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Acórdão TR Porto de 2023-10-11

59/20.4T9AND.P1

TribunalTribunal da Relação do Porto
Processo59/20.4T9AND.P1
Nº ConvencionalJTRP000
RelatorPaula Guerreiro
DescritoresCrime de Difamação Agravada, Crime de Ofensa a Organismo, Serviço ou Pessoa Coletiva, Administrador de Insolvência
Nº do DocumentoRP2023101159/20.4T9AND.P1
Data do Acordão2023-10-11
VotaçãoUnanimidade
Privacidade1
Meio ProcessualCONFERÊNCIA
DecisãoConcedido Provimento Parcial ao Recurso Interposto pelos Assistentes
Indicações Eventuais2ª SECÇÃO
Área Temática.

Sumário

I - As Sociedades de Administradores de Insolvência, (SAI), existem e têm uma atividade lícita, regulamentada pelo DL 54/2004 de 18 de março, e o concreto administrador nomeado pode optar por exercer a faculdade de ceder a sua remuneração à sociedade de que é sócio, sendo um meio legal utilizado pelos administradores de insolvência que a ele adiram; daí que nada de ilegal tenha o pagamento e a emissão da fatura/recibo pela SAI. II - A conduta do arguido, também ele administrador de insolvência, ao insinuar a ilicitude da conduta do assistente por ter optado por uma faculdade que a lei lhe confere, indicia que queria denegrir a imagem do assistente que o havia substituído no exercício das mesmas funções, o que configura a prática de crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, e 184.º, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, l), do Código Penal. II - O tipo legal de crime de ofensa a pessoa coletiva visa essencialmente criminalizar ações ou rumores não atentatórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma determinada pessoa coletiva, valores que não se incluem no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria, os quais protegem a honra subjetiva ou interior, que se consubstancia na autoestima ou valor pessoal do indivíduo, bem como a honra objetiva ou exterior, que se traduz na ideia que os outros fazem do portador desse bem.


Texto Integral

Processo nº 59/20.4T9AND.P1 1. Relatório No processo com o nº 59/20.4T9AND do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Instrução Criminal de Aveiro, Juiz 2, foi em 09/11/2022 proferido despacho de não pronúncia do arguido AA relativamente aos factos descritos na acusação pública e na acusação particular e crimes ali imputados. Inconformados com a decisão instrutória vieram os assistentes BB e A... – Unipessoal, Lda, interpor o presente recurso. As conclusões elaboradas têm o seguinte teor: «I. O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de difamação agravada, com fundamento no facto de ter aquele dirigido um requerimento ao processo n.º 101/13.5T2AVR-E, do qual fizera constar o seguinte: “(…) Quanto ao indiciado ilusionismo processual (…) como dos autos consta o administrador nomeado em 06-06-2018, como substituto do ora requerente, foi a pessoa singular BB, NIF ..., com escritório na Rua ..., ..., ... em Anadia. (…) Estranha-se assim e por isso se denuncia que as contas tenham sido prestadas por uma 3.ª entidade absolutamente estranha ao processo, o que consubstancia um falso relato, uma falsa informação uma falsificação e uso de documentos falsificado, perpetrados por técnico, perante o tribunal e perante o MM.º Juiz competente para receber como meio de prova, com intenção lucrativa, a fim de cometer fraude fiscal intrusando uma sociedade no lugar que o MM.º Juiz atribuiu a uma pessoa singular, a fim de prejudicar o Estado, porque os rendimentos e despesas que assim se pretenderem arrecadar, serão tributados de forma muito menor, como se prestados por uma pessoa colectiva em prejuízo da AT”. II. Requerida a abertura de instrução pelo arguido, veio o douto tribunal a quo a concluir “pela atipicidade da conduta descrita na acusação pública e, no limite, pela sua não punibilidade por via da verificação da causa de justificação prevista no art. 180.º/2 do Código Penal”, decidindo não pronunciar o arguido pelo crime que lhe vinha imputado. III. Não pode, porém, o recorrente conformar-se com tal decisão, o que motiva o presente recurso. IV. Quanto ao preenchimento do tipo objectivo do ilícito de difamação (artigo 180.º, n.º 1 do C.Penal), é, salvo melhor opinião, manifesto que: a) O arguido imputou factos ao recorrente, dirigindo-se a terceiros (o próprio tribunal a quo entende suficientemente indiciado que o arguido dirigiu, de facto, um requerimento ao processo n.º 101/13.5T2AVR-E do qual fez constar as afirmações supra transcritas); b) Tais factos são ofensivos da honra e consideração do recorrente. V. Em sentido contrário ao da douta acusação pública, entendeu a Mm.ª Juiz a quo que as afirmações da autoria do arguido não preenchem o tipo do ilícito de difamação, argumentando que as mesmas se contiveram dentro dos limites da liberdade de expressão, que neste caso, prevaleceria sobre a tutela do bem jurídico honra. VI. No entanto, crê humildemente o recorrente, com o devido respeito por opinião diversa, que as palavras vertidas no requerimento apresentado pelo arguido excedem manifestamente os limites daquela liberdade. VII. Aliás, conforme reconhece o tribunal a quo no despacho ora recorrido, “o arguido expôs o seu entendimento de forma afirmativa, não se limitando a colocar abstractamente a hipótese de a conduta imputada ao assistente poder integrar determinado ilícito. (...) podendo até reputar-se como demasiado assertivas as palavras escolhidas (...)." VIII. E não se argumente, ao contrário do que pretendeu o arguido no requerimento de abertura de instrução, que o caso sub judice se cinja a uma questão de “tom” ou “estilo” com que as coisas são ditas, ou que se encontre no domínio da mera crítica, embora contundente e agressiva, ao contrário do propugnado no douto despacho recorrido. IX. Isto porque, salvo melhor opinião, o que o arguido fez foi colocar em causa a honestidade e a rectidão do recorrente enquanto administrador judicial. X. Consabidamente, o administrador judicial não é um profissional liberal stricto sensu, antes estando sujeito a um regime misto de profissional liberal e de funcionário público, que tem o estatuto de “servidor da justiça e do direito” e que, na prossecução do interesse público, no exercício das suas funções, actua investido de poderes de autoridade (ius imperii), em nome e em representação do Estado. XI. Ora, actuando na prossecução do interesse público, o administrador judicial encontra-se sujeito a especiais exigências de integridade, impondo-se-lhe que seja particularmente impoluto. XII. É por isso que um ataque à probidade, honestidade, rectidão do Administrador Judicial assume especial relevância e uma força difamatória assaz particular, contendendo com a sua idoneidade para o exercício da profissão. XIII. Tem-se, assim, por manifesto que as afirmações da autoria do arguido são objectivamente adequadas a ofender – e, de facto, ofenderam - a honra e consideração do recorrente, na sua qualidade de administrador judicial, estando em causa a imputação de graves ilícitos como “falso relato, falsa informação, falsificação e uso de documentos falsificados” ou “fraude fiscal”. XIV. Não subsistindo, pelo que vem de se expor, dúvidas quanto ao preenchimento do tipo objectivo do ilícito de difamação, deve também registar-se, no que tange ao tipo subjectivo, que o arguido actuou com dolo, bem sabendo não existir qualquer fundamento para as imputações que fez, e tendo o único propósito de atingir a honra e consideração do recorrente. Senão vejamos: XV. Quanto ao conteúdo daquelas imputações, em matéria de facturação e tributação da remuneração do administrador judicial e reembolso das despesas, deve atentar-se no Decreto-Lei 54/2004, de 18 de Março, que estabelece o regime jurídico das sociedades de administradores da insolvência. XVI. Em suma, a lei faculta ao Administrador Judicial a opção entre o exercício liberal (individual) da sua atividade e o exercício em regime de sociedade (a SAJ). XVII. A opção por qualquer um destes regimes encontra-se sujeito a um regime de fiscalidade legalmente previsto. XVIII. Ou seja, a remuneração do Administrador da Insolvência não deixa de ser tributada por ser paga à sociedade que este integra. XIX. Portanto, se é indiscutível que apenas pessoalmente os Administradores Judiciais podem ser nomeados, igualmente indiscutível é que possam optar pela tributação em nome individual ou em nome da SAJ. XX. Nesta matéria, deverá confrontar-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 27.10.2016, processo n.º 407/15.9T8VNG.P1 e de 15.09.2016, processo n.º 90/14.9TYVNG.P1. - Cfr. Documentos juntos com a queixa que deu origem aos presentes autos como docs. 7 e 8. XXI. No mesmo sentido, esclarece o despacho do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo de Comércio de Amarante – Juiz 2, processo n.º 546/17.1T8AMT, que “Não obstante o cunho individual/pessoal que marca o exercício do Administrador Judicial (…) o seu exercício, quando desenvolvido no âmbito de uma SAI (…) determina que o pagamento devido a título de remuneração da sua função e o reembolso das suas despesas sejam efectuados à própria sociedade”. - Cfr. Documento junto com a queixa que deu origem aos presentes autos como doc. 9. XXII. Não poderá também ignorar-se a recente comunicação do IGFEJ, no que se refere às categorias de rendimentos, admitindo, não só a categoria B, referente aos rendimentos empresariais e profissionais, mas também a categoria R, referente aos rendimentos de pessoas coletivas. - Cfr. Documento junto com a queixa que deu origem aos presentes autos como doc. 6. XXIII. Ora, o arguido, sendo também ele administrador judicial, tinha e tem pleno conhecimento do que vem de se expor, bem sabendo não existir qualquer ilegalidade na facturação em nome da SAJ da remuneração devida ao Administrador Judicial. XXIV. Tanto mais que o arguido é associado da APAJ (Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais) e que esta deu conhecimento da jurisprudência supra citada a todos os associados, sendo, aliás, do conhecimento geral e total no seio dos Administradores Judiciais, como também é o caso do arguido. XXV. É, por isso, manifesto que o arguido actuou com dolo (directo), imputando factos ao recorrente não porque estivesse convicto da sua ilicitude – não porque tivesse “a convicção séria de que o entendimento ali vertido correspondia à verdade”, ao contrário do consignado no despacho recorrido -, mas para lançar gratuitamente sobre este a suspeição e atingir a sua honra e consideração. XXVI. Mas ainda que se admitisse que o arguido pudesse ter verdadeiramente duvidado da licitude da conduta do recorrente e que entendesse justificar-se a investigação, a verdade é que ainda assim as suas palavras não deixariam de reflectir uma inequívoca intenção vexatória, uma vontade especificamente dirigida à ofensa. XXVII. Isto porque o arguido não se limitou a descrever os factos objectivamente e a pugnar pela sua investigação no sentido de apurar qualquer eventual ilicitude. XXVIII. O arguido acusou imediatamente o recorrente de, no fundo, montar um esquema ilícito - aludindo, sintomaticamente, a um “ilusionismo processual” -, desenvolvendo a especulação ao ponto de afirmar que este teria a expressa intenção de cometer fraude fiscal e de infligir prejuízos ao estado (o arguido afirma categoricamente que o recorrente actuou “a fim de cometer fraude fiscal” e “a fim de prejudicar o Estado”). XXIX. Agindo com dolo directo, o arguido tirou partido do contexto (isto é, de se encontrar alegadamente a agir em nome do interesse comunitário, denunciando factos pretensamente ilícitos) para, a coberto de uma aparência de legitimidade, ofender a honra e consideração do recorrente, partindo para uma extrapolação gratuita e infundada sobre a actuação deste. XXX. Mas ainda que assim não se entendesse, o que não se concede, mas por mera cautela de patrocínio se admite, a verdade é que o preenchimento do tipo subjectivo do ilícito de difamação não exige a verificação do dolo directo (nesse sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05-03-2013) . Ao contrário do que parece sugerir a Mm.ª Juiz a quo no despacho recorrido, não é pressuposto de um juízo de culpabilidade relativamente ao arguido que as suas palavras apresentassem um cariz “deliberadamente direccionado para a ofensa à honra do assistente” XXXI. Assim, ainda que se considerasse que o arguido não teve (que teve!) a intenção directa de atingir a honra do recorrente, quando mais não fosse, não deixaria de se lhe imputar o ilícito de difamação a título de dolo eventual, sendo manifesto que terá aquele, pelo menos, admitido o teor ofensivo da imputação formulada e actuado conformando-se com ele. XXXII. Apurado o preecnhimento dos tipos objectivo e subjectivo do ilícito de difamação, cumpre, por último, registar que, ao contrário do propugnado no douto despacho recorrido, não se verificam, no caso sub judice, a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31.º, n.º 2, al. b) ou a causa de exclusão de punibilidade prevista no artigo 180.º, n.º 2, ambos do CPenal. Senão vejamos: XXXIII. As supra referidas causas excludentes estão sujeitas ao princípio da proporcionalidade (Vide, nesse sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 26-03-2014 e do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05-03-2018) XXXIV. Assim, revertendo ao caso sub judice, tais causas poderiam invocar-se em defesa do arguido apenas no caso de se entender que este exercera o seu direito de denúncia (ou os direitos à crítica e liberdade de expressão, também invocados pelo tribunal a quo) dentro dos limites impostos pelo princípio da proporcionalidade. XXXV. Ora, poderia – e devia! – o arguido ter exercido o seu direito de denúncia dentro dos limites do estritamente necessário para desencadear uma investigação sobre a actuação do recorrente, sem que com isso atingisse a honra e consideração do recorrente nos termos em que fez. XXXVI. Bastaria, para tanto, que descrevesse os factos objectivamente, pugnando pela sua investigação no sentido de apurar qualquer eventual ilicitude. XXXVII. Mas conforme já anteriormente registado, o arguido foi muito além disso e apressou-se em extrapolar e especular com os factos, acusando o recorrente perante o tribunal de urdir um plano com o expresso objectivo de cometer fraude fiscal e de prejudicar o Estado. XXXVIII. Relembrando o já citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-03-2014, “para viabilizar a causa de justificação prevista na alínea a) do n.° 2 do artigo 180.° ou a causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 31° n° 2 al. b), ambos do Cód. Penal, é necessário haver proporcionalidade e necessidade do meio utilizado em função dos interesses a salvaguardar” XXXIX. Assim, ainda que se entendesse que o arguido pretendia (que não pretendia!), com as imputações que fez, realizar interesses legítimos (artigo 180.º, n.º 2, al. a) do CPenal) e que houvesse actuado ao abrigo o direito de denúncia, sempre teria de entender-se que o meio utilizado – neste caso, as expressões utilizadas – excedeu os limites do estritamente necessário para a prossecução daqueles interesses e satisfação do citado direito, ofendendo desproporcionalmente os direitos fundamentais do recorrente à honra e consideração. XL. O arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. XLI. Em face do exposto, é manifesto que os factos praticados pelo arguido preecnhem os tipos objectivo e subjectivo do ilícito de difamação, e que não se encontram verificados, no caso sub judice, tanto a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31.º, n.º 2, al. b) como a causa de exclusão de punibilidade prevista no artigo 180.º, n.º 2, ambos do CPenal. - Do quarto parágrafo da acusação pública XLII. Como fundamento da acusação pública, é ainda citado o seguinte trecho do requerimento apresentado pelo arguido no processo n.º 101/13.5T2AVR-E: “Estranha-se ainda que aquilo que se intenta aparentar como se fosse a assinatura de “(BB)” indicie ressumar a falsificação, porquanto a única assinatura se reconhece como verdadeira é a constante da respectiva convenção antenupcial”. XLIII. Relativamente ao excerto supra transcrito, tendo o arguido alegado, em sede de requerimento de abertura de instrução, a sua “irrelevância jurídico-penal”, veio o tribunal a quo decidir o seguinte: “Quanto ao quarto parágrafo da acusação pública (…) crê-se que assiste razão ao arguido. Com efeito, daqui não resulta qualquer imputação ao assistente, nem tal trecho é capaz de denegrir a imagem do assistente ou atentar contra o seu bom nome.” No entanto, XLIV. O arguido tem invocado repetidamente e em múltiplos processos a alegada falsidade da assinatura do recorrente, sempre com o argumento de que a assinatura não coincide com a que o assistente exarou na convenção antenupcial, em Janeiro de 1999. -Vide os dois documentos juntos pelos recorrentes com o requerimento remetido aos autos no dia 30-03-2022 XLV. A verdade é que o recorrente já esclareceu e confirmou que é sua a assinatura que o arguido coloca em causa, tratando-se da assinatura que o recorrente usa em todos os documentos que assina, inclusivamente em múltiplas peças processuais que são do conhecimento do arguido, por constarem de processos em que este é parte. XLVI. O arguido tem pleno conhecimento de que a assinatura sobre a qual lançou suspeitas de falsificação pertence verdadeiramente ao recorrente e foi ortografada por este. XLVII. No entanto, persiste dolosamente em colocar em causa a sua autenticidade, reiterando as acusações de falsificação, nomeadamente por terceiros, que bem sabe serem totalmente despropositadas. XLVIII. O que faz com o único propósito de importunar, caluniar, difamar o recorrente, pelo que também as palavras vertidas no trecho aqui transcrito na conclusão XLII preenchem os tipos subjectivo e objectivo do ilícito de difamação. B. Da NÃO PRONÚNCIA PELOS FACTOS DESCRITOS E CRIME IMPUTADO NA ACUSAÇÃO PARTICULAR XLIX. Com fundamento nas expressões que o arguido fez constar do requerimento que dirigiu ao processo n.º 101/13.5T2AVR-E (aqui transcritas na conclusão I, que se dá por reproduzida), a assistente, ora recorrente, A... – Unipessoal, Lda. deduziu acusação particular contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva. L. No despacho de não pronúncia proferido, determinou o tribunal a quo o seguinte: “(…) no que concerne ao crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, socorrendo-nos do enquadramento teórico supra exposto, mormente no que respeita à exclusão da imputação pela forma escrita, concluímos não estarem preenchidos os elementos do tipo objectivo do ilícito em apreço.” LI. Como fundamento da não pronúncia do arguido pelo crime ora em causa, argumentou, então, o tribunal a quo que “o ilícito em apreço não abrange a ofensa cometida por escrito, gesto e imagem sob pena de violação do princípio da legalidade”. LII. Entende-se, porém, que a previsão do artigo 187.º do CPenal (Ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva) não abrange apenas ofensas proferidas verbalmente, mas também as expressas por escrito (nesse sentido, vide, a título de exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.5.2010, proc. 88/08.6TATBU.C1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30.10.2013, proc. 1087/12.9TAMTS.P1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17-05-2017, processo n.º 95/15.2PEPDL.L1-3 - disponíveis em dgsi.pt). LIII. Assim, o facto de as ofensas que motivaram a acusação particular terem sido expressas por escrito não exclui esse comportamento do âmbito de aplicação do tipo criminal previsto no artigo 187.º do CPenal. LIV. Em conformidade com o disposto no artigo 187.º do Código Penal, comete um crime de ofensa a pessoa colectiva: “1 - Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.” LV. Ora, quanto ao preenchimento do primeiro pressuposto do tipo objectivo do ilícito – afirmar ou propalar factos inverídicos – o arguido de facto imputou à recorrente factos inverídicos, sem fazer a mínima prova do quanto alegou. LVI. Quanto ao segundo pressuposto, a ofensa à credibilidade, prestígio ou à confiança da pessoa colectiva, corporação, organismo ou serviço é aferida considerando a compreensão que um normal e diligente homem comum tenha da problemática. LVII. Conforme já referido supra (nas conclusões X a XIII, que aqui se dão por integradas), o Administrador Judicial e, por maioria de razão, as Sociedades de Administradores Judiciais actuam na prossecução do interesse público, encontrando-se sujeitas a especiais exigências de integridade. LVIII. Pelo que sempre que essa integridade e rectidão seja colocada em causa, conforme fez o arguido, imputando à recorrente a prática de graves delitos, a ofensa à sua credibilidade e prestígio repercute-se com particular acuidade. LIX. É, por isso, manifesto que as expressões redigidas pelo arguido são objectivamente adequadas a ofender – e de facto ofenderam! - a credibilidade e prestígio da recorrente. LX. No que tange ao terceiro e último pressuposto – inexistência de fundamento para, em boa-fé, reputar os factos afirmados como verdadeiros -, deve reiterar-se que o arguido é Administrador Judicial, tendo pleno conhecimento de toda a legislação inerente ao exercício da sua profissão, bem como, do diploma legal que estabelece o regime jurídico das sociedades de administradores da insolvência. LXI. Considerando o profundo conhecimento por parte do arguido sobre a matéria vertente, é manifesto que este nunca agiu de boa-fé, tendo como única intenção prejudicar a assistente, atacando a sua credibilidade, prestígio e confiança. LXII. O denunciado actuou com dolo directo e específico, com o intuito de “manchar” o bom nome da recorrente e de a descredibilizar junto da comunidade envolvente, tendo sempre a consciência da falsidade da imputação. LXIII. Nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 183.º do CP, aplicável ex vi artigo 187.º, 2, a), “tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”. LXIV. Conforme se alegou e demonstrou, os factos sub judice preenchem a supra citada previsão normativa, pelo que o crime de ofensa a pessoa colectiva praticado pelo arguido constitui crime agravado. LXV. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida e punida por lei. LXVI. Pelas mesmas razões vertidas nas conclusões XXXIII a XXXIX, que por razões de economia processual aqui se dão por integralmente reproduzidas, também quanto ao crime de ofensa a pessoa coletiva não se encontra verificada, no caso sub judice, a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31.º, n.º 2, al. b) do CPenal. LXVII. Ao contrário do entendimento vertido no despacho recorrido, resultam dos autos indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos descritos nas acusações pública e particular e, portanto, dos crimes que lhe são imputados, de difamação agravada e de ofensa a pessoa colectiva agravada, não se encontrando verificadas, no caso sub judice, tanto a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31.º, n.º 2, al. b) como a causa de exclusão de punibilidade prevista no artigo 180.º, n.º 2, ambos do CPenal.» Conclui pedindo que o despacho recorrido seja objeto de revogação e substituído por outro que pronuncie para julgamento o arguido pelos factos descritos e crimes imputados, nos precisos termos das acusações pública e particular, oportunamente deduzidas contra o mesmo. O recurso foi admitido por despacho proferido em 10/01/2023. Em primeira instância o arguido respondeu ao recurso alegando que considera a sua atuação lícita e feita na prossecução de um interesse legítimo por isso não punível. Defende o acerto da decisão recorrida e a sua manutenção. O MP também respondeu ao recurso defendendo o acerto da decisão recorrida já que entende que o arguido atuou com a convicção séria de que o entendimento ali vertido correspondia à verdade, que tais afirmações foram efetuadas no exercício de um direito de participação e denúncia perante as autoridades competentes de condutas pretendia ver dirimidas. Pugna pela improcedência do presente recurso. Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto aderindo aos argumentos do MP em primeira instância emite parecer no sentido da improcedência do recurso. Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP vieram responder ao parecer os assistentes/ora recorrentes, discordando do mesmo e reafirmando as suas conclusões recursivas. Em síntese entendem que, no caso sub judice, as afirmações proferidas pelo arguido excedem largamente o domínio da crítica contundente, ou do discurso hostil, extravasando manifestamente os limites da invocada liberdade de expressão. Consideram que as palavras do arguido refletem uma inequívoca intenção vexatória, uma vontade especificamente dirigida à ofensa. O exercício do direito de liberdade de expressão e denúncia por parte do arguido não implicava que este atingisse de forma tão grave e ostensiva a honra e consideração do recorrente. O meio que o arguido utilizou para satisfazer o seu direito ofendeu desproporcionalmente e desnecessariamente, os direitos fundamentais do recorrente à honra e consideração. Mais reafirmam a sua opinião no sentido de que o facto de as ofensas que motivaram a acusação particular terem sido expressas por escrito, não exclui esse comportamento do âmbito de aplicação do tipo criminal previsto no artigo 187 do C. Penal. O arguido afirmou/propalou factos inverídicos sem fazer qualquer prova das suas afirmações e sem que tivesse qualquer fundamento para, em boa-fé, reputar os factos afirmados como verdadeiros, tendo como única intenção prejudicar a aqui recorrente, atacando a sua credibilidade, prestígio e confiança. Consideram que os factos praticados pelo arguido preenchem os tipos objetivo e subjetivo do ilícito de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva (art. 187 do CPenal), Bem como preenchem a previsão de agravação constante da al. b) do n.º 1 do art.183 do CP (aplicável ex vi artigo 187 nº 2, a)), uma vez que o arguido tinha (e tem) consciência da falsidade das imputações que fez. 2 - Fundamentação A) Circunstâncias com interesse para a decisão: São os seguintes os fundamentos da decisão recorrida que passamos a transcrever integralmente: « I - Relatório O Ministério Público deduziu acusação a fls. 153 e sgs. contra AA, imputando-lhe a prática dos factos aí descritos, e consequentemente, na forma consumada, de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelo disposto nos arts. 180º/1, 184º, por referência ao art. 132.º n.º 2 al. l), do Código Penal. A assistente Sociedade A... – Unipessoal, Lda deduziu acusação particular a fls. 183 e sgs. contra AA, imputando-lhe a prática dos factos aí descritos, e consequentemente, na forma consumada, de um crime de ofensa a pessoa coletiva na forma de calúnia, previsto e punido pelo disposto nos arts. 187º, 183º/1/b e 188º, do Código Penal. O Ministério Público acompanhou a acusação particular deduzida pela assistente. Veio o arguido requerer abertura de instrução, alegando, em síntese, que: - os factos descritos na douta acusação particular não constituem crime, uma vez que se referem a um requerimento escrito, sendo que o artigo 187.º do Código Penal não remete para o artigo 182º do mesmo diploma legal; - o segundo trecho do texto da autoria do arguido (que se refere à assinatura do Exmo Sr. Dr. BB) não tem qualquer relevância penal, já que não há aí qualquer imputação que vise o assistente; - o restante texto da autoria do arguido é feito como uma crítica ao desempenho profissional do assistente, em função de uma questão jurídica com relevância comunitária; crítica discutível, mas que nunca perde no trecho em crise o contacto entre a crítica e a questão jurídica em causa, de interesse comunitário; o Dr. BB estava em exercício de funções públicas, atuando nessa qualidade e nesse medida sujeito a um controlo mais atento, e com maior dever de tolerância e encaixe; - o arguido refere-se, naquele trecho, à consequência técnico-jurídica que decorria do seu entendimento; entendimento que foi sufragado pelo Ministério Público no Acórdão que o ofendido cita, sendo que o arguido continua fortemente convencido que a crítica e imputação que fez, em função do entendimento jurídico em que acredita, é verdadeira; agiu o arguido licitamente, no exercício de um direito e na prossecução de interesse legítimo. Pede, por fim, a sua não pronúncia. Admitida a instrução, designou-se data para tomada de declarações ao arguido, seguida do debate instrutório. Não se vislumbrando qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efectuou-se o debate instrutório, o qual decorreu na presença do arguido, com observância do formalismo legal, conforme se alcança da respectiva acta, tudo em conformidade com o disposto nos arts. 298º, 301º e 302º, todos do Código de Processo Penal. Cumpre agora, nos termos do art. 308º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória. II- Saneamento O Tribunal é competente. Não há nulidades, ilegitimidades, outras excepções, questões prévias ou incidentais que obstem a uma decisão de mérito. III- Fundamentação A) Critérios legais da decisão A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), encontrando-se o juiz de instrução limitado pela factualidade relativamente à qual se requereu a abertura de instrução (artigo 287.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Penal). No caso em apreço, visa-se a comprovação judicial da decisão de acusar. A decisão de acusar e arquivar assenta na prévia verificação da existência de indícios suficientes da prática de um crime e do seu autor (artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), juízo indiciário que também está subjacente na decisão instrutória, como decorre do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. De acordo com o disposto no artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”. Dito de outro modo, por “indícios suficientes”, para efeitos da decisão instrutória, deve entender-se a probabilidade razoável, mais positiva do que negativa, de que o (a) arguido (a) tenha praticado os factos que lhe são imputados e de que lhe será aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo o juiz, nas palavras de Germano Marques da Silva, pronunciar o arguido apenas e só “quando pelos elementos constantes dos autos forme a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido” (cfr. “Curso de Processo Penal”, Volume III, Verbo, pág.179). Assim, a suficiência de indícios, analisada no plano fáctico, está dependente de deles resultar, em termos de prognose, a provável futura condenação do arguido ou que esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. José Mouraz Lopes, “Garantia Judiciária no Processo Penal -Do Juiz e da lnstrução”, Coimbra, 2000, pág. 68 e ss.). Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante entre as fases de inquérito e instrução e a de julgamento, ensina-nos Figueiredo Dias “o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta. O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade de da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim da fase preparatória” (cfr. “Direito Processual Penal”, Volume I, 1974, pág. 132-133). Quer isto dizer que, não se exigindo, nesta fase processual, o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, impõe-se, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação. Assim, para a determinação do grau da possibilidade razoável, indícios suficientes existirão quando, através de um juízo de prognose antecipada, se conclua que os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fazem pressentir a existência de uma conduta criminalmente tipificada por parte do agente e produzem a séria convicção de condenação posterior e que, com forte probabilidade, esses elementos se manterão e repetirão em julgamento ou se preveja que da ampla discussão da causa em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis e aí reproduzidos, outros advirão no sentido da condenação futura, sempre salvaguardando os princípios que convergem já neste momento, como o princípio da presunção de inocência e o in dubio pro reo (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, datados de 21.10.2009, proferido no processo n.º 533/02.4TAMTS.P1 e de 21.04.2010, no processo n.º 4307/06.5TDPRT-A.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 19.02.2002, Processo n.º 00113535, e do Tribunal da Relação de Évora, datado de 1.03.2005, processo n.º 2/05.1, in www.dgsi.pt). No caso vertente, a questão a decidir, delimitada tematicamente pelo requerimento de abertura de instrução, encontra-se perfeitamente delineada: se existem indícios suficientes para pronunciar o arguido, considerando os elementos probatórios produzidos em sede de inquérito e de instrução. B) Do requerimento de abertura de instrução B.1) O enquadramento jurídico-penal i) Do crime de difamação O crime de difamação vem previsto no artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, nos termos do qual “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.”. Sendo aquela pena agravada de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na al. l), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal, no exercício das suas funções ou por causa delas – cfr. artigo 184.º, do Código Penal. O bem jurídico protegido pela norma incriminadora, como bem refere Faria da Costa in Comentário Conimbricense ao Código Penal, pág. 607, é numa dupla conceção fático-normativa, a honra, como um bem jurídico complexo, que inclui o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade e a própria reputação ou consideração exterior. No mesmo sentido, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, indicando a honra como bem jurídico, nela se incluindo a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade e a dignidade inerente a qualquer a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social. Destarte, a honra assenta no elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui e a consideração o merecimento que tem no meio social que integra. Por seu turno, o bom nome de uma pessoa respeita ao bom conceito em que ela considera ter no meio social em que vive ou exerce a sua atividade. O direito à honra e consideração, tem consagração constitucional e noutras Leis Fundamentais, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Declaração Universal dos Direitos Humanos. Neste conspecto, a lesão do direito à honra e consideração ocorre quando alguém imputa a outrem um facto, ou formula um juízo, objetivamente adequado a depreciar ou desacreditar, quer individual quer socialmente, a vítima, donde nem todo o facto ou juízo que envergonha, ou perturba, ou humilha, é suscetível de integrar tal conceito. A este respeito, veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães, de 05.03.2018, no proc. 566/16.3CHV.G1, “A difamação consiste, assim, na imputação a alguém, levada a terceiros e na ausência do visado, de facto ou de juízo que encerre em si uma reprovação ético-social, por serem ofensivos da honra e consideração do ofendido, enquanto pretensão de respeito que decorre da dignidade da pessoa humana e pretensão ao reconhecimento dessa dignidade por parte dos outros, quer no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político.” O que permite distinguir o presente tipo de ilícito do crime de injúria previsto no artigo 181.º do Código Penal, é que a expressão seja dirigida a um terceiro e não ao próprio visado, pois no crime de injúria exige-se que o juízo ofensivo seja exclusivamente dirigido ao ofendido. Trata-se de um crime de perigo abstrato-concreto, pois basta para a sua verificação a idoneidade da ofensa para produzir o dano, não sendo necessário que as expressões atinjam efetivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a suscetibilidade dessas expressões para ofender – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 29.03.2016, no proc. 1481/12.5PAPTM.E1. “Assim, para que se considere cometido um crime contra a honra, as expressões utilizadas têm que ser apreciadas no contexto situacional em que são proferidas e alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhes confira dignidade penal” – Cfr. Acórdão supra citado. São elementos do tipo objetivo de ilícito aqui em análise: a) a imputação de um facto ofensivo, ainda que sob a forma de suspeita; b) a formulação de um juízo de desvalor ofensivo da honra ou consideração; c) a reprodução de uma imputação ou um juízo ofensivo da honra ou consideração; d) dirigidas a terceiro. Já no que concerne ao tipo subjetivo de ilícito, admite-se o dolo em qualquer uma das suas modalidades (artigo 14.º do Código Penal), bastando, como vem sendo entendimento da doutrina e jurisprudência, o dolo genérico, ou seja, a simples consciência de que as expressões utilizadas são suscetíveis de ofender a honra e consideração de uma pessoa, considerando o meio social e cultural, não se exigindo o animus difamatório – neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.04.2008, no proc. 07P4817. Releva dar nota que o n.º 2, do artigo 180.º, do Código Penal consagra causa de exclusão de punibilidade quando esteja em causa a imputação de factos desonrosos, e tal imputação resultar do exercício de interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma (exceptio veritatis) ou tiver tido fundamento para, em boa fé, a reputar como verdadeira. Sendo que a prossecução dos interesses legítimos inclui interesses públicos ou particulares. Já no que concerne aos juízos de valor desonrosos a estes não se aplica a citada norma, porém, nada impede que em relação a estes se aplique as causas gerais de exclusão da ilicitude consagradas no artigo 31.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, sempre que deles resulte a realização, exercício ou defesa e direitos. A legislador no artigo 182.º, do Código Penal equipara à difamação e injúrias verbais, as feitas por escrito, gestos ou imagens ou qualquer outro meio de expressão. ii) Do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva Dispõe o artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal, “Quem, sem fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestigio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.”. Remetendo o seu n.º 2, para o disposto no artigo 183.º e 186.º, n.º 1 e 2, ambos do Código Penal. Por sua vez, o artigo 183.º, n.º 1 do Código Penal, epigrafado de publicidade e calúnia, dispõe que, “Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182: a) a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou b) tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; As penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço dos seus limites mínimo e máximo.” O bem jurídico tutelado pela norma incriminadora sob análise é o bom nome expresso na credibilidade, prestígio e confiança, do organismo, serviço, pessoas coletivas, instituição ou corporação, dotados ou não de autoridade pública, abrangendo, de igual modo, a informação falsa, por exemplo com interesses patrimoniais. Estamos perante um crime de perigo abstrato-concreto, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, não se exigindo a ofensa do bom nome, bastando a suficiência do perigo dessa ofensa ter lugar, decorrente de uma conduta do agente potencialmente adequada para causa esse dano. E um crime de mera atividade quanto à forma de consumação, na medida em que esta ocorre com a mera execução de um comportamento humano. No que contende com o tipo do ilícito em apreço são elementos objetivos do tipo: a) a afirmação ou prolação de factos inverídicos; b) suscetíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa coletiva, corporação, organismo ou serviço; c) sem que o agente tenha fundamento para, em boa fé, reputar tais factos de verdadeiros. No que respeita ao primeiro elemento objetivo do tipo de crime em análise, ao invés do que sucede nos crimes de difamação e de injúria – em que o tipo legal abrange não só a imputação de factos, mas também a formulação de juízos ofensivos da honra ou consideração – o crime de ofensa a pessoa coletiva, organismo ou serviço, apenas prevê a afirmação ou prolação de factos inverídicos. Por factos inverídicos, ao contrário do propugnado por Paulo Pinto de Albuquerque, que equipara a factos falsos, Faria Costa, defende que aqueles vão além dos factos falsos, abrangendo um núcleo mais vasto de situações fáticas, posição também seguida por M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, in Código Penal Parte Geral e Especial, Almedina, 2015, 2.ª Ed. pág. 818, que refere que “(…)uma «meia verdade» (…) não sendo uma falsidade, ainda assim, em certas circunstancias, já pode ser percebida ou valorada como afirmação de coisa inverídica.” O segundo elemento objetivo deste tipo de ilícito impõe um juízo de idoneidade sobre os factos para ofenderem a credibilidade, prestígio ou confiança, que deve assentar em critérios estritamente objetivos, aferidos pela compreensão de um homem normal e diligente. Por último, é necessário que o agente ao afirmar ou propalar factos inverídicos o faça sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar de verdadeiros, não se exigindo, para o preenchimento deste elemento típico, que o agente tenha conhecimento do carácter não verídico dos factos, mostrando-se suficiente que não tenha fundamento para em boa fé os reputar de verdadeiros. E, ainda, seguindo a doutrina e a jurisprudência, nomeadamente Paulo Pinto de Albuquerque, in Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Universidade Católica, 2008, pág. 509, o ilícito em apreço não abrange a ofensa cometida por escrito, gesto e imagem sob pena de violação do princípio da legalidade. No mesmo sentido vejam-se, a título meramente exemplificativo, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.05.2010, no proc. 88/08.6TATBU.C1; do Tribunal da Relação do Porto, de 23.05.2012, no proc. 142/09.4 e de 11.03.2015, no proc. 472/13.3 e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.03.2019, no proc. 316/17.7. De facto, se atentarmos que estamos perante um tipo de ilícito inserido do Capítulo VI respeitante aos crimes contra a honra, no qual se encontra estabelecida uma norma que consagra uma equiparação a outras formas de imputação, a qual não refere este tipo de ilícito em concreto, mas tão-só o crime de difamação e injúrias e, por outro lado, não remetendo a norma do 187.º, do Código Penal, para aquela norma - artigo 182.º, do Código Penal-, julgamos ter sido essa a intenção do legislador, pois que se fosse seu propósito abranger também a imputação pela forma escrita, tê-lo-ia expressamente consagrado ou, pelo menos, estabelecido remissão para o referido artigo 182.º, do Código Penal, como de resto o fez para os preceitos contidos no seu n.º 2, ou com recurso a uma formulação genérica, o que não sucede. O tipo subjetivo admite qualquer modalidade de dolo, bastando que o agente acue tão-só com dolo eventual – cfr. artigo 14.º, do Código Penal. B.2) Do juízo indiciário Importa agora analisar e concatenar os elementos probatórios constantes dos autos, com vista a este Tribunal formar a sua convicção acerca se de tais elementos resultam ou não indícios suficientes da prática, pelo arguido dos crimes que lhes são imputados na acusação pública e na acusação particular. Começando por esta última, e no que concerne ao crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, socorrendo-nos do enquadramento teórico supra exposto, mormente no que respeita à exclusão da imputação pela forma escrita, concluímos não estarem preenchidos os elementos do tipo objetivo do ilícito em apreço. Passemos, então, ao crime de difamação agravada imputado pelo Ministério Público ao arguido, realçando-se, em primeiro lugar, que o cerne da determinação dos elementos objectivos se tem sempre de fazer, conforme vem salientando de forma unânime os nossos Tribunais Superiores, pelo recurso a um horizonte de contextualização. Em sede de instrução, o arguido foi ouvido e explicou a razão pela qual apresentou a reclamação em causa, afirmando que aquele correspondia ao entendimento que tinha sobre a problemática em questão, entendimento que também foi sufragado pelo Ministério Público no âmbito de processos judiciais (conforme decorre do Acórdão junto pelo ofendido a fls. 70-74). Quanto à assinatura do assistente, sublinhou nunca ter imputado qualquer conduta àquele, sendo-lhe lícito colocar em causa a veracidade nos termos estatuídos no artigo 374.º n.º 2 do Código Civil. Vejamos. Quanto ao quarto parágrafo da acusação pública, onde consta “Estranha-se ainda que aquilo que se intenta aparentar como se fosse a assinatura de “(BB)” indicie ressumar a falsificação, porquanto a única assinatura se reconhece como verdadeira é a constante da respectiva convenção antenupcial”, crê-se que assiste razão ao arguido. Com efeito, daqui não resulta qualquer imputação ao assistente, nem tal trecho é capaz de denegrir a imagem do assistente ou atentar contra o seu bom nome. Relativamente às expressões constantes do terceiro parágrafo da acusação pública, podem considerar-se ofensivas da honra do assistente à luz do disposto no art. 180º/1 do Código Penal? Sendo-o, encontram as mesmas justificação no plano da cláusula de exclusão de punibilidade prevista no art. 180º/2 do Código Penal? Diz-se aí: “(…) Quanto ao indiciado ilusionismo processual (…) como dos autos consta o administrador nomeado em 06-06-2018, como substituto do ora requerente, foi a pessoa singular BB, NIF ..., com escritório na Rua ..., ..., ... em Anadia.(…) Estranha-se assim e por isso se denuncia que as contas tenham sido prestadas por uma 3ª entidade absolutamente estranha ao processo, o que consubstancia um falso relato, uma falsa informação uma falsificação e uso de documentos falsificado, perpetrados por técnico, perante o tribunal e perante o MM.ª Juiz competente para receber como meio de prova, com intenção lucrativa, a fim de cometer fraude fiscal intrusando uma sociedade no lugar que o MM.º Juiz atribuiu a uma pessoa singular, a fim de prejudicar o Estado, porque os rendimentos e despesas que assim se pretenderem arrecadar, serão tributados de forma muito menor, como se prestados por uma pessoa colectiva em prejuízo da AT”. Cumpre também dizer que sendo a honra, em sentido geral, um direito fundamental protegido, como vimos, desde logo pela Constituição da República Portuguesa, mas também pelo art. 70º do Código Civil, pelo art. 17º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e pelo art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), neste caso enquanto dimensão da reserva da vida privada, não constitui um valor absoluto. Há na verdade outros valores, potencialmente com a mesma dignidade, com que o direito fundamental à honra tem que conviver e em face dos quais, em função das especificidades de cada caso, poderá ter que, em alguma medida, ceder. É o caso da clássica liberdade de expressão, protegida pelo art. 37º da Constituição da República Portuguesa, pelo art. 19º do PIDCP e pelo art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Fosse a tutela da honra algo de absoluto e não haveria espaço algum para a crítica, como não haveria espaço sequer para que a comunicação social, por exemplo, desempenhasse a sua função de «cão de guarda» da democracia, posto que nunca poderia publicar notícias desagradáveis para os visados, por mais verdadeiros que fossem os factos relatados e por maior interesse público que houvesse na sua divulgação. Esta convivência, que por vezes assume contornos conflituantes, entre direitos e valores fundamentais, é própria de uma sociedade democrática, como aí estão para o evidenciar as restrições expressamente admitidas pelo art. 18º da Constituição da República Portuguesa e ainda pelo art. 8º/2 da CEDH. Uma das notas características de uma sociedade democrática é justamente a da abertura à crítica, mesmo quando esta é contundente e agressiva. De resto, como resulta evidente, a liberdade de expressão, enquanto garantia fundamental, colhe o seu pleno e genuíno sentido justamente em casos de crítica contundente e agressiva, pois para observações elogiosas ou críticas mais ou menos inócuas nenhuma necessidade haveria de convocar a dita liberdade. É, pois, também a esta luz que deve compreender-se o alcance geral da incriminação prevista no art. 180º do Código Penal e os espaços de não punibilidade (ou porventura de justificação da conduta) para que aponta o nº 2 da norma, quando prescreve que «a conduta não é punível quando: a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira». Tendo, assim, por base estas premissas, concluímos pela atipicidade da conduta descrita na acusação pública e, no limite, pela sua não punibilidade por via da verificação da causa de justificação prevista no art. 180º/2 do Código Penal. Expliquemos. O arguido apresentou o requerimento em causa no âmbito de uma ação judicial (apenso de prestação de contas), onde já tinha desempenhado funções de administrador de insolvência e fidicuário, perante autoridade que poderia legitimamente apreciar a bondade do alegado, com a convicção séria de que o entendimento ali vertido correspondia à verdade. Com efeito, todas as expressões em questão, apontam para facto e conduta concretamente atribuída ao assistente, que é descrita no texto (“as contas tenham sido prestadas por uma 3ª entidade absolutamente estranha ao processo” (…) “perpetrados por técnico”), e da qual se extraem determinadas conclusões (“consubstancia um falso relato, uma falsa informação uma falsificação e uso de documentos falsificado, (…), com intenção lucrativa, a fim de cometer fraude fiscal intrusando uma sociedade no lugar que o MM.º Juiz atribuiu a uma pessoa singular, a fim de prejudicar o Estado, porque os rendimentos e despesas que assim se pretenderem arrecadar, serão tributados de forma muito menor, como se prestados por uma pessoa colectiva em prejuízo da AT”). Pode extrair-se do requerimento apresentado pelo arguido que o mesmo pretende expor e denunciar uma actuação que para si não é legítima. Conforme se decidiu na Relação do Porto, no acórdão de 19/04/2017, relatado por Pedro Vaz Pato, os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, actuações, obras, prestações ou realizações. Estes juízos, que são cobertos pela liberdade de expressão e crítica, não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime. É, cremos o que se passa no caso em apreço. Salienta-se, uma vez mais, o contexto processual em causa e a concreta questão jurídica que foi colocada pelo arguido ao Tribunal, através do requerimento que aqui se aprecia (cfr. fls. 44 a 47). Por outro lado, o arguido explicou que usou os termos que constam na acusação como conceitos técnico-jurídicos para justificar a pretensão que ali expôs ao Juiz titular do processo, ou melhor, para se referir ao enquadramento jurídico que decorria do seu entendimento (sobre a remuneração do administrador judicial). Não se olvida que o arguido expôs o seu entendimento de forma afirmativa, não se limitando a colocar abstratamente a hipótese da conduta imputada ao assistente poder integrar determinado ilícito. Contudo, tal não é, segundo se entende, suficiente para abalar o entendimento de que o mesmo pretendia realizar um interesse legítimo. Neste quadro, podendo até reputar-se como demasiado assertivas as palavras escolhidas, considerando o contexto em que foram usadas, em associação com as pretensões que ali expôs e o entendimento que o arguido sufraga sobre a questão (jurisprudencialmente controvertida) da remuneração do administrador judicial, que o mesmo tinha por acertada, e no exercício de crítica e de denúncia dessa mesma conduta, não se lhe pode atribuir um cariz gratuito, infundado, deliberadamente direccionado para a ofensa à honra do assistente, muito menos um intuito subjacente vexatório ou humilhante. Neste mesmo sentido, embora a propósito de situação distinta, concluiu a Relação de Lisboa no acórdão de 11/12/2019, relatado por Abrunhosa de Carvalho, do qual se destaca o seguinte excerto: «Uma expressão degradante só assume o carácter de «difamação» quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objectiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. Para além da crítica polémica e extremada tem de se visar o rebaixamento das pessoas. Só poderá falar-se de «difamação» quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa. Atingindo-a no sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social». É tudo o que não ocorre no caso em apreço, como cremos ter ficado patente na apreciação supra. O texto em causa critica a forma de actuação do assistente e fá-lo, não de forma gratuita e para achincalhar e humilhar o assistente, mas, tudo indica, como forma de expor e pôr cobro uma conduta, que para si não seria lícita e deveria ser investigada (cfr. ponto b.b do requerimento de fls. 44 a 47). Actuou no exercício legítimo do direito de denúncia, encontrando-se por isso excluída a ilicitude da sua conduta nos termos do art. 31º/1 e 2, b) do Código Penal (sobre a matéria pode ver-se, entre outros, o Ac. da Relação do Porto de 07.11.2018, processo n.º 35/17.4PIPRT.P1). Face ao exposto, embora resultem suficientemente indiciados os factos expostos nos primeiros quatro parágrafos da acusação pública (de “O arguido foi nomeado (…)” até “(…) “convenção nupcial”, não resulta indiciado que: “Ao fazer constar, do referido requerimento, as expressões supra referidas, o arguido teve o propósito, concretizado, de ofender BB na honra e na consideração que lhe era devida, na qualidade de administrador de insolvência, tendo-o feito por causa do desempenho das referidas funções./O arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”. Em suma: Por tudo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, julgamos ser procedente a defesa apresentada no requerimento de abertura de instrução, não havendo nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos descritos na acusação pública e na acusação particular e, portanto, dos crimes com base neles é imputado, de difamação gravada e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, na forma de calúnia, sendo improvável uma sua condenação em sede de julgamento. IV- Decisão Nestes termos, decide-se julgar procedente o requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, não pronunciar para julgamento AA, pelos factos descritos na acusação pública e na acusação particular e crimes ali imputados.» Passamos de seguida a transcrever o texto da acusação pública deduzida nos autos contra AA: «O arguido foi nomeado administrador de insolvência e fiduciário no processo n.º 101/13.5T2AVR, que correu termos no Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, cargo que desempenhou até 5 de Junho de 2017, altura em que foi substituído por BB, dado que o arguido havia sido suspenso do exercício de tais funções. No âmbito das suas funções, enquanto administrador de insolvência nomeado, BB apresentou, no dia 14 de Março de 2018, contas finais devidamente documentados, tendo as mesmas sido aprovadas, sem qualquer reclamação, por sentença datada de 10 de Setembro de 2018. Em 13 de Setembro de 2019 o arguido dirigiu um requerimento ao processo n.º 101/13.5T2AVR-E, apenso destinado à apreciação das contas apresentadas por BB, daí fazendo constar o seguinte: “(…) Quanto ao indiciado ilusionismo processual (…) como dos autos consta o administrador nomeado em 06-06-2018, como substituto do ora requerente, foi a pessoa singular BB, NIF ..., com escritório na Rua ..., ..., ... em Anadia.(…) Estranha-se assim e por isso se denuncia que as contas tenham sido prestadas por uma 3ª entidade absolutamente estranha ao processo, o que consubstancia um falso relato, uma falsa informação uma falsificação e uso de documentos falsificado, perpetrados por técnico, perante o tribunal e perante o MM.ª Juiz competente para receber como meio de prova, com intenção lucrativa, a fim de cometer fraude fiscal intrusando uma sociedade no lugar que o MM.º Juiz atribuiu a uma pessoa singular, a fim de prejudicar o Estado, porque os rendimentos e despesas que assim se pretenderem arrecadar, serão tributados de forma muito menor, como se prestados por uma pessoa colectiva em prejuízo da AT”. O arguido fez também constar de tal requerimento o seguinte: “Estranha-se ainda que aquilo que se intenta aparentar como se fosse a assinatura de “(BB)” indicie ressumar a falsificação, porquanto a única assinatura se reconhece como verdadeira é a constante da respectiva convenção antenupcial”. Ao fazer constar, do referido requerimento, as expressões supra referidas, o arguido teve o propósito, concretizado, de ofender BB na honra e na consideração que lhe era devida, na qualidade de administrador de insolvência, tendo-o feito por causa do desempenho das referidas funções. O arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. Cometeu, assim, em autoria material, um crime de difamação agravada, p. e p. pelos art.º s 180º, n.º 1, e 184º, por referência ao art. 132º, n.º 2, al. l), do Código Penal.» E da acusação particular deduzida por Sociedade A... - Unipessoal, Lda, contra o arguido AA, consta o seguinte: «1. O Denunciado tem perpetrado a prática de actos que configuram ilícitos criminais de ofensa a pessoa colectiva contra a aqui Assistente. Porquanto, 2. O aqui denunciado foi nomeado Administrador de Insolvência e fiduciário no processo n.° 101 /13.5T2AVR que corre termos no Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, 3. Cargo que desempenhou até 06.06.2017, altura em que foi substituído pelo representante da ora Assistente, dado que o Denunciado havia sido suspenso da atividade de Administrador Judicial. 4. No âmbito das suas funções enquanto fiduciário nomeado, o representante da Assistente apresentou, no dia 14.03.2018, contas finais devidamente documentadas, 5. Tendo as mesmas sido aprovadas, sem qualquer reclamação, por sentença datada de 10.09.2018. 6. O representante da Assistente tomou conhecimento, em 13.09.2019, que o Denunciado havia apresentado um requerimento onde tece, gravosamente, inverdades acerca da Assistente, pretendendo, dolosamente, denegrir o bom nome, credibilidade, prestígio e confiança da mesma, como se comprova pelos seguintes trechos transcritos: "(...) a pessoa coletiva, sociedade "A... - Unipessoal, Ld.°,, NIF ..., com sede na Praça ..., ...,... Porto, é juridicamente uma pessoa inteiramente distinta e indepedendente da pessoa do substituto, aqui nomeado." "Estranha-se assim e por isso se denuncia, que as contas tenham sido prestadas por uma 3° entidade absolutamente estranha ao processo, o que consubstancia um falso relato, uma falsa informação, uma falsificação e uso de documento falsificado, perpetrados por técnico, perante o tribunal e perante o MM.0 Juiz competente para receber como meio de prova, com intenção lucrativa, a fim de cometer fraude fiscal entrosando uma sociedade no lugar que o MM.0 Juiz atribuiu a uma pessoa singular, a fim de prejudicar o Estado, porque os rendimentos e despesas que assim se pretenderem arrecadar, serão tributados de forma muito menor, como se prestados por uma pessoa coletiva em prejuízo da AT". 7. Ora, ao contrário daquilo que o Denunciado postula, com intuito de criar no Tribunal, funcionários judiciais e demais intervenientes processuais a expectativa da existência de um alegado crime, para assim tentar que fosse o Tribunal a fazer despoletar um qualquer procedimento criminal, ou outro que não se vislumbra, por ser absurdo tudo o que alega; 8. Não há, nem nunca houve, qualquer intuito de o representante da Assistente se eximir às suas responsabilidades fiscais, procurando um qualquer benefício tributário. 9. Antes de mais, devemos atentar no Decreto-Lei 54/2004, de 18 de Março, como diploma legal que estabelece o regime jurídico das sociedades de administradores da insolvência. 10. Em conformidade com o referido diploma, a possibilidade que foi conferida aos administradores judiciais de criação de uma sociedade de administradores judiciais visou o melhor desempenho das funções de administrador judicial com o benefício "das sinergias e economias resultantes da associação dos seus profissionais". 11. Uma leitura mais atenta do diploma permite concluir que uma sociedade de administradores de insolvência apenas poderá ser constituída por pessoas singulares que se encontrem inscritas nas listas de administradores de insolvência, 12. Devendo tais sociedades assumir a natureza de sociedades civis sob a forma comercial e terem por objeto exclusivo o exercício das funções de administrador de insolvência. 13. Ademais, sempre será de ter em consideração que na lista de Administradores Judiciais consta o nome do Administrador enquanto pessoa singular e a qualidade de sócio da SAJ, se for o caso. 14. Portanto, se é indiscutível que apenas pessoalmente os Administradores Judiciais possam ser nomeados, também é indiscutível que o mesmo pode optar pela tributação em nome individual ou em nome da SAJ (Sociedade de Administradores Judiciais). 15. Se assim não fosse, não haveria lugar a qualquer razão para estas existirem e perdurarem.  16. Ter-se-á, também, em consideração para um correto entendimento da questão ora trazida a juízo, a recente comunicação do IGFEJ, no que se refere às categorias de rendimentos, admitindo, não só a categoria B referente aos rendimentos empresariais e profissionais, mas também a categoria R, referente aos rendimentos de pessoas coletivas. 17. Em suma, a lei faculta ao Administrador Judicial a opção entre o exercício liberal (individual) da sua atividade e o exercício em regime de sociedade (a SAJ). 18. A opção por qualquer um destes regimes encontra-se sujeito a um regime de fiscalidade legalmente previsto. 19. Ou seja, a remuneração do Administrador da Insolvência não deixa de ser tributada por ser paga à sociedade de administração da insolvência que o Administrador Judicial integra. 20. Assim, apesar da remuneração do Administrador Judicial dever ser calculada em função do desempenho pessoal enquanto tal, se aplicável, a mesma deve ser entregue à sociedade em cujo âmbito se integra toda a atividade do administrador judicial. 21. Ademais, ainda que se entenda que o direito à remuneração pertence, em qualquer caso, à pessoa do Administrador Judicial, sempre se dirá que, por efeito do contrato social, este cedeu à SAJ os créditos resultantes da sua atividade. 22. Ora, agindo exclusivamente na qualidade de sócio daquela sociedade, é nela que se repercutem os pagamentos dos seus serviços. No fundo, é a sociedade que os presta através do Administrador Judicial. 23. Quer se entenda que o direito à remuneração entra diretamente na esfera jurídica da SAJ, quer se considere que o respetivo crédito lhe foi transmitido pelo Administrador da Insolvência com base no contrato de sociedade, tal crédito pertence-lhe e é à sociedade que deve ser paga a remuneração dos serviços do administrador judicial e efetuado o reembolso das despesas. 24.Não obstante existir uma índole particularmente individualizada do exercício da atividade de administrador judicial, quando o seu desempenho é desenvolvido no âmbito de uma SAJ, como é o caso que ora se expõe, o entendimento comum é o de que o pagamento devido a título de remuneração e o reembolso das suas despesas terão de ser efetuados à própria sociedade. 25. A este propósito poder-se-á confrontar os Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27.10.2016, processo n.° 407/15.9T8VNG.PI e de 15.09.2016, processo n.° 90/14.9TYVNG.P1. 26. No mesmo sentido, esclarece o despacho do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 2, processo n.° 546/17.1 T8AMT, "Não obstante o cunho individual/pessoal que marca o exercício do Administrador Judicial (...) o seu exercício, quando desenvolvido no âmbito de uma SAI (...) determina que o pagamento devido a título de remuneração da sua função e o reembolso das suas despesas sejam efetuados à própria sociedade". 27. Destarte, caem por terra, sem grandes discursos argumentativos, as "suspeitas" do Denunciado quanto à existência de um qualquer esquema de traude fiscal por meio da Sociedade A... - Unipessoal, Lda., aqui Assistente. 28. As afirmações tecidas pelo Denunciado são manifestamente eivadas de má-fé, 29. Dolosas, 30. Infundadas, 31. Despropositadas, 32. Descredibilizantes, 33. Desprestigiosas, 34. Falsas, absolutamente falsas, 35. Claramente atentatórias do bom nome público da Assistente. 36. O Denunciado agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida e punida por lei. 37. Ora, em perfeita e legítima autonomia de valoração e intencionalidade jurídico- penal, com a revisão do Código Penal (doravante CP) de 1995, operada pelo Decreto-Lei 48/95 de 15 de Março, o legislador pretendeu criar uma particular incriminação, que visa-se, especificamente, proteger as pessoas coletivas. 38. Nestes termos, em conformidade com o disposto no artigo 187.° do Código Penal, comete um crime de ofensa a pessoa coletiva. "1 - Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias." 39. Assim, são elementos do tipo objectivo de ilícito: a) a afirmação ou propalação de factos inverídicos; b) susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa colectiva, corporação, organismo ou serviço; c) não tendo o agente fundamento para, em boa fé, reputar tais factos de verdadeiros. Vejamos, 40. "O primeiro elemento objetivo do tipo de crime de ofensa a pessoa coletiva, organismos ou serviço é a afirmação ou propalação de factos inverídicos, ao invés do que sucede nos crimes de difamação, em que o tipo legal abrange não só a imputação de factos, mas também a formulação de juízos ofensivos da honra ou consideração. Pelo que, o crime de ofensa a pessoa coletiva, organismo ou serviço, apenas contempla a afirmação ou prolação de factos inverídicos." - Ac. Do TRC de 12-05-2010, disponível in http://www.dgsi.pt. 41. "O segundo elemento que a lei exige é que se esteja perante factos idóneos, ou seja, que tenham capacidade para ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança. Esta idoneidade ou capacidade para ofender a credibilidade, prestígio ou confiança deve ser aferida tendo em conta a compreensão que um normal e diligente homem comum tenha da problemática." - Ac. Do TRC de 12¬05-2010, disponível in http://www.dgsi.pt. 42. "Em terceiro lugar, é necessário que o agente ao afirmar ou propalar factos inverídicos o faça sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar de verdadeiros." Ac. Do TRC de 12-05-2010, disponível in http://www.dgsi.pt 43. Pois bem, de acordo com o supra mencionado Aresto, quanto ao preenchimento do primeiro pressuposto - afirmar ou propalar factos inverídicos - o denunciado de facto imputou à Assistente factos inverídicos, sem fazer prova de tudo o quanto alegou (destaque nosso). 44. Designadamente, a afirmação de que a Assistente foi constituída com o único fim de cometer fraude fiscal e "(...) assim prejudicar o Estado, porque os rendimentos e despesas que assim se pretenderem arrecadar, serão tributados de forma muito menor, como se prestados por uma pessoa coletiva em prejuízo da AT."(cfr. doe. 5, idem). 45. A continuação, quanto ao segundo pressuposto - os factos afirmados têm de ser susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa colectiva, corporação, organismo ou serviço, sendo tal ofensa aferida tendo em conta a compreensão que um normal e diligente homem comum tenha da problemática. 46. Importa quando a este pressuposto, reiterar, uma vez mais, que o denunciado foi nomeado Administrador de Insolvência e fiduciário no processo já supra mencionado, cargo esse que desempenhou até 06.06.2017, altura em que foi suspenso da sua atividade de Administrador Judicial. 47. Portanto, a compreensão que ele detém sobre esta problemática é a mais qualificada possível, tendo em conta que o próprio já exerceu funções de Administrador Judicial. 48. Destarte, a diligência que dele se espera é largamente superior à pedida a um homem comum. Uma vez que, 49. O denunciado tem perfeito conhecimento de toda a legislação inerente ao exercício da sua profissão, bem como, do diploma legal que estabelece o regime jurídico das sociedades de administradores da insolvência. 50. Pelo que, bem sabia que ao escrever o requerimento supra aludido, estava a atentar propositadamente contra o bom nome, reputação, prestígio e credibilidade da sociedade aqui Assistente. 51. Nas palavras do ilustre professor Faria da Costa uma instituição é credível quando "pela actuação dos seus órgãos ou membros, se mostra cumpridora das regras, actua em tempo e de forma diligente e, sobretudo, quando a sua prática corrente se mostra séria e imparcial", tem prestígio quando, "pelos comportamentos dos seus órgãos ou membros, ela se impõe no domínio específico da sua actuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve" e é digna de confiança "quando pela sua génese e actuações posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar" - Faria Costa, Comentário Conimbricense, Tomo I, pag. 683. 52. A sociedade aqui Assistente, desde a sua constituição, sempre se mostrou uma instituição séria, com os mais altos valores, respeitada no meio onde está inserida. 53. No que concerne ao terceiro e último pressuposto - não tendo o agente fundamento para, em boa fé, reputar tais factos de verdadeiros. 54. É claro que, com tais afirmações e com o seu largo conhecimento sobre o tema vertente, o agente nunca agiu de boa-fé, aliás, bem pelo contrário, a única intenção do denunciado ao formalizar um requerimento onde denuncia factos que considera serem suscetíveis de uma queixa-crime pelo crime de fraude fiscal, era prejudicar a Assistente, tendo bem consciência de que contra ela poderia ser instaurado um procedimento criminal.  55. Acresce, por fim, ainda o elemento subjectivo, sendo que o crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço tem de ser realizado dolosamente, podendo o dolo revestir qualquer das formas previstas no art.° 14.° do Código Penal: - 1) Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar; 2) Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta; 3) Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização. 56. O denunciado atuou com dolo direto e específico, com o intuito de "manchar" o bom nome da Assistente e de a descredibilizar junto da comunidade envolvente, tendo sempre a consciência da falsidade da imputação. 57. Pelo que, por toda a conduta aqui descrita e nos termos da al. b) do n.° 1 do art. 183.° do CP, o crime de ofensa a pessoa coletiva só pode ser agravado atendendo que "tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo", tudo com as legais consequências. 58. O que se verifica na situação vertente e, por esse motivo, o crime de ofensa a pessoa coletiva praticado pelo denunciado, constitui crime agravado, nos termos da al. a) do n.° 2 do art. 187.° e da al. b) do n.° 1 do art. 183.° do CP. 59. O Denunciado agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida e punida por lei. 60. A Assistente tem legitimidade nos termos do disposto no artigo 113.° CP, 61. E está em tempo, pela aplicação conjugada dos artigos 115° e 119.°, n.° 2, al. b), ambos do CP.»  B) Fundamentação de direito: É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que os recorrentes extraem das respetivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. No caso concreto em análise a questão que se suscita é a de saber se nos autos estão suficientemente indiciados factos que permitam pronunciar o arguido pelo crime de difamação agravada que lhe foi imputado na acusação pública contra ele deduzida após a fase de inquérito e pelo crime de ofensa a pessoa coletiva que lhe foi imputado pela sociedade assistente acompanhada pelo MP. Vejamos! 1. do crime de difamação agravada imputado ao arguido pela acusação pública A questão é de saber se o trecho do requerimento dirigido pelo arguido ao processo n.º 101/13.5T2AVR-E, com vista à apreciação das contas apresentadas pelo assistente BB, com o seguinte teor: «Quanto ao indiciado ilusionismo processual (…) como dos autos consta o administrador nomeado em 06-06-2018, como substituto do ora requerente, foi a pessoa singular BB, NIF ..., com escritório na Rua ..., ..., ... em Anadia.(…) Estranha-se assim e por isso se denuncia que as contas tenham sido prestadas por uma 3ª entidade absolutamente estranha ao processo, o que consubstancia um falso relato, uma falsa informação uma falsificação e uso de documentos falsificado, perpetrados por técnico, perante o tribunal e perante o MM.ª Juiz competente para receber como meio de prova, com intenção lucrativa, a fim de cometer fraude fiscal intrusando uma sociedade no lugar que o MM.º Juiz atribuiu a uma pessoa singular, a fim de prejudicar o Estado, porque os rendimentos e despesas que assim se pretenderem arrecadar, serão tributados de forma muito menor, como se prestados por uma pessoa colectiva em prejuízo da AT.» E ainda : «Estranha-se ainda que aquilo que se intenta aparentar como se fosse a assinatura de “(BB)” indicie ressumar a falsificação, porquanto a única assinatura se reconhece como verdadeira é a constante da respectiva convenção antenupcial.», preenche os elementos objetivos do tipo legal do crime de difamação pelo qual foi acusado e se os factos correspondentes ao elemento subjetivo do tipo foram corretamente considerados como não indiciados. Entendeu a decisão recorrida que se pode extrair do requerimento apresentado pelo arguido que o mesmo pretende expor e denunciar uma atuação que para si não seria legítima, considerando-se que o arguido atuou no exercício de uma direito de crítica e denúncia e não com animo de humilhar o assistente. Vejamos! O arguido apresentou o requerimento em causa no âmbito de uma ação judicial (apenso de prestação de contas), onde já tinha, ele próprio, desempenhado funções de administrador de insolvência, tendo sido substituído pelo assistente. Sucede que o DL 54/2004 de 18 de março veio tornar legalmente admissível a constituição de sociedades de administradores de insolvência que têm objeto exclusivo o exercício das funções de administrador da insolvência.- art. 2º do diploma. Porém, apenas as pessoas singulares inscritas nas listas oficiais de administradores de insolvência podem ser sócias de tais sociedades. -art. 1º nº2 do citado diploma. E somente com a autorização da respetiva sociedade de administradores da insolvência podem os sócios exercer atividades de gestão, com carácter profissional e remunerado, fora da sociedade. - art. 4º nº1 do mesmo diploma. Face a tal regime legal as SAI existem e têm uma atividade lícita, e o concreto administrador nomeado pode optar por exercer a faculdade de ceder a sua remuneração à sociedade de que é sócio, sendo um meio legal utilizado pelos administradores de insolvência que a ele adiram; daí que nada de ilegal tenha o pagamento e a emissão da fatura/recibo pela SAI. Neste sentido veja-se o Ac. desta Relação de 15/09/2016 relatado por Filipe Caroço e publicado em dgsi.pt. Tendo o arguido desempenhado funções como administrador de insolvência pode presumir-se que tem conhecimento do regime legal e da legalidade do pagamento da remuneração do administrador de insolvência à SAI de que é sócio um concreto administrador. Assim sendo, não se vislumbra como na decisão recorrida se considerou como não indiciado que: «Ao fazer constar, do referido requerimento, as expressões supra referidas, o arguido teve o propósito, concretizado, de ofender BB na honra e na consideração que lhe era devida, na qualidade de administrador de insolvência, tendo-o feito por causa do desempenho das referidas funções./O arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.» E aqui chegados não vislumbramos como poderia o arguido ter em mente a realização de interesses legítimos e exercer um direito de denúncia ao fazer insinuações de que o assistente tinha a intenção de cometer fraude fiscal e defraudar a autoridade tributária, tudo indicando que queria efetivamente denegrir a imagem do assistente que o havia substituído no exercício das mesmas funções, tendo conhecimento que havia um regime legal específico que permitia essa substituição ou cedência de direitos, no que respeita ao pagamento da remuneração. Temos o entendimento que nos crimes contra a honra não é admissível a divulgação, mesmo sob a forma de suspeita, de factos desonrosos que se sabe serem falsos. Pelo exposto, discordamos da decisão recorrida e concluímos que os autos indiciam, com uma probabilidade que pode levar à condenação, todos factos constantes da acusação pública que foi deduzida nos autos contra o arguido, de que este terá cometido um crime de difamação agravada. Tudo ponderado, procede o recurso do assistente no que concerne ao crime imputado ao arguido na acusação pública. 2. do crime de ofensa a pessoa coletiva imputado ao arguido pelo assistente na acusação particular A assistente Sociedade A... - Unipessoal, Lda, entende que deveria considerar-se indiciado nos autos um crime de ofensa a pessoa coletiva p.p. pelo art. 187 do CP. O art. 187 do CP dispõe no seu nº1: «1 - Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.» O texto ofensivo ora em causa, é o mesmo que já foi referido a propósito do crime de difamação agravada que supra analisamos. Este tipo legal de ofensa a pessoa coletiva, lega visa essencialmente criminalizar ações ou rumores não atentatórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma determinada pessoa coletiva, valores que não se incluem em rigor no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria, os quais protegem a honra subjetiva ou interior, que se consubstancia na autoestima ou valor pessoal do indivíduo, bem como a honra objetiva ou exterior, que se traduz na ideia que os outros fazem do portador desse bem. Ora, o indicado texto ofensivo refere-se apenas ao administrador de insolvência, enquanto pessoa individual, e às suas ações, não chegando sequer a mencionar o nome da assistente pessoa coletiva, e não se vislumbra no texto em causa, a referência a factos com capacidade para ofender a credibilidade, o prestigio e a confiança de uma pessoa coletiva, como é a SAI, que se constituiu assistente nos autos Assim, não se antevê sequer indiciado o elemento objetivo do tipo de crime que a assistente pessoa coletiva imputa ao arguido, e isto independentemente de estarmos perante a divulgação por meio de escrito, pois temos defendido que a ofensa prevista no tipo legal não tem necessariamente de ser feita verbalmente, como resulta dos Acórdãos desta Relação de 19/04/2017 e de 08/03/2017, ambos publicados in dgsi.pt. Em face do exposto, concluímos que a viabilidade de o arguido ser condenado com base na acusação particular que lhe move a assistente é mínima, e atento a que o legislador não pretende que se sujeite alguém a julgamento, sem que haja uma probabilidade séria e forte de que venha a ser condenado, nada temos a censurar ao despacho recorrido na parte em que não pronuncia o arguido pela prática de crime de ofensa a pessoa coletiva, não assistindo razão ao recorrente nesta parte. 3. Decisão Tudo visto e ponderado, acordam os juízes na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelos assistentes, e em consequência, revogam a decisão recorrida e determinam a sua substituição por outra que pronuncie o arguido pelo crime e pelos factos que lhe foram imputados na acusação pública deduzida nos autos, e confirmam a decisão recorrida no que respeita à não pronuncia do arguido relativamente ao crime de ofensa a pessoa coletiva que lhe é imputado na acusação particular. Sem tributação. Porto, 11/10/2023 Paula Guerreiro José Quaresma Eduarda Lobo

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