Apura logo

Acórdão TCA Sul de 2011-12-07

05681/09

TribunalTribunal Central Administrativo Sul
Processo05681/09
SecçãoCA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão2011-12-07
RelatorBenjamim Barbosa
DescritoresOrdem de Demolição. Destinatário. Senhorio. Arrendatário

Sumário

1. A ordem de demolição de obra construída em infracção ao regime urbanístico deve ser dirigida contra o infractor, entendendo-se este como o dono da obra. 2. Por dono da obra deve entender-se a pessoa colectiva ou individual que promove o projecto ou obra, podendo não haver coincidência com dono da coisa onde a obra é executada. 3. Assim, o senhorio de um prédio não pode ser o destinatário de um ordem de demolição de obra ilegal imposta pela autoridade administrativa competente, se essa obra tiver sido executada ou mandada executar pelo inquilino, que assume neste contexto as vestes de dono da obra e de infractor.


Texto Integral

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL: I – Relatório A..., com os demais sinais nos autos, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo TAC de Lisboa que em acção administrativa especial que intentou contra o recorrido Município de Lisboa, julgou a mesma improcedente, não declarando a nulidade ou anulação do despacho preferido pela Vereadora B...a 03.11.2006, que lhe ordenou a demolição de uma obra executada pelo arrendatário de um prédio de que é proprietário. Nas alegações concluiu do seguinte modo: “1- O proprietário de imóvel, tem legitimidade para iniciar procedimento administrativo, que vise a decisão para demolição de obra ilegal, realizada por locatário, em intervenção urbanística não licenciada e insusceptível de legalização ou autorização, e, mesmo mediante a realização de correcções ou alterações, insusceptível de ver assegurada a sua conformidade com as disposições legais regulamentares que lhe são aplicáveis. 2- A recorrida ao notificar, nos termos do art. 100.º do CPA, o locatário - dono da obra para se pronunciar, comunicando a sua intenção de intimação para demolição, fá-lo de acordo com a atribuição de legitimidade de interessado ao locatário. 3- O locatário que expressamente confessa que foi ele quem realizou as obras sem licenciamento no locado, define a qualidade de infractor nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1065 do RJUE. 4- Pelo que a circunstância de o recorrente ter iniciado o procedimento tendente à aferição de legalização da construção, não inibe, nem afecta, nem obsta a que a decisão para demolição, venha a ser comunicada e proferida contra ou sobre quem realizou a operação urbanística ilegal e é de facto o dono da obra. 5- Porque o locatário tem a legitimidade e possibilidade de requerer o licenciamento de obras que pretenda realizar no prédio arrendado, não se compreenderia que a notificação para a sua demolição não recaísse sobre a sua pessoa. 6- Assim, a presente notificação para a demolição de obras não licenciadas, deve ser comunicada ao inquilino e não ao proprietário do imóvel. 7- Deste modo se conclui que, para a prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos e por aplicação expressa do princípio da desburocratização e eficiência, só a comunicação ao inquilino torna a decisão administrativa útil e exequível. Ao concluir como concluiu decidindo na não verificação dos vícios apontados ao acto impugnado, a douta decisão em crise, interpretou erradamente o disposto no art. 106g do RJUE e os art.s 3.º, 4.º, e 10.º do CPA, resultando na violação dos princípios da ” O recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida. Neste TCA Sul o EMMP pronunciou-se no sentido de ser concedido provimento ao recurso. Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência. * II – Fundamentação II.1 – De facto A sentença considerou provados os seguintes factos: A) O Autor é proprietário da fracção autónoma correspondente ao rés-do-chão direito do prédio sito na Rua ...em Lisboa (doe. de fls. 30-33); B) O referido rés-do-chão direito encontra-se arrendado, desde 1982, a C... (cfr. contrato de arrendamento de fls. 45-48); C) A 01.07.2004 o Autor dirigiu à Entidade Demandada a exposição de fls. 1 do processo administrativo, da qual consta, designadamente, o seguinte: «na qualidade de proprietário (...) constata que se encontra edificada no saguão que constitui o logradouro anexo ao rés-do-chão direito uma construção abarracada com estrutura em tijolos e coberto com placas de plástico e de luzalite. Tal construção não foi autorizada pelo senhorio. A construção altera a fachada de tardoz do prédio que tem 3 pisos. A construção inviabiliza a colocação de andaimes para a efectivação de obras de conservação do prédio e de alteração, conforme o processo camarário n°2084/OB/2001. (...)»; D) A Entidade Demandada remeteu ao arrendatário do referido rés-do-chão direito o ofício datado de 02.03.2006, de fls. 20 do processo administrativo e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, notificando-o, para efeitos de exercício do direito de audiência prévia, do seguinte: «Foi realizada vistoria ao imóvel referenciado em epígrafe, tendo-se verificado a existência de obras de alteração não licenciadas, enunciadas na informação e despacho de que se junta fotocópia. Na sequência da referida fiscalização e ao abrigo do disposto nos arts. 68°, n° 2 da Lei n° 169/99 de 18.09, com a redacção dada pela lei n° 5-A/2002 de 11.01 e art. 106° n° 1 do DL n° 555/99 de 16.12 com a redacção dada pelo DL n° 177/2001 de 04.06, notifica-se V. Exa. de que é intenção da Câmara intimá-lo, de acordo com aquelas disposições legais, a executar as obras necessárias à reposição do local com o projecto aprovado. (...)»; E) O arrendatário do rés-do-chão direito pronunciou-se sobre a proposta mencionada na alínea anterior nos termos da exposição de fls. 25 do processo administrativo, na qual referiu, designadamente, que as obras em causa haviam sido autorizadas pela anterior senhoria; F) A 31.08.2006 a Entidade Demandada remeteu ao Autor, para efeitos do exercício de audiência prévia, o ofício de fls. 36 do processo administrativo, do qual consta, designadamente, o seguinte: «Foi realizada vistoria ao imóvel referenciado em epígrafe, tendo-se verificado a existência de obras de alteração não licenciadas, enunciadas na informação e despacho de que se junta fotocópia. Na sequência da referida fiscalização e ao abrigo do disposto nos arts. 68°, n° 2 da Lei n° 169/99 de 18.09, com a redacção dada pela lei n° 5-A/2002 de 11.01 e art. 106° n° 1 do DL n° 555/99 de 16.12 com a redacção dada pelo DL n° 177/2001 de 04.06, notifica-se V. Exa. de que é intenção da Câmara intimá-lo, de acordo com aquelas disposições legais, a executar as obras necessárias à reposição do local com o projecto aprovado. (...)»; G) O Autor pronunciou-se sobre a proposta constante do ofício mencionado na alínea anterior através da exposição de fls. não numeradas do processo administrativo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, requerendo que fosse ordenado ao inquilino que procedesse à demolição das referidas obras; H) A 08.11.2006 a Entidade Demandada remeteu ao Autor o ofício de fls. 54 dos autos, com O teor seguinte: «Pela presente, notifica-se V.Exa., na qualidade de proprietário do imóvel sito na Rua ..., nos termos e para o efeito do n° 1 do art. 106° do RJUE, a repor o local (logradouro a tardoz ao nível do r/c dt°) na situação anterior à intervenção não legalizada, de acordo com o despacho da Exma. Senhora Vereadora B...datado de 03.11.2006.»; I) O despacho mencionado na alínea anterior recaiu sobre a informação de fls. 55-57 dos autos, cujo teor se reproduz: «A 28/09/2006, foi proferido despacho pelo Em.º Senhor Chefe de Divisão no proc.º 10663/EXT/2006, com a finalidade da signatária ali elaborar informação técnica. Assim, em cumprimento daquele despacho superior, informaremos que, 1. Sobre a presente situação, a signatária já se manifestou, de acordo com a informação, datada de 14/07/2006, e constante de fls 30 a 35, do prcc.º 2216/DOC/2004, 2. Ali se preconizou que deveria ser repelida a notificação em sede de audiência prévia dos interessados (anteriormente feita em relação ao inquilino do R/C Dto. do ..., Exm.º Senhor C...), mas desta vez, ao proprietário da fracção (e simultaneamente denunciante deste processo). 3. A essa nossa proposta foram exarados despachos superiores de concordância, pelos Exm.ºs Senhores Chefe de Divisão e Director de Departamento. 4. Assim, em cumprimento daqueles despachos, a 06/09/20066, foi enviada a respectiva notificação, concedendo um prazo de 15 (quinze) dias ao Exm.º Senhor A..., para que se pronunciasse, querendo, a propósito da intenção da Autarquia o intimar a proceder à reposição do local (logradouro a tardoz ao nível do R/C Dto.), de acordo com o licenciado por esta Edilidade. 5. Em resposta à citada notificação foi apresentado o proc.º 10663/EXT/2006. Deste modo, do teor desse processo, salientar-se-á que, a) Logo no seu inicio, é confirmada a relação de propriedade do Exm.º Senhor A...com o R/C Dto. do ...; b) Avança que, "Nem o notificado, na qualidade de senhorio, nem qualquer dos anteriores proprietários do prédio autorizaram o inquilino para a realização de obras, nomeadamente, a edificação de uma construção abarracada no saguão a tardoz (...)."; c) Adianta ainda que, o proprietário solicitou ao inquilino por carta de 06/04/2006, a demolição das obras ilegais, tendo o inquilino edificador respondido por comunicação 12/04/2006 (...) que não procedia á demolição da construção por razões de cariz pessoal informando da inexistência de qualquer autorização escrita para a realização de obras. * d) Informa, também que, "vai fazer entrar em juízo, acção de despejo fundada na realização de obras e não autorizadas, contra o inquilino que edificou as obras."; e) A final acrescenta que, "face à oposição do inquilino na demolição, o proprietário senhorio não tem legitimidade (porque é terceiro na prática do acto de construção - que é ilegal -), proceder à demolição da obra conforme estatui o art. 106.º n.º 3 do DL 559/99 de 16/12, com a redacção dada pelo DL 177/2001 de 04/06.", Por isso solicita que os serviços, "em estrito cumprimento dos preceitos legais em vigor se digne a ordenar o infractor interessado C... (...) que em prazo proceda à demolição da obra não licenciada que edificou e em prejuízos das regras de salubridade e higiene, tal sucedendo deve ser ordenada a demolição da obras por sua conta, nos termos do disposto nos arts. I06.º n.º 4 e 108.º diploma acima referenciado". 6. Após a entrada deste procº 10663/EXT/2006, foi proferido despacho pelo Exmo Senhor Chefe de Divisão (a 28/09/2006), para que procedêssemos à sua apreciação. Assim, neste momento, diremos que, 7. Em primeiro lugar, não poderemos deixar de frisar que, apesar de existir outra resposta — em sede de audiência dos interessados, os argumentos por nós aduzidos aquando da nossa anterior prestação (datada de 14/07/2006), manter-se-ão válidos. Isto porque, 8. Na essência, o Notificado vem, além de informar que não deu assentimento para que fossem realizadas as obras constantes no logradouro a tardoz ao nível do R/C Dto. do Imóvel (...), solicitar que seja, de novo, notificado (por estes sérviços) o seu inquino para que este proceda à demolição do anexo. 9. No entanto, sobre esta questão, a signatária já se pronunciou e, em resultado nessa apreciação, houve a realização da notificação ao Exmo Senhor João Nunes. E, tudo isso, porque se considerou, à data (continuando, agora, a perfilharmos da mesma opinião), que o interlocutor junto da Autarquia e o seu primeiro responsável será o Proprietário e não o Arrendatário (vide parágrafos 25 e 26 da n/informação, de 14/07/2006), como pretenderá o Exmo Senhor João Nunes. 10. Deste modo, julga-se que não deverá ser atendido o pedido formulado no proc.º 10663/EXT/2006, dado que, a ser determinado o prosseguimento do processo de intimação, o notificado deverá ser o Proprietário e não o Arrendatário do R/C Dto. do .... 11. Assim, a ser dada continuidade ao procedimento administrativo de intimação (já iniciado com a notificação em audiência prévia dos interessados), agora, deverá a documentação ser submetida à consideração da Exma Senhora Vereadora, Eng.ª B...para que, seja proferido acto administrativo conducente è intimação, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art.º 106.º RJUE. 12. Posteriormente, dever-se-ão desenvolver os restantes mecanismos, de acordo com o plasmado nos parágrafos 18 a 23 da n/informação de 14/07/2006. * II. De Direito Vem interposto recurso jurisdicional da decisão do TAC de Lisboa que não anulou o acto de uma vereadora da Câmara Municipal de Lisboa (CML) que ordenou ao recorrente, enquanto proprietário do imóvel, a demolição das obras executadas pelo inquilino. O julgamento do recurso envolve a apreciação, necessariamente perfunctória, do conceito de relação jurídica administrativa. Como qualquer relação jurídica, a relação jurídica administrativa pressupõe uma relação social regulada por um quadro normativo, que entrelaça as posições jurídicas activas e passivas de pelo menos dois sujeitos e molda o respectivo conteúdo. Tem, porém, a especificidade de ser uma relação pública que combina sujeitos, meios e fins, em que pelo menos um dos sujeitos terá de ser uma entidade pública no exercício de um poder público ou de um dever público ou uma entidade particular dotada do mesmo poder ou vinculada a idêntico dever, em qualquer caso com vista à realização de um interesse público legalmente determinado. Porém, para além das relações jurídicas administrativas simples ou bipolares, que envolvem apenas um sujeito activo e um sujeito passivo, as posições jurídicas subjectivas de terceiros podem ser afectadas pela decisão administrativa tomada no respectivo procedimento, o que origina relações mais complexas, caracterizadas pela multipolaridade de sujeitos com diferentes níveis e pólos de interesse, mas entre si interligados por meio de posições activas e passivas polissimétricas, poligonais ou multilaterais, todos eles visando a protecção da respectiva esfera jurídica. Um exemplo dessas relações complexas é o direito do urbanismo, em que muitas vezes é necessário conciliar interesses divergentes de relações de vizinhança ou contratual, não se confinando a relação administrativa ao mero interessado na autorização administrativa e à entidade que a vai emitir, mas também a outros interessados por conexão com aquela. A densificação da protecção que o direito confere a estas relações concretiza-se, v. g., está no art.º 9.º, n.º 2, do CPTA, que alarga o conceito de interessado para efeitos de legitimidade na impugnação de acto ilegais, e no art.º 8.º do CPA, que consagra o princípio da participação dos particulares nas decisões que lhes digam respeito, materializado no art.º 52.º, n.º 1, cujo n.º 2 estabelece a regra de que a “capacidade de intervenção no procedimento, salvo disposição especial, tem por base e por medida a capacidade de exercício de direitos segundo a lei civil, a qual é também aplicável ao suprimento da incapacidade” e ainda no art.º 53.º, n.º 1, ambos do mesmo diploma, preceito que confere “legitimidade para iniciar o procedimento administrativo e para intervir nele aos titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos, no âmbito das decisões que nele forem ou possam ser tomadas (…). No caso em concreto, o recorrente é titular de capacidade jurídica (cfr. art.º 67.º do CC), porquanto o direito de propriedade sobre o imóvel onde foram construídas as obras a demolir confere-lhe idoneidade para actuar em sua defesa e, por isso, pode intervir numa relação jurídica administrativa em que o mesmo possa ser posto em causa. Para além disso é titular da faculdade jurídica de impor o respeito desse direito a todos (eficácia erga omnes) e, enquanto locador, designadamente o de impedir a realização de obras pelo locatário que não se enquadrem no conceito de reparação de deteriorações inerentes a uma prudente utilização (cfr. art.º 1043º, nº 1, do CC) ou justificadas pelo conforto ou comodidade deste (cfr. art.º 1073º, nº 1, do CC), e desde que não exista autorização escrita ou previsão contratual (cfr. art.º 1074º, nº 2, do CC), e bem assim o de exigir a imediata reposição do prédio ao seu estado anterior (vd. art.os 1043.º, n.º 1 e 1081º, n.º 1, in fine, em conjugação com o disposto nos artigos 802.º, n.º 2, e 808.º, n.º 2, do CC). Deste modo, deve entender-se que a denúncia das obras realizadas no locado pelo inquilino à CML consubstanciam o desejo do recorrente (senhorio) obter, pela via administrativa, o mesmo efeito prático de uma decisão judicial coerciva, ou seja, a denúncia constituiu o meio que lhe possibilitaria concretizar a expectativa jurídica de reposição do locado à custa do inquilino. De facto, é de elementar bom senso admitir que se perspectivasse que essa denúncia se iria voltar contra si o recorrente teria optado pela via judicial. Não é aceitável, por isso, que em violação do princípio da unidade do sistema jurídico(1), que perspectiva o ordenamento como um sistema logicamente coerente – princípio que passou ao lado da decisão recorrida -, se oblitere, administrativamente, um direito que civilisticamente é reconhecido ao recorrente. Por outro lado, esse direito à reposição do locado no estado anterior em que se encontrava concede ao recorrente uma posição de vantagem face ao inquilino, que se constituiu, enquanto autor das obras ilegais e não consentidas, como sujeito passivo da relação jurídica que por essa via se estabelece entre ambos. Ora, bem vistas as coisas tal posição de vantagem é idêntica à que assiste ao recorrido, embora baseada em pressupostos diferentes, já que neste caso o que justifica que a entidade pública seja vista como sujeito activo da relação jurídica administrativa é o interesse urbanístico de ordem pública que subjaz à demolição de obras ilegais ou não licenciadas. Por isso também mal se percebe que duma posição de vantagem o recorrente tenha sido remetido para uma de desvantagem, provocando-lhe danos que só pela via crucis da acção de regresso poderia, eventualmente, colmatar(2). É certo que a decisão recorrida convoca em seu socorro o art.º 9.º do RJUE; todavia, este dispositivo legal é inaplicável ao caso em apreço. De facto, não se trata de iniciar um processo de licenciamento de uma operação urbanística mas, ao contrário, de reprimir a ilegalidade de obras executadas em infracção a normas urbanísticas. Por outro lado o art.º 53.º, n.º 1, do CPA, também não lhe fornece grande apoio, na medida em que o preceito visa apenas estabelecer critérios de participação no procedimento administrativo, sendo por isso tal norma irrelevante no caso em apreço, já que o procedimento foi desencadeado pelo próprio recorrente. Outrossim, quer na decisão recorrida, quer no acto impugnado, olvidou-se o disposto nos artigos 106.º, n.º 4, do RJUE, não se atentou que o art.º 107.º, n.º 2, do mesmo diploma estabelece uma clara distinção entre dono da obra e titulares de direitos reais sobre o imóvel, e que nos termos do art.º 108.º, n.º 1, do mesmo regime, as quantias relativas às despesas realizadas com a execução coerciva “são de conta do infractor” (negrito nosso), e que o n.º 3 deve ser entendido cum grano salis, visto que é manifesto que o privilégio imobiliário nele referido só recai sobre o lote ou terrenos onde se situa a edificação, desde que sejam propriedade do infractor. É por isso paradoxal que tendo a ordem de demolição a dupla natureza de sanção reconstitutiva (colocando a situação no mesmo status quo que se verificava antes da violação das normas ou regime urbanístico) e punitiva (na medida em que a reposição coerciva representa um prejuízo patrimonial para o destinatário), não tenha sido dirigida contra o infractor mas antes contra quem – repete-se – é titular de um direito que, prima facie, lhe confere prerrogativa idêntica à da entidade pública, ou seja, de compelir o infractor a demolir a obra e repor a situação anterior! Por outro lado, o acto em causa viola normas e princípios constitucionais. Ao considerar como destinatário da ordem de demolição o recorrente, viola o disposto no art.º 266.º, n.º 1, da CRP, que impõe que a Administração Pública prossiga o “interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”. No caso sub judice a observância deste preceito implicaria o respeito pelo direito do recorrente, que lhe é reconhecido pelo direito civil e que os art.os 3.º, n.º 1, e 4.º, ambos do CPA, mandam também acatar. Dado que a ordem de demolição consubstancia uma verdadeira sanção punitiva que se abate sobre o destinatário, e considerando também que resulta do processo instrutor que foi instaurado processo de contra-ordenação contra o recorrente, o acto administrativo em causa viola o princípio da intransmissibilidade das penas, previsto no art.º 30.º, n.º 3, da CRP, na medida em que a ordem de demolição não pode ser desligada da sanção a aplicar no processo de contra-ordenação. De resto, para nós o campo de aplicação do referido preceito constitucional não se confina aos casos penais, sendo o princípio que consagra aplicável, designadamente, a todos as decisões administrativas de natureza punitiva ou sancionatória. Resumindo: o acto em causa é manifestamente ilegal, ilegalidade que mete-se pelo olhos dentro, e à qual o EMMP, no seu douto parecer, não deixou de aludir nestes termos: “Vem interposto recurso jurisdicional da sentença que julgou improcedente a acção administrativa especial impugnatória da decisão administrativa que ordenou a demolição de obra clandestina ao A., ora Recorrente, pretendendo este que o destinatário da ordem de demolição devia ser o arrendatário, por ser ele o infractor e dono da obra clandestina. Considera violados os artigos 106° do RJUE e 3.º 4.º e 10.º do CPA. Não se questiona a natureza clandestina da obra, nem que deve ser demolida. Apenas há divergência quanto ao destinatário da ordem de demolição. A questão que se coloca é, pois, apenas esta: constatada a existência duma construção clandestina, que não pode ser legalizada, deve ser intimado para a demolir o seu autor, ou o dono do imóvel arrendado àquele e onde foi erigida a obra clandestina? Ora, parece irrelevante o arrendamento existente para a solução de tal questão. Na verdade, a ordem de demolição é uma das medidas de tutela da legalidade urbanística (cfr. epigrafe da subsecção III, em que se inserem os artigos 102°, a 109° do RJUE), que naturalmente, deve ser imposta a quem infringiu a lei, construindo, sem licença ou autorização administrativa, obra que não pode ser legalizada, independentemente do local onde foi implantada e dos direitos de terceiros sobre este. As qualidades de proprietário e de senhorio do imóvel onde se implantou a obra pode servir para indiciar a autoria da construção, mas, uma vez verificado que o seu autor não é aquele, mas o arrendatário, tais qualidades são irrelevantes no momento de ordenar a demolição e de imputar a responsabilidade pelos encargos respectivos. E isso ainda que o senhorio tivesse autorizado o inquilino a fazer as obras. Essa autorização não dispensa este de respeitar as normas urbanísticas, como não dispensaria o proprietário a autorização dada pela assembleia de condóminos. Por outro lado o promotor da obra nem sempre é o dono do imóvel onde é implantada, mas é o promotor daquela que deve pedir a licença administrativa, com "indicação da qualidade de titular de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística." (cfr. artigo 6.º. n.° 1, do RJUE). E não é o facto de o proprietário ter legitimidade para requerer a licença de construção que o responsabiliza pelos actos de terceiros que ajam sem licença, pois nem aquele é obrigado a promover a construção e, pois, a requerer a licença respectiva, nem estes têm o caminho livre para construir sem licença. Assim, quem age, construindo sem licença, é que deve ser intimado a demolir, independentemente de ter ou não legitimidade para requerer a licença, pois é ele o infractor a que se refere o artigo 106°, n° 4. do RJUE. Aliás, a gravidade do acto de construção clandestina não será menor pelo facto de lhe faltar aquela legitimidade Nem faria sentido que o senhorio, prejudicado ele próprio com a obra clandestina, ainda tivesse de suportar os encargos com a sua demolição”. Por último não pode deixar de se salientar a verdadeira perplexidade que suscita a informação em que se apoiou o acto impugnado, que se refere frequentemente ao infractor, convocando normas constantes do RJUE e do CPA que apontam inequivocamente para a responsabilidade deste, entendido como o autor do facto ilícito ou dono das obras, mas concluindo que quem deve ser notificado para demolir deve ser o “proprietário do local, dado que, produzindo o contrato de arrendamento efeitos entre os contraentes (inter partes), em relação à Autarquia, o seu representante e primeiro responsável será o proprietário”, sem contudo deixar de reconhecer que este terá fundamento “para a resolução do contrato [de arrendamento]”! Resumindo, o recorrente não podia ser o destinatário do acto impugnado, porquanto a interpretação que este acolheu e que a sentença sufragou, põe de lado o direito civil do recorrente, o princípio da unidade do sistema jurídico e acarreta violações de ordem legal e constitucional, cuja observância ditaria óbvia solução diferente da adoptada. O que determina a sua ilegalidade e justifica que se conceda provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e, em substituição, se anule o referido acto (art.º 135.º do CPA e 149.º, n.º 1, do CPTA). * III - Dispositivo: Em face de todo o exposto, acordam em conferência em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e, em substituição, anulam o acto impugnado. Custas pelo recorrido em ambas as instâncias, com taxa de justiça na 1.ª instância que se fixa em 6 (seis) UC, já reduzida a metade. D.n. Lisboa, 2011-12-07 (Benjamim Barbosa, relator) (Carlos Araújo) (Teresa de Sousa) 1- A unidade do sistema jurídico (cfr. art.º 9.º, n.º 1 do CC) deve ser atendida na interpretação e aplicação do direito. Segundo Castro Mendes “A ordem jurídica forma um sistema, de elementos coordenados e homogéneos entre si, não podendo comportar contradições. Daqui resulta que as leis se interpretam umas pelas outras - cada norma e conjunto de normas funciona em relação às outras como elemento sistemático de interpretação" (Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1977, pág. 361). 2- Esta possibilidade decorre de uma interpretação que provoca um entorse na unidade do sistema jurídico ou, como diz Baptista Machado, viola a "coerência intrínseca do ordenamento" (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2ª reimp., Coimbra, 1987, pág. 183).

© 2024 Apura. Todos os direitos reservados.
Termos e Condições
Política de Privacidade