I - A ação de impugnação da paternidade estabelecida por reconhecimento (perfilhação) não está sujeita a qualquer prazo, é imprescritível. II - Estando a paternidade deferida registralmente ao perfilhante, não podia o filho fazer investigar, sem afastar previamente a filiação constante do registo (registo inibitório), a sua paternidade biológica. III - Neste caso, a ação de investigação da paternidade podia ser proposta nos três anos seguintes ao cancelamento do registo inibitório, cancelamento esse obtido através da procedência da ação de impugnação da paternidade registada. IV - O abuso do direito só existe em casos verdadeiramente excecionais, em casos de gritantes, ofensivos do sentimento ético-jurídico dominante, clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais. V - A desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por este imposto a outrem só releva, em sede de abuso do direito, quando existe uma grande vantagem para uma pessoa à custa de outra e isso sem que se apresente uma especial justificação para tanto; deverá haver uma desconexão (uma desproporção) entre as situações sociais típicas prefiguradas pelas normas jurídicas que atribuem direitos e o resultado prático do exercício desses direitos. VI – Não existe abuso do direito com referência aos pressupostos constantes dos pontos IV e V naquela situação em que o filho propõe ação tendente a impugnar a perfilhação e a reconhecer a paternidade biológica cerca de quatro anos depois de saber quem era o seu pai.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção): I - RELATÓRIO AA, demandou, pelo Tribunal Judicial do Porto e em autos de ação declarativa com processo comum, BB e CC peticionando que (i) seja reconhecido e declarado que o autor não é filho do 1º réu e, em consequência, que seja ordenada a eliminação da paternidade constante do seu assento de nascimento, bem como a respetiva avoenga paterna, e que (ii) seja reconhecida e declarada a paternidade do autor relativamente ao 2º réu, devendo, em consequência, ordenar-se o respetivo averbamento no seu assento de nascimento. Alegou para o efeito, em síntese, que nasceu em ..., tendo sido registado como filho do réu AA, isto na sequência de perfilhação levada a efeito por tal réu. O referido réu sempre constituiu para o autor a sua figura paterna pois foi ele que o educou, alimentou e com quem criou laços de afetividade entre pai-filho. Porém, há cerca de seis meses o autor começou a suspeitar que a pessoa que sempre considerou como pai não seria afinal o seu pai biológico, tendo confrontado a mãe com a questão da sua paternidade. Esta confessou que, efetivamente, o pai biológico do autor era o réu CC, o qual, à data da concepção e nascimento do autor, era marido da mãe do autor e a única pessoa com que a mãe mantinha relações sexuais. A mãe do autor só começou a namorar com o réu AA, com quem depois veio a casar, após a dissolução do casamento com o réu CC. O réu AA, por sua iniciativa, propôs-se assumir a paternidade do autor, perfilhando-o. O réu CC contestou a ação, negando a paternidade que lhe foi imputada e concluindo pela improcedência da ação. Alegou, em síntese, que a mãe do autor se relacionava sexualmente com outros homens, razão pela qual o respetivo casamento entrou em rutura, acabando o casal por se separar em Junho de 1980, não tendo havido entre eles mais qualquer contacto íntimo. O réu AA não contestou formalmente, mas veio ao processo declarar que os factos alegados pelo autor são verdadeiros e que não se opõe ao respetivo pedido. Seguindo o processo seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença que julgou estar caduco o direito de ação do autor, absolvendo os réus do pedido. Inconformado com o assim decidido, apelou o autor. Fê-lo com êxito, pois que a Relação do Porto revogou a sentença, declarando que o autor não é filho do réu AA, mas sim do réu CC, ordenando as correspondentes consequências registrais. É agora a vez do réu CC, insatisfeito com o decidido, pedir revista. Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões: A. Vem o presente recurso da circunstância do Réu, aqui Recorrente, não se conformar com o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido nos presentes autos, que conclui que nenhum dos pedidos/direitos formulados pelo Autor se encontra caducado, porquanto, o autor pode «instaurar a todo o tempo ação de impugnação da paternidade resultante de perfilhação inscrita no respeito registo de nascimento, o autor ainda dispunha de três anos, após o sucesso desta e o subsequente cancelamento do registo da perfilhação, para instaurar a ação de investigação da paternidade do seu pai biológico». B. Sucede que, salvo o devido e merecido respeito que é muito, não poderá o ora Recorrente aceitar uma tal decisão, entendendo, ao invés, e perfilhando o entendimento explanado na primeira decisão proferida (pelo Juízo de Família e Menores do Porto) - a qual, no nosso modesto entendimento, não merecia qualquer reparo ou correção, encontrando-se, quer em termos de facto quer em termos de direito, em plena conformidade com o direito e a justiça - o direito do Autor em ver reconhecido que o 2.º Réu é que é o seu pai, e não o 1.º Réu, caducou, extinguiu-se. C. Isto porque, atendendo aos factos dado como provados em sede de sentença e que não foram sequer colocados em causa pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto, designadamente nos pontos 1, 13 e 21: o Autor, tendo nascido no dia ..., completou 18 anos e, consequentemente, atingiu a maioridade, no dia ...; a presente ação de impugnação e investigação da paternidade foi intentada em 04 de Novembro de 2016, ou seja, decorridos mais de dez anos sobre a maioridade do Autor; o Autor teve conhecimento de que o 1.º Réu (BB) não era o seu verdadeiro pai já no verão do ano de 2012 (sendo este o momento relevante a partir do qual se pode começar a contar o prazo de caducidade da ação). D. Pelo que, facilmente se constata que, de igual forma, se mostra ultrapassado o prazo de três anos previsto no n.º 3 do referido artigo 1817.º, por referência à sua alínea b), sendo que a ação deveria ter sido proposta até ao verão do ano de 2015. Outrossim, E. No que respeita à invocada inconstitucionalidade dos n.ºs 1 e 3 do artigo 1817.º do Código Civil, a jurisprudência maioritária, atual e dominante é clara: antes de tudo o mais, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 401/2011, do seu Plenário de 22 de Setembro de 2011, com a entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, de 01 de Abril que veio alargar os prazos (estabelecidos no artigo 1817.º n.ºs 1, 2 e 3 do Código Civil) de caducidade para a propositura da ação de investigação, decidiu não julgar inconstitucional tal norma. F. No mesmo sentido, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem também já teve oportunidade de se pronunciar, tendo entendido que existe compatibilidade entre as limitações temporais ao exercício do direito de investigação da paternidade com os princípios da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, designadamente com o direito ao respeito da vida privada e familiar, consagrado no artigo 8.º da Convenção. G. Por sua vez, o mesmo entendimento tem vindo a ser perfilhado por este Egrégio Supremo Tribunal de Justiça. A propósito, vide os recentes Acórdãos proferidos em 13/03/2018 (proferido no âmbito do Processo n.º 2947/12.2TBVLG.P1.S1), 03/05/2018 (proferido no âmbito do Processo n.º 454/13.5TVPRT.P1.S3) e 05/06/2018 (proferido no âmbito do Processo n.º 65/14.8T8FAF.G1.S1), todos disponíveis in www.dgsi.pt. H. Assim como as últimas decisões dos vários Tribunais das Relações, tais como: Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/01/2018 (proferido no âmbito do Processo n.º 1885/16.4T8TMR.E1), Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/05/2018 (proferido no âmbito do Processo n.º 6554/15.0T8MAI.Pl), Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/05/2018 (proferido no âmbito do Processo n.º 1731/16.9T8CSC.Ll), Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/06/2018 (proferido no âmbito do Processo n.º 7412/16.6T8CBR.C1), e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/10/2018 (proferido no âmbito do Processo n.º 503/18.0T8VNF.Gl), todos disponíveis in www.dgsi.pt. Por todo o exposto, I. Sufragando a tendência atual da jurisprudência, entende o aqui Recorrente que o prazo estabelecido no artigo 1817.º do Código Civil, na redação dada pela lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, é razoável e adequado, não violando quaisquer direitos constitucionalmente protegidos, mormente o direito ao conhecimento da paternidade biológica, à identidade pessoal e a constituir família. J. Pelo que, não ocorrendo a referida inconstitucionalidade do artigo 1817.º n.º 1 e 3 do Código Civil, e atenta a factualidade dada como provada (e não posta em causa no douto Acórdão recorrido) em sede de douta sentença proferida pelo Juízo de Família e Menores do Porto, designadamente que o Autor, tendo nascido no dia ..., completou 18 anos e, consequentemente, atingiu a maioridade, no dia ...; que a presente ação de impugnação e investigação da paternidade foi intentada em 04 de Novembro de 2016, ou seja, decorridos mais de dez anos sobre a maioridade do Autor; e que o Autor teve conhecimento de que o 1.º Réu (BB) não era o seu verdadeiro pai já no verão do ano de 2012, entende o Recorrente que a presente ação de investigação da paternidade é intempestiva. Sem prescindir, K. E por mero dever de cautela, caso assim não se entenda nos termos supra expostos, salvo o devido respeito, sempre resulta manifestamente que se verifica in casu um desequilíbrio, uma desproporcionalidade entre o objetivo do Autor e o sacrifício imposto ao aqui Recorrente. L. Por um lado, o aqui Recorrente e a mãe do Autor separaram-se de facto em Junho de 1980, não obstante o divórcio só se tenha efetivado em 11 de Junho de 1981; M. Por outro lado, a mãe do Autor nunca informou o aqui Recorrente da sua situação de gravidez e, tão pouco, que o mesmo pudesse ser efetivamente o pai do filho que viria a nascer em .... N. Acresce que, vinte e cinco dias após o nascimento do Autor, mais concretamente em 16 de Junho de 1981, a progenitora deu entrada na Conservatória do Registo Civil do Porto de um Auto de Petição, onde esclareceu que: - o Autor nasceu em ..., na maternidade ...; - o Autor não era filho do aqui Recorrente; - abandonou o lar conjugal em Junho de 1980, passando a viver com o 1.º Réu; - das relações íntimas com o 1.º Réu nasceu então o Autor. O. Naquele Auto de Petição, a mãe do Autor requereu, ainda, que fosse declarado que o seu filho, o aqui Autor, nunca beneficiou da posse de estado em relação a ambos os cônjuges e, ainda, que ficasse omissa a presumida paternidade do aqui Recorrente, porquanto o seu filho era filho do l.º Réu, P. Sendo que, tais declarações foram prestadas de forma livre e consciente, perante funcionário do Registo Civil, tendo sido requerida a inquirição de três testemunhas (DD, EE e FF), as quais corroboraram, sob juramento legal, as suas declarações, reiterando que o Autor embora concebido na constância do matrimónio com aqui Recorrente, o mesmo não poderia ser filho do mesmo, não sendo considerado nem tratado como tal. Q. Nessa sequência, e nos termos dos artigos 1826.º, 1832.º, 1833.º (entretanto revogado) e 1831.º do Código Civil, em sede de sentença judicial proferida em 07/10/1981, o extinto 2.º Juízo do Tribunal de Família do Porto, considerou ilidida e cessada a presunção de paternidade relativamente ao aqui Recorrente. R. Assim, se, por um lado, se entende que existe um claro abuso por parte da progenitora do Autor em vir, agora, e sob juramento perante o Dign.º Tribunal em sede de audiência de discussão e julgamento, declarar factos completamente contrários aos que prestou perante a Conservatória do Registo Civil do Porto, poucos dias após nascimento do seu filho, S. O mesmo se diga relativamente à postura do aqui Autor: em primeiro lugar, e essencial para a decisão da presente causa, o facto de o mesmo ter tomado conhecimento de que o 1.º Réu não era o seu verdadeiro pai já no verão do ano de 2012, ou seja, 13 anos após ter atingido a maioridade, através da confirmação da sua mãe e do 1.º Réu. Sendo certo que, a presente ação de impugnação e investigação da paternidade foi intentada em Novembro de 2016. T. Em segundo lugar, e presumindo-se que só agora o Autor teve conhecimento do conteúdo dos documentos juntos pelo Arquivo Central do Porto relativamente ao processo n.º 3419 do extinto 2.º Juízo do Tribunal de Família do Porto (Autos Cíveis de Declaração Judicial de Inexistência de Posse de Estado), designadamente das declarações prestadas pela sua mãe, ainda assim mantém a sua pretensão em querer ver alterado o seu registo de nascimento. U. Desta forma, parece-nos que existe um claro o desequilíbrio entre o que se pede, ou melhor dizendo, o “direito a investigar” do Autor, e o sacrifício que se exige, mormente a perturbação da intimidade da vida privada do aqui Recorrente e, bem assim, da sua família. V. Situação que, a nosso, constitui abuso de direito, estando a exceder-se manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim social do(s) direito(s) invocado(s) pelo Autor, tendo o acórdão recorrido violado, desta forma, o disposto no artigo 334.º do Código Civil. W. Todavia, se o objetivo do Autor era a tão invocada “verdade biológica”, pois então, o Autor logrou alcançá-la, sanando as suas dúvidas de quem é o seu verdadeiro pai. X. No entanto, atendendo aos 13 anos decorridos desde que o Autor tomou conhecimento direto de que o 1.º Réu não era o seu verdadeiro pai e o momento em que propôs a ação de impugnação e investigação da paternidade, ou seja, factos que só a si lhe são imputáveis, Y. Mais, apelando ao direito do aqui Recorrente à segurança e estabilidade jurídicas, é legítimo que, agora, não possa o Autor beneficiar desse conhecimento para efeitos de registo civil (e patrimoniais). Z. Termos em que, requer-se a V.Exas. que o presente recurso seja julgado procedente e, em consequência, seja revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que julgue procedente a exceção de caducidade do direito do Autor de intentar a presente ação de investigação da paternidade, absolvendo o Réu, aqui Recorrente, do pedido contra si formulado. + O autor contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso. + Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. + II - ÂMBITO DO RECURSO Importa ter presentes as seguintes coordenadas: - O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas; - Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam; - Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido. + São questões a conhecer: - Caducidade da ação de investigação da paternidade; - Abuso do direito. + III - FUNDAMENTAÇÃO De facto Estão provados os factos seguintes, como tal descritos no acórdão recorrido (após os aditamentos a que procedeu): 1. Em ... nasceu o autor AA. 2. Foi registado na 4ª Conservatória do Registo Civil do Porto, como sendo filho de BB e de GG. 3. A mãe do autor manteve relacionamento amoroso com o réu CC nos primeiros 120 dias dos trezentos que precederam o seu nascimento e com quem se encontrava casada. 4. A mãe do autor encontrava-se casada com o 2º réu quer na data da sua concepção quer em data posterior ao seu nascimento. 5. GG, mãe do autor casou com o 2º réu CC em ... e o casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 11 de Junho de 1981. 6. A mesma voltou a casar com o 1º réu em.... 7. O exame hematológico realizado pelo INMLCF concluiu que o 1º réu BB apresenta incompatibilidades relativamente ao autor AA nos marcadores VWA, D16S539, CSF1PO, TPOX, D8S1179, D21S11, D2S441, D19S433, TH01, FGA, D22S1045, D7S820, SE33, D12S391, D2S1338, Penta E, Penta D. 8. De acordo com os dados obtidos o 1º réu é excluído da paternidade do autor. 9. Por sua vez o estudo dos polimorfismos de ADN nuclear efetuado não permite excluir CC como pai biológico do autor. 10. Utilizando o programa “Famílias 1.81”, a análise estatística da probabilidade de CC ser pai de AA, por comparação com outro indivíduo ao acaso da população, conduziu a um índice de parentesco, paternidade, IP=46 173, conduzindo a uma paternidade provável de W=99,998%, considerando uma probabilidade a priori de 0,33. 11. O autor ficou a saber que à data da sua concepção e nascimento, sua mãe encontrava-se casada com o 2º réu CC. 12. O A. confrontou a sua mãe que lhe confessou que só foi perfilhado pelo 1º réu aos 11 meses de idade e que o seu pai biológico era o 2º réu com quem vivia à data da sua concepção; o 1º réu, presente, também lhe confirmou não ser o seu pai biológico. 13. O autor em momento posterior, cerca de duas semanas, foi confrontar o 2º réu num dia de Verão do ano de 2012. 14. Deslocou-se então ao estabelecimento comercial denominado “...”, por volta das 21h onde o réu se encontrava, pedindo que um empregado o chamasse, tendo conversado do lado de fora do estabelecimento, numa altura em que ocorriam obras no mesmo, naquele dia iam pintar, tendo-lhe dito que se havia alguém responsável pela situação era o autor ou a sua mãe e que não tinha nenhuma resposta para lhe dar a propósito do assunto da paternidade que lhe era imputada. 15. E que depois disso, o autor ainda fez part time, fins de semana, no “ ...”, durante alguns meses. 16. O então casal separou-se em 30 de agosto de 1980 altura em que a progenitora saiu de casa e foi viver com a avó do autor. 17. A progenitora alegando desinteresse do 2º réu durante a gestação e nascimento do auto, decidiu com a conivência do 1º réu que este assumiria a paternidade do autor, em altura em que a mesma se encontrava separada e a correr termos ação de divórcio. 18. O A. sempre conheceu o 2º réu com pai da sua irmã uterina HH. 19. O autor requereu proteção jurídica em 25.02.2016 com indicação de propor ação judicial – Averiguação oficiosa da Paternidade/Maternidade a qual lhe foi concedida em Junho de 2016. 20. Em 08.10.2014 o autor havia apresentado requerimento de proteção jurídica para interpor ação no tribunal de família com o mesmo propósito, a qual foi rejeitada. 21. A petição inicial deu entrada em 04.11.2016. 22. GG não desejou que o 2º réu constasse do registo como pai do autor nem lhe mencionou o facto de ser pai do autor. 23. Até ao momento descrito em 12, o autor de vez em quando ouvia comentários de terceiros, nomeadamente um irmão do 2º réu, que em tom de brincadeira o chegou a chamar de sobrinho, o que o aborrecia e irritava. 24. Embora tendo ficado com dúvidas, acreditou sempre que o 1º réu era seu pai, porquanto este sempre lho afirmou até aos factos descritos em 12. 25. O autor chegou a trabalhar quer num estabelecimento do irmão do 2º réu quer no estabelecimento do 2º réu. 26. E também estes chegaram a arrendar-lhe uma casa para viver quando tinha 17 anos de idade. 27. GG e 1º réu separaram-se em 2010. 28. Para efeitos do registo civil do nascimento do autor, a sua mãe declarou que o filho não era filho do então seu marido CC, tendo o assento de nascimento sido lavrado em ... sem indicação da paternidade. 29. Instaurada ação de declaração da inexistência de posse de estado, foi nesta proferida decisão a declarar que o autor não beneficiava desde o seu nascimento de posse de estado relativamente a sua mãe e ao marido e que em consequência cessou a presunção de paternidade em relação ao marido da mãe. 30. Posteriormente o autor foi perfilhado pelo réu BB, tendo a respetiva paternidade sido averbada ao registo de nascimento do autor em .... De direito Quanto á matéria das conclusões B. a J. Nas conclusões E. a I. o recorrente reporta-se á constitucionalidade do art. 1817.º do CCivil aí onde, por força da remissão do art. 1873.º do CCivil, estabelece prazo para a investigação da paternidade. Como é sabido e consabido, trata-se de assunto controverso na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e na do Tribunal Constitucional. Todavia, não estamos aqui perante qualquer questão sobre que importe tomar posição. É que o acórdão recorrido nada decidiu que vá contra o juízo de constitucionalidade que o Recorrente defende. Em sítio algum o acórdão recorrido sustenta que a investigação de paternidade não pode estar sujeita a qualquer prazo, nem a decisão que tomou tem por pressuposto um tal entendimento. O que o acórdão recorrido defende e decide é coisa totalmente diferente: que, estando em causa a impugnação da paternidade reconhecida por perfilhação tal como constante do registo, a caducidade da coeva pretensão ao estabelecimento judicial da paternidade biológica está submetida ao regime do n.º 2 do art. 1817.º do CCivil (ex vi do art. 1873.º). E daqui que não se verifica caducidade alguma, na certeza de que a impugnação da paternidade e a investigação da paternidade foram cumuladas na presente ação. E sem dúvida que se decidiu adequadamente. Razão pela qual não pode ser subscrito o ponto de vista do recorrente ao pretender que se verifica a caducidade da ação de investigação da paternidade. Vejamos: Com a presente ação visou o autor, cumulativamente, impugnar a paternidade do réu AA, que foi estabelecida mediante perfilhação, e obter o reconhecimento da paternidade do réu CC. À data da conceção e do nascimento do autor a sua mãe era casada com este último réu (cuja paternidade presumida foi, porém, afastada, de acordo com ordenamento jurídico então vigente, através dos procedimentos descritos nos pontos 28 e 29 dos factos acima elencados, na sequência do que o réu AA logrou perfilhar o autor). O que está em causa não é, pois, a impugnação da paternidade presumida (mas logo afastada) do marido da mãe do autor, mas sim a impugnação da paternidade assumida por quem não era marido (embora mais tarde se tenha tornado marido). Serve isto para significar que a menção que o autor faz na sua petição inicial ao art. 1839.º do CCivil é errática. A norma que regula para o caso é a do art. 1859.º. Trata-se, porém, de um pormenor sem qualquer relevância jurídica para o desfecho da ação. A ação de impugnação da paternidade que foi estabelecida por reconhecimento (ou seja, mediante perfilhação) não está sujeita a qualquer prazo, é imprescritível . Isto resulta claro do n.º 2 do art. 1859.º do CCivil[1]. José da Costa Pimenta (Filiação, p. 137) esclarece: “Compreende-se que assim seja em homenagem à verdade biológica, pois esta é o critério e fundamento da filiação fora do casamento, mais que na filiação matrimonial, em que o peso da instituição «casamento» se faz sentir (…). O legislador terá querido que o filho por falsa perfilhação pudesse sempre encontrar a sua verdadeira família”. Neste particular a solução legal é diferente da solução adotada para a impugnação da paternidade presumida do marido da mãe, pois que neste último caso a ação está submetida a prazo (art. 1842.º do CCivil)[2]. Estando a paternidade do ora autor deferida registralmente ao perfilhante AA (existindo assim um registo inibitório de outro qualquer registo de paternidade), não podia o autor fazer investigar, sem mais, a sua paternidade biológica contra o ora recorrente. Teria previamente que obter o afastamento da paternidade registada (mas para isso não estava, como acaba de ser dito, sujeito a qualquer prazo). É o que resulta do art. 1848.º, n.º 1 do CCivil. Neste caso, e por força do disposto nos art.s 1873.º, 1817.º, n.º 2, 1815.º e 329.º do CCivil, a ação de investigação da paternidade podia ser proposta nos três anos seguintes ao cancelamento desse registo inibitório. Como nos dizem, com proveito para o caso, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (ob. cit., p. 242), reportando-se ao n.º 2 do art. 1817.º, “[n]o n.º 2, prevê-se o caso de a ação não ser autorizada por já constar do registo de nascimento uma paternidade diferente daquela que se pretenderia estabelecer, por exemplo, por causa de uma perfilhação anterior (…), que se quer impugnar. A acção só será permitida depois de se ter afastado essa paternidade e esse “registo inibitório. O n.º 2 estabelece regras sobre prazos, tanto para a “remoção do obstáculo”, quanto para a ação de investigação posterior. (…) A intenção do regime é, claramente a de dar ao filho a possibilidade de investigar a paternidade, embora tenha de afastar previamente o nome que ocupa a linha onde se regista a paternidade, no seu assento de nascimento (…)”. Donde, é por demais óbvio que o recorrente - que, de resto, não põe sequer em dúvida que é efetivamente o pai do autor - carece de razão quando vem argumentar com a caducidade. Exatamente como se aponta no acórdão recorrido, podendo o autor instaurar a todo o tempo a ação de impugnação da paternidade resultante da perfilhação que constava do registo, ainda dispunha de três anos após a procedência dessa ação para fazer reconhecer mediante ação judicial a paternidade do ora recorrente; como ambos os pedidos foram formulados cumulativamente na presente ação, não pode senão concluir-se que nenhum dos direitos em discussão (direito à impugnação da paternidade resultante da perfilhação e direito ao reconhecimento judicial da paternidade biológica) se encontra caduco. Improcedem pois as conclusões em destaque. Quanto à matéria das conclusões K. a Y. Nestas conclusões o recorrente sustenta que deve ser denegado ao autor o direito ao estabelecimento da filiação biológica em discussão, isto por abuso do direito. Mas não procede tal pretensão. Desde logo importa observar que grande parte dos factos (conclusões L. a R. e T.) de que o recorrente faz emergir mediatamente o suposto abuso do direito são imputáveis à mãe do autor e não a este, pelo que estaria fora de causa fazer paralisar o direito do autor ao reconhecimento da sua paternidade em decorrência desses factos. E quanto aos demais factos atribuíveis ao autor – na realidade, trata-se apenas de um facto: o conhecimento desde o Verão de 2012 de quem era o verdadeiro progenitor – estão estes muito longe de dar respaldo a qualquer abuso do direito. É que, como resulta do art. 334.º do CCivil, o abuso do direito só releva quando o titular se exceda manifestamente no seu exercício. Como decorre de toda uma (quase inabarcável) produção jurisprudencial e doutrinária, o abuso de direito só existe em casos verdadeiramente excecionais, em casos de todo em todo gritantes, ofensivos do sentimento ético-jurídico dominante, clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais. Por isso, não basta, para se falar em abuso do direito nos termos e para os efeitos do art. 334.º do CCivil, que o titular do direito, ao exercer o direito, simplesmente se exceda. Como nos diz, por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24.1.2002 (Col Jur - Ac do STJ, 2002, tomo I, p. 53 e 54), o exercício de um direito só poderá ser havido como ilegítimo quando houver manifesto abuso, isto é, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante. E acrescenta o mesmo acórdão que “a utilização do abuso do direito não deve constituir panaceia fácil de toda e qualquer situação de exercício excessivo de um direito, em que o respectivo excesso não seja manifesto ou que só aparentemente se apresente como manifestamente excessivo (…)”. Dentro da mesma linha, significa Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, II, p. 634), reportando-se a Oliveira Ascensão, que o qualificativo “manifestamente”, por referência à autonomia privada que tem uma das suas aplicações mais significativas no direito subjetivo, «impede uma intromissão cerrada no controlo» do exercício do direito. Ora, não vemos onde, no caso vertente, esta sempre exigível “grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante” possa residir. O facto de o autor propor a ação de investigação da paternidade cerca de quatro anos depois de conhecer a verdade sobre a sua paternidade não integra, cremos que à evidência, qualquer grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante, mas, quanto muito, uma “ofensa” aos interesses pessoais do recorrente. Não é a mesma coisa. Mais fala o recorrente, ainda aqui no contexto do abuso do direito que invoca, em “desequilíbrio”, em “desproporcionalidade”, entre o “objetivo” do autor e o “sacrifício” (que o recorrente faz radicar na perturbação da intimidade da sua vida privada e da sua família) imposto ao seu pai, o recorrente. Mas é também por demais óbvio que tal suposto desequilíbrio ou desproporcionalidade, a existir (nenhum facto provado demonstra a existência efetiva da suposta perturbação da intimidade da vida privada do recorrente e da sua família), seria irrelevante. De acordo com a lição de Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, tomo IV, pp. 341 e seguintes), o desequilíbrio no exercício corresponde a um tipo extenso e residual de atuações inadmissíveis, por abuso contrário à boa-fé. O tratadista isola os casos do exercício danoso inútil, do dolo agit e da desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por este imposto a outrem. Destas variantes apenas a última poderia ter algum ponto de contacto com o caso vertente. Porém, a desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por este imposto a outrem só releva quando existe uma grande vantagem para uma pessoa à custa de outra e isso sem que se apresente uma especial justificação para tanto; deverá haver uma desconexão (uma desproporção) entre as situações sociais típicas prefiguradas pelas normas jurídicas que atribuem direitos e o resultado prático do exercício desses direitos. Ora, a vantagem que para o autor resulta da investigação da paternidade não é uma “grande vantagem”, mas apenas a vantagem decorrente da atuação de um direito basilar, aliás garantido pela Constituição da República Portuguesa, que lhe assiste: o direito ao reconhecimento da paternidade biológica. E tal vantagem está plenamente justificada por esse mesmo direito, sendo o resultado prático do seu exercício o efeito visado pela lei. Improcedem pois as conclusões em destaque. Quanto à matéria da conclusão Z. Pelo que fica exposto, resta dizer que, diferentemente do que pretende o recorrente nesta conclusão, não há qualquer fundamento legal para revogar o acórdão recorrido e julgar procedente a exceção de caducidade do direito do autor de intentar a presente ação de investigação de paternidade. IV - DECISÃO Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido. Regime de custas: O recorrente é condenado nas custas do recurso. + Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil): ++ Lisboa, 12 de novembro de 2019 José Rainho (Relator) Graça Amaral Henrique Araújo _____________________ [1] A lei reporta-se à impugnação da perfilhação, mas isto vale para todos os efeitos como impugnação da paternidade. Guilherme de Oliveira (Estabelecimento da Filiação, p. 131) explica: “Embora a expressão tenha entrado nos hábitos, e seja cómoda, não me parece rigoroso dizer que a «perfilhação é impugnável»: com efeito, a perfilhação é só um meio de estabelecer a paternidade e a impugnação dirige-se, precisamente, contra o resultado obtido, que se supõe falso. O que se impugna é a paternidade estabelecida por via de perfilhação (…).” [2] Aparentemente, a ratio desta diversidade de regimes funda-essencialmente se no propósito de estabilizar rapidamente a família conjugal (v. Pereira Coelho e Guilherme Moreira, Curso de Direito da Família, Volume II, Tomo I, p. 190).