O art. 1859.º do CC admite a impugnação da perfilhação a todo o tempo, por todo o interessado, com o simples fundamento de não haver coincidência entre a verdade jurídica e a verdade biológica. As restrições/limitações introduzidas ao amplo regime legal de impugnação da perfilhação pela doutrina e jurisprudência não abarcam o caso sub-judice.
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório A..., viúva, e F..., casado, ambos residentes nas ... São Pedro do Sul, intentaram a presente acção ordinária contra C..., solteira, maior, residente na ..., em Aveiro, e D..., residente na ..., Ílhavo, inicialmente menor e representado pela mãe (a R. C...), pedindo a anulação da perfilhação, feita por E..., do réu D... e do averbamento da paternidade ao seu assento de nascimento. Para o que alegaram, em resumo, que são viúva e filho do falecido E..., tendo na sequência da abertura do seu inventário tomado conhecimento de que ele havia perfilhado o réu D...; perfilhação que, segundo também agora tomaram conhecimento, foi efectuada “sob a ameaça”, feita pela 1.ª R., de informar, caso o falecido E... não perfilhasse o 2.º R., a aqui A. da relação comercial (uma casa de diversão nocturna em Aveiro) que mantinha com a 1.ª R. e bem assim da existência de relações íntimas entre ambos; ameaça que produziu no falecido E... justificado receio de que a sua estabilidade familiar fosse desfeita e a sua honra gravemente atingida, a ponto de, para evitar a sua concretização, ter feito a perfilhação, que nunca revelou à família e amigos. Os RR. contestaram, negando rotundamente que a perfilhação haja sido precedida de qualquer ameaça, dizendo que foi um acto livre do falecido E..., que sempre aceitou o 2.º R. como seu filho biológico, como efectivamente é; acrescentando que a única ameaça que houve foi feita por parte do falecido, no sentido de evitar que a 1.ª R. revelasse o relacionamento com ele e a existência do 2.º R., a fim de não desestabilizar as relações familiares com os AA. (mesmo assim, porém, muitas pessoas de Pedro do Sul tinham conhecimento da perfilhação do 2.º R.). Os AA. replicaram mantendo o alegado na PI. Foi proferido despacho saneador – em que se julgou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa. Instruído o processo, designou-se dia para audiência e, estando esta já iniciada, o Exmo. Juiz, oficiosamente, “determinou a realização pelo INML de exames genéticos aos AA e aos RR, com vista a apurar se o R. D... é filho do falecido E...”. Realizado o exame, em que se concluiu que “o pai biológico de F...é excluído da paternidade de D...”, vieram, então, os AA. com um articulado superveniente, em que invocam que ficaram a perceber, pelo resultado do exame, que o 2.º R. não é filho biológico do falecido E..., o que alegam para ser tomado em conta na causa. Os RR. opuseram-se à admissibilidade do articulado superveniente. Após o que o Exmo. Juiz proferiu despacho em que aditou à base instrutória o facto “novo” (“implicitamente” admitindo o articulado superveniente). Reiniciada e concluída a audiência, o Exmo. Juiz proferiu decisão sobre a matéria de facto e, após, proferiu sentença em que julgou a acção procedente, declarando “impugnada a perfilhação do réu D... por E... e orden[ando] o cancelamento do averbamento da paternidade deste ao assento de nascimento daquele (assento de nascimento n.º 28227 de 2008 do Arquivo Central do Porto) por efeito daquela perfilhação.” Inconformados com tal decisão, interpuseram os RR., separadamente, recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente improcedente. Terminam a sua alegação com as seguintes conclusões: A R. C...: 1-A sentença recorrida, na opinião da apelante, configura erro de julgamento, designadamente no que respeita à resposta e fundamentação dadas ao quesito 21.º da B.I., e na subsequente subsunção ao direito aplicável, de forma a que o assim decidido não corresponde nem à realidade transmitida pelos factos provados, nem à realidade cientifica e, por isso, nem à normativa, não podendo manter-se em vigor na ordem jurídica. 2-Deve por isso, ser alterada a matéria de facto dada como provada, pois é o próprio resultado da perícia feita, que de forma iniludível porque científico, impunha uma decisão contrária à que foi dada ao quesito 21.º da matéria de facto controvertida, em violação do disposto na alínea a) e na b) do n.º 1 do art. 712.º do C.P.C., constituindo este resultado cientifico algo que por si só, impunha decisão diversa da recorrida, insusceptível de ser destruída por quaisquer outra provas. 3-A fundamentação de facto que está na base da sentença recorrida parece que não aceita o resultado da perícia e resolve acrescentar um critério que nem a perícia ponderou nem poderia ponderar de modo algum, para se desviar da correcta e mesmo inquestionável resposta que deveria ter dada ao quesito 21.º em causa que, por isso, não poderia ter senão este conteúdo – Não provado. 4-Foi violado o disposto no artigo 342.º do C.C. pois o tribunal com a interpretação que assim deu ao resultado duma perícia científica como que sancionou o incumprimento do ónus da prova que quanto ao quesito 21.º impendia sobre os AA, que assim ficaram ilegalmente isentos do dever de fornecerem a prova do facto visado nesse quesito e assim se eximiram de sofrer as legais consequências do seu incumprimento. 5-A decisão em causa arrasa por completo a referencia paternal que o filho da apelante sempre teve como certa e inquestionável, apagou do mundo a sua identidade nesse aspecto fundamental da sua existência –a certeza de quem é o seu pai, a de que sempre teve de ser filho de quem se assumiu inequivocamente como tal enquanto foi vivo, ( o falecido E...), -e, 6-Igualmente, quanto à apelante destruiu a sua maternidade, o seu passado, presente e futuro, decretou a eliminação da sua certa identidade como mãe do R D..., afectando nesse processo a sua própria dignidade. 7-São os seguintes, na opinião da recorrente, os elementos fornecidos pelo processo que impunham uma decisão diversa quanto ao mencionado quesito 21, insusceptíveis de serem destruídos por qualquer outra prova: a)-O termo de perfilhação feito pelo falecido E... junto aos autos a folhas dos autos. b)-O resultado da prova pericial junta a folhas 304 e seguintes dos autos c)-A certidão do Tribunal de Menores do Porto, junta a folhas 275. d)-Os documentos fotográficos juntos a fls. 143 e 144. d) Os documentos juntos aos autos a fls. 139 a 141. e) O depoimento da testemunha dos AA G..., gravado em CD único junto aos autos, entre as 10.40.43 horas e as 11.15.42 horas. 8-Ou seja, ficou provado que a profunda afeição do falecido E... com a ré C... determinou naquele o dever intimo de acompanhar a recorrente às consultas e exames de ecografias que fez quando estava grávida do filho D..., o que, pensa a recorrente, teria que pressupor como normal ter havido relação sexual reiterada e exclusiva entre ambos, de que resultou essa sua gravidez como consequência do seu relacionamento sexual contínuo e desejado. 9-Não foi demonstrado nos autos ter tido a recorrente qualquer relacionamento com outro homem, além do E..., no período da gestação do seu filho. 10-No ponto 21.º da Base Instrutória questionava-se o seguinte: “ O falecido E... não é o pai biológico do Réu D... ? “ 11-perante esta questão essencial, o relatório pericial não diz em lado nenhum, nem de forma explícita nem tácita, nem de qualquer outra forma, quem é na verdade o pai de um ou de outro, podendo-o ser quer do filho da apelante, o D... ou do F.... 12-Face a esta revelação o que o Tribunal a quo fez e fez, foi, depois de reconhecer que afinal a ciência não respondeu à questão do quesito 21.º, interpretá-la de forma desviada de qualquer cientificidade, e que a apelante considera errada: determinar a paternidade a seu modo e “ desprezando “ por um lado a peremptória conclusão cientifica a que tinha lançado mão, socorrendo-se dum novo critério que nem a ciência mas nem sequer a factualidade adquirida como provada nos autos permitia: o critério inaceitável dum alegado mas limitado contexto pessoal dos intervenientes para a determinação desse facto. 13-O relatório pericial não determina qualquer linha de ascendência paternal biológica relativamente a qualquer dos filhos (o F...e o D...), pelo que não foi produzida em julgamento prova adequada que permitisse dar como provado que “O falecido E... não é pai biológico do Réu D.... 14-Se está provado, de forma indubitável que o falecido E... mantinha uma relação extra conjugal com a apelante, que se manteve durante anos seguidos, uma relação dessa natureza, com a natural componente afectiva e sexual que constitui o conteúdo normal de qualquer relação de amantes, entre um homem e uma mulher muito mais nova, impunha não se poder classificar, nessa fundamentação de facto, que tudo isso é um sinal de que o filho não foi propriamente desejado nem corresponde a uma manifestação de uma relação sentimental querida.! 15-A prova documental e testemunhal junta aos autos pelos RR desmente por completo essa inocente teoria, designadamente as fotografias de folhas 143 e 144, as facturas de prendas valiosas que o falecido E... deu à apelante, e mesmo o depoimento da testemunha dos A o G..., etc. 16-Como se disse, dos depoimentos prestados pelas testemunhas acima mencionados, conjugados com as regras da experiência comum e a com a inequívoca perfilhação voluntária de D... pelo seu pai E..., resulta como indubitável a existência de relacionamento sexual entre a mãe do recorrente e o falecido E... no período correspondente ao momento em que engravidou de seu filho D..., bastante para se ter que considerar como filho de ambos; 17-A optar-se, como se fez na sentença recorrida, por uma determinação da paternidade biológica em função do critério da vida intima do falecido E..., (passe a incongruência lógico – cientifica deste raciocínio judicial) toda a prova feita teria então que conduzir, por esse critério, à conclusão de que também o filho da apelante só pode ser filho daquele E.... 18-Os factos provados quanto ao intimo relacionamento da recorrente com o E..., com notória consumação de actos sexuais com a recorrente, antes, durante todo período de gestação do R D..., em conjugação como que este assumiu deliberadamente no mencionado termo de perfilhação, na qualidade de pai biológico de D..., deveriam considerar ser ele próprio elemento cuja preponderância jurídica, porque encerra em si o reconhecimento, pelo falecido E... como pai biológico do filho da recorrente, afasta a presunção seguida na sentença de que só o F...é filho do E.... 19-Sendo tal termo de perfilhação, em função do que se acha comprovado e aqui alegado, elemento que impunha uma decisão diversa, pois insusceptível também de ser destruído por qualquer outra prova e muito mais ainda insusceptível de ser o seu valor afastado pelo critério colhido na sentença de que só o F...é filho do E... por ter nascido na pendência do casamento deste com a A. O R. D...: a) Para o julgamento e decisão da questão em julgamento – impugnação da perfilhação e consequente paternidade do recorrente pelo seu pai E... – o facto essencial é o constante do quesito 21º da base instrutória (”O falecido E... não é pai biológico do Réu D...?”); b) Considerando as consequências a impugnação da perfilhação na esfera dos direitos de personalidade e dignidade como pessoa humana do impugnando, impõe-se que a decisão que assim sentencie assente em prova certa e rigorosa; c) No caso em apreço, a douta sentença em crise julgou como provado o facto “O falecido E... não é pai biológico do Réu D...”, assenta a sua convicção essencialmente no relatório pericial de fls. 304 e, residualmente, nas demais prova documental e testemunhal. d) Concluindo o dito relatório pericial pela exclusão da mesma linha de paternidade entre o recorrido Carlos Manuel e recorrente D..., e) Não estabelece, contudo, linha de ascendência paternal biológica relativamente a qualquer um dos filhos aqui recorrido e recorrente, nem a exclui relativamente a qualquer um deles relativamente ao pretenso pai E...; f) Dos demais documentos juntos à acção resulta o estabelecimento de presunção legal da paternidade relativamente ao recorrente e ao recorrido na linha de ascendência com o falecido E... – no que são colocados, no mínimo, em igualdade de presunção; g) Dos depoimentos prestados pelas testemunhas G..., H...e I... acima especificadas, conjugados com as regras da experiência comum e perfilhação voluntária do recorrente pelo seu pai, resulta consensual a existência de relacionamento sexual entre a mãe do recorrente e o falecido E... em tempo adequados à gravidez da mãe e posterior nascimento do recorrente como filho de ambos; f) Pelo que, em termos empíricos e adequado à verdade biológica, resulta que a prova produzida nesta acção vai no sentido de ter existido relacionamento sexual entre o falecido E... e a sua mãe adequado à gravidez que deu origem ao seu nascimento, sem que tenha sido sequer indicado a existência de relação sexual ente ela e outro parceiro. h) Não foi produzida em julgamento prova adequada ao julgamento como provado do facto “O falecido E... não é pai biológico do Réu D...”; i) Este facto é elemento constitutivo do direito de que os recorridos se arrogam na acção, imporiam as regras da distribuição do ónus da prova – art. 342º, nº 1 do C. Civil –que fosse o mesmo julgado como Não Provado. j) Impõe-se, pois, que seja revogada a douta sentença em crise e substituída por outra que julgue como Não Provado o facto “O falecido E... não é pai biológico do Réu D...”, com a subsequente aplicação do Direito à factualidade que assim fique assente e que deverá conduzir à improcedência da acção e absolvição do recorrente do pedido, k) Alteração que se impõe pela conjugação relatório pericial de fls. 304, com os depoimentos acima transcritos das testemunhas G..., H...e I..., com os factos jurídicos donde resultam as presunções legais de paternidade dos recorrente e recorrido, à luz das regras da experiência comum e de normalidade da vida. Os AA. responderam, sustentando, em síntese, que não violou a decisão recorrida quaisquer normas, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos. Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. * II – “Reapreciação” da decisão de facto Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação dos RR./apelantes (art. 684º, n.º 3 e 695º-A, n.º 1 do CPC) – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocadas a este Tribunal. No caso vertente, os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, foram gravados; constando, assim, do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto e sendo possível modificar aquela decisão, se enfermar de erro de julgamento[1]. Convém, todavia, ser cauteloso e prudente no uso de tal faculdade, tanto mais que existem elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo de exteriorização e verbalização dos depoentes, não importados para a gravação, susceptíveis de influir, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhes. Será pois cientes dos riscos e dificuldades que sempre envolve a reapreciação da matéria de facto que iremos enfrentar as questões, nesta sede, suscitadas. Efectuado tal prévio e “tabelar” esclarecimento, debrucemo-nos sobre as concretas questões suscitadas, tendo presente a posição assumida pelas partes nos articulados, o conteúdo e conclusão do relatório pericial, os documentos juntos aos autos e o registo da prova produzida em julgamento. Está exclusivamente em causa o quesito 21.º da BI; os RR/apelantes insurgem-se e dizem ter sido incorrectamente julgado o facto do mesmo constante, em que se pretende saber se “o falecido E... não é pai biológico do réu D...”; facto que o tribunal a quo deu como “provado”, defendendo os RR/apelantes que o mesmo deve ser considerado “não provado”. Vejamos: Estamos, cumpre começar por salientar, perante um caso peculiar de divergência/impugnação da decisão de facto. Não há, ao contrário do que é normal, uma verdadeira divergência sobre o conteúdo e sentido das várias provas que foram produzidas; a divergência situa-se apenas no momento final, em que o Exmo. Juiz a quo considera, perante o conteúdo e sentido de tais provas, que o quesito 21.º deve ser provado e em que os RR/recorrentes consideram o oposto. Expôs o Exmo. Juiz, tendo em vista motivar a resposta afirmativa que deu ao quesito 21.º, o seguinte: “ Quanto ao facto controvertido n.° 21, verdadeiramente essencial na acção, a decisão do tribunal é resultado da interpretação do relatório pericial de investigação da paternidade junto a folhas 304 e seguintes à luz do contexto pessoal dos intervenientes. O relatório conclui, com o maior grau de probabilidade que é possível em termos do conhecimento científico actual na área da genética, que o autor F...e o réu D... não são irmãos paternos, que o pai de ambos não é a mesma pessoa, logo que se E... for pai de um não é pai do outro. A ter-se como certo que E... é pai de F..., ele não é afinal pai de D... ainda que o tenha perfilhado. Esta situação requer a análise do contexto familiar em que estas duas pessoas nasceram. F...nasceu no contexto do casamento da mãe com E..., celebrado em 1964, em São Pedro do Sul, onde sempre ambos viveram. D... é filho da ré que explorava uma casa nocturna em Aveiro e terá mantido com E... uma relação íntima. Ignora-se se essa relação íntima ocorreu no período legal de concepção de D..., com que regularidade se manteve e se era ou não exclusiva. Na data em que nasceu a mãe tinha 28 anos e E... tinha 54 anos. D... foi criado por terceiras pessoas, tendo sido abandonado pela mãe praticamente desde que nasceu. E serviu de argumento para a ré C... obter benefícios financeiros de E.... Neste contexto parece forçoso concluir que absolutamente nada permite suspeitar da paternidade de F..., que o seu pai seja E..., o marido da mãe. E, pelo contrário, tudo permite ter as maiores dúvidas sobre a paternidade de D... já que a vida da mãe permite ter as maiores dúvidas e reservas sobre a exclusividade do seu parceiro sexual e sobre a sua motivação na concretização da maternidade. Por isso, face à clareza do teor do relatório pericial e ao elevado grau de probabilidade que nesse se encontra, entendemos que o tribunal deve considerar provado que E... não é pai de D.... Cremos mesmo que na esmagadora maioria das acções judiciais de investigação de paternidade que durante décadas foram decididas unicamente com base em prova testemunhal e com o argumento da exclusividade das relações sexuais a ser demonstrado por testemunhas que, como é óbvio, nunca tal presenciaram ou puderam asseverar, a prova era infinitamente menor do que a granjeada para os autos.” Ou seja, a motivação de facto dá como completamente assente que houve relacionamento sexual reiterado entre a R./recorrente C... e o falecido E...; são pois algo redundantes e desnecessárias as observações ora efectuadas pelos RR/recorrentes, enfatizando a existência de tal relacionamento, uma vez que, insiste-se, tal relacionamento sexual está adquirido/incorporado quer nos autos quer no raciocínio que presidiu à decisão de facto sob censura. Se a existência de tal relacionamento sexual não fizesse parte da verdade intraprocessual, a controvérsia sobre a resposta a dar ao quesito 21.º não se colocaria – ou, pelo menos, seria pouco pertinente. Por outras palavras, a circunstância de estar abundantemente provado o relacionamento sexual, entre o falecido E... e a R. C..., não é a solução/fim da questão[2]; é “apenas” o princípio da questão. Como é evidente e é da própria natureza das coisas, não é por haver relacionamento sexual, ainda que durante o período legal de concepção, que fica em definitivo estabelecida a paternidade; o próprio art. 1871.º/1/e) do CC – estabelecendo, é certo, a partir da Lei 21/98, uma presunção de paternidade[3] – determina, logo a seguir, no seu n.º 2, diz que a mesma se “considera ilidida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigando”. São justamente estas dúvidas sérias que no caso estão provadas/verificadas. Os RR/recorrentes insurgem-se quanto à possibilidade do “contexto pessoal dos intervenientes” ser utilizável como contributo para o estabelecimento de tais “dúvidas sérias”. Porém, sem razão; uma vez que, ao aludir-se a tal “contexto pessoal”, se quer dizer, entre outras coisas, que a R/recorrente C... explorava uma casa nocturna, “uma casa de alterne”; circunstância que não é sequer contestada nos autos/recurso[4]. O que suscita as dúvidas sérias – e ilide a “presunção” de paternidade decorrente do provado relacionamento sexual – não é, como é evidente, o facto do nascimento do R. D... ter ocorrido fora do matrimónio do falecido E... e dum relacionamento extra-conjugal deste; o que suscita as dúvidas e reservas sérias é a referida ocupação da mãe, que, de acordo a experiência comum e a mais elementar normalidade da vida[5], suscita/impõe dúvidas e reservas sérias sobre a exclusividade do parceiro sexual[6]. Dúvidas sérias estas, emergentes de tal “contexto pessoal”, que o resultado/conclusões do exame pericial corrobora e adensa. Exame pericial que – não se pronunciando, é certo, sobre a relação biológica entre o falecido E... e o R. D...[7] – afirma, com certeza científica, que o A. F...e o R. D... não têm o mesmo pai biológico. O que – estar cientificamente assente que o A. F...e o R. D... não são filhos do mesmo pai – significa, necessária e incontornavelmente, uma de três coisas: ou que nenhum deles é filho do falecido E... ou que só o A. F...é filho do falecido E... ou que só o R. D... é filho do falecido E...[8]; o que indica, em termos prosaicos, que estamos perante uma situação de infidelidade: ou da R. C..., ou da A. A..., ou de ambas. Ora, nada foi aduzido, nada foi produzido, nem sequer ao de leve, que permita suspeitar da infidelidade conjugal da A. A...; e, insiste-se, é disto que se trata e é disto que se está a falar quando se parte para admitir/sustentar que o R. D... é filho do falecido E...[9], uma vez que – embora seja ocioso, explica-se – para o R. D... ser filho do falecido E..., então, não tendo os dois o mesmo pai biológico, o A. F...não pode ser filho biológico do falecido E..., o que estampa a infidelidade conjugal da A. A...[10]. É justamente por tudo isto, perante o conteúdo e sentido de todas as provas produzidas – que, juntas, multiplicam/potenciam as referidas dúvidas e reservas sérias e afastam a concreta possibilidade do relacionamento sexual entre a R. C... e o falecido E... ter sido a causa da fecundação e da procriação do R. D... – que também consideramos, em total concordância com o Exmo. Juiz a quo, que o quesito 21.º deve ser dado/mantido como provado. É o que há a dizer e concluir sobre o recurso de facto – sobre a impugnação da decisão de facto – que assim improcede “in totum”. * * III – Fundamentação de Facto Os factos são os seguintes: A) E... faleceu no dia 28 de Maio de 2007, na freguesia de ... de Viseu, concelho de Viseu, no estado de casado com A..., tendo a sua última residência habitual no ..., concelho de S. Pedro do Sul [cfr. doc. de fls. 104 e 105, cujo teor se dá por reproduzido]. [A] B) E... contraiu casamento católico, no dia 15 de Março de 1964, com A..., sem escritura antenupcial [cfr. doc. de fls. 106 a 108, cujo teor se dá por integralmente reproduzido]. [B] C) O Autor F... nasceu no dia 12 de Fevereiro de 1967, constando como filho de A... e de E... [cfr. doc. de fls. l09 e 110, cujo teor ora se reproduz]. [C] D) D... nasceu no dia 5 de Fevereiro de 1993, constando como filho de C... e de E... [cfr. doc. de fls. 111 e 113, cujo teor ora se reproduz]. [D] E) No dia 06.12.1993, C... compareceu na Conservatória do Registo Civil de Aveiro e declarou: «Que é mãe de D..., nascido em 05 de Fevereiro de 1993, natural da freguesia de ..., concelho do Porto e com registo de nascimento lavrado sob o n.º .../1993 da 2ª Conservatória do Porto. Que o mesmo foi reconhecido por E..., como consta do termo de perfilhação, averbado ao respectivo assento de nascimento. Que como consequência deste reconhecimento vem requerer (…) que ao nome daquele seu filho seja adicionado o apelido “ M...”, do pai, para que ele possa usar o nome completo de “ D...”. A aquiescência do pai ao uso do seu apelido, pelo filho, consta já do referido termo de perfilhação». [cfr. doc. de fls. 32 a 38, cujo teor ora se dá por produzido]. [E] F) Do documento aludido em E), a fls. 35, consta o seguinte: «Tribunal Judicial de Aveiro, Serviços do Ministério Público (…) C... (…) declarou: Que o pai do menor D... é E..., casado, residente na Rua ... Aveiro. Não tem testemunhas a apresentar, pois o pai admite perfilhar o filho» (…).[F] G) Do documento aludido em E), a fls. 32, consta o seguinte: «Tribunal Judicial de Aveiro, Serviços do Ministério Público, Termo de perfilhação. (…) Aos vinte e oito de Outubro de mil novecentos e noventa e três, nesta Delegação da Procuradoria da República, onde se encontrava presente o(a) Sr.(a) Dr.(a) Z..., Digno(a) Delegado(a) do Procurador da República, comigo W..., Técnica Auxiliar Eventual, compareceu E..., filho de N... e O..., natural da freguesia de Fataunços, concelho de Vouzela, onde nasceu em 10/12/1938, estado civil casado, residente Rua ..., Aveiro, (…), o qual confirmou ser o pai biológico do(a) menor D..., nascido em 05/03/1993, (…) concelho do Porto, o(a) qual é também filho(a) de C..., estado civil solteira, o que faz para todos os efeitos legais. E assim como o declarou lhe foi tomado o presente termo de perfilhação (…). O presente auto, depois de lido, revisto e achado conforme, vai ser devidamente assinado pelo perfilhante, pelo(a) Magistrado do Ministério Público e por mim que o subscrevi. (…) Pelo perfilhante foi dito que desejava que o seu filho tivesse o nome de M..., passando a chamar-se D....»(…).[G] H) Pelo Tribunal Judicial de São Pedro do Sul, sob o n.º 355/07.6TBSTS, correm termos uns autos de inventário instaurados por óbito de E..., sendo requerente C... e cabeça de casal F... [cfr. doc. de fls. 115, cujo teor ora se reproduz]. [H] I) A presente acção judicial foi intentada no dia 23 de Maio de 2008, via fax, tendo os Réus sido citados no dia 28 de Maio do mesmo ano. [I] J) E... e a Ré C... exploraram ambos uma casa nocturna em Aveiro [1], K) De cuja existência a Autora A... nunca teve conhecimento. [2] L) O E... manteve a declaração de perfilhação em completo segredo da autora e do filho de ambos. [12] M) A Autora A... e o falecido E... residiram desde 15.03.1064 (data do casamento) até o óbito de E..., no Lugar de ... aludido em A). [13] N) Os Autores tiveram conhecimento que o E... havia perfilhado o Réu D... por meio do processo de inventário aludido em I). [14] O) O E... aceitou perfilhar o réu E... e, ao longo de anos, proporcionou-lhe alimentos e sustento. P) O falecido E... não é o pai biológico do réu D.... [21] * IV – Fundamentação de Direito A apreciação e decisão dos recursos, delimitados pelas conclusões da alegação dos RR/apelantes (art. 684º/3 e 685º-A/1 do CPC), circunscreve-se quase em exclusivo à aplicação do direito a um elenco factual que não inclua o facto resultante da resposta positiva ao quesito 21.º. Sucede, porém, como explicámos, que o facto resultante da resposta positiva ao quesito 21.º se mantém no elenco dos factos provados; uma vez que o recurso sobre a decisão de facto foi totalmente improcedente. Assim, em termos estritamente jurídicos – de aplicação do direito aos factos provados – pouco haverá a acrescentar ao que, em termos substantivos, foi exposto na decisão impugnada, que se corrobora no essencial. Começando por contextualizar a questão jurídica, começar-se-á por dizer que há que distinguir, no modo como se estabelece a paternidade, entre os filhos nascidos dentro e fora do casamento. Assim, sendo a mãe conhecida e casada, a paternidade fica automaticamente estabelecida; uma vez que a lei presume que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da mãe (pater is est quem nuptias demonstrant) – cfr. 1826.º/1 do CC. Presunção (regra “pater is est…”) que reflecte a normalidade da vida – o que resulta do comum da experiência – em que a mulher casada tem relações com o marido (e só com ele) e que são essas relações a causa da fecundação; presunção que é apenas iuris tantum, justamente por assentar numa regra de experiência comum/vulgar, podendo ocorrer circunstâncias que a infirmem e que hão-de conduzir, numa fase posterior, à impugnação da paternidade assim (pela presunção “pater is est…”) estabelecida. Por outro lado, fora do casamento, não funcionando a presunção “pater is est…”, o reconhecimento da paternidade pode ser feito de duas formas: por reconhecimento voluntário (perfilhação) ou judicial (acção de investigação de paternidade). É justamente numa destas hipóteses de estabelecimento da paternidade – mais exactamente, num caso de reconhecimento voluntário / perfilhação – que se situa o presente litígio. Perfilhação que, para o caso/litígio, não é relevante determinar se é um verdadeiro acto de vontade ou uma mera declaração de ciência; sem prejuízo de se reconhecer que o nosso código não está totalmente virado para esta última concepção (consagrando soluções mais compatíveis com uma visão voluntarista da perfilhação, em que se diz que é livre e pessoal (1849.º) e irrevogável (1858.º), embora também diga, preocupado com a verdade biológica, que a relação de filiação existe desde o nascimento do filho mas os seus efeitos só são atendíveis quando o filho é perfilhado – cfr. art. 1797.º/1 e 2 do C. Civil). Como quer que seja, a perfilhação, radicando sempre num acto voluntário do perfilhante, tem que ser o resultado duma vontade normal e sã. Daí que, quando e se tal não correr, possa ser requerida judicialmente a anulação da perfilhação ou por incapacidade do perfilhante (art. 1861.º) ou quando tiver sido viciada por erro ou coacção moral; sendo o erro relevante apenas se recair sobre circunstâncias que tenham contribuído decisivamente para o convencimento da paternidade (1860.º/1 e 2). Por outro lado, constituindo linha de orientação do actual direito da filiação – e do estabelecimento da filiação – a prevalência da filiação real sobre a filiação fictícia (ainda que tal possa conduzir a um conflito entre a verdade material e a verdade sociológica ou afectiva, ainda que a revelação da paternidade biológica seja susceptível de causar, em certos casos, escusados traumas), admite também a lei que se destrua a perfilhação por meio de acção de impugnação (1859.º do CC), destinada a demonstrar que a declaração feita no registo de perfilhação não corresponde à verdade, não sendo, assim, a exteriorização de uma verdadeira paternidade (uma vez que lhe falta a verdade biológica). Foi justamente com fundamento em tal impugnação da perfilhação (do art. 1859.º do CC) que a acção foi julgada procedente. Não podia – por razões estritamente processuais – mas foi. Efectivamente, a “causa” com os limites que os AA. lhe traçaram na PI – limites que são estabelecidos pelo binómio causa de pedir / pedido aí exposto – circunscreve[via]-se tão só à anulação da perfilhação com fundamento em coacção; o que se alega nos art. 9.º, 11.º, 14.º e 17.º da PI – em que explicitamente se sintetiza a anterior alegação dizendo que, “nos termos do disposto no art. 1860.º, 255.º e 256.º, todos do C. Civil, a referida declaração de perfilhação é anulável” – é, a nosso ver e com o devido respeito por opinião diversa, bastante elucidativo do que vimos de afirmar. É certo que nos artigos 12.º e 13.º da PI se refere “que a alegada existência de relações intimas entre a R. e o falecido não correspondia de todo à verdade”, todavia, com tal alegação não tiveram os AA. em vista invocar, para destruir a perfilhação, a inverdade biológica; tiveram tão só em vista conferir credibilidade à alegação que haviam feito com fundamento em “coacção moral”. De tal modo que, logo a seguir, no art. 14.º da PI, dizem que, “ com tal ameaça, a ré pretendeu e conseguiu produzir no falecido E... justificado receio de que a sua estabilidade familiar fosse desfeita e a sua honra viesse a ser grave e fatalmente atingida”. De tal modo que a inverdade biológica não “passou” para a BI (cfr. fls. 121 a 123), apenas se seleccionando para a matéria de facto, em linha com o alegado na PI, se mantinham ou não uma relação íntima. De tal modo que conhecido o resultado do exame determinado oficiosamente – em que se concluiu, como supra se referiu, que “o pai biológico de F...é excluído da paternidade de D...” – os AA. vieram com um articulado superveniente, em que invocaram que ficaram a perceber, pelo resultado do exame, que o 2.º R. não é filho biológico do falecido E..., o que alegaram para ser tomado em conta na causa; isto é, é a própria dedução do articulado superveniente que contém, no seu reverso, o reconhecimento de não haver sido alegada/invocada a inverdade biológica, como causa de pedir, na PI. De tal modo que, dir-se-á ainda, foi admitido o articulado superveniente e se aditou à BI um novo quesito a perguntar “o falecido E... não é o pai biológico do R. D...”; adição que significa, como é evidente, que tal facto ainda não constava da BI. Em estrito rigor processual, não será despiciendo referi-lo, o facto aduzido no articulado superveniente – cuja “novidade”, para os AA., não colocamos em crise – não era constitutivo do direito anulatório (do art. 1860.º do CC) invocado pelos AA.[11] e, por conseguinte, o articulado superveniente não devia, a nosso ver e com o devido respeito, ter sido admitido. Ao ser admitido e tendo a respectiva decisão transitado em julgado (fazendo caso julgado formal), não ficou fechada a questão (obstáculo) processual suscitada pelos limites que o binómio causa de pedir / pedido coloca a toda e qualquer causa. Tendo sido já na fase de julgamento que o exame pericial, que suscitou o articulado superveniente, foi determinado e efectuado, os AA., decerto receando a oposição dos RR. e, em face de tal oposição, o insuperável obstáculo processual colocado pelo art. 273.º do CPC[12], não ousaram sequer pedir a alteração e/ou ampliação da causa de pedir e/ou do pedido. Limitaram-se os AA. a invocar, nos art. 6.º e 7.º do articulado superveniente, que “a perfilhação efectuada pelo falecido E... em relação ao réu D... não corresponde à verdade”, acrescentando, “também[13] por este motivo, nos termos do art. 1859.º/1 do CC, deverá a perfilhação do réu D... ser anulada”, porém, nem formularam um pertinente pedido de alteração e/ou ampliação da causa de pedir e/ou do pedido, nem o consequente despacho proferido (fls. 328/9) se pronunciou e admitiu uma qualquer alteração na instância (para o que, lembra-se, não havia acordo dos RR.). E estamos a dizer tudo isto – é um pouco paradoxal, reconhece-se – apenas para concluir que tudo isto é, neste momento, irrelevante. A sentença recorrida considerou-se “em condições de conhecer de ambas as situações que podem justificar a ineficácia da perfilhação, seja pela via da sua nulidade[14] seja pela via da inverdade” e, nesta linha de raciocínio, acrescentou: “No que concerne à coacção moral é manifesto que não se fez a prova dos factos necessários para preencher os requisitos deste vício de vontade, pelo que nessa parte a acção tem de improceder, sem outros considerandos. No que respeita à inverdade da perfilhação, melhor dizendo, da paternidade adveniente da perfilhação, estão provados os factos necessários e suficientes para se julgar impugnada a perfilhação, concretamente, está provado que o falecido E... não é o pai biológico do réu D....” Ou seja, a sentença recorrida, como já se referiu, julgou a acção procedente com fundamento na impugnação da perfilhação do art. 1859.º do CC; causa de pedir que não foi explicitamente invocada na PI e que não foi aduzida em qualquer ampliação/alteração à inicialmente invocada. A nosso ver e com o devido respeito, como também já expusemos, tal não devia ter acontecido: a sentença recorrida não podia ter conhecido de tal causa de pedir, não podia ter considerado impugnada a perfilhação e, em consequência, não podia ter julgado a acção procedente com tal fundamento. Porém – é este o ponto útil a que pretendemos chegar – não foram invocadas nem fazem parte do objecto de qualquer uma das apelações as nulidades de sentença cometidas (cfr. 668.º/1/d), parte final, e e) do CPC). Não pode pois este tribunal – uma vez que as nulidades de sentença não são de conhecimento oficioso – conhecer das referidas nulidades de sentença do art. 668.º/1/d) e e) do CPC, consistentes em a sentença recorrida se haver pronunciado sobre causa de pedir de que não podia tomar conhecimento e ter conhecido dum pedido – impugnação de perfilhação – que não havia sido deduzido. Concluindo, tudo se passa, em termos processuais, como se estivéssemos perante uma sentença isenta de qualquer nulidade; tudo se passa, em termos processuais, como se ambas as causas de pedir e pedidos fizessem regularmente parte do objecto da causa, circunscrevendo-se o objecto das apelações ao escrutínio, estritamente de direito substantivo, do decidido na sentença recorrida. Isto exposto, passando então a tal substância: Foi unicamente com fundamento na impugnação da perfilhação (do art. 1859.º do CC) que a acção foi julgada procedente; também havia sido invocada a anulação por coacção[15], mas os factos a ela respeitantes não ficaram minimamente provadas, tendo, sem censuras recursivas, tal fundamento sido julgado improcedente na sentença recorrida. Cinjamo-nos e centremo-nos pois sobre a impugnação da perfilhação (art. 1859.º do CC.): O art. 1859.º do CC admite a impugnação da perfilhação a todo o tempo, por todo o interessado, com o simples fundamento de não haver coincidência entre a verdade jurídica e a verdade biológica; a legitimidade muito ampla e a imprescritibilidade da acção de impugnação constituem pois as notas mais significativas do amplo regime legal de impugnação da perfilhação. O estado civil – ter-se-á entendido – é uma questão de ordem pública que não deve estar à mercê da arbitrariedade dos cidadãos nem dependente do simples curso dos anos; por outro lado, não havendo uma qualquer indagação prévia sobre a veracidade do reconhecimento/perfilhação, para não dificultar o acto e não desanimar os interessados, diferiu-se e garantiu-se a sua veracidade através duma ampla legitimidade e da imprescritibilidade da impugnação[16]. Ter-se-á por certo ido longe demais na “sedução biologista”. Há casos em que o esclarecimento da verdade biológica não compensa os danos individuais e sociais que gera; sob o pretexto, digno, de tutelar um valor fundamental da organização do parentesco e da ordem jurídica, pode estar a satisfazer-se tão só um interesse particular/egoístico dum indivíduo (que quer, v. g., eximir-se a uma obrigação alimentar ou concorrer em exclusivo a uma herança). O regime fácil da perfilhação gera (pode gerar), escusadamente, em nome da verdade biológica, uma enorme perturbação. Impõe-se [impor-se-á] que a lei exprima, nesta matéria, um compromisso entre o respeito pela verdade biológica e o interesse do filho que se identifica com a manutenção do estatuto adquirido; efectivamente, além da verdade biológica, há a “verdade sociológica” – o facto de alguém viver no seio duma família e de ter interesse em “ficar onde está” – devendo encontrar-se o equilíbrio entre a verdade biológica e o profundo anseio de estabilidade dos direitos adquiridos, a garantia da paz jurídica e a defesa do interesse do filho[17]. Como refere Guilherme de Oliveira[18],“ (…) a garantia da necessária estabilidade em homenagem à segurança e paz jurídicas, o desejo de evitar a perturbação causada pela revelação tardia da verdade e de respeitar as situações adquiridas, e a supremacia dos interesses do filho na manutenção do estado são valores proeminentes da doutrina moderna que o nosso regime de impugnação, previsto no art. 1859.º do CC, despreza” Daí que, nesta linha de pensamento, também sugira, na aplicação do direito vigente, que se faça uso da norma geral que proíbe o abuso de direito (334.º do CC) – não deve esquecer-se, diz, que o direito vigente quis afastar os abusos manifestos a que alguma norma possa dar azo – devendo, nesses casos, o sujeito/impugnante ser tratado como se não tivesse o direito[19]. Daí que proponha, como solução preferível de lege ferenda, que a impugnação da perfilhação fique condicionada pela não existência duma realidade familiar concreta e consolidada, de modo a que a descoberta da verdade biológica não cause uma dano sério ao filho e a outros interessados[20]; e, concretizando, faz a seguinte distinção: “No caso afirmativo – de se ter consolidado, ao cabo de alguns anos, uma família – o direito de impugnar seria deixado incondicionalmente ao filho maior, num prazo seguinte à maioridade; o filho menor, a mãe, o perfilhante e aquele que se arrogasse a paternidade real teriam um direito condicionado, exercitável nos casos excepcionais em que a estabilidade do vínculo constituísse uma exigência demasiada para o titular, uma violência bem maior do que o dano que a procedência traria ao filho. No caso negativo – de não se ter consolidado uma família em torno da perfilhação – nada parece justificar a compressão da verdade biológica, sendo admissível o exercício do direito por qualquer interessado e pelo M.º P.º; mas dentro dum prazo geral de caducidade de 20 anos.”[21] Tudo isto – o que vem de dizer-se – para responder às observações dos RR/recorrentes da procedência da impugnação “arrasar a referência parental”, a “identidade do R. Paulo”, a “maternidade da R. C...”, o “passado” de ambos, etc. Ainda que por elaboração doutrinária e/ou jurisprudencial se introduzam restrições/limitações ao amplo regime legal de impugnação da perfilhação – que é admissível, insiste-se, a todo o tempo, por todo o interessado, com o simples fundamento de não haver coincidência entre a verdade jurídica e a verdade biológica – as mesmas não abarcariam o caso sub-judice. Não estamos perante uma caso em que os impugnantes possam ser tratados como se não tivessem o direito de impugnar a perfilhação; nada há, em termos factuais, que nos permita afirmar que estamos perante uma impugnação que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes. Não estamos perante um caso de que se possa dizer que a verdade biológica – ao destruir a perfilhação – comprime por completo a verdade sociológica e afectiva; não estamos perante um caso em que uma solução de compromisso e equilibrada aponte no sentido de impedir a impugnação da perfilhação; nada há, em termos factuais, que nos permita afirmar que alguma vez chegou a existir – quanto mais a consolidar-se – uma família em torno da perfilhação; nada há que justifique a compressão da verdade biológica, sendo assim inteiramente admissível o exercício do direito de impugnação por qualquer interessado dentro do prazo de 20 anos, como é o caso. Enfim, representando, só por si, a resposta ao quesito 21.º o preenchimento do art. 1859.º/1 do CC – a prova da não haver coincidência entre a verdade jurídica e a verdade biológica, a prova da perfilhação não corresponder à verdade – não se podia deixar de considerar verificado tal fundamento “destrutivo” da perfilhação[22]; o que, em síntese, significa a improcedência de ambos os recursos. * V - Decisão Nos termos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida. Custas, em ambas as instâncias, pelos RR/apelantes. * Barateiro Martins (Relator) Arlindo Oliveira Emídio Santos [1] Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2000, pág. 154 e António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 1997, pág. 254. [2] A circunstância, como referem as testemunhas, de terem sido “namorados” ou “amantes” não encerra a solução definitiva de tal questão-de-facto. [3] Isto é, que a paternidade se presume “quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal da concepção”. [4] A testemunha G...diz, no final do seu depoimento, que R. C... “era uma senhora de alterne, de trabalhar em alterne, de trabalhar em boites”. [5] Presunções naturais a que os RR/recorrentes apelam repetidamente. [6] Sem necessidade – para haver dúvidas e reservas sérias sobre a exclusividade do parceiro sexual – que se provem concretos relacionamentos com outros parceiros. [7] E não se pronuncia – é bem evidente – por não ter tido acesso aos marcadores genéticos do falecido E.... [8] Significado este que está claramente expresso e adoptado no segundo parágrafo da transcrição da decisão de facto a quo; razão por que não se alcança a repetida “acusação”, constante da alegação dos RR/recorrentes, da resposta ao quesito 21.º e respectiva motivação não aceitarem o resultado da perícia. [9] Razão pela qual não será “justa” a “acusação”, dos RR/recorrentes, da decisão de facto afectar a dignidade da R. C...; para além da posição dos RR/recorrentes não afectar menos, como acabámos de explicar, a dignidade da A. A..., dá-se o caso de, como as coisas estão, com o resultado a que chegou o exame pericial, ser impossível uma decisão a tal propósito neutral. [10] De quem ninguém “falou” ao longo do julgamento, embora esta seja uma ilação/conversa necessária, em face do resultado do exame, para quem se decida por sustentar, como é o caso dos RR/recorrentes, a relação biológica entre o R. D... e o falecido E.... [11] E era apenas este direito anulatório (decorrente de coacção), insiste-se, que havia sido invocado na PI. Aliás, o próprio despacho de fls. 328/9 inicia-se a dizer “a presente acção tem por objecto a anulação da perfilhação com fundamento em coacção”. [12] Segundo o qual, na falta de acordo, a causa de pedir e o pedido só podem ser alterados ou ampliados na réplica (sem prejuízo do disposto, quando ao pedido, na parte final do 273.º/2). [13] Sublinhado nosso; com o que se pretende chamar a atenção que os próprios AA. exprimem/admitem estar a invocar algo que até ali não haviam invocado. [14] Trata-se certamente de lapso; queria por certo dizer-se “anulação”. [15] Enfim, cumprindo o que acabámos de referir, passámos a raciocinar se e como, em termos processuais, ambas as causas de pedir e pedidos fizessem regularmente parte do objecto da causa. [16] A impugnação aberta a todos os interessados e a todo o tempo é, por um lado, a contrapartida da perfilhação facilitada e, por outro lado, uma manifestação de respeito pela verdade biológica do parentesco. [17] Se o direito faz pouco para evitar perfilhações de complacência, instigadas pelas mais diversas razões, tem também que tutelar a família real que haja assentado e perdurado nesse compromisso. [18] Critério Jurídico da Paternidade, pág. 438. [19] Embora reconheça, em face dos termos amplos em que o art. 1859.º admite a impugnação da perfilhação, que sempre estará reservada, no caso, uma utilização estreita a tal “válvula de escape” do sistema. [20] Trata-se, afinal, segundo também refere, de organizar um regime aproximado daquele que vale para a impugnação de paternidade do marido – tão aproximado quanto o direito, hoje em dia, assemelha a família baseada no casamento àquela que não se funda no matrimónio. [21] Critério Jurídico da Paternidade, pág. 438. [22] A dupla circunstância de, através do articulado superveniente, se haver logrado incluir na BI um facto como o constante do quesito 21.º e de, depois, não se haver suscitado qualquer nulidade de sentença, permitiu algo bastante invulgar: a procedência duma acção – procedência em termos úteis, em termos de “destruição” da perfilhação – a partir duma causa de pedir e dum pedido diferentes dos devida e regularmente aduzidos.