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Acórdão TCA Sul de 2020-01-30

919/17.0BELSB

TribunalTribunal Central Administrativo Sul
Processo919/17.0BELSB
SecçãoCA
Data do Acordão2020-01-30
RelatorPaulo Pereira Gouveia
DescritoresInteresse Processual, Intimação para Proteção de Direitos Fundamentais, Deveres de Respeitar e de Proteger os Direitos Fundamentais
VotaçãoUnanimidade

Sumário

I - O interesse em agir ou interesse processual é -apenas - a necessidade objetiva de uma tutela jurisdicional. É, simplesmente, a indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para satisfazer a sua pretensão. Refere-se ao próprio processo e não ao conteúdo material da pretensão. II - A atividade de administração pública deve respeitar e proteger os direitos dos administrados, as diferentes dimensões dos direitos (cf. artigo 266º/1 e artigos 17º e 18º/1/2 da Constituição). Isto implica: (i) o respeito pelo status negativus do particular e consequente proteção contra ingerências lesivas pela administração pública, bem como (ii) a existência de garantias procedimentais que substancializem a posição de sujeito dos particulares. III - O dever estatal de respeito pelo direito fundamental pode implicar também uma atuação positiva de remoção de um impedimento, especialmente se for um impedimento ou obstáculo criado pelo agir administrativo ativo ou omissivo. IV – Cabe no âmbito de tais deveres estatais de respeito e proteção a prevenção jusadministrativa de uma conduta jusprocedimental do S.N.S. que, segundo as autoras, impulsiona e possibilitará, no modo como faz e fará a contratação pública de certo medicamento patenteado, a violação geral do cit. direito fundamental análogo aos direitos-liberdades-e-garantias que é a propriedade industrial (propriedade esta que não está em causa nesta lide).


Texto Integral

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul I – RELATÓRIO N............ com sede em L……. 35, 40… B……., Suíça e N............ - P..........., S.A. com sede na Avenida Professor Doutor C……, n.º …-E, T……, 2740 – …. P……., Oeiras, intentaram no Tribunal Administrativo de Círculo de LISBOA processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias contra MINISTÉRIO DA SAÚDE e Outros, entretanto, chamados a juízo. A pretensão formulada perante o tribunal a quo foi a seguinte: Intimação do Ministério da Saúde para aprovar todas as normas e praticar todos os atos e condutas necessários (incluindo, mas sem limitação, a emissão de orientações, circulares, guias práticos e diretrizes técnicas), dirigidas a quaisquer autoridades do Ministério da Saúde, obrigando essas entidades a: 1- garantir, na sua atuação, que, quando esteja em causa a prescrição da substância ativa IMATINIB, o sistema de prescrição eletrónico permita e exija que o prescritor identifique a indicação terapêutica para a qual o IMATINIB será utilizado, e que o prescritor tem a opção de assinalar que o IMATINIB será usado para o tratamento de GIST, e de receitar Glivec; 2- garantir que as farmácias hospitalares, quando confrontadas com uma prescrição de IMATINIB para o uso no tratamento de GIST, disponibilizaram Glivec para esse tratamento; 3- criar condições, no sistema de contratação pública, que permitam a aquisição de IMATINIB dividido por indicações terapêuticas, com separação entre medicamentos adquiridos para tratamento de GIST e medicamentos adquiridos para tratamento de outras indicações que não GIST, nomeadamente: instruindo Hospitais e outras instituições do SNS para estimar as quantidades de IMATINIB a usar no tratamento de GIST; instruindo a SPMS, Hospitais e outras instituições do SNS a lançar procedimentos de contratação pública para a aquisição de quantidades de IMATINIB estimadas para o tratamento de GIST em procedimentos ou lotes separados, cujas especificações técnicas apenas admitam medicamentos aprovados para uso no tratamento de GIST. Após os articulados, o tribunal a quo decidiu absolver da instância os demandados por falta de interesse em agir das autoras. * Inconformadas, as AUTORAS interpuseram o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação o seguinte extenso quadro conclusivo: A. O recurso vem interposto da decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa quanto a intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias requerida pela N…… contra o Ministério da Saúde. A intimação foi requerida para proteger direitos de propriedade industrial, especificamente, uma patente conhecida como de "segundo uso terapêutico”, que incide sobre um medicamento - o imatinib para uso no tratamento de Tumores Estremais Gastrointestinais ("GIST"). B. O IMATINIB tem várias indicações terapêuticas aprovadas, mas está primeiramente indicado para o tratamento de duas doenças: leucemia mieloide crónica ("LMC") e tumores de estrema gastrointestinal ("GIST"). A N......... é cotitular da Patente nº ….., intitulada "Tratamento de Tumores Estremais Gastrointestinais" (a "Patente GIST"), que protege, entre outros, o uso de IMATINIB no tratamento de GIST (as "Indicações GIST"). A N......... conferiu à N....... F....... uma sublicença para a exploração da Patente GIST em Portugal. A N....... comercializa o medicamento IMATINIB sob a marca comercial "Glivec". C. Por força da proteção conferida pela Patente GIST, e a menos que os titulares da patente o consintam, só o Glivec pode ser oferecido, e em geral explorado, para tratamento de GIST em território português, sem violar a Patente GIST. A comercialização, designadamente, de medicamentos genéricos de IMATINIB para uso no tratamento de GIST infringe a referida patente. D. Os medicamentos imatinib são prescritos e dispensados apenas em Hospitais - não se compram, nem vendem, ao público em farmácias -, e, por esta razão, o IMATINIB é adquirido pelos Hospitais do Serviço Nacional de Saúde ("SNS") através de procedimentos de contratação pública. E. O sistema de prescrição, e o sistema de compras públicas de medicamentos, estão organizados em função da substância ativa. Em regra, os Hospitais e Serviços do SNS, e a SPMS, lançam procedimentos de contratação pública, e compram medicamentos, por substância ativa. E os médicos prescrevem medicamentos por substância ativa. F. Quando o objeto da proteção da patente é o uso de um medicamento para tratamento de uma doença específica - como é o caso da Patente GIST -, o sistema atualmente implementado é desadequado para proteger a patente, ou para criar condições que permitam evitar a sua infração. Nesse caso, os médicos prescrevem - por exemplo - IMATINIB, e as entidades adjudicantes lançam procedimentos de aquisição de IMATINIB, independentemente da sua indicação terapêutica. Ao apresentar proposta a esses procedimentos, os fornecedores de genéricos de IMATINIB vão, necessariamente, oferecer, vender, e colocar IMATINIB no mercado para tratamento de GIST, assim infringindo a Patente GIST. G. Esta infração é uma consequência direta da forma como os sistemas de compras públicas e de prescrição foram concebidos e são implementados. Para criar condições para proteger a patente, é imperativo que as compras de imatinib efetuadas pelo SNS (seu único comprador) sejam divididas em função da indicação terapêutica em que o imatinib será usado. Sem esta separação, a Patente GIST não pode ser protegida (apenas) por sentenças proferidas por Tribunais Arbitrais, ou mesmo acatada por fornecedores de medicamentos genéricos de imatinib. H. A N....... requereu a presente intimação, essencialmente, para tornar possível esta separação entre imatinib para uso no tratamento de GIST (indicações protegidas pela Patente GIST), e imatinib para uso de outras indicações, não protegidas - tanto na prescrição, como na compra do medicamento imatinib por parte do SNS. I. Quando a N....... requereu a intimação, a SPMS estava na iminência de adjudicar um Acordo Quadro para aquisição centralizada de - entre outras substâncias - IMATINIB (o CP 2017/..... 5). Além disso, os Hospitais do SNS estavam a lançar procedimentos para aquisição de IMATINIB sem separação entre indicações protegidas pela Patente GIST e indicações não-protegidas, e a adjudicá-los a genéricos de IMATINIB. Essas eram as ameaças que justificavam o recurso à intimação. Entretanto, o estado de coisas à data do requerimento inicial de intimação alterou­ se, mas o mesmo risco iminente de violação mantém-se. J. O Acordo Quadro CP 2017/..... foi suspenso e depois revogado nos lotes respeitantes ao fornecimento de imatinib (o que foi comunicado aos autos, ainda em primeira instância). No momento em que a intimação foi decidida, a SPMS estava já a lançar outro procedimento pré­ contratual de adjudicação de um Acordo Quadro que tem por objeto o fornecimento de Medicamentos do foro oncológico e imunomoduladores, entre eles o imatinib, às Instituições e Serviços do SNS (o Acordo Quadro CP 2017/..... ). K. O CP 2017/..... é adjudicado em lotes, divididos apenas por substância ativa - isto é, o imatinib não será, tanto quanto se sabe, aí contratado e adquirido em função da indicação terapêutica em que será utilizado. O prazo para apresentação de propostas definido era o dia 3 de janeiro de 2018. L. Chamado a decidir neste contexto, o Tribunal a quo entendeu, essencialmente, que: A questão seria emergente da Invocação de direitos de propriedade Industrial pelas autoras perante empresas terceiras (...)”; e O Tribunal Administrativo seria incompetente para aferir a violação do direito fundamental de propriedade industrial, pois o artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, dispõe que "os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade Industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência na aceção da alínea ii) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 116/2006, de 30 de Agosto, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de proteção, ficam sujeitos a arbitragem necessária, institucionalizada ou não institucionalizada"; "Não estando demonstrada a violação do invocado direito de propriedade industrial, não podendo este tribunal conhecer dessa invocada violação, não está demonstrada a indispensabilidade de as autoras recorrerem ao tribunal administrativo por forma a intimar o Ministério da Saúde a atuar de determinada maneira em matéria de prescrição de substâncias e de organização do sistema de contratação pública. O interesse em agir consiste na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para satisfação da sua pretensão. Pode dizer-se que o autor só tem interesse em agir quando não dispõe de quaisquer outros meios (extrajudiciais) de realizar aquela pretensão. E isso, acontece, ora porque tais meios, de facto, não existem, ora porque, existindo, o autor os utilizou sem sucesso. " (página 10); Não estaria nos autos "demonstrada a necessidade da presente ação, por não estar demonstrada quer a violação dos direitos de propriedade industria/, quer que tais direitos não puderam ser plenamente prosseguidos com as ações arbitrais propostas, que as autoras referem que propuseram) e com eventuais processos cautelares instrumentais de tais ações", declarando a final a falta de interesse em agir da N....... e absolvendo as Demandadas da instância. M. Sem prejuízo de a N....... criticar a decisão mesmo com o suporte factual em que foi proferida, os factos relevantes para o processo tiveram desenvolvimentos importantes desde a data em que a sentença foi emitida. Apesar de o Tribunal a quo não ter apreciado o mérito da ação, o Tribunal de recurso pode fazê-lo no mesmo acórdão em que revoga a decisão recorrida (cf. artigo 149, nº 3 do CPTA). Se este alto Tribunal pretender proferir uma decisão de mérito, deve então atender, na decisão do recurso, aos factos supervenientes à decisão recorrida, como permite e ordena o artigo 611 do Código de Processo Civil. N. Depois de a decisão ter sido proferida, e enquanto corria o prazo de recurso, a SPMS decidiu suspender o procedimento de adjudicação do Acordo Quadro CP 2017/..... . Espera-se, de todo o modo, que o Acordo Quadro seja retomado, e o termo do prazo para apresentação de propostas seja marcado em breve. E espera-se, portanto, que o Acordo Quadro seja adjudicado também em breve, e em breve se inicie a execução de contratos ao seu abrigo. O. A 21 de dezembro de 2017, enquanto corria o prazo de recurso, a N....... F....... recebeu da SPMS, um convite para apresentação de proposta ao abrigo do Acordo Quadro 2015/..... - Medicamentos do Foro Oncológico. As quantidades de imatinib a adjudicar através deste procedimento correspondem à terapêutica GIST. A SPMS age, nesse procedimento, em nome e representação de alguns Hospitais do SNS. O prazo de apresentação de propostas nesse procedimento terminou às 18h00 de dia 22 de dezembro, e a N....... F....... apresentou - sozinha - proposta nesse prazo. O contrato foi adjudicado à N....... F....... no passado dia 28 de dezembro. P. Sem qualquer desprimor para os esforços do Ministério e da SPMS, este contrato não será suficiente para satisfazer a pretensão da N......., uma vez que: - O procedimento de adjudicação do contrato de fornecimento de imatinib que corresponde à terapêutica GIST foi lançado ao abrigo do Acordo Quadro 2015/..... , que precede o Acordo Quadro CP 2017/..... agora suspenso. No 2015/..... , a N....... era a única fornecedora de imatinib. O Procedimento CP 2017/..... incluirá decerto, como co­ contratantes, fornecedores de genéricos de imatinib que, entretanto, entraram no mercado. À data em que o recurso é interposto, não é possível determinar que um contrato semelhante ao agora adjudicado - de fornecimento de imatinib para tratamento de GIST - poderá ser adjudicado ao abrigo do novo Acordo Quadro CP 2017/..... ; - O contrato tem por objeto o fornecimento de imatinib para apenas parte dos hospitais do SNS, deixando de fora outros hospitais do SNS muito relevantes nas aquisições de imatinib para GIST; - O contrato tem por objeto o fornecimento de imatinib apenas em 2018. A Patente GIST vigora até 26 de outubro de 2021; - O atual sistema de prescrição continua em regra impreparado para separar as substâncias ativas por indicação. Q. Porque não se conforma com a decisão recorrida, porque a adjudicação agora recebida não garante o exercício integral dos direitos derivados da Patente GIST, e porque o Acordo Quadro CP 2017/..... continua a ser uma ameaça, a N....... optou então por recorrer. R. Regressando aos motivos de discordância com a sentença recorrida, o Tribunal a quo parece sugerir - por outras palavras - que o recurso ao Tribunal Administrativo é desnecessário porque os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial sobre medicamentos devem sempre ser apreciados pelos Tribunais Arbitrais e tais Tribunais estão – ipso facto - munidos dos poderes necessários para assegurar a proteção de tais direitos. É um juízo apriorístico: refere o Tribunal a quo que a jurisdição do Tribunal Arbitral é absoluta, pelo que a tutela do Tribunal Administrativo será dispensável por definição. S. A decisão é censurável por várias razões. T. Em primeiro lugar, só os Tribunais Administrativos têm jurisdição e - logo - competência para proferir a intimação requerida. Essa jurisdição acarreta a competência para apreciar questões de que dependa o decretamento da intimação. A jurisdição dos Tribunais Arbitrais constituídos nos termos da Lei n 62/2011 não incide sobre a Administração Pública. U. O litígio em análise emerge inequivocamente de uma relação jurídica administrativa, porquanto a N....... pede que o Ministério da Saúde seja intimado a adotar certos atos ou comportamentos. Os Tribunais Administrativos têm jurisdição exclusiva para decidir intimações para proteção de direitos, liberdades e garantias, bem como quaisquer litígios que procurem condenar a Administração Pública a cumprir deveres que resultem, direta ou indiretamente, da Lei (vd. artigo 4, n.º 1, al. a), do ETAF, e artigo 2º, n. 3 als. h), i), e o), do CPTA) . V. Em segundo lugar, e ao contrário do que sugere o Tribunal a quo, o Tribunal tinha o dever de examinar a questão da violação da Patente GIST. W. A validade e eficácia da patente são questões de direito, não de facto. É por isso indiferente que as Entidades Demandadas tenham alegado desconhecimento quanto a elas, tal como é relevante que não tenham propriamente suscitado essa questão como questão prévia ou prejudicial. As Entidades Demandadas nunca afirmaram que os seus procedimentos não davam origem à violação da Patente GIST. X. A validade da Patente GIST não é jurisdicionalmente contestada em Portugal. Como a N....... explicou nos autos, os processos arbitrais pendentes são processos de infração. Nenhum dos titulares de AIM de genéricos de imatinib atualmente no mercado defende que a Patente é inválida, ou de alguma forma ineficaz. Y. Na sentença, o Tribunal deve "decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras" (artigo 95, n. 1, do CPTA). Ao declarar-se incompetente para apreciar a questão da violação da Patente GIST, o Tribunal recusou-se a apreciar uma questão que estava obrigado a apreciar, e fê-lo desconsiderando vários elementos que indiciavam a sua competência para apreciar a matéria e que constavam dos autos. Designadamente, o facto de o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa já ter decretado, no caso Lyrica, intimação análoga à aqui requerida, e o facto de o Tribunal Central Administrativo Sul já se ter pronunciado incidentalmente sobre a violação da Patente GIST em acórdão proferido em processo de impugnação das peças do procedimento 2017/.... (ainda que aí tenha concluído que ela só se verificaria, eventualmente, em momento posterior). Z. A competência para apreciar a violação da Patente GIST deriva então da jurisdição do Tribunal para apreciar a conduta administrativa que desencadeia ou promove a violação dos direitos que dela emergem, bem como os deveres de proteção de direitos fundamentais que da mesma patente resultam para a Administração Pública. O Tribunal pode apreciar a violação da Patente do mesmo modo que pode apreciar a violação de um qualquer outro direito de propriedade cuja apreciação esteja confiada a outra jurisdição (pense-se na violação do direito de propriedade associada à ilegal demolição de uma casa, por exemplo). AA. Em terceiro lugar, a Lei n. 62/2011 não se aplica ao caso, e em nada impede o Tribunal de apreciar a Patente e os direitos dela emergentes nesta sede. BB. O artigo 2º da Lei só se aplica aos litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência e medicamentos genéricos. O litígio em juízo não se inclui nessa previsão porque emerge da invocação de direitos de propriedade industrial pelo titular diretamente perante a Administração Pública. CC. A intimação não se dedica a demonstrar, a título principal, que a Patente GIST está a ser violada por empresas fornecedoras de medicamentos genéricos, não dirige alegações de violação de patente contra empresas comercializadoras de genéricos. A intimação dedica-se a demonstrar que o Ministério da Saúde, se não diligenciar pelas alterações necessárias para permitir o respeito pelos direitos exclusivos conferidos pela Patente GIST, está a contribuir decisivamente - ou mesmo a promover - a violação da Patente, e está por isso a violar o seu dever de respeito por direitos fundamentais, que diretamente deriva, entre outros, do artigo 18,n. 1 da Constituição. DD. Além disso, a Lei 62/2011 não respeita a litígios sujeitos à jurisdição administrativa, mas antes a litígios que de outra forma estariam confiados à jurisdição comum. EE. É verdade que os direitos de propriedade industrial deixaram de ser reivindicados no foro administrativo. Isso aconteceu, porém, porque esses direitos eram nesse contexto normalmente invocados por titulares de Autorização de Introdução no Mercado ("AIM") de medicamentos de referência para impugnar AIM de medicamentos genéricos. A Lei 62/2011 introduziu alterações de natureza interpretativa, ao Estatuto do Medicamento e ao Regime Geral das Comparticipações do Estado nos Preços dos Medicamentos, que determinaram que os pedidos de AIM e de avaliação prévia não podiam ser indeferidos com fundamento na existência de direitos de propriedade industrial, e que tais procedimentos e decisões não tinham por objeto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial (cf. artigos 4, 5, 6 e 9 da Lei n.62/2011). Tais alterações desproveram de título os processos impugnatórios de AIM com esse fundamento, e é por isso possível argumentar que a competência dos Tribunais Administrativos se esvaziou em relação a essas ações. FF. Contudo, esta ação não tem por objeto a impugnação de AIM, e nada na Lei 62/2011 ou em qualquer outra, se diz quanto à apreciação de direitos de propriedade industrial noutros procedimentos administrativos. Pelo contrário, o legislador colocou, no Código dos Contratos Públicos, uma norma que constitui as entidades adjudicantes na obrigação de proteger direitos exclusivos, e outra que as impede de celebrar contratos que impliquem uma ilegalidade, ambas referidas e desenvolvidas no Requerimento Inicial. GG. O artigo 24, n. 1 al. e) do Código dos Contratos Públicos permite a adjudicação por ajuste direto de qualquer contrato, independentemente do valor, quando o contrato só possa ser confiado a uma entidade determinada por razões relacionadas com a proteção de direitos exclusivos (como os direitos de propriedade industrial) - trata-se, na verdade, de um poder­ dever. E o artigo 70, n. 1, f) do mesmo Código impõe a exclusão de propostas quando o contrato a celebrar implique "a violação de quaisquer vinculações legais ou regulamentares aplicáveis" - para a N......., um contrato que implique a violação de direitos de propriedade industrial implica a violação de vinculações legais e regulamentares, pelo que a proposta que redunde nessa violação deve ser excluída, e reformados devem ser os procedimentos que conduzam a esses resultados. HH. Finalmente, e como a N....... salientou no Requerimento Inicial, a ACSS, o lnfarmed e a SPMS já aprovaram normas concebidas para proteger direitos de propriedade industrial no momento da prescrição (vd. corpo das alegações). O facto de estas entidades emitirem Normas ou regulamentos com este objeto sujeita tais normas e regulamentos à jurisdição dos Tribunais Administrativos - e sujeita, por identidade de razão, uma qualquer falha ou omissão na aprovação de regras semelhantes à mesma jurisdição. II. Neste sentido concorre, também, o recente contrato adjudicado à N......., de fornecimento de imatinib para tratamento de GIST. A simples existência desse procedimento demonstra que a SPMS - e, logo, o Ministério da Saúde Demandado - tem atribuições, competências e poderes para levar a cabo a intimação requerida, de onde resulta que a violação da Patente GIST é, ou pode ser, uma questão sujeita à jurisdição dos Tribunais Administrativos. JJ. Os Tribunais Administrativos e as autoridades administrativas não estão então impedidos - por força da Lei 62/2011, ou de qualquer outro motivo - de reconhecer direitos de propriedade industrial, ou de apreciar se os sistemas de prescrição ou de contratação pública devem ser concebidos de forma a permitir a proteção ou assegurar o exercício de tais direitos. KK. Subsidiariamente, e sem conceder, o Tribunal sempre estaria obrigado a apreciar a violação da patente, ainda que esta fosse uma questão prejudicial. São questões prejudiciais aquelas de cuja decisão depende o conhecimento do objeto da ação (artigo 15 do CPTA). Quando a decisão do processo administrativo dependa da prévia resolução de uma questão da competência de outra jurisdição, o tribunal administrativo pode assumir o dever de proferir uma decisão incidental sobre a questão prejudicial com efeitos restritos ao processo, ou sobrestar na decisão da causa administrativa e remeter a parte a quem interessa a questão prejudicial para o tribunal competente para ela ser aí julgada a título principal. LL. Porque não existe qualquer litígio quanto à validade ou eficácia da Patente GIST, não há parte interessada em obter decisão da questão prejudicial. A N....... não tem interesse em ir ao Tribunal Arbitral pedir o reconhecimento da validade ou da eficácia da sua própria patente. E as Entidades Demandadas também não pretendem contestar a Patente. Este elemento, somado à particular urgência do processo de intimação, obrigava o Tribunal a quo a pronunciar-se incidentalmente sobre a violação da patente, ainda que com efeitos circunscritos ao processo, como expressamente permite o artigo 15, nº 3 do CPTA. MM. Quanto ao interesse em agir, o Tribunal a quo não o analisou nos termos impostos pela lei. O interesse em agir é um pressuposto processual que depende do reconhecimento, objetivo, de que a procedência da ação representa para o Autor ou Requerente uma utilidade ou vantagem imediata, e que deve ser aferido considerando a ação tal como configurada pelo Autor ou Requerente. NN. No caso em análise, o interesse em agir deve ser analisado considerando a probabilidade, ou o justo receio, de que as Entidades Demandadas adotassem uma conduta ilegal, tal como essa probabilidade ou receio foram concretizados pela N....... no seu Requerimento Inicial. 00. A N....... demonstrou claramente que tinha interesse em ver satisfeito o pedido. Uma decisão favorável na intimação implica, para a N......., a vantagem de os sistemas de contratação pública e prescrição serem ajustados, e permitir que os procedimentos pré­ contratuais de adjudicação de imatinib sejam lançados com divisão entre indicações terapêuticas protegidas, e não protegidas, pela Patente GIST - assim permitindo à N....... exercer o direito de exploração comercial exclusiva de imatinib para uso no tratamento de GIST que deriva da Patente GIST. OO. Uma decisão desfavorável pode implicar que o Ministério da Saúde venha a adquirir imatinib independentemente das indicações terapêuticas, desencadeando ou promovendo a violação da Patente GIST. PP. O Tribunal também errou ao concluir que a N....... não teria demonstrado que o seu interesse não podia ser satisfeito através dos processos de arbitragem pendentes. QQ. A identificação e separação da indicação terapêutica para que imatinib será utilizado, na prescrição e nos procedimentos de contratação pública, é imperiosa para permitir a proteção da Patente GIST. Sem essa separação, as empresas fornecedoras de genéricos vão – em resposta a procedimentos de contratação pública - oferecer, colocar no mercado e vender imatinib para todas as indicações terapêuticas, incluindo GIST, violando por isso a Patente GIST. E vão fazê-lo independentemente do resultado dos processos arbitrais de infração entre os fornecedores de genéricos e a N........ Sem a separação, os fornecedores de genéricos ficam em posição de violar a Patente GIST mesmo quando estejam dispostos a respeitá-la, e mesmo quando tenham extraído as Indicações GIST do seu Resumo de Características do Medicamento. Se não existirem procedimentos separados para aquisição de imatinib para tratamento de GIST, os fornecedores de genéricos não se podem abster de apresentar proposta apenas a tais procedimentos, e têm obstáculos de monta ao cumprimento do dever geral de respeito pela Patente. RR. A N....... tem, então, interesse em agir, e esse interesse é independente dos pedidos que se possam realizar nos processos arbitrais contra fornecedores de medicamentos genéricos. SS. No momento em que apresentam as alegações de Recurso, a N....... está numa situação de incerteza. Um novo procedimento de Acordo Quadro tendo também por objeto o fornecimento de imatinib, o CP 2017/..... , pode ainda ser adjudicado sem separação de indicações terapêuticas. O procedimento pode ser tão danoso para os direitos emergentes da Patente GIST como o CP 2017/..... que motivou a reação judicial da N........ TT. Existe uma correlação entre a atuação judicial da N....... e as sucessivas modificações nos procedimentos de contratação de contratos de fornecimento de imatinib para o SNS. Na pendência da intimação em primeira instância, o Acordo Quadro CP 2017/..... foi suspenso e depois revogado nos lotes correspondentes a imatinib. A SPMS lançou, entretanto, em outubro, um novo Acordo Quadro onde se inclui o fornecimento de imatinib às Instituições e Serviços do SNS, o CP 2017/..... , o qual é igualmente lançado por substância ativa e não distingue as indicações terapêuticas GIST e não-GIST. No final de dezembro de 2017 enquanto decorria o prazo de recurso, a SPMS convidou a N....... para apresentar proposta a um procedimento pré-contratual de adjudicação de um contrato de fornecimento de imatinib para tratamento de GIST, pelas quantidades estimadas por um número significativo de Hospitais para o ano de 2018 - e adjudicou esse contrato. No final do mesmo mês de dezembro, a SPMS decidiu ainda suspender o CP 2017/..... , desconhecendo-se por ora o que sucederá nesse procedimento. UU. A demora e instabilidade do processo, invulgares numa ação desta natureza, pedem que aos autos se aplique artigo 7º do CPTA, e se interpretem as normas processuais no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas. VV. Se, porventura, a tutela de mérito for hoje menos indispensável do que era quando a N....... requereu a intimação, será porque a SPMS foi sempre suspendendo e alterando os seus procedimentos, adiando ou prevenindo a adjudicação de fornecimento de imatinib receada pela N........ Não se censura esse comportamento. Porém, não existe por ora garantia de que ele se deve a uma alteração definitiva da perspetiva da SPMS quanto à Patente GIST. E a intimação só deve ser rejeitada se se confirmar que a ameaça ao exercício de um direito, liberdade ou garantia em tempo útil desapareceu definitivamente, e por razões alheias ao próprio requerimento de intimação. WW. A decisão de mérito impõe-se, ainda, por um imperativo de justiça material. Dos autos constam inúmeros reconhecimentos, diretos e indiretos, dos direitos reclamados pela N....... na intimação: o precedente do caso Lyrica; as Normas técnicas aprovadas pela ACSS, pelo lnfarmed e pela SPMS, que determinam que se permita a prescrição por marca quando só um medicamento possa ser prescrito para determinada indicação terapêutica, por razões relacionadas com a proteção de direitos de propriedade industrial; as sucessivas revogações e suspensões de procedimentos; a celebração de um contrato para fornecimento de imatinib para uso no tratamento de GIST. * O recorrido MINISTÉRIO DA SAÚDE contra-alegou, concluindo assim: a) A questão em apreço que foi colocada ao tribunal administrativo prende-se com o direito de propriedade industrial invocado pelas Requerentes ora recorrentes. b) De acordo com o disposto no art.º 2. º da lei n.º 62/2011, de 12 .12, os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial têm de ser dirimidos por arbitragem. c) Por isso, o tribunal administrativo não pode conhecer do litígio emergente da invocação de direitos de propriedade industrial por estar sujeito à arbitragem necessária. d) No caso dos autos não esta demonstrada a violação do invocado direito de propriedade industrial, da qual o tribunal não pode conhecer, nem está demonstrada a indispensabilidade das Requerentes recorrerem ao tribunal administrativo. e) Deste modo, a Sentença recorrida não merece qualquer reparo ou censura ao ter decidido que falta do interesse em agir das Requerentes constitui exceção dilatória que conduz à absolvição do réu da instância. * Os recorridos INFARMED, SPMS e ACSS contra-alegaram, concluindo assim: - Deve ser negado provimento ao presente recurso interposto, na medida em que se afigura que não foi demonstrada, em sede própria, a existência dos direitos de propriedade industrial alegados pelas Recorrentes. - Caso este Venerando Tribunal entenda que este é o momento e o local para verificar a existência dos direitos de propriedade industrial alegados pelas Recorrentes e os mesmos sejam demonstrados, o Ministério da Saúde só poderá ser intimado a dirigir qualquer orientação ao INFARMED que respeite as atribuições e competências legalmente conferidas a este Instituto e tiverem em consideração os aspetos referidos nas presentes contra-alegações. * Cumpridos que estão neste tribunal superior os demais trâmites processuais, vem o recurso à conferência para o seu julgamento. * Delimitação do objeto da apelação - questões a decidir Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal a quo, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso. Esta alegação apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de Direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Assim, tudo visto, cumpre a este tribunal apreciar e resolver aqui o seguinte: -Erro de julgamento de direito quanto a exceção dilatória de falta de interesse em agir. * II – FUNDAMENTAÇÃO 1. O tribunal recorrido entendeu o seguinte: “Texto Integral com imagem” “Texto integral com imagem” “Texto integral com imagem” … 2. O interesse em agir ou interesse processual é a necessidade objetiva de tutela jurisdicional. É, simplesmente, a indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para satisfazer a sua pretensão. Refere-se ao próprio processo; e não ao conteúdo material da pretensão. Com efeito, se a lei (artigo 130º do Código de Processo Civil) proíbe atos inúteis, o que dizer de um processo inútil? É lógico que o sistema jurídico evite processos inúteis, quer porque o aparelho judiciário é um serviço público custeado pelo erário público (em regra), quer porque o sistema não contém razão objetiva para que o autor prejudique ou incomode réus com base em processos inúteis. Salvo os casos excecionais das al. b), c) e d) do nº 2 do artigo 535º do Código de Processo Civil[1] (cf. o nº 1[2]), o interesse em agir é, pois, um pressuposto processual (inominado), cuja ausência constitui uma exceção dilatória inominada (artigo 577º do Código de Processo Civil[3]) e dá lugar à absolvição da instância do réu (artigo 278º/1-e) do Código de Processo Civil). É um pressuposto processual particularmente relevante, quer para as ações de simples apreciação, quer para as ações preventivas e inibitórias - onde se podem incluir as ações preventivas contra uma atividade e ou as ações preventivas contra uma inatividade - como a presente. 3. No processo regulado nos artigos 109º ss do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, também deve haver interesse em agir, além da legitimidade processual ativa, a qual, aqui, se basta com o risco de lesão de um direito fundamental minimamente densificado. No caso presente, como vimos, o tribunal a quo considerou que as demandantes não têm interesse em agir, i.e., que não têm necessidade de vir a juízo com os pedidos formulados. Portanto, para o Tribunal Administrativo de Círculo, as AA não necessitam de tutela jurisdicional para satisfazerem a sua pretensão compósita atrás descrita. Para fundamentar tal conclusão, o tribunal a quo considerou que, no caso dos autos, não estaria demonstrada a necessidade da presente ação, por não estar demonstrada (i) a violação dos direitos de propriedade industrial, nem (ii) que tais direitos não puderam ser plenamente prosseguidos com as ações arbitrais propostas (que as autoras referem que propuseram contra particulares) e com eventuais processos cautelares instrumentais de tais ações. 4. As recorrentes, por seu lado, discordam do Tribunal Administrativo de Círculo, alegando em síntese que: - A N....... não se opõe a que empresas fornecedoras de genéricos forneçam imatinib (genérico) para uso no tratamento de outras indicações, não protegidas por patente. A questão, porém, é que os atuais sistemas de prescrição e de contratação pública não estão em regra preparados para separar as substâncias ativas por indicação, e assim permitir que os fornecedores de medicamentos genéricos concorram, apenas, ao imatinib para uso em indicações não-protegidas - e assim respeitar a Patente GIST; - O Tribunal a quo entendeu - mal - que os Tribunais Arbitrais eram exclusivamente competentes para conhecer da questão. Faltou-lhe, porém, atentar a um aspeto mais relevante. É que os Tribunais Administrativos são exclusivamente competentes para satisfazer o pedido da N........ O Tribunal a quo permitiu que o juízo quanto à competência do Tribunal para apreciar direitos de propriedade industrial contaminasse o juízo quanto ao interesse em agir. Sucede que estas são matérias completamente distintas; - O presente litígio emerge de uma relação jurídica administrativa. O Ministério da Saúde está vinculado a adotar tais comportamentos ou atos, uma vez que os sistemas de prescrição e de contratação pública de medicamentos, na sua configuração normal, impedem a N....... de exercer os fundamentais direitos derivados da Patente GIST, e na verdade promovem a sua infração. Os Tribunais Administrativos têm jurisdição exclusiva para decidir litígios que procurem condenar a Administração Pública a cumprir deveres que resultem, direta ou indiretamente, da Lei; - Os Tribunais Arbitrais, cuja jurisdição é necessária por força da Lei n.º 62/2011 de 12 de dezembro são competentes para apreciar litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência e medicamentos genéricos. Contudo, a menos que a lei afirme o contrário - e não afirma - os Tribunais Arbitrais não têm jurisdição sobre a Administração Pública, independentemente do objeto do processo. Só os Tribunais Administrativos a possuem. Ora, porque o pedido da N....... só pode ser satisfeito pelos Tribunais Administrativos, esses Tribunais têm jurisdição e são necessariamente competentes para apreciar as questões de que depende a procedência da ação; - A validade da Patente GIST não é jurisdicionalmente contestada em Portugal. Como a N....... explicou na sua Resposta às Oposições da ACSS, Infarmed e SPMS, os processos arbitrais pendentes são processos de infração. Nenhum dos titulares de AIM de genéricos de imatinib atualmente no mercado defende que a patente é inválida, ou de alguma forma ineficaz. Neste contexto, exigia-se que o Tribunal aceitasse, prima facie, a validade da Patente GIST, e que apreciasse os seus efeitos à luz das normas aplicáveis (que o Tribunal não está impedido de avaliar), e então verificasse se a prescrição e adjudicação de contratos de fornecimento de imatinib, quando feitas sem separação de indicações terapêuticas, seriam apropriadas para desencadear ou promover a violação da Patente GIST; - O que a N....... pediu foi que, atendendo à proteção conferida pela Patente GIST - que era um dado disponível e não propriamente contestado nos autos -, e atendendo a que a normal configuração dos sistemas de prescrição e de contratação pública tornavam impossível o exercício do direito (independentemente do resultado das ações arbitrais), o Ministério da Saúde fosse condenado a adotar vários atos, regulamentos e comportamentos que permitissem o respeito pela Patente; - Segundo o artigo 4º/2 do Código da Propriedade Industrial, mencionado na Resposta da N....... às Oposições da ACSS, do lnfarmed e da SPMS, o titular da patente beneficia da presunção jurídica de cumprimento dos requisitos da sua concessão. Por força desta regra, a Patente GIST deve presumir-se conforme e válida a menos que um Tribunal competente decida em sentido contrário. A N....... não está por isso obrigada a demonstrar judicialmente a validade - ou a violação - da Patente GIST num Tribunal Arbitral, ou em qualquer outro fórum, para beneficiar da proteção conferida pela mesma Patente GIST. Defender que a N....... está obrigada a alegar e demonstrar a validade e eficácia da Patente GIST seria uma subversão desta presunção conferida pelo registo da patente; - A intimação não se inclui no âmbito da Lei nº 62/2011. O litígio sub iudice não resulta diretamente da invocação de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência e genéricos. O litígio emerge da invocação de direitos de propriedade industrial pelo titular desses direitos diretamente perante a Administração Pública; - O que se pretende é impedir a Administração Pública de objetivamente promover a violação de um direito análogo a direitos, liberdades e garantias; - O legislador não desobrigou as autoridades públicas do dever constitucional de proteção dos direitos fundamentais emergentes de direitos de propriedade industrial. No caso em análise, não existe indicação legal de que as Entidades Demandadas não têm a obrigação de diligenciar pelo respeito desses direitos na conceção dos sistemas de prescrição e de contratação pública de medicamentos; - Além de a lei não dispensar a análise de direitos de propriedade industrial, as Entidades Demandadas já chamaram a si a obrigação de proteger tais direitos. - Várias normas do Código dos Contratos Públicos - devidamente desenvolvidas no Requerimento Inicial - dispõem no sentido de as entidades adjudicantes estarem obrigadas à proteção de direitos exclusivos; - Ora, como os procedimentos são lançados apenas em função da substância ativa imatinib, o resultado dos contratos emergentes desses procedimentos de contratação pública será o fornecimento de outros medicamentos, para além de Glivec, para tratamento de GIST, em clara infração da Patente GIST. - Atendendo a este dado, a Patente GIST está ameaçada desde a data em que caducou a patente de produto: de esse momento em diante, todos os procedimentos de aquisição de imatinib adjudicados em função da substância ativa — e assim todos os procedimentos que não esteiam separados em função da indicação terapêutica em questão — acarretam uma violação da Patente. - A ameaça não é apenas iminente — está a consumar-se neste preciso momento. - A indicação terapêutica do medicamento não é relevante para o sistema de prescrição no SNS. - À semelhança do que acontece nos procedimentos de contratação pública, o sistema atual de prescrição médica não salvaguarda os direitos de propriedade industrial. - O ponto 11.2 das Normas Técnicas Relativas à Prescrição determina que uma das situações em que a prescrição por nome comercial do medicamento pode, excecionalmente, ser utilizada, é no caso de "medicamentos que, por razões de propriedade industrial, apenas podem ser prescritos para determinadas indicações terapêuticas". - Nas Normas Técnicas Relativas ao Software, a SPMS certificou-se de que esta exceção também existia no sistema informático. - Conclui-se então que o sistema reconhece a importância de proteger direitos de propriedade industrial na fase de prescrição. - Quando o objeto da proteção da patente das AA é o uso de um medicamento para tratamento de uma doença específica - como é o caso da Patente GIST (Tumores Estremais Gastrointestinais) -, o sistema atualmente implementado é desadequado para proteger a patente, ou para criar condições que permitam evitar a sua infração. Nesse caso, os médicos prescrevem - por exemplo - IMATINIB, e as entidades adjudicantes lançam procedimentos de aquisição de IMATINIB independentemente da sua indicação terapêutica. Ao apresentar proposta a esses procedimentos, os fornecedores de genéricos de IMATINIB vão, necessariamente, oferecer, vender e colocar IMATINIB no mercado para tratamento também de GIST (Tumores Estremais Gastrointestinais), assim infringindo a Patente GIST; - Esta infração é uma consequência direta da forma como os sistemas de compras públicas e de prescrição foram concebidos e são implementados no SNS. Para criar condições para proteger a patente, é imperativo que as compras de IMATINIB efetuadas pelo SNS (seu único comprador) sejam divididas em função da indicação terapêutica em que o IMATINIB será usado. Sem esta separação, a Patente Tumores Estremais Gastrointestinais não pode ser protegida (apenas) por sentenças proferidas por Tribunais Arbitrais, ou mesmo acatada por fornecedores de medicamentos genéricos de imatinib. 5. 5.1. Aqui chegados, sublinhamos que não se discute neste recurso o pressuposto processual da competência. Também não se discute neste recurso a idoneidade do meio processual utilizado pelas autoras. Aqui está apenas em questão saber se o Tribunal Administrativo de Círculo errou ou não errou acerca da falta do pressuposto processual inominado do interesse em agir. Portanto, o pedido formulado pelas autoras e a causa de pedir ou situação de vida descrita na p.i. permitem concluir que as AA estão numa situação objetivamente necessitada de uma tutela jurisdicional? 5.2. A atividade de administração pública deve respeitar e proteger os direitos dos administrados, as diferentes dimensões dos direitos (cf. artigo 266º/1[4] e artigos 17º[5] e 18º/1/2[6] da Constituição). Isto implica: (i) o respeito pelo status negativus do particular e consequente proteção contra ingerências lesivas pela administração pública, bem como (ii) a existência de garantias procedimentais que substancializem a posição de sujeito dos particulares (cf. assim G. CANOTILHO/V. MOREIRA, Constituição… Anotada, II, 4ª ed., pp. 796-797). Não esqueçamos que o dever estatal de respeito pelo direito fundamental pode implicar também uma atuação positiva de remoção de um impedimento, especialmente se for um impedimento ou obstáculo criado pelo agir administrativo ativo ou omissivo (cf. assim JORGE REIS NOVAIS, Direitos Sociais…, 2010, pp. 258-260). Será isto o pretendido - in action pré-contratual - pelas AA? Parece-nos que sim. 5.3. Com efeito, temos aqui um direito fundamental (posição jurídica ativa das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição material) titulado pelas AA. (propriedade industrial: cit. artigo 62º/1 da Constituição), que é análogo aos direitos-liberdades-e-garantias (cf. assim G. CANOTILHO/V. MOREIRA, Constituição… Anotada, I, 4ª ed., p. 374; J. MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais, 2ª ed., ed. Principia, p. 57; e o artigo 17º da Constituição) e que já tem uma grande determinabilidade ao nível da legislação ordinária relativa à força jurídica das patentes. E as AA, titulares de um direito fundamental análogo aos direitos-liberdades-e-garantias (advindo de uma patente de 2º uso médico ou de 2º uso terapêutico, em que a substância ativa está “protegida” pela marca Glivec), afirmam ou alegam circunstanciadamente na p.i. e neste recurso que necessitam que o Estado-Administração cumpra o dever estatal de proteger (cf. JORGE REIS NOVAIS, Direitos Sociais…, 2010, pp. 255-282, maxime pp. 259-261, 356-357; Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, AAFDL, 2017, p. 211) uma certa dimensão daquele direito subjetivo público, no exercício da atividade administrativa de contratação pública, cumprimento este que não existe e que vai continuar a não existir, prejudicando-as. Desse incumprimento resultará, segundo as AA, prejuízo e, assim, a necessidade de uma tutela jurisdicional. 5.4. Como vimos, o Tribunal Administrativo de Círculo afirmou que não está demonstrada, quer (i) a violação dos cits. direitos de propriedade industrial, quer (ii) que tais direitos não puderam ser plenamente prosseguidos com as ações arbitrais propostas (que as autoras referem que propuseram) e com eventuais processos cautelares instrumentais de tais ações. Ora, o que as AA e recorrentes referem, para fundar a necessidade objetiva de uma tutela jurisdicional, é que o modo como o SNS contrata (administração pública) promove a desproteção da sua propriedade industrial; que o modo como o SNS contrata (administração pública), em vez de criar condições objetivas para a proteção de um direito fundamental análogo aos direitos-liberdades-e-garantias, implica a desproteção e a violação desse direito. Daí – e do cit. artigo 266º/1 da Constituição e do artigo 4º do Código do Procedimento Administrativo - o pedido que é formulado na p.i. Portanto, não se trata, imediatamente ou a se, de uma questão relativa a violação da propriedade industrial[7], a que se referem disposições legais como os artigos 98º, 102º[8] e 318º[9] do C.P.I./2018. Ao contrário do que subentendeu o Tribunal Administrativo de Círculo. Tais disposições legais “apenas” densificam o direito subjetivo público resultante da Constituição, evidenciando que o sistema jurídico tutela de modo material e densificado o mesmo, assim concorrendo para concretizar e aprofundar o nº 1 do artigo 266º da Constituição (vd., ainda, os artigos 17º e 18º/1/2 da Constituição). Por outro lado, as ações arbitrais referidas entre particulares nada têm a ver com o objeto desta ação, porque esta concreta ação urgente não trata, de todo, da repressão da violação da legislação protetora da citada propriedade industrial (patente) por parte de outros particulares (cf., o CPI/2018 e, hoje, a Lei 62/2011 alt. pelo DL 110/2018). Ao contrário do que subentendeu o Tribunal Administrativo de Círculo. Aqui, trata-se, sim, da prevenção jusadministrativa de uma conduta jusprocedimental do SNS que, segundo as AA, impulsionará ou possibilitará, no modo como faz a contratação pública do “medicamento IMATINIB para o tratamento de GIST”, a violação geral do cit. direito fundamental análogo aos direitos-liberdades-e-garantias. 5.5. Como se vê, as AA têm em vista a contratação pública pelo SNS, o que nos permite sublinhar que está imediatamente – ou diretamente - em causa uma atividade administrativa e não, ao contrário do subentendido na decisão recorrida, a conduta de particulares. Aliás, ninguém discute nesta ação qualquer patente ou a sua violação (cf. a Lei 62/2011 alt. pelo DL 110/2018). O que se discute nos articulados é se o SNS (a Ad. P.) deve ou não proteger, na sua concreta atividade procedimental de contratação pública, esta concreta dimensão – aliás, essencial - daquele direito fundamental. Mas muito antes disso haverá que aferir do pressuposto processual que é o chamado interesse em agir. 5.6. Para isto, além do já referido supra, basta verificar, com base nos articulados, o seguinte: -nenhuma atividade administrativa está isenta do dever resultante do central artigo 266º/1 da Constituição (i.e., a atividade de administração pública deve respeitar os direitos das pessoas), ou seja, concretizando aqui, as entidades integradas no SNS estão vinculadas aos deveres estatais de respeitar e de proteger os direitos fundamentais, todos os direitos fundamentais, nomeadamente os derivados do direito subjetivo público de propriedade industrial (cf. artigo 62º/1 da Constituição e o C.P.I./2018); -a p.i. (e este recurso) descreve muita factualidade, a provar no momento próprio naturalmente (vd. artigos 17 ss, 48 ss, 61, 86 ss, 93 ss, 102 ss, 114, 119, 129 ss e 137 da p.i.), que nos conduz à conclusão de que a cit. atividade procedimental de contratação pública do “medicamento IMATINIB para o tratamento de GIST, de Tumores Estremais Gastrointestinais” no SNS implica e implicará em breve a violação normal ou regular (e até involuntária) por outrem do cit. direito de propriedade industrial, direito fundamental que implica para o Estado um dever de o respeitar e proteger assente na Constituição (cits. artigos 62º/1, 17º, 18º/1/2 e 266º/1), no Código do Procedimento Administrativo (artigo 4º) e nos cits. artigos 98º, 102º e 318º do C.P.I./2018; -estes deveres de respeito e de proteção, ignorados, segundo a p.i., no modo de contratação pública do “medicamento IMATINIB para o tratamento de GIST” pelo SNS, resultam dos relevantes cits. artigos 17º, 18º/1 e 266º/1 da Constituição e ainda das cits. disposições legais do C.P.I., o que se confirma por outra legislação ordinária (vd. artigo 24º/1-e)-iii) do Código dos Contratos Públicos[10]) e também pela conduta fáctica do SNS descrita na p.i. Há, portanto, interesse em agir no contexto fáctico descrito pelas AA. * III - DECISÃO Nestes termos e ao abrigo do artigo 202.º da Constituição e do artigo 1.º, nº 1, do EMJ (ex vi artigo 57.º do ETAF), os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido. Custas a cargo dos recorridos. Lisboa, 30-01-2020 Paulo H. Pereira Gouveia - Relator Catarina Jarmela Paula de Ferreirinha Loureiro ------------------------------------ [1] Artigo 535º 2. Entende-se que o réu não deu causa à ação: … b) Quando a obrigação do réu só se vencer com a citação ou depois de proposta a ação; c) Quando o autor, munido de um título com manifesta força executiva, recorra ao processo de declaração; d) Quando o autor, podendo logo interpor recurso de revisão, faça uso sem necessidade do processo de declaração. [2] Artigo 535º 1. Quando o réu não tenha dado causa à ação e a não conteste, são as custas pagas pelo autor. [3] Artigo 577º São dilatórias, entre outras, as exceções seguintes: … [4] Artigo 266º 1. A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. [5] Artigo 17º O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga. [6] Artigo 18º 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. [7] A propriedade industrial desempenha a função de garantir a lealdade da concorrência, pela atribuição de direitos privativos sobre os diversos processos técnicos de produção e desenvolvimento da riqueza. [8] Artigo 102º 1 - A patente confere o direito exclusivo de explorar a invenção em qualquer parte do território português. 2 - A patente confere ainda ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento: a) O fabrico, a oferta, a armazenagem, a colocação no mercado ou a utilização de um produto objeto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados; b) A utilização do processo objeto da patente ou, se o terceiro tem ou devia ter conhecimento de que a utilização do processo é proibida sem o consentimento do titular da patente, a oferta da sua utilização; c) A oferta, a armazenagem, a colocação no mercado e a utilização, ou a importação ou posse para esses fins, de produtos obtidos diretamente pelo processo objeto da patente. 3 - A patente confere também ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, a oferta ou a disponibilização a qualquer pessoa que não tenha o direito de explorar a invenção patenteada dos meios para executá-la no que se refere a um seu elemento essencial, se o terceiro tem ou devia ter conhecimento de que tais meios são adequados e destinados a essa execução. 4 - O disposto no número anterior não se aplica se os meios forem produtos que se encontram correntemente no mercado, salvo se o terceiro induzir a pessoa a quem faz a entrega a praticar os atos previstos no n.º 2. 5 - Para os efeitos previstos no n.º 3, as pessoas que pratiquem os atos previstos nas alíneas a) a d) do artigo seguinte não são consideradas pessoas habilitadas a explorar a invenção. 6 - O titular da patente pode opor-se a todos os atos que constituam violação da sua patente, mesmo que se fundem noutra patente com data de pedido ou data de prioridade posterior, sem necessidade de impugnar os títulos, ou de pedir a anulação das patentes em que esse direito se funde. 7 - Os direitos conferidos pela patente não podem exceder o âmbito definido pelas reivindicações. 8 - O titular de uma patente pode solicitar ao INPI, I. P., mediante o pagamento de uma taxa, a limitação do âmbito da proteção da invenção pela modificação das reivindicações. 9 - Se, do exame, se concluir que o pedido de limitação está em condições de ser deferido, o INPI, I. P., promove a publicação do aviso da menção da modificação das reivindicações, sendo, em caso contrário, o pedido indeferido e a decisão comunicada ao requerente. [9] Artigo 318º É punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias quem, sem consentimento do titular do direito: a) Fabricar os artefactos ou produtos que forem objeto da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores; b) Empregar ou aplicar os meios ou processos que forem objeto da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores; c) Importar ou distribuir produtos obtidos por qualquer dos referidos modos. [10] Artigo 24º, nº 1, al. e), iii) Qualquer que seja o objeto do contrato a celebrar, pode adotar-se o ajuste direto quando as prestações que constituem o objeto do contrato só possam ser confiadas a determinada entidade por uma das seguintes razões: … seja necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual;

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