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Acórdão STJ de 2011-05-05

22/11.6YREVR.S1

TribunalSupremo Tribunal de Justiça
Processo22/11.6YREVR.S1
Nº Convencional5ª SECÇÃO
RelatorArménio Sottomayor
DescritoresExtradição, Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, Princípio da Extraterritorialidade, Aplicação da Lei Penal no Espaço, Estrangeiro, Constitucionalidade, Princípio da Igualdade, Menor
Data do Acordão2011-05-05
VotaçãoUnanimidade
Privacidade1
Meio ProcessualRECURSO PENAL
DecisãoJulgado Improcedente o Recurso

Sumário

I - Segundo o princípio da territorialidade, o Estado Português aplica o direito penal a todos os factos juridicamente relevantes cometidos no seu território, independentemente da nacionalidade do agente, havendo coincidência entre o âmbito pessoal de aplicação do direito processual penal e o da aplicação pessoal do direito penal substantivo. II - Há, porém, limitações a esta aplicação, como acontece no caso de, encontrando-se o arguido no estrangeiro e sendo pedida a sua extradição, o Estado requerido a ter negado com fundamento em que não extradita os seus nacionais. III - Perante o indeferimento do pedido formulado, Portugal solicitou, ao abrigo do art. 54.º, n.º 2 do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre Portugal e Cabo Verde, a instauração neste último país do procedimento criminal contra a extraditanda, delegando, assim, em Estado estrangeiro a continuação do procedimento criminal. IV -A delegação em Estado estrangeiro da instauração ou continuação do procedimento criminal não pode ser revogada unilateralmente pelo Estado Português, mesmo que o agente venha a ser encontrado em território nacional, tendo carácter definitivo, a menos que se verifique alguma das excepções enunciadas no n.º 3 do art. 93º da Lai nº 144/99, de 31-08. V - Apesar da atribuição aos estrangeiros e apátridas residentes em Portugal de direitos próprios do cidadão português, o princípio constitucional do art. 15.º, n.º 1 admite excepções e não se mostra violado pela circunstância de ser decretada a extradição de um não nacional por crime relativamente ao qual não é admissível a extradição de um cidadão português. VI - Os princípios que a norma do art. 68.º da CRP consagra não se devem considerar violados pelo facto do Estado Português autorizar a entrega a um outro Estado de cidadão estrangeiro para fins de procedimento criminal ou de cumprimento de uma pena, ainda que tal cidadão tenha um filho de nacionalidade portuguesa residente em Portugal. VII - Constituindo a extradição a entrega coerciva de um cidadão por um Estado a outro Estado, de modo algum se pode afirmar que, no caso de ser autorizada a extradição da mãe de um cidadão português de menor idade, será violado o art. 33.º da Constituição se o menor vier ser voluntariamente deslocado para o Estado requerente, desde logo, porque a medida de entrega coerciva não incide sobre o menor, nem o abrange. VIII - Na ponderação da tutela da família e de interesses de ordem pública, o interesse da família não poderá ser o dominante face à circunstância de, por via dos efeitos da delegação em Estado estrangeiro do procedimento penal, não poder ser instaurado em Portugal procedimento criminal contra a requerida, salvo nas limitadas circunstâncias previstas no n.º 3 do art. 93.º da Lei 144/99, e que não se verificam, havendo que dar prevalência ao interesse de ordem pública de perseguir criminalmente os autores dos crimes, nos quais se inclui a requerida, que têm conseguido evitar o julgamento pelos factos de que se encontra acusada, afastando-se primeiramente do território português para Cabo Verde e, depois, ausentando-se de Cabo Verde para Portugal, para evitar, num caso e noutro, a sua extradição.


Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. Pela República de Cabo Verde foi solicitada ao Estado Português, ao abrigo do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre os dois países, a extradição da cidadã cabo-verdiana AA Esta encontra-se acusada no âmbito do Processo nº 2496/07, que corre termos na comarca da Praia, pela prática de factos que constituem, em co-autoria material e em concurso real, um crime de associação criminosa, previsto pelo art. 11º nº 1 da Lei nº 78/IV/93, de 12 de Julho, punível com pena de 2 a 10 anos de prisão e quatro crimes de tráfico de estupefacientes, previstos pelos arts. 3º nº 1 e 8º al. c) referida Lei, sendo cada um deles punível com pena de 5 a 15 anos de prisão. A requerida fora acusada no processo comum nº 55/03.6GESNT da 2ª Vara de Competência Mista de Sintra, pela prática dos referidos factos, mas, apesar de notificada não compareceu a julgamento por se encontrar ausente em Cabo Verde. Em consequência da ausência da arguida, o Estado Português formulou o pedido de extradição, o qual, porém, foi recusado pela República de Cabo Verde em razão da extraditanda ser sua nacional. Em consequência, a pedido de Portugal, foi delegada no Estado de Cabo Verde a instauração do procedimento criminal contra esta e outros arguidos ao abrigo do disposto no art. 54º nº 2 do Acordo de Cooperação. Obtida a autorização do Ministro da Justiça, foi dado início à fase judicial do pedido de extradição, com audição da extraditanda, que se encontra na situação de presa preventivamente à ordem do proc. nº 115/09.0PBPTM, do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Portimão, onde a arguida foi julgada pela prática de um outro crime de tráfico de estupefacientes, tendo sido condenada na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, decisão de que interpôs recurso e que não transitou. A requerida AA opôs-se à extradição, invocando que os factos foram cometidos em território português, o que exclui a extradição nos termos do art. 32º al. a) da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto; alega ainda que é mãe do menor BB, que é cidadão português e aqui reside frequentando o ensino básico, e que a extradição, a ser autorizada, implica a separação entre a mãe e o filho, com violação do art. 36º nº 6 da Constituição da República Portuguesa. Em resposta, o Ministério Público considerou não existir fundamento para a oposição à extradição. Após vistos, foi lavrado acórdão, que julgou não haver causas atendíveis de recusa obrigatória ou facultativa da extradição, em consequência do que deferiu o pedido. Inconformada, a requerida recorre ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo extraído da sua motivação as conclusões seguintes: Verificado todo o supra exposto, e o mais que V.ªs Exas. doutamente suprirão, Requer-se seja revogada a decisão do Tribunal da Relação de Évora, dando sem efeito o pedido de extradição efectuado pela República de Cabo Verde, sendo recusado o pedido de extradição efectuado e que o tribunal diligencie no sentido de obter informações junto às autoridades de Cabo Verde que confirmem o exposto, nomeadamente pedir informação sobre o processo penal n.º 2496/2007, que corre seus termos na comarca da cidade da Praia, Cabo Verde. Tendo em conta, 1.º - Os factos alegadamente indiciados à Extraditanda, foram cometidos em território nacional. 2.° - O MDE resulta do Proc. n.º 55/03.6GFSNT, 2.a Vara, do Tribunal Colectivo de Competência Mista de Sintra. 2 ° - O Douto Tribunal "a quo", conhecendo o circunstancialismo anterior e contemporânea aos factos, tinha fundamento para recusar o pedido de extraditação efectuado pelas autoridades judiciais de Cabo Verde. 3.° - Ao deferir o pedido de extradição, o Tribunal da Relação violou o princípio da Soberania Penal e o princípio da Territorialidade, consagrado no art. 4.° do Código Penal e art. 9.° e 32.° da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto. 4.º - Violou do mesmo modo o art. 15.° da C.R.P., pois a cidadã de nacionalidade Cabo Verdiana, encontra-se a residir em Portugal, portanto goza dos direitos do cidadão português, ao abrigo do disposto no art. 15.°, nº 1 e 3 da C.R.P. 5.° - E em matéria de extradição, os estrangeiros gozam dos direitos e garantias consignados no art. 15, n.º 2 da C.R.P. 6.º - O facto da ora Extraditanda ser mãe do menor BB e ao deferir o pedido de extradição, o Tribunal da Relação violou o art. 33.°, 36.°, n.º 6 68.° todos da C.R.P. e violou o art. 18.° da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto. 7.° - Por outro lado, a situação processual no referido processo está a ser resolvida, tudo aponta para o arquivamento dos autos relativamente aos factos de que está a ser acusada. 8.° - A Extraditanda nada tinha feito acerca do processo em Cabo Verde, porque infelizmente, ainda não tinha em seu poder nenhuma documentação, nesse sentido. 9.° - Daí ter constituído um Mandatário em Cabo Verde, por intermédio de familiares, que iniciou diligências no sentido de obter informação sobre o estado do processo, directamente do Tribunal de Comarca de Cidade da Praia, em Cabo Verde. 10.º - Por outro lado, o Tribunal da Relação considera estar forçado à concessão da extradição, pois considera estarem reunidos todos os pressupostos da mesma, devendo dar cumprimento ao MDE. 11.º - Só que, o MDE está previsto para efeitos de procedimentos criminais, apenas da competência dos Estados Requerentes. Pois, não é o caso. Como foi referido, os factos foram cometidos no território português e cabe às Entidades Portuguesas julgar, em aplicação ao Princípio da Territorialidade. 12.º - E mais ainda, a extradição pressupõe a captura de alguém que anda fugido e relativamente ao qual se pretende a sua detenção para cumprimento da pena ou da medida de segurança. 13.º - O que não se verifica no caso em apreço, pois a ora Extraditanda não andava fugida, nem fugiu após saber da sua situação e nem tenciona fugir, pelo que não faz sentido a decisão de mantê-la presa preventivamente, enquanto corre o processo de extradição. 14.0 - Ou seja, a agora Extraditanda não fugiu de Cabo Verde, nem fugiu às autoridades portuguesas. 15.° - Por outro lado, o MDE deriva de uma mera possibilidade da prática dos factos pela Extraditanda. É apenas uma acusação e não uma condenação. Até prova em contrário a ora Extraditanda é inocente, "In dubio pro Reo" 16.0 - Isto é, pode esta possibilidade nunca vir a verificar-se, havendo fortes possibilidade da sua absolvição. 17.0 - Segundo informação concedida por familiares, em Cabo Verde, todos os bens apreendidos no âmbito do processo em causa, que corre termos em Cabo Verde, já foram restituídos aos legítimos donos, que igualmente são também arguidos. Em resposta o Ministério Público no Tribunal da Relação de Évora defende que o recurso não merece provimento. 2. São essencialmente três os argumentos utilizados pela recorrente como fundamento do recurso: 1 – A decisão recorrida violou o princípio da territorialidade consagrado no art. 4º do Código Penal e no art. 32º nº 1 al. a) da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto; 2 – Violou também o art. 15º da Constituição, na medida em que a extraditanda, por residir em Portugal, goza dos direitos e garantias dos cidadãos portugueses; 3 – Violou ainda os arts. 33º, 36º nº 6 e 68º da Constituição, bem como o art. 18º nº 2 da Lei nº 144/99, dada a circunstância de a extraditanda ter um filho de menor idade. 3. Antes de entrar na apreciação do recurso, importa deixar clarificados os seguintes pontos: a) – O pedido formulado pelo Estado de Cabo Verde é um pedido de extradição, não se tratando de nenhum M.D.E (Mandado de Detenção Europeu), como a recorrente por lapso o apelida na motivação do seu recurso; b) – O diploma que regula a cooperação judiciária internacional em matéria penal - Lei nº 144/99, de 31 de Agosto – estabelece, no art. 3º nº 1, que “as formas de cooperação a que se refere o artigo 1º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência pelas disposições deste diploma.” Por isso, só será feito apelo às normas do direito interno português constantes daquela Lei na falta de disposição do direito convencional. 4. O Tribunal da Relação considerou relevantes para a decisão os seguintes factos: A Extraditanda, cidadã cabo-verdiana, encontra-se acusada no âmbito dos Autos de Instrução n° 2496/2007 que corre termos na Comarca da cidade da Praia, Cabo Verde, pela prática - em co-autoria material e concurso real - de um crime de Associação Criminosa previsto e punido pelo artigo 11 ° n° 1 ° da Lei de Cabo Verde n° 78/IV/93, de 12/07, a que corresponde a pena abstracta de prisão de 2 a 10 anos, e de 4 crimes de Tráfico Agravado de Estupefacientes previstos e punidos pelo artigo 30 n° 1 ° da mesma Lei, correspondendo a cada um deles a pena abstracta de prisão de 5 a 15 anos, e ambos por referência ao artigo 80 alínea c), Quadro I e respectiva Lista Anexa, ainda do mesmo diploma legal cabo-verdiano. Por factos ocorridos em Portugal, tendo sido deferida às autoridades cabo-verdianas a competência para julgar desses factos. Em 22 de Julho de 2010 foram emitidos, pela Autoridade Judiciária competente da República de Cabo Verde, Mandados de Detenção Internacional contra a Extraditanda, que entretanto se ausentou para Portugal, encontrando-se actualmente presa no Estabelecimento Prisional de Odemira à ordem do Processo Comum Colectivo na 115/09.0PBPTM do lº Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Portimão. Os factos indicados no pedido de extradição são igualmente previstos pelos artigos 280 nº 1 (a que corresponde pena abstracta de prisão de 10 a 25 anos) e 210 nº 1 do D.L. nº 15/93, de 22/01 (a que corresponde pena abstracta de prisão de 4 a 12 anos), ambos por referência ao artigo 24° n° 1, alínea c) do mesmo diploma legal. Não corre perante os Tribunais Portugueses qualquer processo criminal contra a Extraditanda pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição. A extraditanda tem um filho menor consigo residente. 5. – Defende a recorrente que a decisão, ao autorizar a extradição, violou o princípio da territorialidade. Segundo este princípio, o Estado aplica o direito penal a todos os factos juridicamente relevantes cometidos no seu território, independentemente da nacionalidade do agente, havendo uma coincidência entre o âmbito pessoal de aplicação do direito processual penal e o da aplicação pessoal do direito penal substantivo. (Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág. 108). Há, porém, limitações a esta aplicação, como no caso de, encontrando-se o arguido no estrangeiro e sendo pedida a sua extradição, o Estado requerido a ter negado com fundamento em que não extradita os seus nacionais. Assim sucedeu, no caso em análise, tendo o Estado de Cabo Verde invocado o disposto no art. 54º do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde, assinado na Praia em 2 de Dezembro de 2003, e aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 6/2005 e ratificado por Decreto do Presidente da República n.º 10/2005, de 15 de Fevereiro. Segundo o número 1 do referido art. 54º, “o Estado requerido tem o direito de recusar a extradição dos seus nacionais e recusá-la-á sempre que a sua Constituição ou a sua lei o determine”, acrescentando o nº 2 que “quando o Estado requerido se recusar a extraditar uma pessoa pelo facto de ser seu nacional, deverá, caso o Estado requerente o solicite e as leis do Estado requerido o permitam, submeter o caso às autoridades competentes para que providenciem pelo procedimento criminal contra essa pessoa por todos ou alguns dos crimes que deram lugar ao pedido de extradição.” Conforme consta dos factos e resulta da documentação que fundamentou o presente pedido de extradição, Portugal solicitou, ao abrigo da mencionada disposição, a instauração em Cabo Verde do procedimento criminal contra a extraditanda, delegando, assim, em Estado estrangeiro a continuação do procedimento criminal. Na falta de norma do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde acerca da delegação da continuação do procedimento criminal, são aplicáveis as normas do capítulo II do Título III da Lei nº 144/99. E, de harmonia com o disposto no nº 1 do art. 93º, “aceite, pelo Estado estrangeiro, a delegação para a instauração ou continuação do procedimento penal, não pode instaurar-se novo processo em Portugal pelo mesmo facto.” O nº 3 da mesma norma, estabelece que “Portugal recupera, porém, o direito de proceder penalmente pelo facto se: [a)] o Estado estrangeiro comunicar que não pode levar até ao fim o procedimento delegado; [b)] houver conhecimento superveniente de qualquer causa que impediria o pedido de delegação, nos termos do presente diploma.” Isto é: por força do disposto neste artigo, a delegação em Estado estrangeiro da instauração ou continuação do procedimento criminal não pode ser revogada unilateralmente pelo Estado Português, mesmo que o agente venha a ser encontrado em território nacional. Tem, assim, a delegação carácter definitivo, a não ser que se verifique alguma das excepções enunciadas no nº 3. Ora, no caso presente, a excepção prevista na alínea a) não ocorre; pelo contrário a República de Cabo Verde pretende a extradição da sua nacional a fim de a julgar pelos crimes que lhe são imputados. E, quanto à da alínea b), nada invoca a requerida, nem resulta dos autos, no sentido do conhecimento superveniente de uma causa que, existente ao tempo da decisão da delegação, teria impedido tal delegação. É certo que, de harmonia com o disposto no art. 55º do mencionado Acordo de Cooperação, norma epigrafada de “excepções à extradição”, “o Estado requerido tem o direito de recusar a extradição se [b)] o crime que deu lugar ao pedido de extradição for considerado, de acordo com a lei do Estado requerido, como tendo sido cometido, no todo ou em parte, no território desse Estado.” Mas, para tanto, não poderia Portugal ter anteriormente renunciado ao princípio da territorialidade em consequência da denegação da extradição da requerida por parte da República de Cabo Verde, delegando o procedimento criminal neste Estado. Violado não se mostra, portanto, o princípio da territorialidade. 6. No seu recurso, a requerida AA faz apelo à norma do art. 15º nº 1 da Constituição, que diz ter sido violada pela decisão recorrida. Segundo o referido preceito constitucional, “os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.” (nº 1), “exceptuam-se do disposto no número anterior os direitos políticos, o exercício das funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.” (nº 2). A extradição constitui, sem dúvida, uma dessas excepções. A “extradição é um típico instrumento de cooperação internacional em matéria penal, mediante a qual um Estado entrega a um outro Estado uma pessoa, refugiada no seu território, contra a qual tenha sido instaurado procedimento criminal ou tenha sido emanada uma sentença penal de condenação definitiva, pela qual deva ser executada uma pena restritiva de liberdade pessoal do sujeito” (G. Galetani e S. Striani, LExtradizione, pág. 20, apud Filomena Delgado, «A Extradição», BMJ, 367, pág. 24). Esta noção, que se aproxima da apresentada por Vital Moreira e Gomes Canotilho, já na 1ª edição da sua Constituição da República Portuguesa Anotada [“a extradição é a transferência de um indivíduo que se encontra no território de um Estado para as autoridades de outro Estado, a solicitação deste, por aí se encontrar arguido ou condenado pela prática de um crime, sendo entregue às autoridades desse Estado”], evidencia que a extradição, tal como a expulsão, e bem assim o direito a asilo político, são institutos especialmente dirigidos aos estrangeiros. Aliás, no texto inicial da Constituição não era admitida, em caso algum, a extradição de cidadãos portugueses do território nacional, o que, a contrario tem o sentido de que a extradição de estrangeiros é permitida. A Constituição apenas não a admite por motivos políticos ou por crime que, segundo o direito do Estado requisitante, seja punido com pena de morte ou com pena de que resulta lesão irreversível, e, quando se trate de pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, se o Estado requisitante não oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada. Se é certo que, com a revisão constitucional de 1997, a não extradição deixou de ser, para os nacionais, um direito garantido em termos absolutos, nem assim há, neste campo, correspondência entre os direitos reconhecidos aos cidadãos nacionais e aqueles de que os estrangeiros gozam. O nº 3 do art. 33º só quanto aos nacionais limita a extradição aos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, exigindo que haja garantias de condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional e que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo. Na Enciclopédia Polis, s.v. «Estrangeiro», artigo que é da autoria do Prof. Rui Moura Ramos, a condição de estrangeiro é ilustrada precisamente com referência à extradição, no seguinte trecho: “a Constituição precisa ainda certos pontos referentes à condição de Estrangeiro, ao proibir a extradição por motivos políticos ou por crimes a que corresponda a pena de morte segundo o direito, do Estado requerente, ao fazer depender a extradição e a expulsão de estrangeiros duma decisão judicial.” Pode, assim, concluir-se que apesar da atribuição aos estrangeiros e apátridas residentes em Portugal de direitos próprios do cidadão português, este princípio constitucional, que admite excepções, não se mostra violado pela circunstância de ser decretada a extradição de um não nacional por crime relativamente ao qual não é admissível a extradição de um cidadão português, conforme sucede no presente caso em que é requerida AA 8. – A circunstância de a extraditanda ter um filho de menor idade, de nacionalidade portuguesa, serve para argumentar que a decisão recorrida violou os arts. 33º, 36º nº 6 e 68º da Constituição, em virtude de a recorrente, apesar de se encontrar detida à ordem doutro processo, manter laços de proximidade com o filho, que se irão romper com a sua extradição. A este pretexto invoca o art. 68º da Constituição, cujo texto transcreve contudo na redacção originária, a qual foi alterada na Revisão de 1982, procedendo-se então a um alargamento à paternidade, “passando a reconhecer e a garantir um verdadeiro direito fundamental dos pais e das mães, enquanto tais, i. é, nas suas relações com os filhos” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I 4, pág. 863). Todavia, os princípios que tal norma consagra não se devem considerar violados pelo facto do Estado Português autorizar a entrega a um outro Estado de cidadão estrangeiro para fins de procedimento criminal ou de cumprimento de uma pena, ainda que tal cidadão tenha um filho de nacionalidade portuguesa residente em Portugal. Entende a recorrente que sendo extraditada e no caso de levar o filho consigo para Cabo Verde, será violado o art. 33º por se estar a extraditar o menor. Constituindo a extradição a entrega coerciva de um cidadão por um Estado a outro Estado, de modo algum se pode afirmar, como alega a recorrente, que, no caso de ser autorizada a extradição da mãe de um cidadão português de menor idade, será violado o art. 33º da Constituição se o menor for deslocado para o Estado requerente. Desde logo, porque a medida de entrega coerciva não incide sobre o menor, nem o abrange. Por outro lado, sendo o extraditado entregue às autoridades policiais do Estado requerente sob custódia, não deverá ser acompanhado pelo filho; este, no caso de ser enviado para o Estado que requereu a extradição, sê-lo-á por um acto voluntário dos seus familiares e não por qualquer acto coactivo do Estado Português no âmbito do instituto da extradição. Considera, finalmente, a recorrente que com a concretização da extradição se violará o disposto no nº 6 do art. 36º da Constituição: “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.” Segundo Jorge de Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, I, pág. 425), “a tutela constitucional da família e do casamento - e da comunhão de vida neles implícita - não obsta a que, por aplicação de outras normas constitucionais - ou de normas legais nelas fundadas -, sejam proferidas decisões que impeçam ou comprometam a vida familiar. Mas, antes de serem proferidas tais decisões, deve ser ponderado o interesse da família. A questão - quer na perspectiva da comunhão de vida entre os cônjuges, quer na dimensão da vida familiar entre pais e filhos - surge, com frequência, no âmbito das relações familiares que integram estrangeiros ou apátridas, em matéria de asilo, expulsão e extradição. O artigo 36.° não afasta a aplicação do artigo 33.° e das normas legais nele baseadas, não sendo constitucionalmente admissível uma leitura que negasse a apli­cação do regime de asilo, expulsão e extradição aos estrangeiros e apátridas que tenham constituído uma família com um cidadão português ou com uma pessoa que, nos termos do artigo 15.°, n.º 1, se encontre ou resida em Portugal. Assim, por exemplo, mesmo havendo uma ligação familiar efectiva, o casamento com um cidadão português não garante, necessariamente, a entrada em território nacional e não impede, por si só, a expulsão ou a extradição. Da mesma forma, os filhos de um estrangeiro ou apátrida que resida legalmente em território nacional não têm, ipso facto, um direito constitucional a residir em Portugal.” A propósito da pena acessória de expulsão, o Tribunal Constitucional veio a declarar, com força obrigatória geral, pelo acórdão nº 232/04, a inconstitucionalidade das normas do artigo 101º, n.º 1, alíneas a), b) e c), e n.º 2, e do artigo 125º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na sua versão originária, da norma do artigo 68º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Decreto-Lei n.º 59/93, de 3 de Março, e da norma do artigo 34º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, enquanto aplicáveis a cidadãos estrangeiros que tenham a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa residentes em território nacional. A respeito desta questão aqueles constitucionalistas pronunciaram-se nos seguintes termos: “Em rigor, porém, a conclusão não decorre de uma aplicação directa do artigo 36.°, n.º 6. Doutra forma, como aliás foi sublinhado em voto de vencido, seria também posta em causa a admissibilidade da "aplicação de uma pena de prisão a progenitores com filhos menores que com eles convivessem, ( ... ), o que, claramente vai, na prática, inviabilizar o contacto daqueles progenitores com os filhos sobre os quais tinham o poder paternal" (cfr. ainda Acórdão n.º 232/04). Em rigor, como se disse mais atrás, o artigo 36.° n.º 6, não impede necessariamente a separação alicerçada noutras normas constitucionais. A inconstitucionalidade funda-se antes na concreta ponderação dos interesses em jogo e, no caso concreto, na verificação de que os interesses de ordem pública visados pela norma em causa não eram suficientemente relevantes para justificar, no caso concreto, a aplicação da pena acessória de expulsão do território nacional.” (opus cit., pág. 425) Na ponderação desses interesses, a ser levada a efeito no caso em análise, o interesse da família não poderá ser o dominante face à circunstância acima exposta de, por via dos efeitos da delegação em Estado estrangeiro do procedimento penal, não poder ser instaurado em Portugal procedimento criminal contra a requerida, salvo nas limitadas circunstâncias previstas no nº 3 do art. 93º da Lei nº 144/99, a que, a seu tempo, foi feita referência e que, como então se disse, não se verificam. Haverá, pois, face a estas circunstâncias de dar prevalência ao interesse de ordem pública de perseguir criminalmente os autores dos crimes, nos quais se inclui a requerida, que têm conseguido evitar o julgamento pelos factos de que se encontra acusada, afastando-se primeiramente do território português para Cabo Verde e, depois, ausentando-se de Cabo Verde para Portugal, para evitar, num caso e noutro, a sua extradição. De igual modo, não será possível uma denegação facultativa da cooperação penal, prevista no art. 18º nº 2 da Lei nº 144/99, conforme sustenta a recorrente. Mesmo que não se verificassem as razões acabadas de enunciar, nada está demonstrado nos autos quanto à eventual ocorrência de consequências graves do deferimento do pedido para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou outros motivos de carácter pessoal. Sendo de salientar que a lei manda atender, nesse caso, exclusivamente à pessoa visada pela extradição e não às consequências que da execução desta medida possam resultar para terceiros, nomeadamente para um qualquer filho menor do extraditando. Improcedem, assim, por inteiro, as razões em que se sustenta o presente recurso. 8. Conforme está documentado nos autos, a requerida foi condenada no proc. nº 115/09.0PBPTM do 1º Juízo Criminal da comarca de Portimão, em pena de 4 anos e 6 meses de prisão, que ainda não transitou. Tal facto, conforme resulta do disposto no art. 35º da Lei nº 144/99 não obsta à concessão da extradição, embora possa ser diferida a entrega do extraditado para quando o processo ou o cumprimento da pena terminarem. Se a condenação vier a ser confirmada pela Relação e transitar, a entrega imediata da requerida, cidadã estrangeira, ao país de que é nacional, é susceptível de dificultar, ou mesmo de não permitir, o cumprimento da pena, uma vez que a República de Cabo Verde não extradita os seus nacionais. Deve, portanto, diferir-se, para o momento em que terminar o processo ou o cumprimento da pena, a entrega de AA à República de Cabo Verde, nos estritos termos em que o Ministério Público requereu a sua extradição. DECISÃO Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto por AA do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que decretou a sua extradição para a República de Cabo Verde, a fim de ser julgada no âmbito do processo nº 2496/2007 da comarca da Praia, diferindo-se, porém, a sua entrega para o momento em que terminar o processo ou o cumprimento da pena em que foi condenada no processo nº 115/09.0PBPTM do 1º Juízo Criminal da comarca de Portimão. Sem custas. Lisboa, 5 de Maio de 2011 Arménio Sottomayor (relator) ** Souto Moura

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