Apura logo

Acórdão STJ de 2005-03-15

04B4798

TribunalSupremo Tribunal de Justiça
Processo04B4798
Nº ConvencionalJSTJ000
RelatorFerreira Girão
DescritoresPaternidade Biológica, Matéria de Facto, Poderes do Supremo Tribunal de Justiça, Exclusividade de Relações Sexuais
Nº do DocumentoSJ200503150047982
Data do Acordão2005-03-15
VotaçãoUnanimidade
Tribunal RecursoT REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso415/04
Data2004-07-08
Privacidade1
Meio ProcessualREVISTA.
DecisãoNegada a Revista.

Sumário

I - Por se incluir no âmbito da matéria de facto não pode o Supremo sindicar a paternidade biológica fixada pelas instâncias. II - O Assento de 21/6/1983 deve ser interpretado restritivamente no sentido de que a exclusividade de relações sexuais entre o réu e a mãe do(a) menor durante o período legal de concepção deste(a) só é exigível quando não for possível fazer a prova directa do vínculo biológico, por meios laboratoriais. III - A fiabilidade decorrente do cada vez maior grau de segurança e de certeza científica dos exames laboratoriais sobrelevam a demais prova na busca pelo julgador, através da sua livre convicção, da chamada verdade judiciária.


Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: O Ministério Público pede, na presente acção, que, para todos os efeitos legais, seja declarado que A é filha do réu B e, consequentemente, se proceda ao competente averbamento no assento de nascimento nº667 do Livro Diário nº14686, ano de 1997, da Conservatória do Registo Civil de Setúbal, no tocante à paternidade, à respectiva avoenga e ao nome da menor, alegando, em síntese, o seguinte: -- no dia 16 de Maio de 1997 nasceu a menor A, registada apenas como filha de C; -- a C iniciou namoro com o réu em Fevereiro de 1996, mantendo com ele relações sexuais, nomeadamente entre 10/6/96 e 7/11/96, período correspondente aos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da menor, vivendo maritalmente, como se casados fossem; -- durante o período que durou o relacionamento amoroso entre a mãe da menor e o réu aquela não teve relações de sexo com homem algum que não o B; -- pessoas que conhecem a mãe da menor e o réu e souberam das suas vidas, são unânimes em afirmar que aquela é filha do mesmo. O réu contestou, alegando, em suma, que todas as vezes que manteve relações sexuais com a mãe da menor o fez antes do período correspondente aos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento, isto é, entre 10 de Julho de 1996 e 7 de Novembro de 1996, nunca tendo vivido maritalmente com aquela, mantendo a mesma relações sexuais, em tal período, com outros indivíduos. Realizado o julgamento, a acção foi julgada totalmente procedente, sentença que veio a ser confirmada pela Relação de Évora, negando provimento à apelação dela interposta pelo réu. Este, continuando inconformado, pede agora revista do acórdão da Relação, formulando as seguintes conclusões: 1. A mãe da menor era casada quando esta foi concebida; 2. Nos termos do artigo 1826, nº1 do Código Civil presume-se pai o marido da mãe; 3. Durante o período legal de concepção não ficou provada a exclusividade de relações sexuais entre a mãe da menor e o recorrido; 4. Não foram feitos exames hematológicos ao marido da mãe; 5. Os exames hematológicos realizados ao recorrente concluem por um grau de paternidade de 99,9999993% «paternidade praticamente provada», o que é diferente de 100% «paternidade provada»; 6. Em nome da verdade biológica e face à existência de sérias dúvidas sobre a paternidade do recorrente, deverá a sentença ser anulada e D, marido da mãe da menor, ser submetido a perícia médica de forma a confirmar-se ou não as declarações de cessação da presunção de paternidade da posse do estado de relativamente a ambos os cônjuges, feitas pela mãe da menor nos termos do artigo 1832, nº2 do CC. 7. Caso esse Alto Tribunal entenda que não há lugar a anulação da sentença recorrida, deverá o acórdão recorrido ser revogado e o recorrido absolvido do pedido por falta de provas. O Digno Representante do Mº Pº contra-alegou no sentido da improcedência do recurso. Corridos os vistos, cumpre decidir. Para a solução do recurso relevam os seguintes factos provados: 1º A nasceu no dia 6/5/1997, na freguesia de S. Sebastião, concelho de Setúbal, tendo sido registada como filha de C e com a paternidade omissa. 2º Em Fevereiro de 1996 o réu e a mãe da menor iniciaram namoro. 3º Durante o namoro o réu e a mãe da menor mantiveram várias vezes relações sexuais de cópula completa. 4º Essas relações sexuais ocorreram nomeadamente entre 10/6/1996 e 7/11/1996. 5º Do assento de nascimento da menor A, junto a fls.7, consta que a sua mãe, C, era casada e ainda o averbamento de que a menor não beneficiou da posse de estado em relação à mãe e ao marido desta. 6º Foi realizado exame pericial de investigação de paternidade no Instituto Nacional de Medicina Legal, concluindo-se no mesmo que a probabilidade de paternidade do réu relativa à menor A é de 99,9999993%, correspondente a paternidade «praticamente provada». As instâncias deram como provada a paternidade biológica do réu, ora recorrente, relativamente à menor A. Vem sendo pacificamente acolhida pela nossa jurisprudência a doutrina de que, estando provada a coabitação sexual entre a mãe do(a) menor e o réu indigitado pai, se o exame pericial feito a este concluir por um resultado a que corresponda «paternidade praticamente provada», deve a acção de investigação, sem mais, ser julgada procedente. Verificados que estão estes pressupostos no caso presente, poderíamos ficar por aqui e limitarmo-nos a confirmar o acórdão recorrido, atenta a insindicabilidade, por parte do Supremo, da paternidade biológica dada com assente pelas instâncias, uma vez que se trata de matéria de facto, cuja fixação lhes cabe em exclusivo - cfr. nº2 do artigo 722 do Código de Processo Civil e acórdão do STJ, de 27/11/2003, Revista nº333703-2ª Secção, Sumários, nº75, página 62. Não deixaremos, porém, de tecer algumas breves considerações sobre a argumentação constante das conclusões acima transcritas. Insiste o recorrente na presunção estabelecida no artigo 1826, nº1 do Código Civil, segundo a qual se presume que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da mãe. É uma presunção juris tantum, que -- para além de ter cessado, nos termos do nº2 do artigo 1832 do Código Civil, com a declaração da mãe da menor, averbada ao registo de nascimento desta, no sentido de que a menor, aquando do seu nascimento, não beneficiou da posse de estado relativamente àquela e ao respectivo marido - se encontra completamente ilidida com a paternidade biológica indiscutivelmente atribuída ao recorrente. Alega também o recorrente que não ficou provada a exclusividade das relações sexuais entre ele e a mãe do menor. É verdade. Mas não é menos certo também que o autor dispôs de um meio de prova científico que permitiu fazer a prova directa do vínculo biológico entre o réu e a menor. Ora, conforme tem vindo a ser entendido na esteira de eminentes doutrinadores, como o Professor Guilherme de Oliveira, o Assento de 21/6/1983, onde se exige a alegação e a prova pelo autor dessa exclusividade de relacionamento sexual, deve ser objecto de uma interpretação restritiva no sentido de o referido pressuposto só ser exigível nos casos em que não é possível fazer a prova directa do vínculo biológico por meios laboratoriais - cfr. RLJ nº128, páginas 183-186, donde, pela sua magistral clareza, se justifica plenamente transcrever o seguinte trecho: «Se se aplicar, pura e simplesmente, a letra do Assento, a acção tem de improceder sempre que o autor não consiga provar a exclusividade, embora ele disponha de provas científicas que afirmam a paternidade. Este resultado, além de injusto, viola o artigo 1801º do Código Civil, que considera admissíveis todos os meios de prova cientificamente comprovados. Mas é óbvio que os autores do Assento não quiseram impor que a prova da exclusividade fosse o único meio de demonstrar o vínculo biológico; não quiseram afastar o princípio expresso no artigo 1801º, e logo no âmbito das investigações de paternidade, onde ela tem a maior aplicação. Apenas entendiam que, em 1983, a prova da exclusividade era o único meio disponível, em Portugal. Nos últimos anos, os laboratórios portugueses praticam exames que podem concluir por uma afirmação de paternidade. Não só os exames hematológicos a que se referiam os autores do Assento - exames que usaram técnicas desenvolvidas pelas transplantações - mas também exames que usam técnicas que incidem sobre o ADN, desenvolvidos pela genética molecular.». Alega ainda o recorrente que os exames hematológicos que lhe foram feitos concluem por uma «paternidade praticamente provada», o que é diferente de «paternidade provada» (100%). Certo. Mas também a verdade judiciária nunca se pretende absoluta, sendo sempre a resultante da livre convicção do julgador, trabalhada, com o seu saber e a sua experiência de vida, sobre o material probatório que lhe é carreado, sendo óbvio que a verdade judiciária se aproximará tanto mais da verdade real quanto maior for a fidedignidade dos meios de prova utilizados. Por isso que, nas palavras do Prof. Guilherme de Oliveira, ibidem, página 186: «Pode continuar a dizer-se que a afirmação da paternidade ainda se funda numa probabilidade e não numa certeza; mas trata-se de uma probabilidade muito mais alta do que aquela que os tribunais usam, quotidianamente, para fundamentar todas as suas convicções e as suas sentenças.». Finalmente, «em nome da verdade biológica e face à existência de sérias dúvidas» sobre a sua paternidade, pede o recorrente que se anule a decisão para que o marido da mãe da menor seja submetido a perícia médica, ou, se assim não for entendido, que se revogue o acórdão no sentido da sua absolvição. Extirpada da sua natural carga subjectiva, o que temos a dizer sobre esta conclusão é que, como refere o acórdão sob recurso, o exame à pessoa do marido da mãe do menor deveria ter sido requerido no momento processual próprio e nunca nesta fase recursiva, não se vislumbrando - face a tudo quanto se acaba de expor - a necessidade (mais do que isso, a possibilidade) de proceder, para tal fim, à ampliação da matéria de facto. DECISÃOPelo exposto nega-se a revista, com custas pelo recorrente. Lisboa, 15 de Março de 2005 Ferreira Girão, Luís Fonseca, Lucas Coelho.

© 2024 Apura. Todos os direitos reservados.
Termos e Condições
Política de Privacidade