I - O princípio de confiança mútua que subjaz e constitui o cerne da cooperação judiciária internacional funda-se na convicção de que todos os subscritores dos instrumentos daquela cooperação comungam de um conjunto de valores nucleares tributários dos Direitos do Homem, estando sujeitos aos mesmos mecanismos específicos e comuns da garantia daqueles valores – Acórdão do STJ, de 22-04-2020, Proc. 499/18.9YRLSB.S1. II - A República Federativa do Brasil é um Estado soberano, cuja Constituição consagra o respeito pelos Direitos Humanos, sendo membro da O.N.U., subscritor de convenções internacionais respeitantes aos Direitos Humanos e à Cooperação Judiciária Internacional e que se reclama cumpridor dos princípios que emergem da própria ideia de Estado de direito democrático e do respeito mútuo pelos compromissos assumidos com os outros Estados. III - Sendo taxativas as causas de inadmissibilidade ou de recusa facultativa que podem, nos termos dos arts. 3.º e 4.º, da Convenção de Extradição CPLP e dos arts 6.º a 8.º e 32.º, da Lei nº 144/99, de 31/08, fundamentar a recusa do pedido de extradição e não estando em causa a segurança, a ordem pública ou outros interesses fundamentais do Estado Requerido, nada obsta à satisfação do pedido de extradição, na presença de adequada garantia prestada pelas autoridades do Estado requerente no sentido de que “não correrá qualquer risco de ser sujeita a tratamentos desumanos, degradantes e cruéis nem a formas de trato atentatórias por qualquer meio da sua dignidade humana, ou que possam reconduzir-se ao conceito internacional de tortura.” – sic.
Processo nº 689/23.2YRLSB.S2 Recurso/Extradição ACÓRDÃO Acordam em conferência na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO 1. Por Acórdão (da 3ª Secção Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Março de 2024, proferido com voto de vencido, foi recusada a extradição para a República Federativa do Brasil da cidadã de nacionalidade brasileira AA, operadora de vendas, nascida em ... de ... de 1981, em ..., ..., ..., com nacionalidade brasileira, filha de BB e de CC, titular do passaporte ......69, válido até 04/04/2026, emitido pelo Brasil, com residência declarada em Portugal na Rua...., em .... Não obstante ter dado como assente que «não se verifica, no caso, nenhuma das causas de recusa obrigatória ou facultativa da extradição, de entre as previstas nos mencionados art.ºs 3º e 4º da Convenção CPLP», o Acórdão recusou a extradição com o fundamento de «ser real e iminente o risco de a requerida, uma vez entregue ao sistema de justiça brasileiro, ser sujeita a tortura e a tratamentos cruéis, desumanos e degradantes que podem até colocar em risco a sua vida». Tal decisão assenta no juízo de insuficiência das garantias adicionais concretas (solicitadas por despacho de 30 de Novembro de 2023) prestadas pelas autoridades competentes da República Federativa do Brasil, de que a cidadã extraditanda “ não correrá qualquer risco de ser sujeita a tratamentos desumanos, degradantes ou cruéis nem a formas de trato atentatórias por qualquer meio de sua dignidade humana, ou que possam reconduzir-se ao conceito internacional de tortura.” – sic. 2. É desta decisão que vem interposto, pelo Ministério Público, o presente recurso, no qual formulou as seguintes conclusões: «1. (…) 2. A oposição da extraditanda baseou-se no facto de considerar que a forma de tramitação do processo, no Brasil, põe em causa os mais elementares direitos constitucionais, devendo ser recusada a cooperação internacional nos termos do artigo 6.° alínea a) da Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto; de estarem em causa graves atropelos às mais elementares regras constitucionais e de direitos humanos, pelo que a extradição irá causar grave prejuízo para a extraditanda; alega problemas de saúde como apneia do sono hipotiroidismo e pré-diabetes (artº 18º, nº2 da Lei 144/99) e que os factos constantes do pedido de extradição, alegadamente por si cometidos, ocorreram em Portugal, devendo a extradição ser excluída nos termos do artigo 32.°, n.° 1 a) da Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto. 3. E se relativamente aos motivos de doença a oposição não colheu (não foram dados tais factos como provados) e no que concerne à prática dos factos em Portugal, se apurar não existir nenhum inquérito a correr no nosso país, o Tribunal da Relação entendeu colher as alegações de falta de condições nas prisões do Brasil, para indeferir a extradição: 4. Primeiramente cabe-nos dizer que a alínea a), do n.º 1, do art. 6º, da Lei nº 144/99, sob a epígrafe de requisitos gerais negativos da cooperação internacional, que estabelece que o pedido de cooperação é recusado “quando o processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal”, não é aplicável; 5. Pois que, na “Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, tal como ocorre relativamente ao Regime Jurídico do MDE, encontra-se subjacente a ideia de cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo em vista o combate célere e eficaz da criminalidade, na base da confiança recíproca entre os Estados contratantes e do reconhecimento mútuo, princípios através dos quais se garante que as decisões judiciais de qualquer um dos Estados serão respeitadas e tomadas em consideração por todos os outros Estados nos precisos termos em que foram proferidas” – acórdão do STJ, de 30 de outubro de 2013, no procº nº 86/13.8YREVR.S1 e 6. “O princípio de confiança mútua que subjaz e constitui o cerne da cooperação judiciária internacional funda-se na convicção de que todos os subscritores dos instrumentos daquela cooperação comungam de um conjunto de valores nucleares tributários dos direitos do Homem, estando sujeitos aos mesmos mecanismos específicos e comuns da garantia daqueles valores” – Acórdão do STJ de 22 de abril de 2020, Proc. 499/18.9YRLSB.S1; 7. A República Federativa do Brasil é um Estado soberano de democracia institucional instituída e consolidada, cuja Constituição garante ser um Estado de Direito democrático e o respeito pelos direitos humanos; 8. Ademais, a República Federativa do Brasil é um país reconhecido como integrado nas nações democráticas, membro da O.N.U., que subscreveu convenções internacionais respeitantes aos Direitos Humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradante e que se reclama da tradição constitucional humanista e de princípios que são inerentes e imanam da própria ideia de Estado de direito democrático e do respeito mútuo pelos compromissos assumidos internacionalmente com os outros Estados, como é o caso da Convenção da Extradição da CPLP; 9. Por despacho de 30 de novembro de 2023, relativamente à questão de que a requerida AA não ser sujeita a qualquer tratamento prisional que possa ser considerado cruel, desumano ou degradante, foram solicitadas garantias ao estado Requerente. 10. E tais garantias foram prestadas pelo Brasil (na pessoa do juiz da ... Vara Federal Criminal da SJDF), o qual afirmou: « … Conforme já salientado pelo Ministério Público Federal nos presentes autos, OSI investigados que forem, efetivamente, extraditados, inclusive (…) AA e (…), não ficarão sujeitos a qualquer tratamento prisional que possa ser considerado cruel, desumano ou degradante…”. 11. Acrescentando ainda que “.. a Procuradoria da República, nesta unidade da federação, tem por obrigação funcional tutelar tais direitos, incumbência que, efetivamente, vem cumprindo, inclusive, realizando inspeções trimestrais na Penitenciária Federal de... - ..., onde, a princípio, os referidos investigados, inclusive (…) AA e (…) , ficarão encarcerados, exercendo o controle externo da atividade policial, visando à correção de irregularidades, ilegalidades ou eventuais abusos de poder policial, na busca por um serviço de segurança pública que seja prestado com eficiência e respeito a todos os detentos». 12. Parece-nos, pois, por demais evidente, que foram prestadas as garantias solicitadas ao Estado Requerente, da abstenção por banda do Brasil, de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, bem como da garantia de que o MP naquele país fiscalizará os eventuais abusos e ilegalidades a todos os reclusos, mais uma vez individualizando a extraditanda. 13. Assim, se por um lado não é invocável o art. 6º, a), da Lei nº144/99, por outro sempre se dirá que o processo no âmbito do qual foi formulado o pedido de cooperação oferece todas as garantias de um procedimento que respeite as condições internacionalmente indispensáveis à salvaguarda dos Direitos do Homem satisfazendo, igualmente, as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, contrariamente ao defendido pelo recorrente e afirmado no Acórdão. 14. Conforme estipula o artigo 7º/1, da CRP, «Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios (…) da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados (…). 15. Por outro lado, é frisado no Tratado de Extradição entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, no artº 1 sobre as “Obrigações de extraditar”, ambos os países pactuam a reciprocidade e obrigação legal de extraditar um indivíduo que tenha prisão preventiva expedida em um procedimento criminal ou prisão para cumprimento de pena, oriunda de uma condenação penal transitada em julgado, perante o Tribunal do país requerente do pedido.” 16. Pelo que e relativamente ao que se estabelece no artigo 22º, da Convenção, de acordo com o qual “o Estado requerido pode recusar, com a devida fundamentação, o pedido de extradição quando o seu cumprimento for contrário à segurança, à ordem pública ou a outros seus interesses fundamentais”, atento que já se deixou dito, não se vê que o cumprimento do pedido de extradição viole ou seja contrário a qualquer dos interesses fundamentais do Estado Português. 17. O pedido de extradição da AA respeita todos os requisitos formais e substanciais previstos na Convenção e na Lei 144/99 de 31 de agosto, nada impedindo que seja deferida a extradição. 18. Não se verificando qualquer das causas de inadmissibilidade ou de recusa facultativa da extradição, expressamente previstas nos artigos 3º e 4º e 22º da Convenção, não sendo aplicável in casu o estabelecido nos artºs 6º, nº1, al.s a) e b) e nº3, 9º, nº1, 18º, nº 2 e 32º, nºs1, al.a) e 4 da Lei nº 144/99, de 31/08, sendo certo ainda que o cumprimento do pedido de extradição não se mostra contrário à segurança, à ordem pública ou a outros interesses fundamentais do Estado Português, cumpre deferir o pedido de extradição. 19. Consequentemente, deve ser revogada a decisão recorrida, por violação do disposto nos artigos 3º e 4º e 22º da Convenção CPLP, 6º, nº1, al.s a) e b) e nº3, 9º, nº1, 18º, nº 2 e 32º, nºs1, al. a) e 4 e 57º, nº 2 da Lei nº 144/99, de 31 de agosto, e substituída por outra que defira o pedido de extradição.» 3. A cidadã Recorrida não apresentou resposta. 4. Cumpridos os vistos nos termos previstos no artigo 59º, nº 1, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto e realizada a conferência nos termos previstos nos artigos 418º e 419º, ambos do Código do Processo Penal (CPP), ex vi artigo 57º, nº 2, daquela Lei, cumpre decidir. II. DOS FACTOS 1. AA foi detida pela Polícia Judiciária, no dia 6 de Março de 2023, às 11H00M, em sua casa, sita na Rua ...,.... 2. A detenção havida sido pedida a título provisório, pelas autoridades judiciárias do Brasil, como acto prévio de um pedido formal de extradição, em conformidade com o disposto no artigo 21º, da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CEEMCPLP). 3. A detenção foi efetuada com base no Mandado de Detenção Internacional, inserido, pelas autoridades judiciárias do Brasil, no Sistema da Interpol com o n.° ........08 e o número de controlo ...........23, na origem da Notícia Vermelha, emitido pela República Federativa do Brasil. 4. Com vista à extradição de AA para o Brasil, pelo cometimento dos crimes de apropriação ilegítima, de burla em comércio eletrónico, de branqueamento de capitais e de organização criminosa, p. e p. pelo art. 171º, parágrafo 2-A, do Código Penal do Brasil, artigo 1º da Lei 9613/98 e artigo 1 da Lei 12850/13. 5. O pedido de detenção provisória, para extradição, teve lugar para efeitos de procedimento criminal pelos indicados crimes e foi formulado com o n.° ........ ...............00, de 09/02/2023, pela .... Vara Federal Criminal do DF - Brasil, assinado por DD. 6. Os factos que fundamentam o pedido, de acordo com a Notícia Vermelha, são os seguintes: «Em janeiro de 2022, a empresa de fachada P..... ......... .......... foi constituída por EE com o objetivo de cometer fraudes financeiras eletrónicas relacionadas com falsos investimentos (B......). A sociedade tem sede em Lisboa/Portugal, mas a atividade principal é no Brasil, onde existe o maior número de vítimas. Esta sociedade apresentava-se como empresa de publicidade, responsável por publicitar "G.... .......". «Havia dois setores na referida empresa: o "Call Center, responsável por angariar clientes, e a "Fidelização", responsável por orientar as vítimas relativamente à transferência de montantes para operações fictícias. «AA - gestora do departamento "Venda", era responsável pelo primeiro contacto com as vítimas, apresentando propostas e divulgando também informações atualizadas sobre a bolsa de valores. EE, em janeiro de 2022, constituiu a sociedade denominada P..... ......... .........., sedeada em Portugal, com o objetivo de cometer fraudes financeiras eletrónicas relacionadas com falsos investimentos (B......).” «A requerida, EE, FF, GG, HH e II atuavam com o objetivo de se apropriarem de entregas em dinheiro, a que não tinham direito, que obtinham mediante engano, que criavam, com o qual induziam as vítimas a entregar-lhes quantias em dinheiro e faziam-no de forma organizada e estratificada. «Os demais indivíduos foram também objeto de pedido de emissão de Notícia Vermelha, no âmbito da qual foram detidos FF, GG e HH». 7. A requerida foi ouvida, neste Tribunal da Relação em 7 de Março de 2023, nos termos e para os efeitos previstos no art. 54° da Lei n° 144/99 de 31/08. 8. A extraditanda encontra-se atualmente em situação de liberdade, sujeita às medidas de coação de termo de identidade e residência, entrega de passaporte, proibição de se ausentar do território português e obrigação de comparecer quinzenalmente no órgão de polícia criminal da área da sua residência, determinadas nos presentes autos. 9. Chegou, entretanto, aos autos, em 10 de Abril de 2023, o pedido formal de extradição da requerida AA, segundo o qual, os factos de que a mesma se encontra indiciada são os seguintes: «Segundo relatado pela autoridade policial responsável pela investigação, EE, com a ajuda de um de seus sócios (II) montou uma organização criminosa de fraudes eletrónicas sediada em Lisboa/Portugal com exclusiva finalidade de efectivar ataques a cidadãos brasileiros. Relata, ainda, que criaram diversas empresas de corretagem fantasmas (B......) e montaram um call center em que assediam centenas de pessoas, simulando números brasileiros, cadastrando uma conta, na qual as vítimas pensam ser de uma empresa idônea de investimentos. «A partir daí, os referidos investigadores passaram a investir em operações fictícias indicadas pelos “corretores” do esquema. A cada perda milionária, as vítimas eram induzidas a investir mais e encorajadas pelos criminosos a “reverter” as perdas. Quando as vítimas perdiam todo seu dinheiro, os criminosos bloqueavam o WhatsApp, desapareciam e deixavam as vítimas sem qualquer contato. «Consta da investigação, também, que os supostos investimentos nunca foram realizados e que o numerário obtido era depositado nas contas dos chefes deste esquema ilícito. «Apurou-se, também, que AA – gerente do departamento de “SALE” – era responsável pelo primeiro contacto com as vítimas, apresentando uma proposta e expondo informações atuais sobre o mercado de acções.» 10. O pedido veio instruído com o pedido de extradição formalizado pelas autoridades brasileiras e com cópia do despacho da Senhora Ministra da Justiça n° ........23 assinado em 5 de abril de 2023 que considerou admissível o pedido de extradição. 11. A Justiça brasileira pretende que a requerida seja extraditada para a República Federativa do Brasil para ser sujeita a procedimento criminal e colocada em prisão preventiva, enquanto aguarda os ulteriores termos do mesmo processo. 12. A requerida tem nacionalidade brasileira. 13. Não correu nem corre perante os tribunais portugueses qualquer processo criminal contra o extraditando pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição. 14. O procedimento criminal não se acha extinto, por efeito da prescrição, de acordo com o preceituado no artigo 118.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal de Portugal e artigos 109.º e 111.º do Código Penal do Brasil. 15. A requerida aufere 800 € mensais de retribuição acrescida de comissões que rondam cerca de 300 €. 16. A requerida vive maritalmente há cerca de 12 anos com JJ, do qual tem um filho com 16 anos, que vive a seu cargo e do seu companheiro. 17. Vive em casa arrendada pela qual paga 700€ mensais. 18. O seu companheiro JJ é barbeiro, auferindo cerca de 1000€ mensais. 19. Está em Portugal há cerca de 5 anos (com referência a 26-06-2018) com autorização de residência válida até dia 01-08-2023. 20. A requerida tem problemas de saúde. 21. A requerida e família vieram viver para Portugal há cerca de 5 anos para fugir da violência e insegurança que sentiam no Brasil. 22. Não pretendem voltar para o Brasil. 23. A requerida, estando ao serviço da P..... ........., tomava conta da equipa que fazia os investimentos. 24. A empresa onde a requerida trabalha só empregava Brasileiros 25. Os clientes são todos residentes no Brasil. Para a decisão importa ainda reter a factualidade seguinte: 26. Em 30 de Novembro de 2023, foi lavrado despacho nos autos, determinando que «se solicite ao Estado Requerente da extradição, a República Federativa do Brasil, a prestação de garantias concretas de que a requerida não correrá qualquer risco de ser sujeita a tratamentos desumanos, degradantes ou cruéis, nem a formas de tratamento atentatórias por qualquer meio de sua dignidade humana, ou que possam reconduzir-se ao conceito internacional de tortura». 27. Em resposta ao despacho anterior, através das vias competentes, foi recebido o despacho emitido pelo «Órgão Julgador», ... Vara Federal Criminal da SJDF, do seguinte teor: «Conforme já salientado pelo Ministério Público Federal nos presentes autos, [os] investigados que forem, efetivamente, extraditados, inclusive (…) AA e (…), não ficarão sujeitos a qualquer tratamento prisional que possa ser considerado cruel, desumano ou degradante. Assim, encaminhe-se cópia do presente despacho, com força de ofício, à Coordenação de Extradição e Transferência de Pessoas Condenadas/DRCIT, em resposta aos ofícios nºs (…) asseverando às autoridades portuguesas que os investigados a serem extraditados, inclusive (…) AA e (…) , não ficarão sujeitos a qualquer tratamento prisional que possa ser considerado cruel, desumano ou degradante, pois, nos termos do artigo 5º, inciso XLVII, da Constituição Federal, (“ não haverá penas: “a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art.º 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”; Remetam-se também os documentos apresentados pelo Ministério Público Federal (parecer de ID ........48 e formulários de visita trimestral aos estabelecimentos prisionais no Distrito Federal de ID ........49). Os quais esclarecem que a Procuradoria da República, nesta unidade da federação, tem por obrigação funcional tutelar tais direitos, incumbência que, efetivamente, vem cumprindo, inclusive, realizando inspeções trimestrais na Penitenciária Federal de B....... - P...., onde, a princípio, os referidos investigados, inclusive (…) AA e (…), ficarão encarcerados, exercendo o controle externo da atividade policial, visando à correção de irregularidades, ilegalidades ou eventuais abusos de poder policial, na busca por um serviço de segurança pública que seja prestado com eficiência e respeito a todos os detentos». 28. Em 7 de Março de 2023, procedeu-se à audição da requerida, no Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 54º da Lei nº 144/99 de 31 de Agosto, em cujo decurso foi validada a detenção efetuada e decidido que a requerida aguardasse os ulteriores trâmites procedimentais em liberdade, sujeita às seguintes medidas: a) T.I.R., já validamente prestado; b) Entrega do passaporte. c) Proibição de se ausentar do território português; d) Sujeição à obrigação de comparecer quinzenalmente no órgão de polícia criminal da área da sua residência. III. DO DIREITO 1. Tendo em conta as acima transcritas conclusões da motivação apresentada pelo Ministério Público, que, sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, delimitam o presente recurso (artigos 402.º, 403.º e 412.º do Código do Processo Penal), a questão a enfrentar no âmbito do presente recurso é a de saber se a garantia solicitada pelo Tribunal recorrido - por considerar real o risco de a cidadã extraditanda ser sujeita a tratamentos desumanos e degradantes depois de entregue, por virtude das condições das prisões brasileiras (problema sistémico), face às exigências que decorrem de normas de direito internacional de proteção dos direitos humanos - e prestada pelo Estado brasileiro, se deve considerar adequada, suficiente. 2. 2.1. Na verdade, como inicialmente se deixou referido, o Acórdão recorrido expressamente reconhece que, no caso, não se verifica nenhuma das causas, taxativas, de recusa obrigatória ou facultativa da extradição, de entre as previstas nos artigos 3º e 4º da Convenção CPLP. Por outro lado, vem fundadamente afirmado o respeito dos direitos humanos pelo sistema jurídico do Estado requerente. Acresce que a satisfação do pedido de extradição da cidadã AA não tem aptidão perturbadora da segurança, da ordem pública ou de outros interesses fundamentais do Estado Português, que permitisse a recusa do pedido, à luz do artigo 22º da mesma Convenção. 2.2. Entendeu-se, todavia, que a resposta recebida ao aludido despacho de 30 de Novembro de 2023 «não deu quaisquer garantias concretas», «não sendo suficiente para o efeito, a afirmação genérica de que a requerida não será sujeita a qualquer tratamento prisional que possa ser considerado cruel, desumano ou degradante», com referência ao citado imperativo da Constituição da República Federativa do Brasil, «na medida em que essa previsão constitucional não foi, até ao momento actual, impedimento bastante para as recorrentes violações de direitos humanos fundamentais dos reclusos e do risco acrescido que a simples situação de reclusão representa para a sua própria vida, fruto da superlotação nas cadeias, da inexistência de número suficiente de guardas prisionais que garantam condições de segurança mínimas, nem preveniu os tumultos frequentes que resultam em mortes, violência entre os presos, nem asseguraram medidas de segurança inadequadas em algumas prisões, nem obviou à falta de pessoal médico, medicamentos e equipamentos médicos, bem assim, aos relatos de agressão e violência sexual em centros de detenção, com uma incidência particularmente alta no caso de mulheres detidas»; relativamente aos «deveres funcionais da Procuradoria da República de controle externo da atividade policial, (…) na busca por um serviço de segurança pública que seja prestado com eficiência e respeito a todos os detentos, também não se mostrou até agora suficientemente eficaz para evitar tais abusos». E concluiu-se que: «Em face da situação sistémica do sistema prisional brasileiro ilustrada quer, nas declarações sucessivas do Supremo Tribunal Federal brasileiro do estado de coisas inconstitucional resultante das lesões massivas dos direitos humanos dos reclusos, quer nos sucessivos relatórios do Comité da ONU contra a tortura, por ser real e iminente o risco de a requerida, uma vez entregue ao sistema de justiça brasileiro, ser sujeita a tortura e a tratamentos cruéis, desumanos e degradantes que podem até colocar em risco a sua vida, a extradição terá de ser recusada». 2.3. Dir-se-ia, numa primeira abordagem, que mesmo a admitir-se, como se conclui no Acórdão recorrido, que exista, genericamente exista, «risco real e iminente» de tratamento cruel, desumano ou degradante, não pode afirmar-se que, no concreto caso dos autos, a ora Recorrida venha a ser sujeita a tal tratamento em caso de entrega às autoridades do Estado requerente. Tanto mais quanto, a matéria assente não habilita, no enfoque casuístico, a conclusão de que venha sequer a ser submetida a prisão preventiva (que terá sido determinada pela autoridade judiciária competente com essencial fundamento – já prejudicado - no desconhecimento do lugar onde se encontra – cfr. Oposição, transcrita a fls. 2 do Relatório do Acórdão recorrido e voto de vencido). 2.4. Dispõe a alínea a) do nº 1 do artigo 6º, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto que o pedido é recusado “quando o processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal”. Norma esta que o Ministério Público considera violada por não ser aplicável à situação em presença. Na verdade, como é convenientemente assinalado nas conclusões da motivação do recurso e na declaração de voto de vencido, o tema, tal como vem configurado no Acórdão recorrido e aí fez maioritário vencimento, tem colhido reiterado e divergente tratamento na Jurisprudência deste Supremo Tribunal. Deve, em primeira linha, acentuar-se, como se deixou escrito, entre outros, no Acórdão deste Tribunal, de 23 de Março de 2023, proferido no processo n.º 110/23.6YRLSB.S1, que “ (…)o Brasil é um Estado democrático, assente em princípios fundamentais como a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a separação de poderes, regendo-se nas suas relações internacionais pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, sendo certo que subscreveu inúmeras convenções internacionais respeitantes aos direitos humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e a Convenção de extradição entre os Estados membros da CPLP, razão pela qual as autoridades brasileiras não deixarão de assegurar, de forma integral, o respeito pelos direitos fundamentais do extraditando e, nomeadamente, a sua própria integridade física», sendo que tal Convenção “…não prevê a possibilidade de recusa de extradição com fundamento no alegado funcionamento deficiente do sistema de justiça e do sistema prisional do Estado emissor do pedido de cooperação” (…), porque lhe subjaz “ a idéia de cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo em vista o combate célere e eficaz da criminalidade, na base da confiança recíproca entre os Estados contratantes e do reconhecimento mútuo, princípios através dos quais se garante que as decisões judiciais de qualquer um dos Estados serão respeitadas e tomadas em consideração por todos os outros Estados nos precisos termos em que foram proferidas.” – sic. Acórdão de 30 de Outubro de 2023, o processo nº 86/13.8YREVR-S1, citado no de 23 de Março de 2023, no processo nº 110/23.6YRLSB-S1, parcialmente transcrito no de 11 de Outubro de 2023, no processo nº 1669/23.3YRLSB-S1, todos deste Supremo Tribunal. E como se escreve no Acórdão de 22 de Abril de 2020, no processo nº 499/18.9YRLSB-S1: “ (…) O princípio de confiança mútua que subjaz e constitui o cerne da cooperação judiciária internacional funda-se na convicção de que todos os subscritores dos instrumentos daquela cooperação comungam de um conjunto de valores nucleares tributários dos direitos do Homem, estando sujeitos aos mesmos mecanismos específicos e comuns da garantia daqueles valores.” – sic. Referindo-se expressamente a decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil (ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - 347), convocada no Acórdão recorrido, quanto à “violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro”, escreve-se no acórdão deste Tribunal, de 3 de Janeiro de 2024, Proc. 2757/23.1YRLSB.S1, “(…) não se vê que a extradição para o Brasil tenha como segura consequência a colocação em risco da integridade física ou da vida do requerido, sendo que cabe notar que a decisão proferida na mencionada ADPF nº 347 prevê a adoção de medidas concretas tendo em vista introduzir melhorias no sistema prisional brasileiro e obviar à violação de Direitos Humanos constatada pelo Supremo Tribunal.”. 2.5. Não se questionando a conformidade legal do impulso assumido pelo Tribunal recorrido perante as autoridades do Estado requerente, não é aceitável, à luz da Convenção, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto e da Jurisprudência firmada sobre a matéria, a valoração que atribuiu à garantia que pediu e que foi adequadamente prestada, nem a conclusão com base nela operada. Num derradeiro enquadramento da questão à luz da protecção absoluta contra o tratamento proibido pelo artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), não pode afirmar-se, como no Acórdão recorrido, que a garantia adicionalmente fornecida pelo Estado requerente se reduz a irrelevante “afirmação genérica”: tal garantia, que toma como exclusiva destinatária a cidadã AA, não deve ser ignorada, consubstanciando um compromisso que vincula o seu autor e cuja violação poderá contra ele ser invocada perante os órgãos jurisdicionais do Estado de emissão. Remete-se, no que é importável para a situação em presença, para o exame exaustivo que dela se faz no Acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Setembro de 2023, Proc. 78/23.9YRCBR.S2, que se acompanha e subscreve sem reservas: “ (…) 12. Como se explicitou no acórdão anterior [de 31 de Maio de 2023, proferido neste mesmo processo] que seguidamente se transcreve e segue de perto, o artigo 55.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99 apenas admite oposição à extradição com fundamento em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição, sendo os meios de prova a apresentar os destinados à comprovação destes fundamentos (n.º 1). (…) 18. Como tem sido reconhecido na jurisprudência e nas instâncias internacionais, a avaliação do risco deve levar em conta os relatórios e avaliações de organismos internacionais, nos quais se incluem, em particular, os do Comité e do Subcomité para a Prevenção da Tortura, instituídos pela Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e respectivo Protocolo Facultativo, de organizações não governamentais de reconhecida credibilidade e de organismos nacionais com intervenção neste domínio. 25. Para além disso, dado o seu grau de especificação por referência à pessoa condenada, não pode agora afirmar-se…que as garantias prestadas pelas autoridades brasileiras “são vazias de sentido” por “contrariarem toda a literatura sobre o assunto, para além de contrariarem ainda os Relatórios elaborados pelas Nações Unidas, onde está inequivocamente assente que o sistema prisional brasileiro não está em condições para assegurar um tratamento que não seja desumano, independentemente de ser afirmado (sem prova) que se dá garantias do contrário”. (…) a prestação de garantias justifica-se exactamente nos casos em que … se revela um risco real de violação dos direitos humanos em virtude das más condições prisionais de natureza sistémica no Estado requerente. As garantias são aceitáveis se, por existir esse risco, numa “avaliação adequada”, se puder concluir que, não obstante esse risco, a pessoa cuja extradição é pedida ficará por elas protegida em virtude do particular compromisso assumido pelo Estado requerente em assegurar a segurança e as condições de dignidade e de vida nas prisões de acordo com os standards impostos pelo direito internacional de protecção dos direitos, em conformidade com o princípio da boa fé que se impõe na sua aplicação, ao qual, para além do mais, é conferida expressão jurídica na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados …. Neste quadro, tendo em conta as implicações deste princípio e o princípio da cooperação leal que se impõe na cooperação penal entre Estados, bem como os critérios de avaliação da qualidade e de aplicação prática, nomeadamente no que respeita à entidade que emite a garantia, à sua posição institucional, à sua força vinculativa e ao seu conteúdo, ao quadro legal de protecção contra a tortura e os maus tratos, à prática do Estado requerente neste domínio e às possibilidades de verificação e controlo do cumprimento e o direito de acesso a um tribunal [cfr. acórdão Othman (Abu Qatada) c. Reino Unido, supra, 15], não se encontra motivo que coloque em crise a avaliação … da suficiência das garantias prestadas… Como se conclui nessa avaliação, o Estado requerente encontra-se dotado de um sistema jurídico fundado no respeito pelos direitos humanos, que garante adequadamente a protecção contra a tortura e os tratamentos desumanos ou degradantes no interior das prisões, a que se encontra vinculado, mostrando-se formalmente documentado pelo “tribunal da sentença” (artigo 65.º da Lei de Execução Penal do Estado requerente – Lei n.º 7210, de 11.7.1984) que, no caso concreto, estão reunidas as condições de protecção da pessoa e dos direitos do extraditando durante a execução da pena (…) Acresce que, como se notou, do relatório do Comité contra a Tortura, de Abril de 2023, extrai-se que são de notar os esforços que estão a ser feitos no sentido da melhoria do sistema prisional do Estado requerente, o que não pode deixar de constituir um elemento relevante de apreciação neste contexto.”. (…) 111. A garantia fornecida pelas autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão de que a pessoa em causa não sofrerá tratamentos desumanos ou degradantes devido às condições concretas e precisas de detenção seja qual for o estabelecimento prisional onde ficará encarcerada no Estado‑Membro de emissão é um elemento que a autoridade judiciária de execução não pode ignorar. Com efeito, (…) a violação desse compromisso, que vincula o seu autor, poderá ser invocada contra ele perante os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de emissão.” IV. DECISÃO Sendo taxativas as causas de inadmissibilidade ou de recusa facultativa que podem, nos termos dos artigos 3º e 4º, da Convenção e dos artigos 6º a 8º e 32º, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, fundamentar a recusa do pedido de extradição, causas essas cuja não verificação o Acórdão recorrido expressamente reconhece. E não estando em causa a segurança, a ordem pública ou outros interesses fundamentais do Estado requerido, conforme o artigo 22º da Convenção, nada obsta à satisfação do pedido de extradição, na presença de adequada garantia prestada pelas autoridades do Estado requerente no sentido de que “não correrá qualquer risco de ser sujeita a tratamentos desumanos, degradantes e cruéis nem a formas de trato atentatórias por qualquer meio da sua dignidade humana, ou que possam reconduzir-se ao conceito internacional de tortura.” – sic. Consequentemente, com os fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal em revogar o Acórdão recorrido, ordenando, nos termos do artigo 13º, da Convenção de Extradição CPLP, a entrega da cidadã brasileira AA à República Federativa do Brasil, para fins de procedimento criminal. Sem custas, por não serem devidas (artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto). Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Maio de 2024 Eucária Vieira (Relatora) Lopes da Mota (1º Adjunto) Pedro Branquinho Dias (2º Adjunto)