I - As normas, contidas no n.º 1 do artigo 1817.º e na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito, que estipulam prazos de caducidade para as ações de investigação da paternidade constituem uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação, por violação das disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1 e n.º 4, 25.º e 26.º, n.º 1, todos da CRP, e do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. II – O princípio constitucional da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) comporta uma dimensão material, que se repercute na subjetivização de um conjunto de direitos fundamentais dos indivíduos, de que é exemplo o direito à não discriminação em relação aos filhos nascidos dentro do casamento. Este direito não pode deixar de incluir, para além da óbvia referência à igualdade nos direitos sucessórios, o direito a suprir a omissão provocada pela lei anterior à Constituição de 76, que vedava ou dificultava o estabelecimento da paternidade dos filhos nascidos fora do casamento. III – A natureza pessoalíssima dos direitos do investigante decorre da intimidade mais profunda do ser humano e da sua necessidade afetiva e social de auto-definição e de saber quem é e qual a sua origem. IV – Na operação de balanceamento entre posições contrapostas, os direitos do investigante constituem, de acordo com a hierarquia axiológica da Constituição que tem no seu topo a dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), direitos de superior valia, em relação aos direitos do investigado e da sua nova família. V – O investigante, na hipótese de operar a exceção da caducidade, fica com uma lacuna no seu sistema de parentesco, que não tem qualquer paralelo com os inconvenientes que o estabelecimento da filiação paterna do investigante seja suscetível de gerar para a situação familiar e social do investigado e dos seus outros filhos. VI - Os inconvenientes que decorrem, para o investigado e sua família, da atribuição, no plano legal, de um filho ao investigado e de um irmão ou irmã aos outros filhos que aquele gerou, não se projetam na esfera jurídica pessoal destes nos mesmos moldes em que se projeta na identidade do investigante a negação do vínculo de filiação VII – A ordem jurídica não reconhece ao pretenso pai um direito a não se vincular juridicamente a uma paternidade biologicamente comprovável. VIII – A dimensão do prazo da ação da investigação da paternidade não se afere pela necessidade de proteção da infância ou juventude (artigos 69.º e 70 da CRP), no contexto atual em que o MP investiga oficiosamente a paternidade nos dois primeiros anos após o nascimento (artigos 1864.º e seguintes do Código Civil), mas pela necessidade de tutela da identidade pessoal das pessoas adultas estigmatizadas por uma lei que impedia a investigação da paternidade e discriminava os filhos fora do casamento. IX – A pessoa humana, à luz dos valores da Constituição, deve ter o direito de, em qualquer momento da sua vida, questionar o Estado sobre quem é e quem são os seus progenitores biológicos. X – Os motivos que teve para só numa fase tardia da vida intentar a ação de investigação da paternidade dizem respeito ao seu foro íntimo e estão relacionados com a sua história e a dos seus pais biológicos. Por dizerem respeito à dignidade mais profunda do ser humano – o direito a saber quem é e de onde veio – o Estado não tem legitimidade para avaliar e hierarquizar estes motivos em função do decurso do tempo (ou de qualquer outro critério), fixando um prazo para o exercício do direito da ação de investigação da paternidade.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - Relatório 1. AA, solteiro, maior, filho de BB, nascido a .../03/1976, natural de ..., residente na Travessa ... intentou a presente ação de investigação da paternidade contra CC, residente na Praceta ..., alegando, em síntese, que a sua mãe e o pretenso pai, aqui Réu, mantiveram entre si relações sexuais durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Autor e que apenas em 2021 teve conhecimento que o R. seria seu pai. Termina pedindo que seja reconhecido que o Réu é seu pai, para todos os efeitos legais. 2. Regularmente citado, o réu, em sede de contestação, invocou a exceção da caducidade do direito de ação, alegando ainda que o relacionamento que teve com a mãe do Autor (consistente num único ato sexual) foi conhecido pelo Autor pelo menos antes de 01-06-2015 (pois que o Autor e a sua mãe falaram nisso à irmã do Réu, que faleceu na indicada data de 2015). 3. Foi proferido despacho de saneamento da causa (ref. ...48) 4. Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, como da ata consta (ref. ...44). 5. O tribunal de 1.ª instância proferiu a seguinte decisão: «Termos em que, julgando improcedente a invocada exceção de caducidade do direito à ação, julga-se procedente por provada a presente ação e, em consequência, declara-se que AA é filho de CC, com todas as consequências legais, ordenando-se que seja feito o competente averbamento no respetivo assento de nascimento do autor no que respeita àquela paternidade e avoenga paterna». 6. Inconformado, o réu interpõe recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, que proferiu acórdão, julgando procedente o recurso e revogando a sentença de 1.ª instância. 7. Desta vez é o Autor, AA, que, notificado do Acórdão datado de 02-03-2023, fica inconformado e interpõe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento na violação de lei substantiva e erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa aludidos nos artigos 671º, n.º1, 674º, n.º1, a) e n.º 3, 675º, n.º1 e 676º, n.º1, todos do CPC, com efeito suspensivo, a subir nos próprios autos. 8. Na sua alegação de recurso, formulou as seguintes conclusões: «1- A mãe do ora recorrente e o recorrido mantiveram relação sexual de cópula completa em 1975, entre finais de maio e meados de setembro (primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Autor). 2- E foi na sequência de essa relação sexual de cópula completa que BB engravidou, gravidez de que veio a nascer AA. 3- BB apenas manteve relações sexuais, na altura, com o R., ora recorrido. 4- O exame pericial confirmou que o R. é pai do recorrente: conduziu a uma probabilidade W=99,999999999995%. 5- O recorrente apenas teve conhecimento que o Réu CC seria seu pai no ano de 2021, em data não concretamente apurada. 6- Nada mais foi provado em sede de julgamento. 7- Não logrou o ora recorrido provar que o recorrente teve conhecimento que o R era o seu pai antes de 2021, nem através da sua testemunha, DD, nem através da interpretação que o Tribunal da Relação de Évora deu às palavras de BB e de DD. 8- Em momento algum esta referiu que o filho sabia quem era o seu pai antes de 2021. 9- A testemunha DD relatou apenas o que lhe foi dito, nada presenciou: que uma mulher e o filho teriam ido procurar o R. (e a irmã) para que este reconhecesse o filho, nada soube esclarecer, porque nada assistiu, sobre a identidade dessa pessoa ou da criança, nem logrou fazer a correspondência dessa suposta conversa com o autor e progenitora, presentes nesta ação. 10- O Tribunal da Relação de Évora, na resposta dada a determinados pontos da matéria de facto, não procedeu à adequada apreensão, apreciação e valoração dos meios de prova produzidos, gerando uma errada decisão quanto à matéria de facto, impondo-se, por conseguinte, a sua alteração. 11- Assim, o Recorrente discorda da decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal da Relação a qual influi na decisão de direito, dado que se não tivesse existido erro na apreciação da matéria de facto, o pedido formulado pelo Recorrente teria sido considerado procedente 12- Mais concretamente, o Recorrente discorda da alteração ao ponto 8 dos factos dados como provados, devendo ser mantida a versão do tribunal de 1ª instância. 13- Pois resultou provado que o A “apenas tomou conhecimento de que era filho de CC no ano de 2021”. 14- Pelo que improcede, assim, a exceção de caducidade. 15- Além do mais, à cautela, caso assim não se considere, há a ter em conta O DIREITO DE CADA SER HUMANO A CONHECER O SEU PAI - o estabelecimento da paternidade pode resultar do seu reconhecimento judicial, constituindo uma manifestação do direito fundamental "à historicidade pessoal" (Gomes Canotilho-Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, 1993, p. 179), ou seja, do direito ao conhecimento da progenitura e da identidade pessoal. 16- A relação de filiação pode começar por estabelecer-se como resultado do reconhecimento voluntário do respetivo progenitor ou da conclusão do processo administrativo ou judicial de averiguação oficiosa criado pela legislação portuguesa, sendo que, passados estes momentos, só há um meio legal de reparar a situação e constituí-la: o recurso a uma ação expressamente intentada pelo filho, ou pelo seu representante legal (aqui se incluindo o Ministério Público), com esse objetivo. 17- Nos termos do disposto no artigo 1801.º do Código Civil, nas ações relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados. E, à medida que o desenvolvimento e fiabilidade dos exames de DNA foram permitindo a prova direta deste laço biológico, o legislador veio consagrar, na alínea e) do artigo 1871.º do Código Civil, a seguinte presunção: “a paternidade presume-se quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de conceção”. 18- A prova dessa paternidade biológica pode ser feita através de prova direta ou de prova indireta. No caso sub judice verifica-se desde logo haver-se logrado fazer prova de que BB e CC mantiveram regularmente relações sexuais de cópula completa entre si, em 1975, entre maio e setembro. 19- Ora, o A. AA nasceu no dia ...-03-1976. 20- O período legal de conceção (cfr. artigo 1798.º do Código Civil) ocorreu entre 26-05-1975 e 23-09-1975, isto é, os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento, altura em que a mãe do A. e o réu mantinham um relacionamento com relações sexuais entre si de cópula completa. 21- Deixou de ser necessária a prova da exclusividade de tais relações sexuais, que anteriormente se exigia face ao teor do Assento do STJ n.º 4/83, de 21.6.83, mormente quando se mostre provado, por meio laboratorial, um índice de paternidade de 99,9999…%, que corresponde a “paternidade praticamente provada” – cfr., neste sentido, entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 3/12/2009, disponível em www.dgsi.pt com o n.º de processo 4415/06.2TBVIS.C1. 22- No caso dos autos, apurou-se uma probabilidade de o réu ser pai do autor de 99,999999999995%, pelo que qualquer ulterior necessidade probatória resultou afastada, pois que a paternidade se mostra praticamente provada em termos científicos e que apenas de um único homem pode o autor ser filho. 23- Nos termos do art. 26º da Constituição da Republica Portuguesa, “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. 24- O direito do Autor ao apuramento da paternidade biológica configura uma dimensão essencial deste direito fundamental. 25- O prazo de caducidade de 10 anos, previsto no n.º 1 do art.º 1817.º, n.º 1, do CC, para a investigação de paternidade e aplicável, por via do art. 1873.º do mesmo diploma legal, à investigação de paternidade deve considerar-se inconstitucional. 26- Como tal, e como bem considerou o Tribunal de 1ª Instância, AA é filho do R, CC, com todas as consequências legais. Nestes termos e sempre com o douto suprimento de V. Exas Venerandos Conselheiros, deverá ser recebido e considerado procedente o recurso de revista e em consequência ser revogado o douto Acórdão ora recorrido, substituindo-se aquele por outro que reconheça ao recorrente direito a que seja reconhecida a paternidade e feito o averbamento no respetivo assento de nascimento do autor». 9. O réu, CC, apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela manutenção do decidido. 10. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes: I – Do erro na fixação da matéria de facto; II – Da imprescritibilidade da ação de investigação da paternidade. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação A – Os factos Dos factos provados 1. AA, nasceu em ...-03-1976, na freguesia de ..., concelho de .... 2. Foi registado na Conservatória do Registo Civil de ..., em 22-04-1976, como filho de BB, encontrando-se a sua paternidade omissa. 3. A mãe do Autor e o Réu mantiveram relação sexual de cópula completa em 1975, entre finais de maio e meados de setembro (primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Autor). 4. E foi na sequência de essa relação sexual de cópula completa que BB engravidou, gravidez de que veio a nascer AA. 5. BB apenas manteve relações sexuais, na altura, com o R. 6. No relatório pericial apurou-se que “O estudo dos polimorfismos de ADN nuclear efetuado não permite excluir CC da paternidade de AA, filho de BB. Utilizando o programa Familias 3, a análise probabilística de CC ser o pai de AA, filho de BB, por comparação com outro indivíduo ao acaso da população, conduziu a um índice de parentesco (paternidade) IP=18 656 958 209 633.” 7. Concluiu-se que “Deste modo, o IP previamente determinado conduziu a uma probabilidade W=99,999999999995%, considerando uma probabilidade a priori de 0,5”. 8. O A., em data não concretamente apurada, mas nos anos de 2014 ou 2015, teve conhecimento que o R., CC, era o seu pai. (Facto modificado pelo Tribunal da Relação) Dos factos não provados i. O A. teve conhecimento que o Réu CC seria seu pai em data anterior a 01-06-2015. ii. A irmã do Réu informou-o que a mãe do Autor havia-lhe dito, na presença do Autor, que o Réu era pai do Autor. iii. O Réu teve uma única relação sexual com a mãe do Autor – com coito interrompido no mês de fevereiro ou no mês de abril. iv. Após o mês de abril de 1975, a mãe do Autor teve diversas relações sexuais, com diversos parceiros que não o Réu. v. Desde 1975 que o Réu não teve conhecimento da vida da mãe do Autor, não obstante viverem na mesma cidade. B – O Direito I – Do erro na fixação da matéria de facto 1. Está em causa, no presente processo, a questão de saber em que data teve o autor conhecimento de que era filho do réu, para o efeito de determinar o prazo para interpor a ação, e decidir acerca da caducidade, ou não, do exercício do direito, nos termos da al. c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, que estabelece que «A ação pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: (…) c) Em caso de inexistência de maternidade determinada (leia-se paternidade por força da remissão do artigo 1873.º), quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação». 2. O prazo de três anos configurado no n.º 3 constitui um regime especial relativamente ao geral do n.º 1 – dez anos após a maioridade ou emancipação do filho – competindo a quem pretenda prevalecer-se do mesmo, a invocação da verificação de qualquer uma das circunstâncias enquadráveis no preceito, cabendo depois a quem tenha interesse na caducidade desse direito (o réu) a prova do decurso do respetivo prazo enquanto facto extintivo do direito do autor – cfr. artigos artigos 342, n.º 2 e 343.º, n.º 2, ambos do Código Civil. Foi esta a orientação que veio a ser consagrada no AUJ n.º 4/2021, que deslocou para o investigado (réu na ação) o ónus de demonstrar que o filho teve conhecimento da paternidade do réu em momento anterior aos três anos que antecedem a proposição da ação. 3. O tribunal de 1.ª instância, com base no facto provado n.º 8, justificou deste modo a improcedência da exceção de caducidade: «Compulsados os articulados verifica-se assente que: o autor está registado apenas com o nome da mãe; autor nasceu em ...-03-1976 e a ação foi intentada em 23-04-2021. Ou seja, a ação foi instaurada mais de 10 anos sobre a maioridade do autor, que ocorreu em ...-03-1994, mais precisamente 27 anos. Porém, ainda que exaurido o prazo de 10 anos previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, tendo resultado provado que “apenas tomou conhecimento de que era filho de CC no ano de 2021”, permite subsumir o caso em apreço no prazo previsto na alínea c) do número 3 do artigo 1817.º do Código Civil». O tribunal, após a fixação dos factos relevantes, julgou procedente a ação, por referência aos factos n.º 6 e n.º 7, que atestam, com base na perícia feita nos autos, uma probabilidade W=99,999999999995% de o réu ser pai do autor, assim declarando, em consequência, que AA é filho de CC. 4. Já o Tribunal da Relação, alterando o facto provado n.º 8, deu como provado que o autor teve conhecimento da paternidade em data incerta, mas situada entre 2014 e 2015, pelo que considerou que o prazo especial de caducidade da ação, ao abrigo da al. c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, já tinha decorrido à data em que a ação foi proposta (2021). Aplicando, em consequência, o prazo de caducidade previsto no n.º 1 do artigo 1817.º, concluiu o acórdão recorrido, que, tendo o autor 45 anos de idade à data proposição da ação, já se extinguiu o direito de ação por caducidade. O tribunal recorrido pronunciou-se ainda sobre a constitucionalidade das normas que preveem prazos de caducidade para a ação de investigação da paternidade e decidiu que a norma que prevê um prazo geral de caducidade de 10 anos após a maioridade ou emancipação (artigo 1817.º, n.º1, do Código Civil) e a norma que prevê o prazo especial de três anos a partir do momento em que o filho conhece a paternidade (artigo 1817.º, n.º 3, al. c), do Código Civil), não violam o direito à identidade pessoal do autor da ação de investigação da paternidade. 5. Entende o recorrente que o Tribunal da Relação cometeu um erro na fixação da matéria de facto, ao alterar o facto provado n.º 8 que afirmava «O A. apenas teve conhecimento que o Réu CC seria seu pai no ano de 2021, em data não concretamente apurada», para passar a consagrar, com base numa distinta avaliação da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, em combinação com regras de experiência, que «O A., em data não concretamente apurada, mas nos anos de 2014 ou 2015, teve conhecimento que o R., CC, era o seu pai». 6. Todavia, por ser manifesto que o Supremo não tem poderes em relação a provas de livre apreciação, este pedido tem de soçobrar. O Supremo não intervém, em princípio, na fixação da matéria de facto, apenas lhe competindo aplicar aos factos materiais o regime jurídico que julgue adequado. Erros na fixação da matéria de facto, bem como na avaliação de meios de prova de livre apreciação não são cognoscíveis pelo Supremo Tribunal, como resulta da lei (artigo 674.º, n.º 3, do CPC). Nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, «O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova». Dispõe o artigo 682.º do CPC, «1 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado. 2 - A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º. 3 - O processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito». A intervenção do Supremo na fixação dos factos tem natureza excecional e reduz-se à prova vinculada, por exemplo, por confissão ou documento autêntico, se resultar do acórdão recorrido que a força probatória plena destes atos jurídicos não foi respeitada. Ora, no caso vertente, está em causa a prova do conhecimento do sujeito acerca do momento em que soube que era filho biológico do réu. Para o efeito, o acórdão recorrido socorreu-se de meios de prova de livre apreciação, como presunções de facto e depoimentos das testemunhas, valorados de acordo com regras de experiência, tendo feito uma análise crítica e fundamentada desses meios de prova. Sendo o conhecimento um facto mental ou interno, dependente apenas de meios de prova de livre apreciação, e não se debatendo no processo qualquer declaração do réu a que pudesse ser atribuído valor de confissão ou documento autêntico do qual resultasse o momento do conhecimento da paternidade pelo autor da presente ação, não se verifica qualquer violação de regras de direito probatório material. Como se tem afirmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por todos, Acórdão de 21-03-2023, proferido no processo n.º 549/21.1T8VCT-B.G1.S1), «No que se refere ao uso dos poderes pelo Tribunal da Relação na reapreciação da decisão de facto impugnada, poderá o tribunal de revista ajuizar se foram observadas as regras constantes do artigo 607.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC, mas não pode interferir na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem aferir da sua consistência». Com efeito, afirma-se também na jurisprudência deste Supremo, com plena validade para o que é questionado no presente recurso de revista, que, «Está vedado ao tribunal de revista a sindicação do acórdão da Relação quanto ao modo como se julgou a impugnação da matéria de facto sempre que se imputam erros na apreciação crítica de provas produzidas e valoradas em regime de prova livre, fundada no âmbito e na esfera de intervenção e dos poderes de cognição do erro de facto proporcionados amplamente pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC – assim dispõe o art. 662.º, n.º 4, do CPC –, não estando em causa, nesse âmbito, prova vinculada ou prova com força legalmente vinculativa (arts. 674.º, n.º 3, 2.ª parte, 682.º, n.º 2, CPC), nem vício que afecte o uso das presunções judiciais ex vi art. 351.º do CC» (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-06-2020, proc. n.º 6791/18.5T8PRT.P1.S1). 7. Quanto à possibilidade de este Supremo ordenar a ampliação da matéria de facto, entendemos que não estão preenchidos os requisitos do artigo 682.º, n.º 3, do CPC, para ordenar a ampliação da matéria de facto, uma vez que os factos provados e não provados, designadamente o facto provado n.º 8, tal como alterado pela Relação, são dotados de precisão suficiente para permitir uma decisão de direito, não existindo qualquer vazio fáctico ou incompletude que justificasse a baixa do processo. Pelo que se mantém o facto provado n.º 8, nos termos em que foi fixado. Improcedem, pois, as conclusões n.º s 5 a 14. 8. Como o sistema atual consagra, para além do prazo cego de dez anos, um sistema de prazos que dependem do conhecimento de certas circunstâncias, e tendo-se provado que o autor entre 2014 e 2015 teve conhecimento da paternidade e propôs a ação em 2021, nesta data já estava expirado o prazo de três anos contados a partir do conhecimento de circunstâncias suscetíveis de justificar a ação, tal como previsto na al. c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil. Não beneficiando o autor do prazo especial, mais longo, previsto na al. c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, o prazo aplicável à presente ação é o prazo de caducidade previsto no n.º 1 do citado preceito – 10 anos após a maioridade ou emancipação do autor. Conclui-se, assim, que, tendo o autor nascido em 1976, o prazo se encontra expirado desde 2004. 9. Questão de constitucionalidade Interpretadas as conclusões do recurso de revista, juntamente com as alegações do recorrente, decorre que este suscita a questão de constitucionalidade não só do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, mas de todo o sistema de prazos, uma vez que defende que a Constituição impõe a imprescritibilidade da ação de investigação da paternidade. Contendo a norma do artigo 1817.º do Código Civil uma pluralidade de interpretações normativas, importa delimitar as que estão em causa no presente processo: a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, segundo a qual a ação de investigação da paternidade está sujeita a um prazo de caducidade de 10 anos após a maioridade ou a emancipação do autor, e a da al. c) do n.º 3 do mesmo preceito, que prevê um prazo especial, mais longo, de três anos após o conhecimento das circunstâncias que justifiquem a ação. Importa, pois, conhecer a questão da constitucionalidade das normas que preveem prazos para a ação de investigação da paternidade (artigo 1817.º, n.º 1, e n.º 3, al. c), do Código Civil), em confronto com o direito fundamental à identidade pessoal consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP e com o direito a constituir família, estabelecendo os laços de filiação paterna e materna (artigo 36.º, n.º 1, da CRP), e ainda com o princípio da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP). Está em causa um direito fundamental pessoalíssimo do investigante, que entra em conflito com outros direitos fundamentais (o direito à privacidade da família constituída pelo pretenso pai e os direitos patrimoniais dos seus presumíveis herdeiros), que o Tribunal Constitucional tem protegido, invocando a segurança jurídica (cfr. Acórdãos n.º 410/2011 e 394/2019). Todavia, uma nova mundividência, determinada pela utilização crescente das técnicas de procriação medicamente assistida e pela valorização da historicidade pessoal e do conhecimento das origens no instituto da adoção (Lei n.º 143/2015, de 08 de setembro), é suscetível de provocar um juízo de ponderação distinto. É que, após o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 225/2018) ter reconhecido à pessoa concebida por PMA o direito a conhecer a identidade civil do dador, atribuindo a este direito uma tutela “absolutizada”, que veio a ser reconhecida na lei na vertente de identidade genética (artigo 23.º, n.º 4, da Lei n.º 32/2006, alterada pela Lei n.º 72/2021, de 12 de novembro), ficam substancialmente enfraquecidos os argumentos para negar o mesmo direito aos filhos sem paternidade estabelecida, que venham a intentar uma ação de investigação da paternidade após o decurso dos prazos de caducidade previstos artigo 1817.º do Código Civil. Tanto mais que, nestes casos, pode ter existido relação afetiva ou social entre o investigado e o autor da ação, situações designadas por posse de estado, e existiu sempre, mesmo quando o progenitor biológico e o filho não se relacionavam, uma relação entre a mãe do investigante e o investigado, que faz parte da história da vida pessoal e familiar do investigante. Ademais, um prazo geral de caducidade de 10 anos para uma ação em que se invoca um direito pessoalíssimo encontra-se em manifesta desarmonia com a tutela que a ordem jurídica concede às situações patrimoniais. Tenha-se em vista o prazo geral de prescrição dos créditos de 20 anos (artigo 309.º do Código Civil), ou a tutela da propriedade que pode ser invocada sem dependência de prazo, paralisando apenas a ação de reivindicação de imóvel perante um possuidor que demonstre estar protegido pelo instituto da usucapião, que exige para a sua verificação prazos longos, de 15 ou 20 anos, consoante o seu estado subjetivo (artigo 1296.º do Código Civil). Não se compreende, à luz das normas e dos valores constitucionais, que o direito de interpor uma ação, para fazer valer um direito fundamental pessoalíssimo, caduque em menos tempo do que um direito patrimonial (10 anos após a maioridade ou emancipação), mesmo tendo em conta a possibilidade de o prazo das ações de investigação ser alargado nas situações verificadas no n.º 2 e no n.º 3 do artigo 1817.º. Estas situações, em particular a que está aqui em causa – prevista na al. c) do n.º 3 – são difíceis de comprovar, dependendo da fiabilidade da prova testemunhal e da subjetividade da sua apreciação. Ora, a decisão legislativa de fazer depender o reconhecimento de um direito fundamental, passível de ser comprovado por exames genéticos, como sucedeu no caso vertente em que com uma probabilidade superior a 99% se demonstrou a paternidade, da apreciação da prova testemunhal quanto ao momento em que o investigante teve conhecimento das circunstâncias que justificam a ação, não só constitui uma violação da identidade pessoal do investigante, como não se adequa à realidade social envolvente destes sujeitos. Em muitos casos os filhos sempre souberam quem era o seu pai biológico, apenas não intentaram a ação por não quererem devassar a vida da mãe ou para respeitarem a vontade desta, formada numa época em que a procriação fora do casamento era objeto de estigma social e de secretismo. A existência de provas científicas que permitissem a demonstração positiva do vínculo biológico de paternidade remonta à década de 90 do século XX. O uso de exames científicos era muito restrito e de eficácia probatória reduzida (cf. Helena Machado, Moralizar para identificar, Cenários da Investigação Judicial da Paternidade, Centro de Estudos Sociais, Porto, 2007, pp. 22 e 158-163), em virtude da pouca fiabilidade dos exames de sangue disponíveis. Não se pode esquecer que nestes processos se exigia à mãe, autora da ação, em representação do filho, o ónus da prova da exclusividade das relações sexuais com o pretenso pai durante o período legal de conceção (cf. Assento de 21 de junho de 1983). Nestes casos, era fácil ao réu levantar «dúvidas sérias» acerca da paternidade, tantas vezes com o recurso a prova sobre uma alegada vida sexual ou reputação da mãe, que não passava de juízos de valor preconceituosos ou falsos. Era exigido aos autores da ação uma prova diabólica de um facto negativo: que, durante o período legal de conceção, não tinham mantido nenhuma relação sexual com qualquer outro homem para além do réu. Que filho quereria então, após a maioridade, sujeitar a sua mãe a um processo destes? A esta luz, compreende-se bem que nalguns casos a paternidade fosse encoberta pelos pais e que os filhos só muito tardiamente a conhecessem ou que decidissem colocar a ação de investigação após a morte da mãe, num momento em que já correram todos os prazos de caducidade legalmente previstos. Por estes motivos, continuam a surgir nos tribunais ações propostas por indivíduos nascidos antes da Reforma de 1977, fora do prazo legal, a fim de proteger a mãe contra a devassa da sua vida privada normalmente implicada nestes processos ou porque só muito tardiamente dela têm conhecimento. 10. Não se pode, pois, olvidar, na análise desta questão de constitucionalidade, o contexto jurídico que provocou o não reconhecimento da paternidade das pessoas que hoje são autoras destas ações de investigação e o princípio da proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento consagrado no artigo 36.º, n.º 4, da CRP. Os sujeitos que invocam a imprescritibilidade destas ações, ao abrigo do direito à identidade pessoal, são, sobretudo, as pessoas nascidas antes da reforma de 1977, época em que vigorava o princípio da proibição das ações de investigação da paternidade fora do casamento, apenas admitidas em casos excecionais, dependentes de determinados requisitos, os chamados “pressupostos de admissibilidade da ação” (artigo 1860.º do Código Civil de 1966). Os obstáculos à admissibilidade da investigação da paternidade impunham-se, de acordo com as conceções da época, «pela necessidade que havia em proteger a família legítima ou a dignidade e honra dos indivíduos não casados (…) e de evitar a perturbação social (o escândalo) a que tais processos se prestavam de sobremaneira» (cf. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, Coimbra, 1978, p. 112). Para além de obstáculos à interposição de ações, o legislador, a fim de proteger a integridade do património da família conjugal, dava melhores direitos sucessórios aos filhos “legítimos”, desfavorecendo os “ilegítimos”, a quem cabia, na sucessão de descendentes, uma quota hereditária igual a metade da atribuída aos primeiros (artigo 2139.º, n.º 2, do Código Civil de 1966). Em função deste quadro histórico, cultural e jurídico, os filhos nascidos fora do casamento viveram a sua infância e juventude em contextos sociais hierarquizados, em que o investigante e a sua mãe pertenciam, em regra, a um estatuto sócio-económico inferior em relação ao do pretenso pai e em que a sexualidade fora do casamento constituía uma fonte de exclusão social das mulheres e dos filhos assim concebidos. A natureza patriarcal da sociedade é bem visível nas palavras de Gomes da Silva («O Direito da Família no futuro Código Civil (Segunda Parte)», BMJ, n.º 88, 1959, p. 78), quando compara o filho nascido fora do casamento a um «membro alheio, enxertado à força no corpo de um homem». Estão em causa, pois, os direitos de um grupo de pessoas que nasceram e viveram a sua infância e juventude (e, em muitos casos, parte da idade adulta) num quadro jurídico em que era vedado ou altamente dificultado (mediante pressupostos de admissibilidade) o exercício do direito ao reconhecimento da paternidade. Os interesses deste grupo de pessoas nascidas antes da Reforma de 1977 são constitucionalmente protegidos de forma particularmente intensa, não só no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, que consagra o direito à identidade pessoal, e no artigo 36.º, n.º1, da CRP, que reconhece a todos o direito a constituir família e a estabelecer as correspondentes relações de filiação, mas também no artigo 36.º, n.º 4, da CRP, que se refere ao princípio constitucional da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento. Este princípio comporta uma dimensão material, que se repercute na subjetivização de um conjunto de direitos fundamentais dos indivíduos, de que é exemplo o direito à não discriminação em relação aos filhos nascidos dentro do casamento. Este direito não pode deixar de incluir, para além da óbvia referência à igualdade nos direitos sucessórios, o direito a suprir a omissão provocada pela lei anterior à Constituição de 76, que vedava ou dificultava o estabelecimento da paternidade dos filhos nascidos fora do casamento. 11. O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 394/2019, ao realizar o juízo de concordância prática entre direitos em conflito, coloca a enfâse num alegado direito à identidade pessoal do investigado e dos seus familiares (p. ex. filhos), procurando com essa argumentação elevar a posição jurídica destes para além da mera segurança jurídica, entendendo que estes, com o estabelecimento da paternidade, veriam a sua identidade ser alterada com uma nova relação familiar, adquirindo o estatuto de pai ou de irmão/irmã. Todavia, é fácil de verificar que não está em causa qualquer direito à identidade pessoal destes sujeitos, mas apenas o seu estatuto jurídico de pai ou de irmão, e as respetivas consequências sucessórias, efeitos jurídicos que nada têm a ver com o direito ao conhecimento das origens (e de estabelecer a filiação) de que é titular o investigante que tem o seu registo omisso quanto à paternidade. Este fica, na hipótese de operar a exceção da caducidade, com uma lacuna no seu sistema de parentesco, que não tem qualquer paralelo ou semelhança com a situação jurídica familiar do investigado e dos seus outros filhos após o estabelecimento da filiação paterna. Os inconvenientes que decorrem, para o investigado e sua família, da atribuição, no plano legal, de um filho ao investigado e de um irmão ou irmã aos outros filhos que aquele gerou, não se projetam na esfera jurídica pessoal destes nos mesmos moldes em que se projeta na identidade da pessoa a negação do vínculo de filiação. Em relação ao investigado, como o estatuto de pai resulta da sua participação num ato procriativo gerador de responsabilidades, não reconhece a ordem jurídica relevância ao seu interesse em não ser pai quando comparado com o direito à identidade pessoal da pessoa que gerou. No que diz respeito ao estabelecimento da filiação, os interesses de pais e filhos não são simétricos. Os filhos não pediram para nascer e os pais são responsáveis por eles, mesmo que essa responsabilidade se reduza à atribuição de um estado pessoal ou de família. Quanto aos irmãos ou outros parentes, na verdade, não se verifica qualquer consequência no núcleo mais importante da identidade pessoal destes, pois mantêm incólume a sua filiação. O eventual incómodo com a existência jurídica de um irmão ou irmã com o qual não contavam não passa disso mesmo – um mero desconforto de natureza psicológica ou social – sem qualquer valia jurídico-constitucional quando confrontado com as consequências geradas para o investigante pelo efeito extintivo da caducidade da ação. 12. Não colhe, como argumento para a defesa da constitucionalidade da norma agora em litígio, o argumento invocado pelo acórdão recorrido retirado da jurisprudência do TEDH, que entendeu que o sistema português de prazos de caducidade, por integrar prazos dies a quo subjetivos, não tinha natureza absoluta e por isso não violava o artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH ) - (Acórdão de 3/10/2017, Silva e Mondim Correia v. Portugal). É que a CEDH, diferentemente da nossa Constituição, não consagra expressamente o direito à identidade pessoal, dispondo, por isso, os Estados, para regular a questão, de uma margem de apreciação que a norma constitucional do artigo 26.º, n.º 1, da CRP não confere ao Estado português, vinculado a respeitar um patamar de proteção mais elevado do direito à identidade pessoal do investigante. O conceito de espaço de livre conformação do legislador, na jurisprudência do TEDH, não pode ser transposto para a justiça constitucional. Este conceito reporta-se a um consenso possível e provisório entre Estados com legislações e culturas distintas, e apresenta uma natureza evolutiva, não dogmática. Já na justiça constitucional, para aferir se o legislador democrático tem ou não uma margem de liberdade de determinação atende-se a elementos jurídicos, empíricos e sociais referentes unicamente à sociedade portuguesa e à sua história. Ora, foi o contexto social de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, a quem a ordem jurídica privava do direito de ter um pai, que determinou a consagração da proibição desta discriminação na Constituição (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) e o direito de estabelecer os laços de filiação (artigo 36.º, n.º 1, da CRP), devendo entender-se que a Constituição se refere à verdade biológica, pois só mais tarde, no n.º 7 do mesmo preceito, reconheceu proteção ao instituto da adoção. Assim, o controlo da constitucionalidade da medida restritiva do direito fundamental em discussão, o direito à identidade pessoal, não pode deixar de ser mais exigente e rigoroso do que o controlo exercido pelo TEDH, retirando ao legislador a margem de determinação para o estabelecimento de prazos de caducidade do direito de ação. 13. O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 394/2019 fundamenta a tese da constitucionalidade do prazo de caducidade na necessidade de incentivar os investigantes a intentar a ação o mais prematuramente possível a tempo de beneficiarem de proteção na infância e na juventude. Ora, esta tese confunde o bem jurídico em causa – a identidade pessoal – com a proteção da infância e da juventude. A tutela constitucional da identidade pessoal dirige-se tão-só ao direito que as pessoas têm, em qualquer idade, à verdade sobre o seu lugar no sistema de parentesco e à autodefinição de si mesmas. A dimensão funcional do efeito da filiação – as responsabilidades parentais – quando o investigante é menor de idade, nada tem a ver com o direito à identidade pessoal, que assume uma dimensão exclusiva do conhecimento das raízes e da origem da pessoa, problema que geralmente afeta mais os adultos do que as crianças, não se esbatendo a sua premência com a passagem do tempo. Pelo contrário, pode até constituir uma necessidade existencial de uma pessoa já idosa que quer deixar aos seus descendentes a sua filiação e apelidos de família, bem como a verdade sobre a sua história e a dos seus pais. A dimensão do prazo da ação da investigação da paternidade não se afere pela necessidade de proteção da infância ou juventude (artigos 69.º e 70 da CRP), no contexto atual em que o MP investiga oficiosamente a paternidade nos dois primeiros anos após o nascimento (artigos 1864.º e seguintes do Código Civil), mas pela necessidade de tutela da identidade pessoal das pessoas adultas estigmatizadas por uma lei que impedia a investigação da paternidade e discriminava os filhos nascidos fora do casamento. Para além disto, a presunção de que o estabelecimento da filiação tem a sua dimensão mais importante durante a menoridade esquece que existem entre pais e filhos, em todas as fases da vida, deveres mútuos de respeito, auxílio e assistência (artigo 1874.º do Código Civil) e que esta solidariedade familiar se repercute em deveres de alimentos recíprocos entre pais e filhos adultos, segundo os artigos 1874.º, n.º 2 e 2009.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, em situações de insuficiência de meios para fazer face a necessidades básicas de sobrevivência, por exemplo, desemprego, velhice ou doença grave e prolongada. 14. A natureza pessoalíssima dos direitos do investigante decorre da intimidade mais profunda do ser humano e da sua necessidade afetiva e social de auto-definição, de saber quem é e qual a sua história. Na operação de balanceamento entre posições contrapostas, os direitos do investigante constituem, de acordo com a hierarquia axiológica da Constituição em que a dignidade humana ocupa o lugar supremo (artigo 1.º da CRP), direitos de superior valia, em relação aos direitos do investigado e da sua nova família. O princípio da dignidade da pessoa humana, apesar de não ser fundamento direto de posições jurídicas subjetivas, pode ser usado como critério de interpretação e de ponderação nos conflitos entre direitos (cf. Benedita Mac Crorie, «O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição da República Portuguesa», in Afonso Vaz et al. (Coord.), Jornada nos Quarenta Anos da Constituição da República Portuguesa – Impacto e Evolução, Universidade Católica Editora – Porto, 2017, pp. 104 e ss., p. 108). O conflito de direitos em causa no presente processo deve ser analisado e as normas constitucionais interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), não podendo deixar de se entender, num Estado de Direito, cujo centro é a pessoa humana, que os direitos de natureza pessoal têm preponderância sobre os direitos patrimoniais, havendo entre ambas as categorias de direitos e de interesses uma diferença qualitativa que deve ser decisiva no juízo de ponderação de interesses, como também se assinalou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, onde se afirmou «(…) que o argumento se situa num plano predominantemente patrimonial, não podendo ser decisivo ante o exercício de uma faculdade personalíssima, constituinte clara da identidade pessoal, como a de averiguar quem é o seu progenitor». O investigante, com a perda, por caducidade, do direito a saber quem é o pai, sofre prejuízos não patrimoniais, que afetam o cerne da sua personalidade, liberdade, estado pessoal e identidade, claramente desproporcionados em relação às desvantagens eventualmente resultantes, para o investigado e sua família, da ação de investigação e dos seus efeitos. O decurso do tempo não atribui uma força aos direitos do investigado que justifique a eliminação dos direitos do filho e que permita ao pretenso pai “adquirir” a possibilidade de se subtrair ao vínculo familiar de paternidade. Em sentido inverso, os direitos do filho não perdem, com a passagem do tempo, intensidade valorativa nem diminui o seu grau de merecimento de tutela. O direito do filho a saber quem é e a inserir-se, no sistema de parentesco biológico e jurídico que lhe pertence, integra o núcleo vital da integridade pessoal e humana, que não fenece com a passagem do tempo. Como afirma Joaquim de Sousa Ribeiro («A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», RLJ, Ano 147.º, N.º 4009, Março-Abril, 22018, p. 216): «(…) não vemos como é que a medida do tempo possa ser aqui medida da tutela e factor único de uma alteração qualitativa no sentido da proteção conferida pelo ordenamento, deslocando-a da esfera do filho para a esfera do suposto pai». A privacidade do investigado (o direito de não ver exposta a sua esfera sexual e íntima) e da sua família, bem como a segurança jurídica patrimonial dos herdeiros daquele, não podem sobrepor-se aos direitos pessoalíssimos e inalienáveis do investigante, em termos de provocar a sua extinção pelo decurso do tempo. Por outro lado, não pode sequer afirmar-se que existe um direito do pretenso pai a não se vincular juridicamente a uma paternidade biologicamente comprovável, num contexto jurídico em que o progenitor tem, pelo contrário, o dever jurídico (e não apenas moral ou de consciência) de perfilhar (cf. Guilherme de Oliveira, «Caducidade das acções de investigação ou caducidade do dever de perfilhar, a pretexto do Acórdão n.º 401/2011 do Tribunal Constitucional», Lex Familiae, n.ºs 17 e 18, 2012, p. 113). 15. A responsabilidade pela procriação prevalece sobre a privacidade do investigado. Não existe um direito nem sequer um interesse juridicamente tutelável de quem participou num relacionamento sexual de consequências reprodutivas, em não assumir a responsabilidade jurídica desse ato. Na cultura social e jurídica atual, o Estado responsabiliza os progenitores biológicos pela procriação, e tem um interesse de ordem pública em que estes vínculos biológicos adquiram a devida relevância jurídica no domínio do direito da filiação e do estado da pessoa, para além da maioridade dos filhos e independentemente de qualquer relação afetiva entre pais e filhos, a fim de evitar a possibilidade de relações de consanguinidade e para permitir a observância do sistema de impedimentos matrimoniais. 16. O direito de intentar a ação de investigação da paternidade é um direito de personalidade fundamental, e os direitos de personalidade beneficiam de regimes jurídicos especiais. É o caso do direito à livre revogabilidade das limitações voluntárias ao exercício dos direitos de personalidade, consagrado no artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil, bem como do direito a intentar recurso extraordinário de revisão relativo a direitos de personalidade, a todo o tempo, sem dependência do prazo-regra de cinco anos após o trânsito em julgado da decisão judicial impugnada, conforme estipula o artigo 697.º, n.º 2, do CPC. Estas disposições consagram, assim, o primado da proteção dos direitos de personalidade em face dos direitos patrimoniais e das vinculações contratuais, para o efeito de o seu titular poder fazer valer esses direitos a todo o tempo, sem dependência de prazo. Esta dimensão dos direitos fundamentais, enquanto direitos de personalidade, confere aos direitos à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade um maior peso quando em confronto com outros bens jurídicos como a segurança jurídica patrimonial dos outros herdeiros do investigado ou a paz familiar, o sossego e a privacidade deste e da sua família. Neste quadro, o legislador, por razões de coerência e unidade da ordem jurídica, deve retirar todas as consequências da natureza do direito de intentar a ação de investigação da paternidade enquanto direito de personalidade fundamental, cuja tutela a Constituição impõe que não dependa de prazo. 17. A ação de investigação da paternidade é o único instrumento jurídico disponível para concretizar o direito à identidade pessoal das pessoas que não têm paternidade estabelecida e desejam tê-la. Assim, o esgotamento do prazo legalmente fixado, no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil (e qualquer outro como o fixado na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito), para a interposição da ação de reconhecimento judicial da paternidade, provoca a extinção dos direitos fundamentais que a ação exprime e exerce: o direito à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da CRP) e o direito a constituir família, estabelecendo as correspondentes relações de filiação (artigo 36.º, n.º 1, da CRP). A norma que consagra prazos de caducidade surge, pois, como uma lei restritiva dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família do investigante, e não constitui um meio adequado, necessário e proporcional de respeito pelos direitos de defesa do investigado, violando, por isso, o princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da CRP. A norma que estipula um prazo de caducidade constitui uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação, por violação das disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1 e n.º 4, 25.º e 26.º, n.º 1, todos da CRP, e do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. Destas normas constitucionais, interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, decorre que as ações de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo, sendo constitucionalmente ilegítima qualquer limitação temporal para o exercício destes direitos. A pessoa humana, à luz dos valores da Constituição, deve ter o direito de, em qualquer momento da sua vida, questionar o Estado sobre quem é e quem são os seus progenitores. Os motivos que teve para só numa fase tardia da vida intentar a ação de investigação da paternidade dizem respeito ao seu foro íntimo e estão relacionados com a sua história e a dos seus pais biológicos. Por dizerem respeito à dignidade mais profunda do ser humano – o direito a saber quem é e de onde veio – o Estado não tem legitimidade para avaliar e hierarquizar estes motivos em função do decurso do tempo (ou de qualquer outro critério), fixando um prazo para o exercício do direito da ação de investigação da paternidade. 18. Assim, à luz das normas constitucionais que consagram os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, ao conhecimento da paternidade/maternidade, bem como ao estabelecimento das correspondentes relações de filiação e à proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigos 25.º, 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 36.º, n.º 4, todos da CRP), conclui-se pela inconstitucionalidade das normas, contidas no n.º 1 e na al. c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, que definem a existência de prazos de caducidade para propor uma ação de investigação da paternidade (e da maternidade), sendo de todo irrelevante o demonstrado no facto provado n.º 8 acerca da data em que o investigante conheceu ser filho do réu. 19. Concluindo: Em consequência, recusa-se a aplicação: a) da norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante. b) da norma do artigo 1817.º, n.º 3, al. c), na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de três anos para a propositura da ação, contado desde o conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação. Anexa-se sumário elaborado pela Relatora nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC: I - As normas, contidas no n.º 1 do artigo 1817.º e na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito, que estipulam prazos de caducidade para as ações de investigação da paternidade constituem uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação, por violação das disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1 e n.º 4, 25.º e 26.º, n.º 1, todos da CRP, e do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. II – O princípio constitucional da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) comporta uma dimensão material, que se repercute na subjetivização de um conjunto de direitos fundamentais dos indivíduos, de que é exemplo o direito à não discriminação em relação aos filhos nascidos dentro do casamento. Este direito não pode deixar de incluir, para além da óbvia referência à igualdade nos direitos sucessórios, o direito a suprir a omissão provocada pela lei anterior à Constituição de 76, que vedava ou dificultava o estabelecimento da paternidade dos filhos nascidos fora do casamento. III – A natureza pessoalíssima dos direitos do investigante decorre da intimidade mais profunda do ser humano e da sua necessidade afetiva e social de auto-definição e de saber quem é e qual a sua origem. IV – Na operação de balanceamento entre posições contrapostas, os direitos do investigante constituem, de acordo com a hierarquia axiológica da Constituição que tem no seu topo a dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), direitos de superior valia, em relação aos direitos do investigado e da sua nova família. V – O investigante, na hipótese de operar a exceção da caducidade, fica com uma lacuna no seu sistema de parentesco, que não tem qualquer paralelo com os inconvenientes que o estabelecimento da filiação paterna do investigante seja suscetível de gerar para a situação familiar e social do investigado e dos seus outros filhos. VI - Os inconvenientes que decorrem, para o investigado e sua família, da atribuição, no plano legal, de um filho ao investigado e de um irmão ou irmã aos outros filhos que aquele gerou, não se projetam na esfera jurídica pessoal destes nos mesmos moldes em que se projeta na identidade do investigante a negação do vínculo de filiação VII – A ordem jurídica não reconhece ao pretenso pai um direito a não se vincular juridicamente a uma paternidade biologicamente comprovável. VIII – A dimensão do prazo da ação da investigação da paternidade não se afere pela necessidade de proteção da infância ou juventude (artigos 69.º e 70 da CRP), no contexto atual em que o MP investiga oficiosamente a paternidade nos dois primeiros anos após o nascimento (artigos 1864.º e seguintes do Código Civil), mas pela necessidade de tutela da identidade pessoal das pessoas adultas estigmatizadas por uma lei que impedia a investigação da paternidade e discriminava os filhos fora do casamento. IX – A pessoa humana, à luz dos valores da Constituição, deve ter o direito de, em qualquer momento da sua vida, questionar o Estado sobre quem é e quem são os seus progenitores biológicos. X – Os motivos que teve para só numa fase tardia da vida intentar a ação de investigação da paternidade dizem respeito ao seu foro íntimo e estão relacionados com a sua história e a dos seus pais biológicos. Por dizerem respeito à dignidade mais profunda do ser humano – o direito a saber quem é e de onde veio – o Estado não tem legitimidade para avaliar e hierarquizar estes motivos em função do decurso do tempo (ou de qualquer outro critério), fixando um prazo para o exercício do direito da ação de investigação da paternidade. III – Decisão Pelo exposto, decide-se conceder a revista e repristinar a sentença do tribunal de 1.ª instância. Custas pelo recorrido. Lisboa, 30 de outubro de 2023 Maria Clara Sottomayor (Relatora) Pedro Lima Gonçalves (1.º Adjunto) Manuel Aguiar Pereira (2.º Adjunto)