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Acórdão STJ de 2008-10-23

08B2996

TribunalSupremo Tribunal de Justiça
Processo08B2996
Nº ConvencionalJSTJ000
RelatorAlberto Sobrinho
DescritoresMatéria de Direito, Presunção de Paternidade, Reputação
Nº do DocumentoSJ20081023029967
Data do Acordão2008-10-23
VotaçãoUnanimidade
Privacidade1
Meio ProcessualREVISTA
DecisãoNegada

Sumário

1. Poder-se-á dizer que não há fronteiras rígidas a demarcar matéria de facto e de direito, interpenetrando-se, por vezes, as duas situações. Mas a questão de facto corresponde a situações materiais e concretas, a ocorrências da vida real. Enquanto a questão de direito será constituída pelo juízo jurídico-normativo dessas ocorrências reais. E ao lado dos factos e da matéria de direito, existem os juízos de apreciação sobre as tais ocorrências da vida real, autênticos juízos de valor sobre a matéria de facto. Nas acções de posse de estado, as expressões reputação e tratamento como filho integram, de per si e utilizadas sem qualquer suporte referencial, conceitos em que o seu significado envolve elementos normativos e não simples ocorrências do mundo real. Nessas situações tais expressões traduzem indubitavelmente conclusões de direito. A partir do momento em que as expressões reputação e tratamento são concretizadas com referência aos comportamentos objectivos da vida real em que se traduzem esses estados psico-normativos, pode-se afirmar que essas expressões correspondem a situações bem concretas e materiais da vida real e em que o próprio juízo de valor que possa existir sobre esses atitudes correspondem a regras da própria vida. 2. A posse de estado de filho estabelecida na al. a) do n° l do art. 1871° C.Civil é integrada por dois requisitos: a reputação e tratamento de filho manifestada publicamente pelo investigado e a reputação como filho pelas pessoas da localidade onde são conhecidos. Ser tratado como filho significa que o progenitor lhe dispensa aqueles cuidados que normalmente os pais dispensam aos filhos, reveladores exteriormente de laços paternais. Já a reputação traduz uma convicção íntima, revelada por atitudes de aceitação como filho. É na análise de todo o relacionamento que envolveu a investigante e o investigado que se há-de apurar se se verifica esse tratamento e reputação, não se podendo olvidar que o tratamento dispensado a um filho nascido fora do matrimónio, por via de regra, nunca é tão ostensivo e continuado como o dispensado a um filho nascido dentro do casamento. Ostensivo e continuado como o dispensado a um filho nascido dentro do casamento.


Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório AA, intentou, a 2 de Fevereiro de 2001, a presente acção de investigação de paternidade, com processo ordinário, contra - BB; - CC e mulher DD; e - EE, pedindo que seja: a- reconhecido e decretado que é filha de FF e a paternidade averbada no seu Registo de Nascimento; b- e os réus condenados a reconhecê-lo. Em fundamento desta sua pretensão invoca o exclusivo relacionamento sexual de sua mãe com o pretenso pai no período legal da concepção, bem como a reputação e tratamento como filho pelo mesmo e pelos réus, esposa e filho do falecido FF, e ainda a reputação como tal pelo público. Contestaram os réus CC e mulher para, no essencial, impugnarem a factualidade alegada pela autora. Replicou a autora reafirmando a posição inicialmente assumida. Saneado o processo e fixados os factos considerados assentes e os controvertidos, prosseguiu o processo para julgamento e na sentença, subsequentemente proferida, foi a acção julgada procedente e a autora reconhecida como filha de FF . Inconformados com o assim decidido apelaram os réus contestantes, mas sem sucesso, porquanto o Tribunal da Relação do Porto julgou a apelação improcedente. Ainda irresignados, recorrem agora de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela improcedência da acção. A recorrida não apresentou contra-alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. Âmbito do recurso A- De acordo com as conclusões, a rematar as alegações de recurso, o inconformismo dos recorrentes, radica, em síntese, no seguinte: 1- A base instrutória não deve incluir juízos de valor ou juízos significativo-normativos, mas apenas matéria de facto relevante para decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. 2- Nas acções onde se discute a posse de estado “a reputação e tratamento como filho” e a “reputação pelo público” são manifestamente conclusões de direito. 3- A matéria constante dos quesitos 8°, 13°, 15º, 35°, 36° e 38° é conclusiva, ou de direito, não devendo ser considerada, devendo ter-se por não escritas as respostas que lhe foram dadas. 4- E a restante factualidade dada como provada, nomeadamente a constante do quesito 3°, é insuficiente para se decidir, como se decidiu, que a recorrida AA é filha de FF. 5- Mesmo que se admita que durante o período legal da concepção da recorrida, a mãe desta manteve relações sexuais com o FF , a verdade é que não é possível concluir que ela o fez em regime de exclusividade. B- Face à posição dos recorrentes vertida nas conclusões das alegações, delimitativas do âmbito do recurso, são, no essencial, duas as questões controvertidas que se colocam: - se a matéria vertida nos pontos controvertidos 8, 13, 15, 35, 36 e 8 é conclusiva ou de direito; - se a investigante beneficia da presunção de paternidade. III. Fundamentação A- Os factos O acórdão recorrido teve como assentes os seguintes factos: 1. A autora AA é filha de LS e nasceu no dia 4 de Dezembro de 1963. 2. FF, natural de Moreira da Maia, filho de FF e de GS, faleceu no dia 11 de Março de 2000, no estado de casado com a ré BB, sendo os réus CC e EE seus filhos. 3. No período de um ano que precedeu o nascimento da Autora, designadamente nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento, a sua mãe manteve relações sexuais com o FF. 4. A mãe da autora e FF andaram juntos. 5. FF saiu mais cedo do Sanatório de Montalto, em Valongo, onde FF e a mãe da autora, LS, estiveram internados ao mesmo tempo. 6. A autora, cerca de seis meses após o nascimento, foi viver para casa da mãe do FF, GS, tendo sido a mãe da autora que a levou a casa desta. 7. O referido FF tratava a autora como filha e dava dinheiro à sua mãe para ela sustentar a autora. 8. Quem tratava da autora era a GS. 9. Após o casamento do referido FF com a ré BB, a autora continuou a viver com a GS e com uma irmã do FF. 10. O FF ia a casa da sua mãe e continuava a estar com a autora. 11. A autora algumas vezes foi a casa do FF e da ré BB, sita em Campanhã, no Porto. 12. Por sua vez, a dita GS tratava a autora como sua neta, olhando por ela e vivendo com ela e tratando-a a autora por avó. 13. As irmãs do FF tratavam a autora como sobrinha. 14. No casamento de uma irmã de FF , este e a autora, então criança, encontravam-se presentes. 15. Os anos foram decorrendo e a autora sempre conviveu com o FF, ora na casa de GS, ora na residência dele, e com os filhos que entretanto tivera do casamento com a 1ª ré. 16. A autora continuou a viver com a GS e, quando esta faleceu, continuou a viver em casa dela, na companhia de uma irmã do FF, até perfazer 26 anos, altura em que casou e formou o seu próprio lar. 17. Os réus CC e EE foram ao casamento da autora. 18. Nas vésperas do casamento, em 1990, o FF deu de prenda à autora a quantia de 200.000$00. 19. Por sua vez, quando o réu CC casou, a autora foi ao seu casamento. 20. A autora chegou a jantar diversas vezes na casa do FF, na companhia dos réus, todos sabendo que pertenciam à mesma família. 21. Antes de falecer, o FF esteve internado no Hospital de São João e a autora foi visitá-lo. 22. A autora e seu marido foram para a Capela da Junta de Freguesia de Leça do Bailio participar no velório. 23. Algumas pessoas que iam despedir-se do falecido, cumprimentavam a autora e davam-lhe as condolências, reconhecendo-a como filha do mesmo. 24. Algumas pessoas conhecidas de Leça do Balio dirigiam-se à autora a cumprimentá-la e consolá-la pela perda do pai. 25. O falecido FF, até à hora da sua morte, os réus, todos os familiares deles e toda a gente das suas relações sempre reconheceram e trataram a autora como filha do mesmo. B- O direito 1. matéria conclusiva ou de direito De acordo com o disposto no nº 4 do art. 646º C.Pr.Civil, não podem ser consideradas, tendo-se por não escritas, as respostas do tribunal que contemplem questões de direito. Poder-se-á dizer que não há fronteiras rígidas a demarcar matéria de facto e de direito, interpenetrando-se, por vezes, as duas situações. Mas a questão de facto corresponde a situações materiais e concretas, a ocorrências da vida real. Enquanto a questão de direito será constituída pelo juízo jurídico-normativo dessas ocorrências reais. E ao lado dos factos e da matéria de direito, existem os juízos de apreciação sobre as tais ocorrências da vida real, autênticos juízos de valor sobre a matéria de facto. Pode acontecer, como se colhe dos ensinamentos de Anselmo de Castro (1), que o juízo de valor sobre a matéria de facto corresponda, ele próprio, a uma regra da vida ou da experiência que a norma tome como elemento constitutivo directo, prescindindo de o valorar e entregando essa valoração à própria vida ou experiência. Então não funciona sequer como juízo de valor sobre a matéria de facto, sendo um puro facto. Sustentam os recorrentes que a matéria vertida nos pontos controvertidos nºs 8, 13, 15, 35, 36 e 38 é conclusiva, ou de direito, não podendo, por isso, ser considerada, devendo ter-se por não escritas as respostas que lhe foram dadas. Esses pontos controvertidos apresentam a seguinte redacção: E começou a tratar a autora como sua filha, sendo ele que trabalhava, ganhava e sustentava? -8. O FF tratava a Autora como sua filha, dando-lhe roupa e prendas? -13. Por sua vez a dita GS tratava a autora como sua neta, olhando por ela e vivendo com ela? -15. Todas as pessoas que iam despedir-se do falecido, cumprimentavam a Autora e davam-lhe condolências, reconhecendo-a como filha do mesmo? -35. E os familiares do falecido e as pessoas conhecidas de Leça do Balio, dirigiam-se à autora a cumprimentá-la e consolá-la pela perda do pai? -36. O falecido FF, até á hora da sua morte, os réus, todos os familiares deles e toda a gente das suas relações sempre reconheceram e trataram a autora como filha do mesmo? -38. Nas acções de posse de estado, as expressões reputação e tratamento como filho integram, de per si e utilizadas sem qualquer suporte referencial, conceitos em que o seu significado envolve elementos normativos e não simples ocorrências do mundo real. Nessas situações tais expressões traduzem indubitavelmente conclusões de direito. Na situação vertente, as expressões reputação e tratamento utilizadas nos aludidos pontos da base instrutória são concretizadas com referência aos comportamentos objectivos da vida real em que se traduzem esses estados psico-normativos. O investigado tratava a investigante como filha porquanto trabalhava, ganhava, sustentava-a e dava-lhe roupa – 8 e 13. De igual modo, nos restantes pontos controvertidos invoca-se a situação factual que a leva a integrar aqueles conceitos normativos de reputação e tratamento. Por isso, pode-se afirmar que aquelas expressões, nos termos factuais descritivos em que são vertidas nos aludidos pontos controvertidos, correspondem a situações bem concretas e materiais da vida real e em que o próprio juízo de valor que possa existir sobre esses atitudes correspondem a regras da própria vida. Logo, conclui-se que essas expressões, na situação descritiva em que foram utilizadas, não integram conceitos de direito, antes matéria de facto e, consequentemente, as respostas que os pontos controvertidos em causa mereceram têm de ser consideradas. 2. presunção de paternidade Na presente acção a autora socorre-se das presunções estabelecidas no art. 1871º C.Civil, concretamente da reputação e tratamento como filha (al.a) e do trato sexual de sua mãe com o investigado durante o período legal de concepção (al. e), para justificar o estabelecimento da sua paternidade. Porque os factos integradores dessas presunções são constitutivos do direito invocado, incumbe ao autor alegá-los e prová-los em conformidade com o estatuído no art. 342º C.Civil. 2.1- A paternidade presume-se, diz-se na al. a) do nº 1 do art. 1871º C.Civil, quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público. A posse de estado de filho aqui estabelecida é integrada por dois requisitos: a reputação e tratamento de filho manifestada publicamente pelo investigado e a reputação como filho pelas pessoas da localidade onde são conhecidos. Ser tratado como filho significa que o progenitor lhe dispensa aqueles cuidados que normalmente os pais dispensam aos filhos, reveladores exteriormente de laços paternais. Já a reputação traduz uma convicção íntima, revelada por atitudes de aceitação como filho. É na análise de todo o relacionamento que envolveu a investigante e o investigado que se há-de apurar se se verifica esse tratamento e reputação, não se podendo olvidar que o tratamento dispensado a um filho nascido fora do matrimónio, por via de regra, nunca é tão ostensivo e continuado como o dispensado a um filho nascido dentro do casamento. Está demonstrado que a investigante, desde tenra idade (cerca de seis meses) foi viver para casa da mãe do investigado, sendo este a suportar o seu sustento. Visitava e convivia com a investigante, mesmo depois de ter casado. A mãe do investigado tratava a investigante como neta e ela chamava-a de avó e as irmãs do investigado tratavam-na por sobrinha. Não só os familiares do investigado reconheciam e consideravam a investigante como filha daquele, como toda a gente das relações de ambos a reconheciam e consideravam como tal. Infere-se desta factualidade que o investigado considerava a investigante sua filha, dispensando-lhe, tanto no plano afectivo como material, um tratamento paternal e convivendo bem com o relacionamento familiar que se estabeleceu entre eles. Também no seio familiar do investigado a investigante era considerada da família. Pode-se, por isso, concluir que o investigado, além de tratar a investigante como sua filha, exteriorizou a convicção em si arreigada de ser efectivamente seu pai. Mostram-se assim preenchidos o tratamento e reputação como filho pelo pretenso pai. E também está preenchido o requisito de reputação como filho pelo público, porquanto as pessoas das suas relações a consideravam como tal, o que ficou bem patente nas manifestações de solidariedade exteriorizadas aquando do falecimento do investigado. 2.2- A paternidade presume-se ainda, segundo o disposto na al. e) do nº 1 do art. 1871º C.Civil, quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção. O simples relacionamento sexual entre o pretenso pai e a mãe da investigante, no período legal de concepção, preenche esta presunção de paternidade. E o trato sexual entre o investigado e a mãe do investigante, nesse período, ficou efectivamente demonstrado na situação em análise. Na verdade, no período de um ano que precedeu o nascimento da Autora, designadamente nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento, a sua mãe manteve relações sexuais com o FF . A partir do momento em que ficou demonstrado que a investigante foi reputada e tratada como filha pelo pretenso pai e reputada como filha pelo público e, por outro lado, que houve um relacionamento sexual entre o investigado e a mãe da investigante, no período legal de concepção, presume-se a paternidade do investigante em relação ao pretenso pai, em conformidade com o disposto nas als. a) e e) do nº 1 do art. 1871º C.Civil. Estas presunções só se teriam por ilididas se existissem dúvidas sérias acerca da paternidade do investigado, em conformidade com o disposto no nº 2 do citado art. 1871º. Não obstante o exame não conter uma conclusão absoluta sobre a paternidade da investigante, dá-nos uma probabilidade de paternidade, segundo a escala de Hummel, praticamente provada. Mas precisamente por não ter sido alcançada uma certeza absoluta esgrimem os recorrentes argumentos para concluir que não está demonstrada a exclusividade de relações sexuais entre a mãe da investigante e o pretenso pai e, como tal, ilidida esta presunção. Este raciocínio padece de um equívoco básico. Alegados e provados os factos integradores dessa presunção, era sobre os recorrentes que recaía o ónus de a ilidir, alegando e provando a não exclusividade dessas relações (arts. 344º e 350º C.Civil). Depois, o facto do exame comportar uma margem ínfima de erro (0,0000008%) isso não é suficiente para suscitar as tais dúvidas sérias legalmente exigidas para afastar a paternidade do investigado. Uma vez que as presunções de que a recorrida se socorreu não foram ilididas, o que tem como consequência o ter-se como assente o facto presumido, há que a reconhecer como filha do investigado. IV. Decisão Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar a revista. Custas pelos recorrentes. Lisboa, 24 de Outubro de 2008 Alberto Sobrinho (relator) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Lázaro Faria ______________________________ (1) In Lições de Processo Civil, III, pág. 425

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