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Acórdão TR Évora de 2024-06-04

2732/22.3T9STB.E1

TribunalTribunal da Relação de Évora
Processo2732/22.3T9STB.E1
RelatorMaria Perquilhas
DescritoresDifamação, Elementos Constitutivos, Imputação ao Assistente de Factos Criminalmente Puníveis
Data do Acordão2024-06-04
VotaçãoMaioria com * Vot Venc

Sumário

I - O arguido, na rede social “Facebook”, imputou ao assistente a prática de “burlas”, de “desvio de dinheiro” e de “pagamentos ilícitos”, e tais imputações carregam um significado suficientemente ofensivo da honra e da consideração do seu destinatário que integram os elementos típicos do crime de difamação. II - Porque o arguido imputa ao assistente a prática de factos criminalmente puníveis (afirmando ter disso “provas” - “provas” que não apresenta -), as suas expressões não podem considerar-se admissíveis, mesmo no âmbito do mais lato entendimento sobre o direito de opinião e liberdade de expressão. III - Este tipo de publicações nas redes sociais, facilitadas pelo facto de se estar atrás de um écran, abundam de forma desenfreada, são republicadas de forma rápida, levando muitas vezes a confusões entre o verdadeiro, o opinativo e o falso, com consequências irreparáveis para os visados.


Texto Integral

I – Relatório Por decisão proferida no p.p. dia 15 de fevereiro de 2024, foi decidida a não pronúncia do arguido J, que havia sido acusado pelo assistente, em acusação particular, pela prática de um crime de difamação e de calúnia, pp. no artigo 180º nº1 e 183º nº 1 al. b) do Código Penal. O assistente, R, inconformado com a decisão veio apresentar o presente recurso onde apresentou as seguintes Conclusões: 1. A instrução, tal como decorre das disposições combinadas dos arts. 287º, nº1, 289º, nº1 e 290º, nº1 do Código Processo Penal, tem carácter contraditório, tem lugar quando for requerida pelo arguido que pretenda invalidar a decisão de acusação, ou pelo assistente que deseje contrariar a decisão de não acusação e é composta, obrigatoriamente, por um debate instrutório oral e contraditório. 2. Por decisão instrutória proferida nos presentes autos foi decidido não pronunciar o arguido J de um crime de difamação e calúnia p. e p. nos artigos 180º nº1 e 183º nº1, al. b), todos do Código Penal, sendo, em consequência, determinado o arquivamento dos autos. 3. O Tribunal a quo considerou para o efeito que os factos imputados ao arguido em sede de acusação particular, e no que respeita aos elementos objetivos estes são inexistentes. 4. No que à acusação particular diz respeito, a alínea b) do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, refere-se à narração, sendo que a assistente entende, que esta deve conter os quatro elementos básicos que qualquer relato inclui: - Onde - Quando- Quem- O quê. 5. No que concerne aos dois primeiros elementos, ainda que houvesse alguma imprecisão, o que até seria admissível, sempre o assistente teria a oportunidade e devia explicar-se por que motivo não indicou, com rigor, o lugar ou o tempo. 6. Porém, nos autos, quanto a estes elementos, nenhuma dúvida pode existir, por estes figurarem na acusação particular. 7. Quanto aos restantes dois elementos, também, sem qualquer dúvida, a assistente entende que estes figuram na acusação particular, como se constata pela leitura dos pontos constantes desta peça processual. 8. Mais, também na acusação particular, por essencial, a assistente fez alusão ao elemento objetivo do tipo. 9. Mais fez na acusação particular referência ao elemento subjetivo, isto é, na acusação particular, por necessário fez menção para acusar o arguido, que este agiu intencionalmente, como se extrai do seu ponto 7 – 1ª parte. 10. O arguido foi por sua iniciativa que veio para as redes sociais escrever as expressões que constam no texto, não num contexto de resposta face a qualquer notícia que o tivesse deixado chocado. 11. Do mesmo modo, na acusação a assistente aludiu à consciência da ilicitude, no ponto 7 – 2ª parte, quando este refere que o arguido agiu “… ciente de que a sua conduta, era proibida e punida por lei”. 12. Mais ainda, o assistente referiu na parte final da acusação, as normas incriminatórias, com a maior precisão possível, uma vez que sabia que a falta de indicação deste elemento gerava o vício da nulidade e conduzia à rejeição do libelo acusatório: proémio do nº 3 do artigo 283º e alínea c) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. 13. Ainda mais, na acusação particular o assistente indicou as provas, designadamente o rol de testemunhas, para que a peça processual não fosse nula e rejeitada – proémio do nº 3 do artigo 283º e alínea c) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. 14. E para que serve a instrução? 15. Serve para os arguidos tentarem demonstrar perante o Tribunal que não deveriam ter sido acusados, e que da acusação particular não resultam indícios suficientes para os submeter a julgamento e só faz sentido se for destinada, ou a demonstrar que as provas recolhidas não permitem a decisão final tomada, ou então a demonstrar que determinadas provas foram mal recolhidas, ou foram de forma incompleta, caso em que poderá ser produzida prova nesse sentido. 16. Em sede de instrução, o Tribunal louvando-se nos elementos documentais existentes no processo não deu como suficientemente indiciado os factos que vinham descritos no RAI., fundamentando o decidido num alegado conflito entre o arguido e o assistente, razão pela qual concluiu não existirem indícios suficientes da verificação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de difamação e calunia, mas quando o conflito que existe é entre a empresa Etapas Avulso, Lda., na qual o assistente é sócio gerente de direito, e o arguido. 17. Destrate, entendeu o JIC que as provas recolhidas permitem a decisão final tomada de n/pronúncia, por falta de indícios suficientes. 18. E o que são indícios suficientes? 19. Entende o assistente que uma definição completa e operativa é a que resulta do Acórdão da Relação de Coimbra de 9.3.1988, in CJ, 1988,2,84: “Indícios suficientes são aqueles elementos que logicamente relacionados e conjugados, formam um conjunto persuasivo, na pessoa que os examina sobre a existência do facto punível, de quem foi o seu autor e da sua culpabilidade, ou ainda mais precisamente quando, já em face deles, seja de considerar provável a condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a sua absolvição”. 20. No mesmo sentido aponta-se outra decisão do mesmo Tribunal, desta feita de 10.4.1985, in CJ, 1985,2,81: “Os indícios são suficientes quando, relacionados e conjugados, seja de concluir como altamente provável a futura condenação do acusado”. 21. E quais os factos que teriam de resultar fortemente indiciados no inquérito para permitir uma acusação? 22. Antes de mais a decisão instrutória padece de falhas na apreciação da prova. 23. Avaliando, ponderando e conjugando criticamente o conjunto da prova adquirida, não pode concluir-se que não assomem suficientemente demonstrados os elementos objetivos e subjetivos do crime de difamação e calúnia. 24. Dos autos, resulta que o arguido imputa ao assistente, através das redes sociais a prática de ilícitos criminais que são difamatórios e caluniosos. 25. Dispõe o artigo 180º nº1 do Código Penal que comete o crime de difamação: “Quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo ofensivo da honra e consideração ou reproduzir uma tal imputação ou juízo…..” 26. Dispõe ainda o artigo 183º nº1, al. b) do Código Penal: Se nos casos dos crimes previstos nos artigos 180º; 181º e 182º - a)…. b) Tratando-se de imputação de factos se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; …. 27. Os bens jurídicos protegidos pela incriminação da conduta são a “honra” e a “consideração” da pessoa humana, em concretização material e normativa dos direitos ao bom nome e à reputação consagrados no artigo 26º, nº1 da Constituição da Republica Portuguesa. 28. Refere o Prof. Beleza dos Santos in revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 92, pág 161 a 168, “ a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral que são razoavelmente consideradas essenciais para que o individuo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração e ao desprezo público”. 29. No plano subjetivo o crime de difamação configura um crime doloso, que se basta com um “dolo genérico “em qualquer das modalidades referidas no artigo 14º do Código Penal, não se exigindo que o agente queira ofender a honra e consideração do visado, bastando que saiba que o seu comportamento pode lesar o bem jurídico protegido pela norma, e que, consciente dessa perigosidade não se abstenha de agir. 30. Percorrendo o texto escrito e publicado pelo arguido nas redes sociais, identificam-se como possível de ofender, o que é considerado pelo assistente, o seguinte: “Trabalhadores reclamam salários em atraso do mês de Maio sendo ameaçados se não foram trabalhar é que não recebem mesmo e que não vão trabalhar em mais lado nenhum. A maior parte dos funcionários são ucranianos. Uma vergonha o que se está a passar num dos restaurantes que mais clientes tem. Peço que passem a palavra para os clientes saberem o que se passa”. “Só gostava que uma das entidades que me identifiquei me contactassem para poder mostrar todas as provas que recolhi nestes dois anos, sobre as burlas, desvios etc. etc. “ “Novos dez, Sic, Sic Noticias, CNN não querem uma boa reportagem? Têm muito que explicar incluindo os processos em Tribunal. E espero mesmo que usem isto como difamação, que assim, pode ser que o senhor R junto dos larápios dele compareçam em Tribunal para pagar o que devem, e ser descoberto os desvios de dinheiro, e os pagamentos ilícitos às entidades competentes que suportam esses tipos de esquemas na cidade de Setúbal”. 31. Poder-se-á assim dizer, por outras palavras, que o arguido apelidou o denunciante/assistente, a quem se dirigiu de: - Prática de burlas - Pessoa que desviou dinheiro - Pessoa que fez pagamentos ilícitos às entidades competentes. 32. As expressões utilizadas pelo arguido carregam um significado suficientemente ofensivo da honra e consideração do seu destinatário, sendo suficientemente fortes para atingir o reduto mínimo ou nuclear da dignidade e do bom nome que o denunciante/assistente legitima poder reclamar. 33. Entre o arguido e a sociedade comercial Etapas Avulso, Lda, foi celebrado um contrato de trabalho. 34. Consultado o pacto social da empresa Etapas Avulso, Lda., constatamos que existem três sócios, sendo eles R, aqui assistente, A e ainda B. 35. O ingresso do assistente na empresa executada, Etapas Avulso, Lda., surgiu apenas como forma de investimento de capital, uma vez que foi desde logo o A quem passou a gerir a sociedade e a ser o único sócio gerente de facto. 36. Tendo a Etapas Avulso, Lda., contraído uma alegada dívida salarial para como o arguido, só o seu património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, como bem se refere o artigo 197º nº 3 do Código das Sociedades Comerciais, que consigna o Principio da Limitação da Responsabilidade dos Sócios numa sociedade de responsabilidade limitada, nunca o sócio ainda que gerente e quando não existe estipulação contratual em contrário. 37. A existir um conflito, é entre a empresa Etapas Avulso, Lda. e o arguido, e não entre o arguido e o assistente. 38. In casu, o escrito feito pelo arguido nas redes sociais e em particular as expressões utilizadas, não podem resultar de polémicas, entre arguido e assistente. 39. Efetivamente, o texto denunciado e referido na conclusão 30, nunca pode ser interpretado como um direito de contestação do arguido, mas de harmonia com a prova indiciária adquirida, o arguido atuou com o único propósito de menosprezo pela pessoa do aqui assistente, sabe-se lá porquê. 40. O direito à honra e à liberdade de expressão vem ocupando os tribunais nacionais e, amiúde, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que o vem resolvendo por ponderação dos respetivos interesses, através dos princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação. 41. O escrito feito pelo arguido, contém um ataque pessoal à pessoa do assistente que não cabe nas exceções à liberdade de expressão, uma vez que no caso à uma flagrante e grave ofensa da honra e consideração pessoal. 42. A linguagem utilizada pelo arguido é deselegante e acintosa e fortemente desonrosa e assenta numa falsidade, sendo que o contexto não afasta a tipicidade da conduta. 43. O arguido ao proferir o escrito nas redes sociais, acessível a inúmeras pessoas, terceiros, agiu com um único e mesquinho propósito de achincalhar a honra e o bom nome do assistente na praça pública, perante terceiros, não para responder ao quer que fosse, mas teve o propósito de o fazer desacreditar perante terceiros e só por isso, dirigiu as expressões contidas no escrito publicado. 44. É neste quadro que a ação se desenrola, o que não afasta a tipicidade da indiciada conduta, que foi relativizada pelo JIC, mas que atinge o mínimo da dignidade ético-penal apto a fazer intervir a Justiça Penal, ao contrário do que consta no despacho proferido. 45. Resulta validamente indiciado que o arguido tenha atuado injustificadamente e/ou que não tenha agido com a consciência e a vontade de praticar o crime. 46. No caso concreto a honra e a consideração do visado foi diretamente afetada no quadro relatado, e crê-se que de forma suficientemente intensa para fazer intervir o Direito Penal, ao contrário do decidido pelo JIC.. 47. Acredita-se que o homem médio, in casu, o comum dos frequentadores das redes sociais ao ter lido o escrito, só pode ficar convencido que o visado e em concreto o assistente, tem as características ou qualificativos que lhe são atribuídos pelo arguido. 48. Os epítetos “burlas”; “Pessoa que desviou dinheiro” e “Pessoa fez pagamentos ilícitos às entidades competentes” contêm um caráter suficientemente ofensivo da honra e consideração que permite a censura penal, mas o JIC., como se disse, desvaloriza estes factos. 49. De acordo com o princípio da subsidiariedade do Direito Penal, a intervenção deste ramo do direito é legítima quando a tutela dos bens jurídicos em causa não possa ser garantida por outras vias que impliquem custos menos drásticos. 50. In casu, o Direito Penal deve intervir por se tratar de uma situação desonrosa em que o único propósito do arguido foi o de achincalhar e de rebaixar a honra do assistente, apesar de ter a consciência de que aquilo que escreveu é falso. 51. Ao contrário do decidido, nos autos há elementos suficientes que permitem afirmar, que num juízo de prognose, a reprodução dos elementos probatórios constante dos autos em sede de acusação particular, com toda a probabilidade permitem a imputação ao arguido da prática dos ilícitos criminais de difamação e calúnia. 52. Destrate, tendo em vista o contexto em que foram proferidas, os factos imputados pelo arguido possuem essa idoneidade para ofender a honra e consideração do assistente. 53. O arguido J agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 54. Isto dito, verifica-se que todos os requisitos do tipo objetivo do crime de difamação e calúnia se encontram preenchidos pela atuação do arguido, o qual agiu dolosamente com a intenção de por em causa o bom nome, a credibilidade e a reputação do assistente, quando este é pessoa muito conhecida e respeitada, pela sua seriedade, no local onde reside e trabalha, no grande Porto. 55. Verifica-se assim que a decisão de não pronúncia proferida nos autos procede de uma incorreta apreciação da prova recolhida e existente nos autos, pois da acusação resultam suficientemente indiciados factos que permitem concluir pela probabilidade séria da condenação do arguido, caso seja submetido a julgamento, pela prática de um crime de difamação e calunia p.p. pelos artigos 1800, no 1 e 1830 no l, alínea b) do Código Penal, devendo, em consequência, a referida decisão ser substituída por outra que pronuncie o arguido. 56. E porque desnecessária a decisão do despacho de não pronuncia, agora em recurso, e violados que estão os artigos 2830 n03 al. b), aplicável por via do artigo 3080, no 2, ambos do CPP, este deve ser revogado e proferido despacho de pronúncia, assim se repondo justiça, tudo por violação da doutrina, jurisprudência e das disposições legais supra referidas. Pelo exposto deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência: a) Deve ser o arguido J pronunciado e submetido a julgamento pela prática, de um crime de difamação e de calúnia, p.p. pelos artigos 1800, no 1 e 1830 no 1, alínea b) do Código Penal, o que deve ser extensível ao denunciado/suspeito D.*Recebido o recurso por despacho de 4 de março do corrente ano de 2024, respondeu o MP, concluindo nos seguintes termos: 1. Interpôs o assistente R recurso da douta decisão instrutória proferida a fls. 191-192 dos autos supra epigrafados, que determinou (invocando o disposto no art.º 307.º, n.º 4, do Código de Processo Penal) a não pronúncia dos arguidos J e D pela prática, por parte de cada um destes, de um crime de difamação, com calúnia, previsto e punido pelos art.ºs 180.º, n.º 1, e 183.º do Código Penal, que lhes havia sido imputado pelo primeiro na acusação particular inserta na peça processual de fls. 137-138 v.º dos mesmos autos, não acompanhada pelo Ministério Público, conforme despacho de fls. 139/139 v.º, ainda de tais autos; pugna o ora recorrente, a final, no sentido de dever aquela decisão ser revogada e, consequentemente, substituída por outra que pronuncie os mencionados arguidos pelo cometimento de semelhante ilícito criminal; 2. Ora em causa no presente recurso estará aquilatar da existência nos autos de indícios suficientes da prática, por parte de cada um dos arguidos (J e D), dos factos consubstanciadores do acima aludido crime de difamação, com calúnia, pelo qual devessem os mesmos sujeitos processuais ter sido pronunciados; 3. Tendo o ora recorrente apresentado ab initio queixa e deduzido posteriormente acusação particular pelos mesmos factos constantes do ponto 30 das conclusões transcritas supra, sempre o primeiro referiu não corresponderem tais factos à verdade, por nunca terem ocorrido, nem antes, nem depois, assentando, pois, numa inverdade, sendo aqueles categoricamente desmentidos pelos funcionários da sociedade Etapas Avulso Lda. – da qual o aqui assistente R é sócio-gerente – que laboram no Restaurante Cervejaria O Novo 10, sucedendo que logo foi junto o documento de fls. 6-7 subscrito por inúmeros trabalhadores que atestaram, no mais, a inexistência de situações de salários em atraso ou de despedimento durante o período da pandemia de Covid-19, vindo a ser inquiridas em sede de inquérito várias testemunhas que depuseram nesse sentido, nomeadamente, de não terem quaisquer reparos a fazer ao dito R (que designaram de “proprietário”); 4. Sucede que o arguido D declarou na fase de inquérito, interrogado que foi nessa mesma qualidade processual, que «efectuou a partilha de uma publicação existente na plataforma Faceboock, referente á gestão do restaurante Novo 10 nesta cidade», «fez essa partilha por conhecimento directo do que se estava a passar, pois nessa altura o seu pai C era funcionário do restaurante e tinha os ordenados em atraso», «partilhou essa publicação para as pessoas/clientes terem a percepção de que o proprietário do restaurante não cumpria com as leis laborais» e «não encara como de uma difamação se tratasse pois os apenas constatou os factos sabendo que eram reais» (vide fls. 75/75 v.º); 5. Veio, entretanto, o arguido J a apresentar requerimento de abertura de instrução, aí tendo aduzido, no mais, os seguintes fundamentos: «O arguido foi funcionário da empresa Etapas Avulso, Lda., que detinha, entre outros, o Restaurante “Novo 10”, sito na Avenida Luísa Todi, em Setúbal», «No seguimento do fim da relação laboral entre o arguido e a empresa da qual o assistente é sócio, foi pelo arguido intentada acção no Tribunal de Trabalho da Comarca de Setúbal, com vista à cobrança de créditos salariais, e que deu origem ao Processo nº 3076/20.0T8STB, que corre termos nos Juízo do Trabalho de Setúbal, Juiz 1, conforme documento que se junta sob o nº 1», «Assim, o arguido ao fazer um comentário na rede social Facebook numa publicação realizada por uma outra pessoa, limitou-se a relatar factos que a si dizem respeito, e por si vivenciados», «Factos esses que o arguido sabia serem verdadeiros, tendo agido de boa fé, sem qualquer intenção de lesar o assistente», «O artigo 180º, nº 4 do Código Penal prevê que “ A boa fé referida na alínea b) do nº 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação”», «Na situação em apreço, concluímos que o arguido agiu de boa fé e sabia, com toda a certeza que os factos por si relatados são verdadeiros, não podendo assim a sua conduta ser punível, nos termos do disposto no nº 2, do referido artigo» e «Quanto ao crime de calúnia, previsto no artigo 183º, e uma vez que a conduta do arguido não poderá ser punida, nos termos do disposto no artigo 180º, nº2, e nº4, também não poderá ser punido quanto a este» (vide RAI de fls. 156-158 e 162-166 e documento de fls. 159/159 v.º); 6. Aquando da realização do debate instrutório foram, a requerimento do Ministério Público, juntos documentos, designadamente: cópia de requerimento executivo reportado ao (extraído do) supra aludido Processo n.º 3076/20.0T8STB, sendo a finalidade da execução “Dívidas de salários, diferenças salariais e indemnizações” e os intervenientes J, como exequente, e Etapas Avulso, Lda., como executada; cópia da sentença condenatória judicial proferida no mesmo Processo n.º 3076/20.0T8STB; e listagem de processos relativos à mencionada interveniente Etapas Avulso, Lda., sendo notória a existência de múltiplos processos referentes a contencioso laboral, designadamente, de natureza similar àqueles anteriormente referenciados (vide fls. 185-189); 7. Importando apreciar a questão da prática por parte de cada um dos arguidos (J e D) do crime de difamação, com calúnia, pelo qual foram os mesmos não pronunciados, designadamente, da suficiente indiciação nos autos desse ilícito criminal, refira-se que se nos afigura, tendo em conta todo o explanado supra, ser admissível o entendimento perfilhado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal no que tange à formulação do juízo indiciário negativo conducente ao decidido, não sendo despiciendo levar em consideração, para além das razões aduzidas pelos próprios arguidos, a circunstância de argumentando o assistente que os factos constantes do ponto 30 das conclusões transcritas supra seriam, na sua globalidade, falsos, uma inverdade, pois que nunca teriam ocorrido, vir posteriormente o mesmo assistente a cingir a eventual relevância criminal dessa factualidade tão só (deixando “cair” tudo o mais) aos dizeres explicitados no subsequente ponto 31 das ditas conclusões, tal não abonando em nada a credibilidade da sua versão; 8. Será, assim, de aceitar o juízo indiciário subjacente à decisão de não pronunciar os arguidos J e D, pois que, efectivamente, como refere o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.10.2015, Proc.º n.º 202/13.0GAVLC.P1, Relator: Neto de Moura (vide o site http://www.pgdlisboa.pt/, em anotação ao art.º 308.º do Código de Processo Penal), «[o]s indícios suficientes para submissão do arguido a julgamento devem ser particularmente qualificados, permitindo concluir que existe uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento». Face a todo o exposto, somos, pois, de entendimento de que não assistirá razão ao assistente R, devendo, consequentemente, ser julgado improcedente o recurso ora interposto pelo mesmo sujeito processual. V. Exas., porém, farão como for de JUSTIÇA*II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar artºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 410º nº 2 CPP.*Como se verifica das conclusões de recurso, o objeto do presente recurso consiste em saber: Se existem indícios suficientes da prática do crime de difamação e de calúnia, pp. no artigo 180º nº1 e 183º nº 1 al. b) do Código Penal, imputado ao arguido pelo assistente na sua acusação particular, devendo por isso ser proferido despacho de pronúncia, prosseguindo os autos para julgamento.*III – Motivação: A decisão recorrida tem o seguinte teor: "Veio o arguido J, notificado da acusação particular contra si deduzida a fls. 137 e seguintes, e com ela não conformado, requerer a abertura de instrução invocando nulidade por insuficiente identificação dos arguidos contra quem foi deduzida aquela acusação e também por entender não estarem preenchidos os elementos tipo dos ilícitos criminais imputados, ademais, à sua pessoa, porquanto entende ter-se limitado a relatar factos essencialmente verdadeiros. Conclui dever ser não pronunciado. Não foram requeridos quaisquer atos de instrução no âmbito do requerimento de abertura de instrução mas, antes de inicio do debate instrutório, foi pelo Ministério Público juntos documentos que comprovam a tramitação pelo Tribunal de Trabalho desta cidade de processo em que é exequente o arguido requerente e executada Etapas Avulso Lda. e que, segundo o Ministério Público, respeitará à mesma fundamental relação laboral que suscitou a factualidade e o conflito ora em apreço. Foi junta lista de múltiplos outros processos da mesma natureza e com a mesma executada. Foi deferida a junção daqueles documentos após consulta dos demais intervenientes. Realizou-se debate instrutório. Cumpre apreciar. A identificação dos arguidos efetuada no âmbito da acusação particular é, se individualizadamente considerada, insuficiente; mas aquela peça processual encontra-se inserida num processo em que aquelas pessoas e arguidos se encontram cabal e inequivocamente identificados pelo que o seu mero nome completo não suscita, formal ou materialmente, quaisquer dúvidas sobre a efetiva e concreta identificação dos visados. Assim, e desconsiderando-se formalismos dissociados de pragmatismo e da realidade, indefere-se a suscitada nulidade. As palavras proferidas pelos arguidos e que o assistente entende consubstanciarem crimes de difamação e calunia p. e p. pelo art.º 180.º e 183.º do Código Penal ocorreram num contexto de público litígio entre muitos ex-funcionários de Etapas Avulso Lda. que tem reflexo nos múltiplos processos que correram ou correm termos no Tribunal de Trabalho desta cidade. É bem verdade que Etapas Avulso Lda. e assistente são pessoas distintas; mas é também verdade que em particular num contexto laboral qualquer conflito ou litigância é raramente dirigida a uma abstrata pessoa coletiva, mas antes, quase sempre e naturalmente, pessoalizada, por razões que fundamentalmente dizem respeito à natureza humana que prefere indivíduos e pessoas físicas e concretas com quem de facto – embora eventualmente não de direito – sentiam e sentem manter uma relação (também) laboral. Decorre das regras da experiência comum ser aquela pessoalização circunstância muito comum e dessa forma, para o que importa nos presentes autos, é compreensível a associação do assistente à sociedade Etapas Avulso Lda. – pelo menos, entenda-se, no contexto que cumpre apreciar. Paralelamente, e como tem este tribunal nos últimos meses reiterado, o mundo digital deste século XXI favorece e propicia desabafos, afirmações, comunicações, indignações que - mais ou menos rigorosos e ponderados - não ocorreriam há apenas vinte anos atrás: vivemos num mundo de impulsos mediáticos, de ruídos e gritos em praças muito públicas a que chamamos redes sociais. E é neste contexto que necessariamente temos de interpretar os tipos de crimes em apreço, o que suscita uma acrescida relativização que julgamos impor-se. Ora dando-se por integralmente indiciadas as palavras e expressões proferidas pelos arguidos, decorre termos como pacifico que as palavras e expressões proferidas pelos arguidos ocorreram também em contexto de litigância e litígio judicial e, por isso, nenhuma dúvida se nos oferece que em sede de julgamento, se necessariamente concluiria no sentido propugnada pelo arguido requerente: se dúvida se suscita sobre as circunstâncias das palavras proferidas nem o seu contexto, também se não pode deixar de dar como não indiciado o propósito imputado aos arguidos de clamarem falsidades e de terem como único propósito denegrir a imagem do assistente quando, ademais, judicialmente pugnam pelo que têm como os seus direitos. Assim, e sem necessidade de mais considerações, determina-se a não pronunciar os arguidos nos termos do art.º 307.º, n.º 4 do CPP pela prática dos crimes que lhes são imputados e o oportuno arquivamento dos autos."*O Escrito publicado pelo arguido na rede social Facebook é do seguinte teor: “Trabalhadores reclamam salários em atraso do mês de Maio sendo ameaçados se não foram trabalhar é que não recebem mesmo e que não vão trabalhar em mais lado nenhum. A maior parte dos funcionários são ucranianos. Uma vergonha o que se está a passar num dos restaurantes que mais clientes tem. Peço que passem a palavra para os clientes saberem o que se passa”. “Só gostava que uma das entidades que me identifiquei me contactassem para poder mostrar todas as provas que recolhi nestes dois anos, sobre as burlas, desvios etc. etc. “ “Novos dez, Sic, Sic Noticias, CNN não querem uma boa reportagem? Têm muito que explicar incluindo os processos em Tribunal. E espero mesmo que usem isto como difamação, que assim, pode ser que o senhor R junto dos larápios dele compareçam em Tribunal para pagar o que devem, e ser descoberto os desvios de dinheiro, e os pagamentos ilícitos às entidades competentes que suportam esses tipos de esquemas na cidade de Setúbal”.*B - Decidindo: Está apenas em causa a análise da prova produzida nos autos e a formulação de juízo de maior ou menor probabilidade de o arguido vir a ser condenada em audiência. Como é sabido, a certeza judiciária sobre a existência de um facto e a exigência probatória da sua ocorrência vão-se adensado ao longo do processo, de modo que no Inquérito e na Instrução o legislador apenas exige juízo indiciário, forte e suficiente que justifique a submissão de alguém a julgamento, o que pressupõe da prova recolhida resulte uma maior probabilidade de condenação que de absolvição; ao contrário após a realização da audiência de julgamento exige-se um juízo de convencimento sobre a ocorrência dos factos, devendo da prova resultar uma certeza judiciária o que pressupõe a inexistência de qualquer dúvida razoável sobre a verificação dos factos. Não obstante tratarmos de certeza judiciária, o que em si mesmo encerra desde logo a consciência de poder não retratar totalmente os factos que ocorreram, esta tem que resultar e assentar da prova produzida, sem dúvidas. Ou seja, a prova em audiência deve suportar de forma indubitável os factos que se consideraram provados, intervindo o princípio do in dubio pro reo em caso de dúvida sobre a ocorrência de determinado facto, sendo o mesmo julgado a favor do arguido. Seguimos a jurisprudência segundo a qual o juízo de probabilidade que deve ser realizado no momento em que o juiz de instrução analisa toda a prova produzida e profere despacho de pronúncia ou não pronúncia não é compaginável com a aplicação do in dubio pro reo. O in dubio é um princípio que se aplica à avaliação da prova quando o juiz tem dúvida sobre a ocorrência de um determinado facto no momento em que não lhe é permitida qualquer dúvida – o da decisão final, e não quando analisa a probabilidade de a prova recolhida levar a uma decisão de condenação. Probabilidade de condenação não se confunde com certeza de condenação, sendo por isso diferente o grau de certeza que a prova produz no julgador. Dito isto, cremos que assiste inteira razão ao recorrente. Vejamos. No caso a prova da prática dos factos por parte do arguido mostra-se escrita e foi publicada numa rede social. Desta publicação podemos destacar duas partes, uma relativa a salários em atraso, situação que afetou o arguido, que trabalhou para a sociedade de que o assistente é sócio, e a segunda consistente no restante escrito. Relativamente à primeira parte cremos que a publicação não é ofensiva, desde logo porque tem acolhimento em situações efetivamente ocorridas – salários em atraso a trabalhadores entre os quais o arguido, como bem salienta o MP na sua resposta e se encontra documentalmente demonstrado nos autos. Já no que respeita à segunda parte da publicação cremos que a mesma é objetivamente ofensiva desde logo porque imputa ao assistente a prática de factos criminalmente puníveis que não podem considerar-se admissíveis mesmo no âmbito do mais lato entendimento sobre o direito de opinião e liberdade de expressão. Como se escreveu no Ac. Rel. Porto de 22-02-2023, Proc. 1493/20.5T9VFR.P1, Rel. Vaz Patto: Porque há que conciliar o direito à honra e a liberdade de expressão, há que distinguir, a este respeito, entre a crítica da atuação de uma pessoa e a crítica que atinge a própria pessoa na sua dignidade, entre um juízo sobre essa atuação (que poderá até ser injusto, exagerado, formulado em termos agressivos, ou indelicados e descorteses) e um juízo sobre a pessoa. Está, assim, em causa, neste caso, saber se as expressões relativas ao ofendido e demandante, a ele dirigidas pelo arguido ora recorrente e acima transcritas configuram a prática desse crime de difamação, ou estão cobertas pela liberdade de expressão e crítica consagrada no artigo 37.º, n.º 1, da Constituição. Traçar a fronteira entre uma e outra dessas situações passa por distinguir entre a formulação de juízos ofensivos sobre a própria pessoa visada e a formulação de juízos críticos sobre a atuação ou conduta de uma pessoa. Manuel da Costa Andrade (in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal – Uma Perspectiva Jurídico-Criminal, Coimbra Editora, 1996, pgs. 232 a 240) é claro ao considerar atípica a crítica objetiva, ou seja, a crítica de obras, prestações, realizações e atuações. Essa crítica pode situar-se nos âmbitos político, artístico, desportivo, ou outros. Estaremos perante uma situação de atipicidade, e nem sequer perante uma justificação, nos termos do artigo 31.º, n.º 2, c), do Código Penal, de uma conduta típica pelo exercício de um direito (neste caso, o direito de crítica). Na verdade, da redação dos artigos 180.º, n. 1, e 181.º, n.º 1, do Código Penal resulta que os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações. Estes juízos, que são cobertos pela liberdade de expressão e crítica, não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime. Esta distinção também vale, e vale especialmente, no âmbito da atuação política. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre a importância e alcance da liberdade de expressão neste âmbito não anula tal distinção, como se o direito à honra (também consagrado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no n.º 2, do seu artigo 10.º, além de ser consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição) deixasse de ser tutelado quando são visados agentes políticos, Tal seria, além do mais, contrário ao princípio da igualdade (este também consagrado na Constituição, no seu artigo 13.º). E, como se salienta na douta sentença recorrida, se assim fosse, não teria sentido a agravação (decorrente dos artigos 184.º e 132.º. n.º 2, i), do Código Penal) dos crimes de injúria e difamação quando são ofendidos agentes políticos titulares de órgãos de soberania ou de autarquias locais. Compreende-se a relevância da distinção entre a crítica de atuações e comportamentos e a ofensa à pessoa a sua honra e dignidade. Às ideias e críticas (mesmo que sejam erróneas, injustas, chocantes ou absurdas) pode responder-se no plano do debate racional e da argumentação. Esse debate é sempre salutar numa sociedade aberta, livre e democrática. Outra coisa são os insultos. Aos insultos não pode responder-se no plano do debate de ideias. Aos insultos não pode responder-se senão com o silêncio ou com outro insulto e desse modo não se fortalece a sociedade livre, aberta e democrática. É de realçar que são as exigências de uma sociedade livre e democrática que, de acordo com o n.º 2 do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que servem de critério para aferir a legitimidade das limitações à liberdade de expressão consagrada no nº 1 desse artigo. É verdade que, como vem acentuando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, dos agentes políticos se exige uma maior tolerância à crítica (e à crítica eventualmente injusta, agressiva ou exagerada), do que a que é exigida ao cidadão comum. É algo que faz parte da missão que escolheram (são “ossos do ofício”). Mas daí não decorre que tenham que se ver integralmente privados de proteção à sua honra. Isso poderia levar a que, só por isso, muitas pessoas bem conceituadas e vocacionadas para o serviço do bem comum não optem pela atividade política. Estamos perante dois direitos fundamentais o direito de opinião e liberdade de expressão e o direito à honra. Quando analisamos o direito de opinião e liberdade de expressão exercido pelos media não temos dúvidas em concluir que deve ser dada prioridade ao primeiro, especialmente quando o que se noticia ou opina respeita a pessoas públicas ou que exercem cargos públicos, sujeitos, por isso, ao escrutínio do público que tem o direito de ser informado (direito aliás consagrado na CRP no art.º 37.º). O modo como este direito deve ser entendido e os seus limites encontra-se profundamente tratado em Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1-07-2014, Proc. 53/11.6TAEZ.E2, Relator João Gomes de Sousa. Depois de enquadrado o direito de opinião/liberdade de expressão é analisada a possibilidade de punição por ofensa do direito à honra: «1 - É tarefa do tribunal assegurar que a liberdade de expressão é garantida através de um justo equilíbrio entre a liberdade de expressão consagrada como princípio no artigo 10.º e a reputação da pessoa em causa, enquanto direito decorrente da protecção da vida privada consagrado no artigo 8.º da Convenção. 2 - No seu número 2 o referido artigo 10.º da Convenção prevê, no entanto, condições, restrições ou sanções ou, genericamente, ingerências no direito de liberdade de expressão. 3 - Estas devem, no entanto, estar previstas na lei e mostrar-se necessárias numa sociedade democrática, entendidas estas como uma ingerência por necessidade social imperiosa, para, por referência ao caso concreto, a protecção da honra e dos direitos de outrem. Note-se que os acórdãos referidos respeitavam a situações distintas da que tratamos nos presentes autos já que os visados pelas opiniões/liberdade de expressão ocupavam e exerciam cargos públicos, ao contrário do aqui assistente, discutindo-se o equilíbrio entre o direito de informação do qual faz parte integrante a liberdade de opinião e expressão e o direito ao bom nome e à honra. No caso, não nos encontramos perante qualquer notícia publicada em órgão de comunicação, nem opinião sobre atuação de qualquer figura pública ou pessoa que exerça cargo público. É uma publicação realizada numa rede social por parte do arguido, que havia estado unido por relação laboral à sociedade da qual o assistente é sócio e relativamente à qual tinha direito de crédito salarial reclamado por via judicial. Esta circunstância leva-nos a não considerar ofensiva da honra a primeira parte da publicação como já referimos supra, mas já não justifica as imputações que aí se fazem, concretamente: “Só gostava que uma das entidades que me identifiquei me contactassem para poder mostrar todas as provas que recolhi nestes dois anos, sobre as burlas, desvios etc. etc. “ “Novos dez, Sic, Sic Noticias, CNN não querem uma boa reportagem? Têm muito que explicar incluindo os processos em Tribunal. E espero mesmo que usem isto como difamação, que assim, pode ser que o senhor R junto dos larápios dele compareçam em Tribunal para pagar o que devem, e ser descoberto os desvios de dinheiro, e os pagamentos ilícitos às entidades competentes que suportam esses tipos de esquemas na cidade de Setúbal. Neste segmento o arguido não se limitou a uma desabafo justificado pela relação anterior e já aludida, nem a uma opinião sobre a atuação da entidade devedora, imputou a prática de factos criminalmente puníveis, afirmando que tinha provas. Do que se mostra escrito pelo arguido retira-se desde já que o meio de que se serviu não é nem pode ser o adequado a denunciar a prática de ilícitos criminais, ou seja, não é através das televisões que se deve atuar, mas sim através dos Órgãos de Polícia ou do MP, através da competente denúncia e junção das invocadas provas. Em segundo lugar não se vislumbra nestes autos a junção por parte do arguido de qualquer das provas que anunciou na referida publicação e que afirmou provavam “burlas”, “desvios”, ou sequer dos pagamentos ilícitos referidos. O direito à liberdade de expressão, muitas vezes, colide com o direito ao bom nome, devendo ser efetuada uma ponderação caso a caso para se verificar até onde chegam os limites de cada direito dada a sua geometria variável. Existem situações em que a liberdade de expressão, por mais que coloque em causa o bom nome do visado, precisa de prevalecer, porque estamos a discutir uma questão de relevante interesse público. Também existem casos de pessoas que não são figuras públicas, em que é evidente que o seu direito ao bom nome deverá prevalecer sobre o direito à informação ou à liberdade de expressão (Liberdade de Expressão — A Jurisprudência do TEDH e os Tribunais Portugueses – Francisco Teixeira da Mota, Revista Julgar n.º 32). Assim, não temos dúvidas que no caso o arguido foi longe demais na manifestação dos seus sentimentos, ultrapassando a fronteira do equilíbrio entre o direito à opinião/liberdade de se expressar e o direito ao bom nome e à honra do assistente, ao fazer tais afirmações. Apesar de termos procedido à inserção temporal da publicação e do estado da relação entre o arguido e a sociedade proprietária do restaurante onde trabalhou, do qual o assistente é sócio, cremos que se mostra ultrapassado o direito de opinião/liberdade de expressão/direito de crítica, tendo-se visado não a atuação da sociedade e seus sócios, mas a pessoa do ofendido. Este tipo de publicações nas redes sociais, facilitadas pelo facto de se estar atrás de um écran, abundam de forma desenfreada, são republicadas de forma rápida, levando muitas vezes a confusões entre o verdadeiro, o opinativo e o falso, com consequências muitas vezes irreparáveis para os visados. Não vale tudo. Uma opinião sobre uma atuação é distinta da imputação da prática de ilícitos a uma pessoa. Termos em que procede o recurso apresentado.*IV - Decisão: Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Évora, em Julgar provido o recurso interposto por R devendo a decisão recorrida ser substituída por despacho de pronúncia em conformidade com o supra decidido. - Sem custas. Évora, 4 de junho de 2024 Processado e revisto pela relatora (artº 94º, nº 2 do CPP). Maria Gomes Bernardo Perquilhas (Relatora) Fátima Bernardes (1ª Adjunta) Beatriz Marques Borges (2ª Adjunta) - Vencida nos termos do voto que se segue Voto de vencido: Voto vencida a decisão, por entender que na situação em apreciação embora não seja de aplicar o princípio in dubio pro reo, por estar em causa um despacho proferido na fase instrutória, não se mostra indiciado o propósito de o arguido divulgar qualquer falsidade e de ter efetuado a publicação com o único propósito de denegrir a imagem do assistente. O contexto em que as publicações ocorreram afasta aquela indiciação necessária para fundamentar o prosseguimento do processo para a fase de julgamento. O arguido intentou ação no Tribunal de Trabalho para valer os seus créditos laborais, ação essa julgada procedente com a necessidade de instauração da subsequente ação executiva. Para além da situação relativa ao arguido terão sido instaurados inúmeros processos de natureza idêntica, por outros funcionários da mesma sociedade (cf. motivação de recurso do MP e lista dos processos por este apresentada em sede de debate judicial). Com a falta de pagamento dos salários todos os trabalhadores viram, naturalmente, em risco as suas necessidades básicas e de eventuais familiares bem com a sua dignidade humana. Em contrapartida a sociedade continuou em funcionamento (vide documento pag. 6 no qual outros funcionários, que ali continuaram a exercer funções, declararam ter sido pagos pela sociedade) transparecendo desse facto a saúde financeira da sociedade e dos respetivos gerentes proprietários, incluindo o assistente. As publicações encontram-se, pois, cobertas pela liberdade de expressão e do direito à crítica em vigor num Estado de Direito Democrático, sendo certo ter o arguido denunciado a situação por si vivenciada junto do Tribunal de Trabalho, e sido junta ao processo prova da falta dos pagamentos devidos ao arguido pela sociedade do qual o assistente era tido como proprietário/gerente (cf. pags. 185 a 187). O publicado no Facebook pelo arguido constitui desabafo, com origem num conflito laboral bem caracterizado, e as expressões ali utilizadas (ex: burla, ilícitos, larápios, etc) não podem ser tomadas à letra com o sentido jurídico ou outro pretendido pelo assistente. No caso, falta o elemento volitivo do dolo e a consciência da ilicitude, não devendo o arguido ser submetido a julgamento. Daí acompanharia a fundamentação aduzida na decisão recorrida e confirmaria a não pronúncia. Beatriz Marques Borges __________________________________________________ [1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247; o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263); SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335; RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363. Falta alinhar o texto

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