I - Ao invés do que sucede com os casos catalogados taxativamente no artigo 11.º da Lei n.º 65/03, de 23/8, que impõem a recusa, assim a tornando obrigatória, os previstos no artigo 12.º da mesma Lei possibilitam uma mera faculdade de recusa. II - Porém, a recusa facultativa não pode ser concebida como um acto gratuito ou arbitrário do tribunal. Há-de assentar em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo e susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente factos invocados pelos interessados, que, devidamente equacionados, levem a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente. III - Na verdade, concedendo aquela Lei ao Estado requerido a faculdade de recusa, nomeadamente nos casos de pendência de processo «pelo mesmo facto», ela permite que aquele mesmo Estado, através das entidades competentes, nomeadamente o Ministério Público, ou do arguido, demonstrem ao tribunal a existência de possíveis vantagens e ou utilidade na concretização da recusa. O que não pode nem deve é tratar-se de um acto arbitrário, caprichoso ou meramente voluntarista, capaz de pôr em causa os sãos princípios de cooperação internacional a que tal Lei quis dar corpo.* * Sumário elaborado pelo relator
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. O Magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Évora promoveu o cumprimento do mandado de detenção europeu (MDE), emitido pela autoridade judiciária do Reino de Espanha Juiz do “Juzgado de Instruccion de Olivenza”, no âmbito do processo de “diligências prévias 70/2007” e com vista a assegurar o seu futuro julgamento em Espanha – contra o cidadão romeno AA, natural de Satu Marc, Roménia, nascido a 25/05/1983, filho de A... J... e de A... L..., actualmente recluso no Estabelecimento Prisional Regional de Évora e residente, antes de preso, em Campina de Boliqueime, Boliqueime – Loulé, portador do passaporte n.º .... Com base nas correspondentes informações divulgadas pelo Sistema de Informação Schengen (S.I.S.) – indicação n.º E...A0 –, a autoridade policial procedeu à detenção do identificado indivíduo, o qual naquele processo se encontra indiciado pela prática de crimes de roubo, cometido com violência e uso de armas, e sequestro, crimes que se consubstanciarão na prática dos seguintes factos: No dia 20/01/200 7, cerca das 3 ou 4 horas da manhã, quando o cidadão espanhol D. BB se encontrava dormindo no seu domicílio — Cortijo ..., situado ao quilómetro três da estrada de Olivença a San Jorge de Alor (comarca de Olivenza, Badajoz, Espanha), entraram quatro homens com várias pistolas ameaçando-o para que bebesse de uma garrafa. Ao negar-se a fazê-lo, agrediram-no na cabeça com uma pistola, causando-lhe uma ferida. Ao ser agredido, acedeu a beber, enquanto dois dos homens começaram a revolver a casa e a meter diversos objectos de valor em sacos de plástico que levaram (documentação, ordens de pagamento, relógios, computador portátil, câmara fotográfica digital, vários telemóveis, e cartões bancários). Posteriormente, obrigaram-no a vestir-se, colocaram-lhe uma mordaça na boca e introduziram-no num automóvel que estava estacionado fora de casa, perdendo a consciência durante a viagem. Levaram também dois carros que lhe pertenciam. Quando chegaram à zona de Lisboa, Portugal, dois dos homens desapareceram, entrando o BB e os outros dois numa casa. Ordenaram-lhe que tomasse um banho e esperasse. Posteriormente, a Polícia portuguesa, tendo notícias de que o cidadão espanhol havia desaparecido e poderia estar privado da liberdade contra a sua vontade, em contacto com a Guarda Civil espanhola, localizou BB, CC e AA (nascido em Satu Mare no dia 25 de Maio de 1983, titular do passaporte romeno n.º ..., o qual utiliza habitualmente a identidade falsa R... T...) numa cervejaria de Moscavide (Portugal), procedendo à detenção do cidadão português e deste último como autores dos factos anteriormente referidos cerca da espanhola — do dia 2 1/01/2007. Praticadas as diligências pertinentes pela Polícia portuguesa, BB regressou, conduzindo o seu veículo, ao seu domicílio em Espanha, na madrugada do dia 21/01/07. Ouvido o detido nos termos do art.° 18. ° da Lei n.º 65/03, de 23/08, pelo mesmo foi dito que não consente na sua entrega ao Estado requerente e que não renuncia à regra da especialidade. Em prazo concedido para deduzir oposição, o requerido alegou em suma: 1. Que o Mandado de Detenção em causa não cumpre os requisitos previstos no n.º 3 do art.° 16. ° da Lei n.º 65/03, de 23/08, nomeadamente a “falta de elementos concretos de prova, que fundamentem a indiciação” e a não descrição do “modo, tempo e lugar em que os factos ocorreram”. 2. Que existem causas de recusa do MDE, invocando expressamente as previstas no art.° 1 2. °, n.º 1, als. b) (embora por erro manifesto o requerido cite al. a) e i). Porém, a Relação de Évora, por acórdão de 10/04/2007, teve por improcedentes estas razões e deliberou «deferir a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido pelo “Juzgado de Instruccion de Olivenza”, referente ao cidadão romeno AA e ordenar a sua entrega às autoridades espanholas, com a condição de ser devolvido para cumprimento, em Portugal, da pena a que, eventualmente, seja condenado.» Irresignado, recorre o requerido ao Supremo Tribunal de Justiça assim delimitando o objecto da sua dissidência: 1. Apesar da moldura penal quanto ao crime de roubo ser significativamente mais favorável no Reino de Espanha, o recorrente face à sua inocência, que se propõe provar quando o tribunal lhe der oportunidade, prefere ser julgado em Portugal e não em Espanha. 2. Os factos constantes deste pedido são os mesmos factos que se encontram em investigação no processo n.º 13/07.1.JB.LSB, a correr pela 1.ª secção do M. Público do Tribunal criminal de Loures. 3. Após a apreciação dos indícios e depois de terem ouvido o ofendido,BB e testemunhas, os arguidos foram devolvidos à liberdade, sujeitos a apresentações bi-semanais. Foi, aliás, no âmbito dessas apresentações, que o arguido cumpre escrupulosamente, que entretanto foi preso. 4. Apesar de não corresponderem à verdade os factos por que está indiciado neste MDE, mesmo a serem verdade, sempre a execução do mesmo deveria ser recusada e o processo em Espanha arquivado pelos seguintes factos: a) Está pendente em Portugal o procedimento penal contra o arguido pelos mesmos factos que motivaram este MDE, art.º 12.º, n.º 1, b), da Lei 65/03; b) A terem sido cometidos actos delituosos por parte do arguido, o que nega, tendo parte sido cometido em território nacional, aliás, foi aqui que foi efectuada a sua detenção, deve por este facto também ser recusada a execução do MDE, nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei já referida. 5. Os factos substancialmente são os mesmos, retratam um pedaço de vida que é o mesmo, apesar de ter incriminação diferente pelo que o objecto do MDE se esgota com o processo que corre em Portugal. 6. A dar-se como indiciado o crime de roubo, mesmo que cometido em Espanha, sempre o tribunal português teria competência para conhecer desse crime, nos termos do artigo 5.º do CP. Contudo, o próprio ofendido afirma não saber quando o roubo aconteceu, o que quer dizer que a ter sido cometido, tanto poderia ser parte em Espanha como parte em território português. 7. O recorrente reside em Portugal e tem a sua vida aqui formada. 8. Devendo, pelo exposto, ser o arguido devolvido à liberdade, após recusa de execução de MDE, violador dos princípios ínsitos na CRP. Indica como violadas as normas dos artigos 12.º, nº 1, b), i) e g), da Lei n.º 65/03 e 5.º do Código Penal. São assim essencialmente duas as questões a decidir: 1. Deve o Estado Português invocar a recusa facultativa da execução do mandado? 2. Ainda que assim não seja, é da competência dos tribunais português o julgamento do caso nos termos do artigo 5.º do Código Penal? Respondeu o Ministério Público em defesa do decidido. 2. Colhidos os vistos legais em simultâneo, como é de lei – art.º 25.º, n.º 1, da Lei 65/2003, de 23/8 – cumpre decidir. O essencial da matéria de facto sobre que há-de assentar a decisão de direito já consta do relato feito. Cumpre então responder sumariamente às questões postas. Tão «sumariamente» – e tal como já foi decidido no acórdão deste Supremo Tribunal de 13/1/2005, proferido no recurso n.º 71/05-5, com o mesmo relator – quanto decorre da Lei que o prazo legal para decisão do recurso é de apenas 5 dias, quando num vulgar recurso vai aos 15 e, mesmo, num procedimento expedito e urgente como é o caso da providência de «habeas corpus», atinge os 8 dias – art.ºs 417.º, n.º 4 e 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 16.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto. Trata-se pois, declaradamente, de um procedimento «ultra expedito» e simplificado, tendo em conta assegurar apenas a legalidade do procedimento relativo à execução do MDE, sem prejuízo, naturalmente dos direitos processuais do procurado perante os factos do processo, a serem devidamente exercidos no local adequado – o processo, ele mesmo. Daí que, em face desta constatação, a Lei em referência, debruçando-se sobre os «direitos do detido», disponha literalmente que: «1 - A pessoa procurada é informada, quando for detida, da existência e do conteúdo do mandado de detenção europeu, bem como da possibilidade de consentir em ser entregue à autoridade judiciária de emissão. 2 - O detido tem direito a ser assistido por defensor. 3 - Quando o detido não conheça ou não domine a língua portuguesa é nomeado, sem qualquer encargo para ele, intérprete idóneo.» De resto, em consonância com o disposto no artigo 18.º, n.º 5, donde emerge a obrigação imposta ao juiz relator de proceder «à identificação do detido, elucidando-o sobre a existência e o conteúdo do mandado detenção europeu e sobre o direito de se opor à execução do mandado ou de consentir nela e os termos em que o pode fazer, bem como sobre a faculdade de renunciar ao benefício da regra da especialidade». Pois bem. A questão principal do recurso prende-se com a alegada pendência em Portugal de processo pelo mesmo facto. Na verdade, segundo o recorrente – conclusão 4 – este «pendente em Portugal o procedimento penal contra o arguido pelos mesmos factos que motivaram este MDE, art.º 12.º, n.º 1, b), da Lei 65/03; e, «a terem sido cometidos actos delituosos por parte do arguido, o que nega, tendo parte sido cometido em território nacional, aliás, foi aqui que foi efectuada a sua detenção, deve por este facto também ser recusada a execução do MDE, nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei já referida.» Deste, modo, entende o recorrente que o tribunal deveria ter «feito funcionar a causa de recusa facultativa de execução do mandado constante na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º dessa Lei». O tribunal recorrido, porém foi de opinião diversa. Na verdade, debruçando-se sobre esse ponto – conclusão 4 a) – alegada identidade de factos num e noutro processo – salientou o acórdão recorrido: «Quanto à segunda questão, diga-se, desde logo, que não assiste razão ao arguido. Na verdade, o processo que corre termos em Portugal e no Tribunal de Loures é por crimes de sequestro e de coacção grave, e não por crime de roubo, pois os factos constitutivos deste crime ocorreram em Cortijo ... (Espanha), sendo aí punidos com pena de 2 a 5 anos de prisão e em Portugal punidos com pena de prisão até 15 anos. No inquérito que corre em Portugal estão em causa factos e crimes aqui ocorridos, enquanto que o presente MDE respeita não só ao referido crime de sequestro (que, sendo um crime de execução permanente, se iniciou em Olivença e se prolongou em território Português), mas também a pelo menos um crime de roubo, cometido com violência e uso de armas, que se consumou em Espanha – aí tendo decorrido toda a respectiva acção criminosa –, e que, por isso, escapa à jurisdição penal Portuguesa. Do que se deixa dito se conclui que não se verificam as invocadas causas de recusa de execução do MDE, o que, aliás, já foi decidido no Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 20 de Março de 2007 e referente ao co-arguido CC.» Na verdade, há causa de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu quando «estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu». O «facto» que motiva a emissão do mandado em causa, abrangendo – é certo – parte dos factos ora objecto do processo de inquérito n.º 13/07, pendente na 1.ª secção dos serviços do Ministério Público de Loures, não é coincidente, já que, para além deles, abrange ainda o procedimento contra o recorrente por indícios da prática de um crime de roubo praticado com violência e uso de armas, consumado em Espanha – previsto e punido pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, a) e b), do Código Penal Português (prisão até 15 anos) e pelos artigos 242.º, n.ºs 1 e 2 e 147.º do Código Penal (de 1995) de Espanha (prisão de 2 a 5 anos) e que não é perseguido no processo pendente em Portugal. Quer dizer: a coincidência de objectos de processo num e noutro caso é apenas parcial. E, como tal, o facto, o objecto do processo, «o pedaço de vida» a ter em conta, é distinto em cada caso. Tanto bastaria para que a previsão de recusa facultativa não pudesse ser invocada nos termos em que o faz o recorrente – art.º 12, n.º 1, b), da Lei citada. Porém, ainda que assim não fosse, isto é, mesmo que se considerasse relevante para o efeito a coincidência parcial de objectos processuais, importa ter em conta que, ao invés do que sucede com os casos catalogados taxativamente no artigo 11.º da mesma Lei que impõem a recusa, assim a tornando obrigatória, os casos previstos no artigo 12.º, nomeadamente as alíneas h) e i) do seu número 1, possibilitam uma mera faculdade de recusa. Porém, como se decidiu no acórdão de 17 de Março de 2005, deste Alto Tribunal, proferido no recurso n.º 1135/05-5 «a recusa facultativa não pode ser concebida como um acto gratuito ou arbitrário do tribunal. Há-de, decerto, assentar em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente invocados pelo interessado, que, devidamente equacionados, levem o tribunal a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente.» Na verdade, concedendo ao Estado requerido a faculdade de recusa, nomeadamente nos casos de pendência de processo «pelo mesmo facto», a Lei permite que aquele mesmo Estado, através das entidades competentes, nomeadamente o Ministério Público, demonstrem ao tribunal a existência de possíveis vantagens e ou utilidade na concretização da recusa, v.g., a possível concreta relevância na opinião pública do julgamento do caso pendente no Estado requerido. O que não pode nem deve é tratar-se de um acto arbitrário ou meramente voluntarista, capaz de pôr em causa os sãos princípios de cooperação internacional a que a Lei quis dar corpo. Ora, no caso, para, além, obviamente, da vontade manifestada pelo recorrente de não ser julgado em Espanha, mas que fica longe de satisfazer esse requisito, nem um nem outro dos sujeitos processuais aportou factos relevantes capazes de fundar a eventual decisão do tribunal para efeitos de decidir pela recusa. Por outra via, a invocação do preceituado no artigo 5.º do Código Penal para justificar a extensão da competência dos tribunais portugueses ao caso concreto já foi afastada por este Supremo Tribunal que, pronunciando-se sobre os mesmos concretos factos, embora a respeito de outro arguido no processo (o cidadão português CC) no seu acórdão de 18/04/07, proferido no recurso n.º 1432/07-3, considerou pertinentemente que «…o invocado art.º 5.º prescreve – para o que, agora, importa – que “salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional (…) quando constituírem os crimes previstos nos artigos 221.º, 262.º a 271.º, 308º. a 321.º e 325.º a 345.º”, ou “quando constituírem os crimes previstos nos artigos 159.º, 160.º, 169.º, 172.º, 173.º, 176.º, 236º a 238.º, no n.º 1 do artigo 239.º e no artigo 242º, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado” (al. b), n.º 1). Ora, o crime de roubo encontra-se previsto no art.º 210.º, do Código Penal, não fazendo parte do elenco dos crimes incluídos naquela disposição e, a demais, as autoridades estrangeiras do local da prática do crime pretendem exercer o correspondente procedimento criminal (instrução processual e eventual julgamento), sendo ainda certo que, apesar do agente ter sido encontrado em Portugal e ser cidadão português, é possível a sua “extradição” (leia-se: entrega judicial), por via de instrumento legislativo da Assembleia da República (a citada Lei n. 65/03), aprovado “em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho”.» Em suma: não se mostram violadas as disposições legais invocadas pelo recorrente nem qualquer princípio constitucional, aliás, não especificado, pelo que o recurso não logra provimento. 3. Termos em que, improcedendo todas as questões suscitadas pelo recorrente e não se mostrando violadas as normas legais por ele invocadas, negam provimento ao recurso e confirmam a decisão recorrida. O recorrente pagará as custas com taxa de justiça que se fixa em 10 unidades de conta. Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Junho de 2007 Pereira Madeira (relator) Simas Santos Santos Carvalho