I - Por se incluir no âmbito da matéria de facto não pode o Supremo sindicar a paternidade biológica fixada pelas instâncias. II - O Assento de 21/6/1983 deve ser interpretado restritivamente no sentido de que a exclusividade de relações sexuais entre o réu e a mãe do(a) menor durante o período legal de concepção deste(a) só é exigível quando não for possível fazer a prova directa do vínculo biológico, por meios laboratoriais. III - A fiabilidade decorrente do cada vez maior grau de segurança e de certeza científica dos exames laboratoriais sobrelevam a demais prova na busca pelo julgador, através da sua livre convicção, da chamada verdade judiciária.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: O Ministério Público pede, na presente acção, que, para todos os efeitos legais, seja declarado que A é filha do réu B e, consequentemente, se proceda ao competente averbamento no assento de nascimento nº667 do Livro Diário nº14686, ano de 1997, da Conservatória do Registo Civil de Setúbal, no tocante à paternidade, à respectiva avoenga e ao nome da menor, alegando, em síntese, o seguinte: -- no dia 16 de Maio de 1997 nasceu a menor A, registada apenas como filha de C; -- a C iniciou namoro com o réu em Fevereiro de 1996, mantendo com ele relações sexuais, nomeadamente entre 10/6/96 e 7/11/96, período correspondente aos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da menor, vivendo maritalmente, como se casados fossem; -- durante o período que durou o relacionamento amoroso entre a mãe da menor e o réu aquela não teve relações de sexo com homem algum que não o B; -- pessoas que conhecem a mãe da menor e o réu e souberam das suas vidas, são unânimes em afirmar que aquela é filha do mesmo. O réu contestou, alegando, em suma, que todas as vezes que manteve relações sexuais com a mãe da menor o fez antes do período correspondente aos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento, isto é, entre 10 de Julho de 1996 e 7 de Novembro de 1996, nunca tendo vivido maritalmente com aquela, mantendo a mesma relações sexuais, em tal período, com outros indivíduos. Realizado o julgamento, a acção foi julgada totalmente procedente, sentença que veio a ser confirmada pela Relação de Évora, negando provimento à apelação dela interposta pelo réu. Este, continuando inconformado, pede agora revista do acórdão da Relação, formulando as seguintes conclusões: 1. A mãe da menor era casada quando esta foi concebida; 2. Nos termos do artigo 1826, nº1 do Código Civil presume-se pai o marido da mãe; 3. Durante o período legal de concepção não ficou provada a exclusividade de relações sexuais entre a mãe da menor e o recorrido; 4. Não foram feitos exames hematológicos ao marido da mãe; 5. Os exames hematológicos realizados ao recorrente concluem por um grau de paternidade de 99,9999993% «paternidade praticamente provada», o que é diferente de 100% «paternidade provada»; 6. Em nome da verdade biológica e face à existência de sérias dúvidas sobre a paternidade do recorrente, deverá a sentença ser anulada e D, marido da mãe da menor, ser submetido a perícia médica de forma a confirmar-se ou não as declarações de cessação da presunção de paternidade da posse do estado de relativamente a ambos os cônjuges, feitas pela mãe da menor nos termos do artigo 1832, nº2 do CC. 7. Caso esse Alto Tribunal entenda que não há lugar a anulação da sentença recorrida, deverá o acórdão recorrido ser revogado e o recorrido absolvido do pedido por falta de provas. O Digno Representante do Mº Pº contra-alegou no sentido da improcedência do recurso. Corridos os vistos, cumpre decidir. Para a solução do recurso relevam os seguintes factos provados: 1º A nasceu no dia 6/5/1997, na freguesia de S. Sebastião, concelho de Setúbal, tendo sido registada como filha de C e com a paternidade omissa. 2º Em Fevereiro de 1996 o réu e a mãe da menor iniciaram namoro. 3º Durante o namoro o réu e a mãe da menor mantiveram várias vezes relações sexuais de cópula completa. 4º Essas relações sexuais ocorreram nomeadamente entre 10/6/1996 e 7/11/1996. 5º Do assento de nascimento da menor A, junto a fls.7, consta que a sua mãe, C, era casada e ainda o averbamento de que a menor não beneficiou da posse de estado em relação à mãe e ao marido desta. 6º Foi realizado exame pericial de investigação de paternidade no Instituto Nacional de Medicina Legal, concluindo-se no mesmo que a probabilidade de paternidade do réu relativa à menor A é de 99,9999993%, correspondente a paternidade «praticamente provada». As instâncias deram como provada a paternidade biológica do réu, ora recorrente, relativamente à menor A. Vem sendo pacificamente acolhida pela nossa jurisprudência a doutrina de que, estando provada a coabitação sexual entre a mãe do(a) menor e o réu indigitado pai, se o exame pericial feito a este concluir por um resultado a que corresponda «paternidade praticamente provada», deve a acção de investigação, sem mais, ser julgada procedente. Verificados que estão estes pressupostos no caso presente, poderíamos ficar por aqui e limitarmo-nos a confirmar o acórdão recorrido, atenta a insindicabilidade, por parte do Supremo, da paternidade biológica dada com assente pelas instâncias, uma vez que se trata de matéria de facto, cuja fixação lhes cabe em exclusivo - cfr. nº2 do artigo 722 do Código de Processo Civil e acórdão do STJ, de 27/11/2003, Revista nº333703-2ª Secção, Sumários, nº75, página 62. Não deixaremos, porém, de tecer algumas breves considerações sobre a argumentação constante das conclusões acima transcritas. Insiste o recorrente na presunção estabelecida no artigo 1826, nº1 do Código Civil, segundo a qual se presume que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da mãe. É uma presunção juris tantum, que -- para além de ter cessado, nos termos do nº2 do artigo 1832 do Código Civil, com a declaração da mãe da menor, averbada ao registo de nascimento desta, no sentido de que a menor, aquando do seu nascimento, não beneficiou da posse de estado relativamente àquela e ao respectivo marido - se encontra completamente ilidida com a paternidade biológica indiscutivelmente atribuída ao recorrente. Alega também o recorrente que não ficou provada a exclusividade das relações sexuais entre ele e a mãe do menor. É verdade. Mas não é menos certo também que o autor dispôs de um meio de prova científico que permitiu fazer a prova directa do vínculo biológico entre o réu e a menor. Ora, conforme tem vindo a ser entendido na esteira de eminentes doutrinadores, como o Professor Guilherme de Oliveira, o Assento de 21/6/1983, onde se exige a alegação e a prova pelo autor dessa exclusividade de relacionamento sexual, deve ser objecto de uma interpretação restritiva no sentido de o referido pressuposto só ser exigível nos casos em que não é possível fazer a prova directa do vínculo biológico por meios laboratoriais - cfr. RLJ nº128, páginas 183-186, donde, pela sua magistral clareza, se justifica plenamente transcrever o seguinte trecho: «Se se aplicar, pura e simplesmente, a letra do Assento, a acção tem de improceder sempre que o autor não consiga provar a exclusividade, embora ele disponha de provas científicas que afirmam a paternidade. Este resultado, além de injusto, viola o artigo 1801º do Código Civil, que considera admissíveis todos os meios de prova cientificamente comprovados. Mas é óbvio que os autores do Assento não quiseram impor que a prova da exclusividade fosse o único meio de demonstrar o vínculo biológico; não quiseram afastar o princípio expresso no artigo 1801º, e logo no âmbito das investigações de paternidade, onde ela tem a maior aplicação. Apenas entendiam que, em 1983, a prova da exclusividade era o único meio disponível, em Portugal. Nos últimos anos, os laboratórios portugueses praticam exames que podem concluir por uma afirmação de paternidade. Não só os exames hematológicos a que se referiam os autores do Assento - exames que usaram técnicas desenvolvidas pelas transplantações - mas também exames que usam técnicas que incidem sobre o ADN, desenvolvidos pela genética molecular.». Alega ainda o recorrente que os exames hematológicos que lhe foram feitos concluem por uma «paternidade praticamente provada», o que é diferente de «paternidade provada» (100%). Certo. Mas também a verdade judiciária nunca se pretende absoluta, sendo sempre a resultante da livre convicção do julgador, trabalhada, com o seu saber e a sua experiência de vida, sobre o material probatório que lhe é carreado, sendo óbvio que a verdade judiciária se aproximará tanto mais da verdade real quanto maior for a fidedignidade dos meios de prova utilizados. Por isso que, nas palavras do Prof. Guilherme de Oliveira, ibidem, página 186: «Pode continuar a dizer-se que a afirmação da paternidade ainda se funda numa probabilidade e não numa certeza; mas trata-se de uma probabilidade muito mais alta do que aquela que os tribunais usam, quotidianamente, para fundamentar todas as suas convicções e as suas sentenças.». Finalmente, «em nome da verdade biológica e face à existência de sérias dúvidas» sobre a sua paternidade, pede o recorrente que se anule a decisão para que o marido da mãe da menor seja submetido a perícia médica, ou, se assim não for entendido, que se revogue o acórdão no sentido da sua absolvição. Extirpada da sua natural carga subjectiva, o que temos a dizer sobre esta conclusão é que, como refere o acórdão sob recurso, o exame à pessoa do marido da mãe do menor deveria ter sido requerido no momento processual próprio e nunca nesta fase recursiva, não se vislumbrando - face a tudo quanto se acaba de expor - a necessidade (mais do que isso, a possibilidade) de proceder, para tal fim, à ampliação da matéria de facto. DECISÃOPelo exposto nega-se a revista, com custas pelo recorrente. Lisboa, 15 de Março de 2005 Ferreira Girão, Luís Fonseca, Lucas Coelho.