba nº1 €20.000,00 em certificados de aforro e Banco…. A verba nº2 crédito arrolado na Adega cooperativa do c…, referente à produção de vinho de 2001 e 2002, montante que desconhece, pois não lhe prestaram tal informação, encontrando-se já liquidado e tendo o interessado A em seu poder parte desse montante, ou seja, a quantia de 1.210,29 €, que levantou (em 07.06.2002 a quantia de 603,65 e em 02.09.2002 a quantia de 606,64 €)     1.210,29 € Verba nº 4 da relação de bens do divórcio (verba nº 43 do auto de arrolamento) – Um veículo ligeiro de passageiros, de marca …. de matrícula …, no valor de           2.500,00 € Verba nº 5 da relação de bens do divórcio (Verba nº 44 do auto de arrolamento - Um tractor agrícola, de marca …, de matrícula …., no valor de          3.000,00 € Verba nº 6 da relação de bens do divórcio (Verba nº 45 do auto de arrolamento) – Um reboque de marca …., matrícula ….    500,00 € Verba nº 32 do auto de arrolamento (verba nº 37 da relação de bens do divórcio) – Uma mobília de quarto de casal, em mogno. composta por cama de casal, duas mesas-de-cabeceira. um guarda fato com 4 portas, uma cómoda com espelho, dois candeeiros pequenos e um de tecto, três tapetes em tons de azul e um relógio despertador, no valor de 1.000,00 € Verba nº 33 do auto de arrolamento (verba nº 38 da relação de bens do divórcio) – Uma mobília de quarto, em mogno, composta por uma cama de corpo e meio, uma mesa de cabeceira, uma cómoda, uma cadeira, uma estante com 4 prateleiras, um candeeiro pequeno e um de tecto, três tapetes com motivos infantis e um relógio despertador, no valor de             750.00 € Verba nº 35 do auto de arrolamento (verba nº 40 da relação de bens do divórcio) – Uma mobília de sala de jantar, em mogno, composta por um móvel cristaleira, uma mesa com seis cadeiras forradas em napa de cor castanha, uma máquina de costura de marca Singer com móvel, um relógio de parede, uma aparelhagem, um candeeiro de tecto e uma carpete em tons de castanho, no valor de         1.745,00 € Verba nº 36 do auto de arrolamento (verba nº 41 da relação de bens do divórcio) – Uma mobília de sala de estar, composta por uma mesa pequena em mogno, um sofá em tecido em tons azul, um móvel de televisão, uma televisão a cores de marca Prime. um quadro e uma carpete em tons de azul, no valor de          750.00 € Verba nº 37 do auto de arrolamento (verba nº 42 da relação de bens do divórcio) – Uma mobília de cozinha, composta por 11 elementos de armários de mogno, duas máquinas de café, sendo uma de café expresso, um microondas de marca Moulinex e um candeeiro de tecto. no valor de             1.000.00 € Verba nº 39 do auto de arrolamento (verba nº 44 da relação de bens do divórcio) – Uma máquina de lavar roupa de marca Cie, no valor de        100.00 € Verba nº 41 do auto de arrolamento (verba nº 46 da relação de bens do divórcio) – Uma mobília de cozinha, composta por seis elementos de armário em contraplacado, uma mesa em plástico branco com duas cadeiras, uma máquina de lavar loiça de marca Indesit. uma máquina de secar roupa de marca Singer, um fogão a gás com três bicos, no valor de 598.00 € Verba nº 48 da relação de bens do divórcio – 2/3 indivisos de um prédio rústico. com a área de 8.720 no sítio de "…", freguesia de …., concelho de …, descrito na Conservatória de Registo Predial de … sob o n.º …. da freguesia de …, inscrito a favor dos interessados, por compra, através de inscrição G-2 – Ap. …. e inscrito na matriz respectiva da freguesia de ….. sobre o artigo … Secção G. com o valor tributável correspondente à fracção de        143.61 € O cabeça de casal e fiel depositário Ae deverá relacionar os bens constantes das verbas 43, 44 e 45 do arrolamento ou relacionar as quantias em dinheiro que aqueles bens relacionados sob as verbas n°s 43, 44 e 45 do arrolamento valiam à data do arrolamento. Não houve contra alegações. Foi proferido despacho de sustentação, com a informação de que foi designado dia para a conferência de interessados, como consta a fls. 134. Dispensados os vistos legais, nada obsta ao conhecimento II – Apreciando O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido. O cabeça de casal deve relacionar, no processo de inventário de partilha dos bens do casal, os que integravam o respectivo património comum, mencionando, além do mais, os elementos necessários ao apuramento da sua situação jurídica (artigos 1345º, nºs 1 e 3, 1346º, nº 1 e 1404º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil). Notificada a parte contrária ao apresentante da relação de bens dessa apresentação pode dela reclamar com fundamento na omissão de relacionação dos que deviam ser relacionados por integrarem o acervo a dividir (artigos 1348º, nº 1, e 1404º, nº 3, do Código de Processo Civil). Deduzida a reclamação da relação de bens por omissão de relacionação, não confessando o cabeça de casal o seu dever de os relacionar, são ambos os interessados notificados para apresentarem as provas e, apresentadas que sejam, depois de produzidas, segue-se a decisão do juiz sobre a pertinência ou não da relacionação dos bens cuja falta foi acusada (artigos 1349º, nºs 2 e 3, e 1404º, nº 3, do Código de Processo Civil). Quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente a decisão incidental da reclamação, deve o juiz, por um lado, abster-se de decidir e, por outro, remeter os interessados para os meios comuns (artigos 1350º, nº 1 e 1404º, nº 3, do Código de Processo Civil). Nesse caso, tratando-se de reclamação por falta de relacionação de bens, como ocorreu na situação em análise, não são incluídos no inventário os bens que se pretendiam ver relacionados (artigos 1350º, nº 2 e 1404º, nº 3, do Código de Processo Civil). Mas o juiz também pode, com base na apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente a reclamação com ressalva do direito às acções competentes (artigos 1350º, nº 3 e 1404º, nº 3, do Código de Processo Civil). Mas qualquer das referidas soluções legais de remessa das partes para os meios comuns ou de decisão provisória da reclamação quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário por implicar redução das garantias das partes (artigos 1336º, nº 2, 1350º, nºs 1 e 3 e 1404º, nº 3, do Código de Processo Civil). No caso vertente temos uma particularidade muito especial, os cônjuges relacionaram todos os bens reclamados, como bens comuns, na relação de bens que instruiu o pedido de divórcio por mútuo consentimento, e antes, foram arrolados como bens comuns do casal.  Num Ac. STJ, de 4.5.1998, in www.dgsi.pt decidiu-se que: “O arrolamento, tendo a natureza de providência cautelar, e com as características, assim, de provisoriedade e instrumentalidade em relação ao divórcio, mantém-se até que exista a descrição de bens no inventário, para a dita partilha, nos termos do artigo 426, n. 3, do CPC, e servindo o auto de arrolamento da referida descrição”. A relação de bens não pode ser irrelevante e insusceptível de vincular as partes, quando apresentada e subscrita por ambos, no processo de divorcio por mútuo. Caso contrário teria que admitir que a lei impunha a prática de um acto mais ou menos inútil (a apresentação da relação dos bens comuns), em contradição com o que proíbe a prática de actos inúteis (v. art. 137º do CPC). Na realidade, tal relação, mais que um simples acto jurídico, representa um verdadeiro negócio jurídico, que deve produzir efeitos jurídicos. Efectivamente, seguindo a lição de Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, pág. 355), os negócios jurídicos são factos voluntários, cujo núcleo essencial é integrado por uma ou mais declarações (normalmente de vontade, mas também as declarações de ciência podem integrar negócios jurídicos: v. Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, III, pág. 117 e 118) a que o ordenamento jurídico atribui efeitos jurídicos concordantes com o conteúdo da vontade das partes, tal como este é objectivamente (de fora) apercebido. O comportamento da parte aparece exteriormente como uma declaração visando certos resultados prático-empíricos. Com as declarações produzidas quanto à relação dos bens, as partes indicaram, quais os bens que entendiam ser comuns do casal, designadamente para efeitos de subsequente partilha.             Aceitando como verdadeiros que os bens das verbas n.º43, 44 e 45 estão registados em nome de um tio do cabeça de casal, não decorre daí que não fossem do casal e incumbe-lhes decidir se pretendem apenas partilhar o valor dos mesmos ou não. Mas, salvo o devido respeito, não se pode esquecer que os mesmos têm um arrolamento em vigor, onde foram arrolados e identificados como bens comuns. Também é certo que a relação de bens é um documento exigido para instruir o requerimento de divórcio por mútuo consentimento, 1419, nº1, al.) do CPC. Trata-se de uma condição de prosseguimento da acção e nada tem a ver com o objecto da acção. A reclamante admitiu na reclamação a possibilidade de partilha do seu valor. Bem se compreende e assim seja, podem estar registados em nome do tio mas terem sido adquiridos por ambos. Nas declarações da relação de bens apresentaram os bens que os declarantes consideram comuns, há uma declaração de vontade, que revela aquilo que cada uma das partes entende sobre os bens comuns, um acto convergente das partes sobre quais são os bens comuns. Tal relação traduz-se ainda basicamente num documento informativo (isto segundo a classificação doutrinária dos documentos em função da declaração documentada, classificação essa que distingue entre documentos negociais e informativos). Informativo porém de factos próprios dos respectivos autores, pelo que deve ser tido como documento confessório (v. Pinto Furtado, RDES, Ano XXV, nºs 1-2, pág. 34; v. art. 352º do CC). Mesmo que se defendesse que não existe vinculação no que se reporta à relação de bens apresentados, aquando do pedido do divórcio por mútuo consentimento, se não tivesse sido elaborada e junta, não podiam requerer ou obter o divórcio por mútuo consentimento. Tiveram nessa altura oportunidade de juntar uma relação de bens litigiosa para apreciação futura, mas nada consta da mesma quando subscrita por ambos. Aliás, o nº2 do art. 1419 do CPC dispõe que: “ Caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior”.   Tudo se passa como se o cabeça de casal tivesse confessado a existência dos bens, no contexto do nº 2 do art. 1349º do CPC. Em qualquer dos casos há um reconhecimento de que os bens existem no património do casal – somente com a diferença de que num caso o reconhecimento é feito extrajudicialmente enquanto no outro é feito judicialmente, razão pela qual têm que ser inseridos na relação de bens. O que se entende, pois, a não ser assim, de nada interessava proceder ao arrolamento dos bens, nos termos em que foi decretado, nem indicar no mútuo os bens comuns. No sentido da decisão recorrida encontramos os Ac. do TRG de 28.7.2007 e em sentido contrário o Ac do mesmo tribunal de 17 de Junho de 2004, ambos no endereço www.dgsi.pt. Não é este o momento para se decidir se o cabeça de casal perdeu ou não o direito à meação, como peticionado. Concluindo: 1.Devem ser relacionados como bens comuns os bens arrolados, como preliminar da acção de divórcio. 2. Existindo no divórcio por mútuo consentimento uma relação de bens comuns, estes têm de ser relacionados, no processo de inventário conforme dispõe o art. 1419,nº2 do CPC. III – Decisão: em face do exposto, concedendo provimento ao agravo, revoga-se a decisão impugnada, devendo os autos prosseguir com a indicação de nova relação de bens. Custas pelo agravado art. 2 al.g) do C.C.J.       Lisboa, 2 de Abril de 2009       Catarina Manso        Pedro Lima Gonçalves        Ana Luísa Geraldes

© 2024 Apura. Todos os direitos reservados.
Termos e Condições
Política de Privacidade