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Acórdão TC de 2021-04-14

1024/20

TribunalTribunal Constitucional
Acórdão205/21
Processo1024/20
FormaçãoConf.
Secção3.ª Secção
EspécieRecurso
Data2021-04-14
RelatorCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Descritores

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional I – Relatório 1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), do acórdão proferido por aquele Tribunal no dia 21 de agosto de 2020, que julgou improcedente o recurso pelo mesmo interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa concedendo a sua extradição para os Estados Unidos da América (EUA). 2. O recurso de constitucionalidade apresenta o seguinte teor: «(...) O Recorrente pretende, no presente recurso, a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional, pelo que, para facilitar a demonstração do cumprimento dos requisitos legais atrás enunciados, os mesmos serão indicados em separado: 1.    Norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie Os factos que fundamentam o presente pedido de extradição constituem objeto do processo pendente em Portugal e que corre termos pelo DCIAP, com o n.º 324/14.0TELSB, como resulta do confronto entre o elenco dos factos imputados ao Recorrente, constante das certidões judiciais juntas aos autos, e os factos que fundamentam o pedido de extradição. Com mais rigor, no processo que corre termos pelo DCIAP, com o n.º 324/14.0TELSB, são imputados ao Extraditando outros factos que não fundamentam o pedido de extradição, mas é indubitável que todos os factos que fundamentam o pedido de extradição são imputados ao Extraditando naquele processo, como detalhadamente se demonstrou nas alegações de recurso do Recorrente para o Tribunal recorrido. Nos termos da atual redação do artigo 272.º do Código de Processo Penal, o investigado só pode ser interrogado na qualidade de arguido se houver fundada suspeita da prática de crime. Por seu lado, o artigo 141.º, n.º 4, al. d), do mesmo diploma legal, dispõe que devem ser comunicados ao arguido, no interrogatório, os factos que lhe são concretamente imputados incluindo, sempre que foram conhecidas, as circunstâncias de tempo, modo e lugar. Em consequência do que dispõem estes preceitos, é inequívoco que os factos imputados ao arguido para efeito de interrogatório judicial passam a integrar o objeto do processo. Esta conclusão é ainda reforçada sempre que, como sucedeu ao Extraditando nos autos que correm termos pelo DCIAP, com o n.º 324/14.0TELSB, sejam aplicadas medidas de coação que se suportem na forte indiciação destes mesmos factos. Precisamente em virtude desta identidade de factos, o Ministério Público veio solicitar, por requerimento junto nos autos que correm termos pelo DCIAP, com o n.º 324/14.0TELSB, acesso aos objetos apreendidos ao Extraditando aquando da sua detenção, pretensão que foi deferida por despacho judicial, junto a estes autos. Deve ter-se presente que estes objetos só podem ser apreendidos se forem produto do crime ou se constituírem elementos de prova do mesmo crime que fundamenta o pedido de extradição, pelo que os mesmos só poderão ter interesse para os autos que correm pelo DCIAP com o n.º 324/14.0TELSB se os factos que constituem seu objeto forem os mesmos, como são. Por seu lado, quer em Portugal quer no Estado requerente é imputada ao Extraditando a prática dos mesmos crimes: branqueamento de capitais e associação criminosa. Sucede que, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional, "pode ser negada a extradição quando o facto que a motiva for objeto de processo pendente". Resulta deste preceito que, apesar de o pedido de extradição ser fundamentado nos mesmos factos que foram imputados ao Extraditando, nos autos que correm termos pelo DCIAP com o n.º 324/14.0TELSB, a concessão da extradição implica que o mesmo possa ser julgado por eles em Portugal e no Estado requerente. A concessão da extradição, que este preceito permite, implicaria, nomeadamente, que o arguido, sujeito a medidas de coação fortemente restritivas da sua liberdade nos autos que correm termos pelo DCIAP, com o n.º 324/14.0TELSB, seria agora preso no Estado requerente, para aguardar julgamento pela prática dos mesmos factos que lhe são imputados naqueles autos. Pior ainda, seria sujeito a julgamento por estes mesmos factos no Estado requerente, apesar de o processo que corre termos pelo DCIAP com o n.º 324/14.0TELSB continuar pendente, o que implicaria ou o seu arquivamento ou acusação e posterior julgamento para prolação de decisão final, casos em que o artigo 8.º da Lei da Cooperação Judiciária Internacional proíbe a extradição. Sendo que, uma vez preso no Estado requerente, ficaria impedido de exercer a sua defesa nos autos que correm termos em Portugal. O que implicaria que, caso o Extraditando venha a ser acusado no âmbito dos autos que correm termos em Portugal, seria confrontado com uma situação absolutamente intolerável, por falta de coordenação entre as duas jurisdições, pois ou teria de cumprir duas penas pelos mesmos factos ou, sendo absolvido num processo, teria de a cumprir no outro. Sendo que o limite máximo da pena que é aplicável aos crimes imputados ao Extraditando na acusação contra o mesmo deduzida no Estado requerente é de 65 anos, ou seja, mais do dobro da pena máxima que lhe poderá ser aplicada pelos mesmos factos em Portugal, nos termos do artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal. Mesmo a sua absolvição em ambos os processos traduziria uma situação totalmente intolerável, porque violadora do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, para além de implicar a impossibilidade de, estando preso no Estado requerente, exercer de modo adequado a sua defesa nos autos que correm termos em Portugal. Em síntese, a possibilidade de concessão da extradição, que este preceito prevê, traduz uma intolerável violação do princípio ne bis in idem, na sua vertente processual, correndo-se o risco de ter ainda lugar a violação da vertente material do aludido princípio, no caso de condenação do Extraditando em ambos os processos. O Recorrente pretende, assim, que seja conhecida, no presente recurso, a inconstitucionalidade da norma jurídica que resulta do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional, na interpretação de acordo com a qual a pendência de processo em Portugal pelos factos que fundamentam o pedido de extradição, ainda que não tenha sido proferida decisão de arquivamento ou sentença absolutória, encontrando-se o processo, nomeadamente, em fase de inquérito, constitui apenas causa de recusa facultativa - e não obrigatória - da extradição. Trata-se, como é evidente, de interpretação literal deste preceito, que dispõe: "Pode ser negada a cooperação quando o facto que a motiva for objeto de processo pendente ou quando esse facto deva ou possa ser também objeto de procedimento da competência de uma autoridade judiciária portuguesa". 2.    Norma ou princípio constitucional que se considera violado O Recorrente pretende a declaração de inconstitucionalidade desta norma por a mesma violar o princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da Constituição, de acordo como o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Na perspetiva do Recorrente, a norma que resulta do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional, viola o princípio ne bis in idem, na medida em que permite a extradição -ao invés de a proibir - quando o facto que motiva o pedido respetivo é objeto de processo pendente em Portugal contra o Extraditando O respeito pelo referido princípio impõe que, nestas situações, a extradição seja obrigatoriamente negada, pelas razões que se aduziram em sede de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, de seguida transcritas, em breve síntese, e que serão devidamente desenvolvidas em sede de alegações. (...) 4.    Aplicação desta norma como ratio decidendi do acórdão recorrido. Dúvidas não restam de que o Tribunal recorrido aplicou esta norma, com a interpretação literal que da mesma resulta, como ratio decidendi do acórdão recorrido, ou seja, julgando que a pendência de processo em Portugal por factos coincidentes com os que fundamentam o pedido de extradição apenas constitui causa de recusa facultativa da mesma. Assim, como se escreveu nas pp. 158-159 do mesmo aresto: "Este preceito legal consagra um motivo facultativo de denegação de cooperação ou, para o que aqui releva, de extradição. Diz-se que pode ser negada a cooperação quando o facto que a motiva for a pessoa, objeto de processo da competência de autoridade judiciária portuguesa, estando, assim, em causa uma denegação facultativa. Sendo facultativa, impõem-se uma ponderação por parte do tribunal, tomando em consideração os próprios factos, os interesses em jogo, o exercício da nossa soberania ou a sua eventual afetação. (...) No caso presente, o recorrente, para além de não ter a nacionalidade portuguesa (que também poderia ser fator de ponderação), exercia a sua atividade em diversos países (nomeadamente em Portugal e nos USA) e esta, necessariamente atentas as suas características, iria repercutir-se e ter consequências também em vários países, entre eles os atrás citados. Nestes casos, sendo o facto o mesmo, impõe-se a cooperação entre os Estados, e na ponderação de uma denegação de extradição, sempre haveria que ter em conta o estado dos respetivos processos e a posição das autoridades intervenientes. O processo que corre seus termos nos EUA e no qual se reclama a extradição do arguido, encontra-se já em fase adiantada, com a acusação deduzida; em Portugal, o processo ainda se encontra em investigação, não se vislumbrando ainda o momento da dedução da acusação. Assim, se a lei no citado artigo 18.º não impede a extradição, verifica-se também o desconhecimento de qualquer causa que a impeça"(sublinhados nossos). Com esta fundamentação, julgou o acórdão recorrido que, estando presente uma causa meramente facultativa de recusa da extradição, a ponderação das circunstâncias do caso concreto não impedia a sua concessão, apesar de os factos que fundamentam o pedido de extradição serem objeto de processo pendente contra o Recorrente em Portugal. Acresce que o Tribunal recorrido conheceu expressamente da inconstitucionalidade invocada pelo Recorrente, julgando-a improcedente, na p, 165 do acórdão recorrido, Por tudo o exposto, é manifesto que a norma jurídica cuja inconstitucionalidade se invoca foi aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida, estando reunidos todos os pressupostos legais para a admissão do presente recurso. Nestes termos, por estar em tempo e ser parte legítima, requer a V. Ex.ª se digne admitir o presente recurso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de agosto de 2020, interposto ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 72.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 75.º e 75.º-A da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, tendo o mesmo por objeto as questões de inconstitucionalidade acima mencionadas, o qual deve ter efeito suspensivo e subida imediata e nos próprios autos, nos termos previstos nos artigo 78.º, n.º 3, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, em conjugação com os artigos 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, alínea a), e 408.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aplicáveis ex vi artigo 3.º, n.º 2, da Lei de Cooperação Judiciária, seguindo-se os demais termos com as devidas consequências legais, de modo a que, a final, seja julgada inconstitucional a norma jurídica que resulta do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional, na interpretação de acordo com a qual a pendência de processo em Portugal pelos factos que fundamentam o pedido de extradição, ainda que não tenha sido proferida decisão de arquivamento ou sentença absolutória, encontrando-se o processo, nomeadamente, em fase de inquérito, constitui apenas causa de recusa facultativa - e não obrigatória da extradição, por violação do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da Constituição.» 3. Na decisão recorrida afirma-se, para o que aqui mais importa, o seguinte: «(...) Vejamos. O artigo 18.º, da Lei 144/99 que tem por epígrafe a "Denegação facultativa de cooperação internacional", dispõe no seu nº 1 que "Pode ser negada a extradição quando o facto que a motiva for objeto de processo pendente ou quando esse facto deva ou possa ser também objeto de procedimento da competência de uma autoridade judiciária portuguesa". Por sua vez, o artigo 8.º do mesmo diploma, com a epígrafe "Extinção do procedimento penal" dispõe no seu n.º 1 que "A cooperação não é admissível se, em Portugal ou noutro Estado em que tenha sido instaurado procedimento pelo mesmo facto: b) o processo tiver terminado com sentença absolutória transitada em julgado ou com decisão de arquivamento". Fazendo o confronto dos factos num caso e noutro, e que acima se descreveram no ponto 10. deste acórdão, acompanhamos o entendimento do acórdão recorrido, no qual se diz que os factos não são exatamente os mesmos em toda a sua extensão. A coincidência de alguns factos não significa que os factos sejam os mesmos. E, mesmo que existisse a alegada coincidência na sua plenitude, o artigo 18.º da Lei n.º 144/99, não tem obrigatoriamente a consequência apontada pelo extraditando. Este preceito legal consagra um motivo facultativo de denegação de cooperação ou, para o que aqui releva, de extradição. Diz-se que pode ser negada a cooperação quando o facto que a motiva for a pessoa, objeto de processo da competência de autoridade judiciária portuguesa, estando, assim, em causa uma denegação facultativa. Sendo facultativa, impõe-se uma ponderação por parte do tribunal, tomando em consideração os próprios factos, os interesses em jogo, o exercício da nossa soberania ou a sua eventual afetação. Tal como refere o MP, a verdade é que o tipo de atividade em causa está longe de configurar um facto individual e concreto que se leva a cabo num local e apenas aí se repercute ou tem consequências. Neste caso, são os Estados a procurar responsabilizar tais autores pelas suas ações, mas obviamente sem violarem os princípios básicos e universais, como seja o que aqui está em causa, ou seja, de não julgar o mesmo arguido, pelos mesmos factos, em diferentes Estados. No caso presente, o recorrente, para além de não ter a nacionalidade portuguesa (que também poderia ser fator de ponderação), exercia a sua atividade em diversos países (nomeadamente em Portugal e nos USA) e esta, necessariamente atentas as suas características, iria repercutir-se e ter consequências também em vários países, entre eles os atrás citados. Nestes casos, sendo o facto o mesmo, impõe-se a cooperação entre os Estados, e na ponderação de uma denegação de extradição, sempre haveria que ter em conta o estado dos respetivos processos e a posição das autoridades intervenientes. O processo que corre seus termos nos EUA e no qual se reclama a extradição do arguido, encontra-se já em fase mais adiantada, com a acusação deduzida; em Portugal, o processo ainda se encontra em investigação, não se vislumbrando ainda o momento da dedução da acusação. Assim, se a lei no citado artigo 18.º não impede a extradição, verifica-se também o desconhecimento de qualquer causa que a impeça. Além de que, tendo em vista que em Portugal o arguido não virá a ser acusado nem muito menos condenado pelos factos pelos quais venha a ser extraditado, pois a isso impede o nosso sistema legal e a nossa Constituição. Os factos em ambos os casos não são exatamente os mesmos em toda a extensão. Porém, ainda que o fossem, tal constituiria apenas um mero motivo de recusa facultativa a convocar outros elementos de ponderação para que pudesse ser acionada. E não colhe, ao contrário do afirmado pelo requerido, que a extradição implicaria que pudesse ser julgado por tais factos nos dois países. Com efeito, em Portugal nenhum arguido pode ser julgado (acusado) pelos exatos ou mesmos factos, mesmo que anterior julgamento tenha tido lugar noutro País, atento o princípio ne bis in idem. A referência pelo requerido ao artigo 6.º da Convenção no sentido de uma entrega deferida após terminus do procedimento em Portugal, sendo que também aqui estamos perante uma situação facultativa a reclamar ponderação, mas tendo em atenção ao já antes referido, em especial o referido atraso na tramitação do processo de inquérito, entende-se não existir nada que impeça o deferimento da extradição, havendo sempre a salvaguarda de garantia que resulta do artigo 29.º, nº 5 da CRP. Nunca o arguido seria julgado por tais factos nos dois países. Termos em que a pendência em Portugal de um inquérito com base em factos em parte coincidentes ou conexos com os constantes do pedido de extradição, no âmbito do qual nem sequer se mostra fixado o seu objeto, visto não ter sido ainda deduzida acusação, não constitui causa de recusa da extradição. (...) Pelo que, esta não é a situação em apreciação nos presentes autos, uma vez que se está perante uma investigação em curso na qual não foi proferida (ainda) acusação contra o recorrente. Parece-nos evidente que o Tribunal recorrido não pode apreciar uma eventual situação de ofensa ao princípio ne bis in idem e não conceder a extradição, como pretende o recorrente, sob pena de violação do próprio princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da CRP.» 4. Através da Decisão Sumária n.º 7/2021 foi decidido não conhecer o objeto daquele recurso, por se ter considerado que o mesmo não se referia a normas que tivessem sido aplicadas na decisão recorrida como sua ratio decidendi. Foi a seguinte a fundamentação apresentada: «5. Compulsados os autos, conclui-se que o objeto do recurso não pode ser conhecido. A questão de constitucionalidade trazida a este Tribunal pelo recorrente não tem respaldo suficiente na decisão recorrida como sua ratio decidendi, pressuposto que constitui uma inerência da natureza instrumental dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: embora estes recursos se restrinjam à questão da invalidade da norma, é necessário que as decisões proferidas no seu âmbito possam repercutir-se sobre a decisão recorrida. O que só pode acontecer quando se verifique uma perfeita coincidência entre a norma cuja inconstitucionalidade é invocada e normas efetivamente aplicadas pelo tribunal recorrido para fundamentar a sua decisão. Ora, no caso em apreço, essa coincidência não se verifica, visto que a questão formulada pelo recorrente integra como seu pressuposto fundamental um elemento que não está presente na decisão recorrida. Um elemento que é, na verdade, exógeno à questão de que ali se curava. O recorrente considera que a concessão da extradição num caso como o dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal – LCJIMP), envolveria uma violação do princípio ne bis in idem, uma vez que existe também um processo penal em curso em Portugal. No entanto, o que o tribunal recorrido considerou – depois de ter notado que a factualidade em causa nos processos penais em curso num e noutro Estados, Portugal e os EUA, nem sequer é exatamente a mesma – foi que, «mesmo que existisse a alegada coincidência na sua plenitude, o artigo 18.º da Lei n.º 144/99, não tem obrigatoriamente a consequência apontada pelo extraditando». Nota o tribunal que «[o] processo que corre seus termos nos EUA e no qual se reclama a extradição do arguido, encontra-se já em fase mais adiantada, com a acusação deduzida» e que, em contraste, «em Portugal, o processo ainda se encontra em investigação, não se vislumbrando ainda o momento da dedução da acusação». Mas mais: o tribunal a quo afirma expressamente que «em Portugal o arguido não virá a ser acusado nem muito menos condenado pelos factos pelos quais venha a ser extraditado, pois a isso impede o nosso sistema legal e a nossa Constituição» (vd. as fls. 1300 ss. dos autos). Reitera-se ainda na decisão recorrida: «E não colhe, ao contrário do afirmado pelo requerido, que a extradição implicaria que pudesse ser julgado por tais factos nos dois países. Com efeito, em Portugal nenhum arguido pode ser julgado (acusado) pelos exatos ou mesmos factos, mesmo que anterior julgamento tenha tido lugar noutro País, atento o princípio ne bis in idem.» Como não bastasse, afirma ainda inequivocamente o tribunal recorrido (a fls. 1303 ss. dos autos): «Parece-nos evidente que o Tribunal recorrido não pode apreciar uma eventual situação de ofensa ao princípio ne bis in idem e não conceder a extradição, como pretende o recorrente, sob pena de violação do próprio princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da CRP.» Ou seja, a questão de constitucionalidade formulada pelo recorrente é extemporânea, de um ponto de vista material, no sentido de que não há qualquer circunstância que autorize a ideia de que Portugal continuará a perseguir penalmente os factos pelos quais decidiu extraditar o recorrente. Apenas se e quando isso ocorresse poderia uma questão como aquela cuja fiscalização aqui vem solicitada integrar a ratio dedicendi da decisão recorrida. Em qualquer caso, a norma cuja constitucionalidade poderia então ser colocada em crise dificilmente poderia decorrer do artigo 18.º, n.º 1, da LCJIMP, pois este preceito versa única e exclusivamente sobre a questão de saber se o Estado português deve ou não conceder a extradição quando deva ou possa, ele próprio, agir penalmente sobre os factos constantes do pedido, enquanto a essência da referida questão de constitucionalidade reside em saber se, tendo decidido extraditar, o Estado português pode ou não – ou em que medida – agir penalmente sobre os factos constantes do pedido. Quer dizer, o problema que o recorrente identifica, a verificar-se efetivamente, coloca-se no plano substantivo e processual; não no plano da cooperação judiciária. O problema estaria em o Estado português adotar determinadas ações processuais penais após ter concedido a extradição; não em ter concedido a extradição. Por esta razão, a questão colocada pelo recorrente não pode ser conhecida, sob pena de um eventual julgamento de inconstitucionalidade por parte deste Tribunal ser necessariamente inútil, por ser insuscetível de se repercutir sobre a decisão recorrida.» 5. Inconformado, o recorrente vem agora reclamar dessa Decisão Sumária, o que faz nos seguintes termos: «1.  O Reclamante interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º da LTC, invocando a inconstitucionalidade da seguinte norma: "norma jurídica que resulta do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional, na interpretação de acordo com a qual a pendência de processo em Portugal pelos factos que fundamentam o pedido de extradição, ainda que não tenha sido proferida decisão de arquivamento ou sentença absolutória, encontrando-se o processo, nomeadamente, em fase de inquérito, constitui apenas causa de recusa facultativa - e não obrigatória - da extradição, por violação do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da Constituição". 2.    Pela decisão sumária reclamada foi decidido não conhecer do objeto do recurso, por se ter julgado não estarem reunidos os pressupostos legais para o efeito, com a seguinte fundamentação: [cf. supra]. 3.    Em síntese, julgou-se que a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo Reclamante seria a de se saber se, "tendo decidido extraditar, o Estado português pode ou não - ou em que medida - agir penalmente sobre os factos constantes do pedido". 4.    Ora, esta questão não teria constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, pelo que um eventual julgamento de inconstitucionalidade sempre seria inútil, por não ser suscetível de se repercutir na decisão recorrida. 5.    Sucede que, como resulta, sem qualquer dúvida, da formulação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, a decisão sumária reclamada lavra em manifesta confusão quanto à mesma, vício de raciocínio que inquina todas as restantes conclusões que na mesma se formulam. 6.    Ao contrário do que consta da decisão reclamada, é óbvio que a norma cuja inconstitucionalidade foi invocada nada tem a ver com a questão de saber se, "tendo decidido extraditar, o Estado português pode ou não - ou em que medida - agir penalmente sobre os factos constantes do pedido". 7.    Na verdade, a norma cuja inconstitucionalidade constitui objeto do recurso é antes a "norma jurídica que resulta do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional, na interpretação de acordo com a qual a pendência de processo em Portugal pelos factos que fundamentam o pedido de extradição, ainda que não tenha sido proferida decisão de arquivamento ou sentença absolutória, encontrando-se o processo, nomeadamente, em fase de inquérito, constitui apenas causa de recusa facultativa - e não obrigatória - da extradição, por violação do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da Constituição". 8.    Como é óbvio, a declaração de inconstitucionalidade que se pede tem por consequência que a pendência de processo em Portugal por mesmos factos que aqueles que fundamentam o pedido de extradição constitua causa de recusa obrigatória da mesma, o que conduzirá à alteração da decisão recorrida, que deverá, em virtude deste julgamento de inconstitucionalidade, ser substituída por outra que recuse a extradição. 9.    E também não há qualquer dúvida de que o Tribunal recorrido interpretou esta norma, com a interpretação literal que da mesma resulta, como ratio decidendi do acórdão recorrido, ou seja, julgando que a pendência de processo em Portugal por factos coincidentes com os que fundamentam o pedido de extradição apenas constitui causa de recusa facultativa da mesma. 10.  Assim, como se escreveu nas pp. 158-159 do mesmo aresto: "Este preceito legal consagra um motivo facultativo de denegação de cooperação ou, para o que aqui releva, de extradição. Diz-se que pode ser negada a cooperação quando o facto que a motiva for a pessoa, objeto de processo da competência de autoridade judiciária portuguesa, estando, assim, em causa uma denegação facultativa. Sendo facultativa, impõem-se uma ponderação por parte do tribunal, tomando em consideração os próprios factos, os interesses em jogo, o exercício da nossa soberania ou a sua eventual afetação. (...) No caso presente, o recorrente, para além de não ter a nacionalidade portuguesa (que também poderia ser fator de ponderação), exercia a sua atividade em diversos países (nomeadamente em Portugal e nos USA) e esta, necessariamente atentas as suas características, iria repercutir-se e ter consequências também em vários países, entre eles os atrás citados. Nestes casos, sendo o facto o mesmo, impõe-se a cooperação entre os Estados, e na ponderação de uma denegação de extradição, sempre haveria que ter em conta o estado dos respetivos processos e a posição das autoridades intervenientes. O processo que corre seus termos nos EUA e no qual se reclama a extradição do arguido, encontra-se já em fase adiantada, com a acusação deduzida; em Portugal, o processo ainda se encontra em investigação, não se vislumbrando ainda o momento da dedução da acusação. Assim, se a lei no citado artigo 18.º não impede a extradição, verifica-se também o desconhecimento de qualquer causa que a impeça"(sublinhados nossos). 11.  Com esta fundamentação, julgou o acórdão recorrido que, estando presente uma causa meramente facultativa de recusa da extradição, a ponderação das circunstâncias do caso concreto não impedia a sua concessão, apesar de os factos que fundamentam o pedido de extradição serem objeto de processo pendente contra o Reclamante em Portugal. 12.  Acresce que o Tribunal recorrido conheceu expressamente da inconstitucionalidade invocada pelo Recorrente, julgando-a improcedente, na p. 165 do acórdão recorrido, 13.  Em consequência, é também manifesto que, caso este Tribunal julgue a inconstitucionalidade da norma em apreço no presente recurso, tal julgamento terá implicações decisivas na decisão a proferir nos autos, pois estar-se-á, em virtude do julgamento de inconstitucionalidade, perante um motivo que obriga à recusa da extradição. 14.  Com efeito, tendo o Tribunal recorrido concedido a extradição por ter julgado, por aplicação da norma que constitui objeto do presente recurso, que a pendência de processo em Portugal por mesmos factos que fundamento o pedido de extradição constitui causa meramente facultativa da extradição, caso se passe a estar, em virtude da declaração de inconstitucionalidade que se pede no presente recuso, perante uma causa de recusa obrigatória da extradição, o Tribunal recorrido terá de alterar a decisão proferida nos autos, revogando-se a substituindo-a por outra de sentido oposto, que recuse a extradição. 15.  Deste modo, a procedência do presente recurso repercutir-se-á, de modo decisivo, na decisão recorrida, pois implicará a sua revogação e substituição por outra de sentido oposto, recusando a extradição, ao invés de a conceder. 16.  Em síntese, por tudo o exposto, a norma jurídica cuja inconstitucionalidade se invoca não é a que se encontra referida da decisão sumária reclamada, sendo que aquela foi inequivocamente aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida, razão pela qual a procedência do presente recurso repercutir-se-á necessariamente sobre a decisão recorrida, que terá de ser revogada e substituída por outra que, ao invés do decidido, recuse a extradição. 17.  Por tudo o exposto, é manifesto que, ao contrário do que se decidiu na decisão reclamada, estão reunidos todos os pressupostos legais para a admissão do presente recurso. Nestes termos, deve julgar-se procedente a presente reclamação e, em consequência, revogar-se a decisão sumária reclamada, substituindo-se a mesma por outra que admita o presente recurso.» 6. O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, nos seguintes termos: «1º Nos presentes autos, pela Decisão Sumária 7/2021, de 4 de janeiro (cfr. fls. 1387-1394 dos autos), o Ilustre Conselheiro Relator, deste Tribunal Constitucional, decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto pelo ora reclamante (cfr. fls. 1370-1380 dos autos), A.. 2º Por Acórdão de 1 de julho de 2020, do Tribunal da Relação de Lisboa, foi concedida a extradição do ora reclamante, de nacionalidade suíça, mas não portuguesa, a solicitação dos Estados Unidos da América, para efeitos de procedimento criminal contra o mesmo, no âmbito de processo que corre termos no Tribunal Distrital de Houston, distrito do Texas Sul. Em causa, 19 imputações relativas à prática de crimes de branqueamento de capitais e de associação criminosa com vista à violação da Lei relativa às Práticas de Corrupção Internacional. 3º O referido Acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa, concedeu a extradição, «com a condição de o Extraditando voltar a ser entregue a Portugal após o fim do procedimento nos E.U.A., se para tal houver solicitação». 4º Inconformado, o ora reclamante interpôs recurso deste Acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. Este Venerando Tribunal, por Acórdão de 21 de agosto de 2020 (cfr. fls. 1221-1322 dos autos), negou, porém, provimento ao recurso e manteve integralmente a decisão recorrida. 5º O ora reclamante veio, em seguida, arguir a nulidade deste Acórdão (cfr. fls. 1327-1332 dos autos). O Supremo Tribunal de Justiça, em novo Acórdão, agora de 29 de outubro de 2020 (cfr. fls. 1334-1365 dos autos), indeferiu, todavia, o pedido formulado. 6º Novamente inconformado, o Extraditando interpôs, então, recurso, para este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 1370-1380 dos autos), do Acórdão de 21 de agosto de 2020 do Supremo Tribunal de Justiça. O recurso foi admitido por despacho judicial, proferido no Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de novembro de 2020 (cfr. fls. 1382 dos autos). 7º Neste Tribunal Constitucional, pela Decisão Sumária 7/21, de 4 de janeiro (cfr. fls. 1387-1394 dos autos), como anteriormente referido, decidiu o Ilustre Conselheiro Relator não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto pelo extraditando, ora reclamante. 8º Considerou, para o efeito, desde logo, o mesmo Ilustre Conselheiro Relator, que «a questão de constitucionalidade trazida a este Tribunal pelo recorrente não tem respaldo suficiente na decisão recorrida como sua ratio decidendi, pressuposto que constitui uma inerência da natureza instrumental dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: embora estes recursos se restrinjam à questão da invalidade da norma, é necessário que as decisões proferidas no seu âmbito possam repercutir-se sobre a decisão recorrida. O que só pode acontecer quando se verifique uma perfeita coincidência entre a norma cuja constitucionalidade é invocada e normas efetivamente aplicadas pelo tribunal recorrido para fundamentar a sua decisão» (cfr. fls. 1393 dos autos). 9º A Decisão Sumária reclamada cita, em seguida, vários excertos do Acórdão recorrido, para confirmar que a questão suscitada pelo extraditando, relativa à violação do princípio ne bis in idem, foi devidamente analisada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que considerou que a mesma nunca poderia ocorrer no nosso país (cfr. fls. 1393-1394 dos autos). 10º A Decisão Sumária reclamada pôde, assim, concluir (cfr. fls. 1394 dos autos): “Ou seja, a questão de constitucionalidade formulada pelo recorrente é extemporânea, de um ponto de vista material, no sentido de que não há qualquer circunstância que autorize a ideia de que Portugal continuará a perseguir penalmente os factos pelos quais decidiu extraditar o recorrente. Apenas se e quando isso ocorresse poderia uma questão como aquela cuja fiscalização aqui vem solicitada integrar a ratio decidendi da decisão recorrida. Em qualquer caso, a norma cuja constitucionalidade poderia então ser colocada em crise dificilmente poderia decorrer do artigo 18º, nº 1, da LCJIMP, pois este preceito versa única e exclusivamente sobre a questão de saber se o Estado português deve ou não conceder a extradição quando deva ou possa, ele próprio, agir penalmente sobre os factos constantes do pedido, enquanto a essência da referida questão de constitucionalidade reside em saber se, tendo decidido extraditar, o Estado português pode ou não – ou em que medida – agir penalmente sobre os factos constantes do pedido. Quer dizer, o problema que o recorrente identifica, a verificar-se efetivamente, coloca-se no plano substantivo e processual; não no plano da cooperação judiciária. O problema estaria em o Estado português adotar determinadas ações processuais penais após ter concedido a extradição; não em ter concedido a extradição.” 11º Ora, concorda-se inteiramente com esta fundamentação do Ilustre Conselheiro Relator. O requerimento de reclamação para a conferência, agora apresentado pela ora reclamante, apenas confirma, na argumentação insistente que encerra, a justeza da argumentação aduzida na Decisão Sumária reclamada, não infirmando a justeza da mesma argumentação. Com efeito, o extraditando dá como assente algo que a decisão recorrida não confirma, bem pelo contrário, designadamente o haver coincidência entre os factos que determinam a extradição e os factos pelos quais o extraditando está a ser investigado em território português. O Supremo Tribunal de Justiça afastou, para já, essa coincidência, atendendo ao caráter preliminar da investigação nacional, admitindo, como mera hipótese, que, se tal viesse a ocorrer, o princípio ne bis in idem impediria o julgamento pelos mesmos factos em Portugal. Não há, assim, nenhum impedimento à concessão da extradição, requerida pelos E.U.A., não integrando, por outro lado, a questão de constitucionalidade suscitada a ratio decidendi do Acórdão recorrido, como corretamente decidido por este Tribunal Constitucional. 12º Julga-se, pelos diversos motivos indicados, apesar da persistência argumentativa do ora reclamante, que a presente reclamação para a conferência deverá ser indeferida, mantendo-se, pois, incólume a Decisão Sumária 7/2021, de 4 de janeiro, que lhe deu causa.» II – Fundamentação 7. O recorrido vem apresentar reclamação da Decisão Sumária n.º 7/2021, onde foi decidido não conhecer o objeto do seu recurso de constitucionalidade, por se ter entendido que a norma indicada pelo recorrente não tem respaldo suficiente na decisão recorrida como sua ratio decidendi. A reclamação, no entanto, não pode ser deferida. 8. A argumentação do recorrente traduz-se, no essencial, em operar uma cisão entre o enunciado normativo que pretende ver julgado inconstitucional e o parâmetro constitucional que imporia esse julgamento de inconstitucionalidade. Afirma o recorrente, inter alia: «6. Ao contrário do que consta da decisão reclamada, é óbvio que a norma cuja inconstitucionalidade foi invocada nada tem a ver com a questão de saber se, "tendo decidido extraditar, o Estado português pode ou não - ou em que medida - agir penalmente sobre os factos constantes do pedido". 7. Na verdade, a norma cuja inconstitucionalidade constitui objeto do recurso é antes a "norma jurídica que resulta do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional, na interpretação de acordo com a qual a pendência de processo em Portugal pelos factos que fundamentam o pedido de extradição, ainda que não tenha sido proferida decisão de arquivamento ou sentença absolutória, encontrando-se o processo, nomeadamente, em fase de inquérito, constitui apenas causa de recusa facultativa - e não obrigatória - da extradição, por violação do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da Constituição". Como princípio geral, é indiscutível que existe uma certa autonomia entre aqueles dois elementos – enunciado normativo e parâmetro constitucional –, ou de outro modo este Tribunal Constitucional não poderia apreciar a conformidade de um enunciado normativo com parâmetros constitucionais distintos daqueles que vêm invocados por um recorrente, nos termos decorrentes do princípio iura novit curia (cf. o artigo 79.º-C da LTC). No entanto, não é inócua a circunstância de se exigir do recorrente que indique, além da norma cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie (cf. o artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC), também a norma ou princípio constitucional ou legal que considera violado (cf. o artigo 75.º-A, n.º 2, da LTC). De facto, cada questão de constitucionalidade resulta de uma articulação ou conjugação desses dois elementos: a norma ordinária e o parâmetro constitucional. É essa articulação que faz emergir o objeto do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade. Em certos casos, a modificação – seja oficiosa, seja por parte do próprio recorrente (por exemplo, do momento da suscitação prévia para o da interposição do recurso, ou de qualquer deles para o da dedução de alegações) –, não comporta uma inadmissível reconfiguração do objeto do recurso. No entanto, em certos casos, a articulação entre a norma ordinária e o parâmetro constitucional é particularmente definitória do objeto do recurso. Nesses casos, a associação de dado parâmetro constitucional a dado preceito ordinário é crucial para compreender a própria norma cuja inconstitucionalidade se pretende. É fundamental, quer dizer, para determinar o próprio sentido normativo da questão de constitucionalidade, podendo nesse sentido dizer-se que, nesses casos, o parâmetro constitucional invocado é coconstitutivo do enunciado normativo reputado de inconstitucional. Nesta linha, cf. a mero título de exemplo os Acórdãos n.º 139/2003 e n.º 48/2019. Nos presentes autos, conclui-se com clareza meridiana que o ponto nevrálgico, para o recorrente, no que diz respeito à recusa da extradição ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, sempre residiu no facto de a causa de recusa aí consagrada – por ser apenas facultativa, e não obrigatória – conduzir a uma violação do princípio ne bis in idem. Em razão, no entendimento do recorrente, do que seria uma duplicação de atuações punitivas em relação aos mesmos factos e ao mesmo agente: uma dos EUA, proporcionada pelo Estado português através da concessão da extradição; outra do Estado português, posteriormente a tal concessão. Foi sempre este e apenas este parâmetro, com todas as considerações que o mesmo convoca (designadamente a de saber se poderia de facto considerar-se, no caso, que os factos sejam os mesmos) que esteve em discussão nos presentes autos. Por isso, vir agora – no propósito de firmar a verificação de um pressuposto processual (da ratio decidendi) – operar uma cisão total entre o parâmetro inicialmente invocado (o ne bis in idem) e o preceito em causa (artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99) equivale a modificar o sentido original da questão de constitucionalidade. Equivale, em rigor, a retirar-lhe idoneidade, já que nenhum outro parâmetro é invocado em substituição daquele. E, se o fosse, sempre deveria a reclamação ser indeferida, porque então – representando essa modificação, no presente caso, uma alteração da própria norma cuja constitucionalidade é invocada – não poderia sequer considerar-se satisfeito o pressuposto de que essa questão tivesse sido a questão suscitada perante o tribunal recorrido e o recorrente careceria, portanto, de legitimidade, ao abrigo do disposto no artigo 72.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da LTC (e neste sentido cf. novamente, a título de exemplo, os Acórdãos n.º 139/2003 e n.º 48/2019). III – Decisão Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.

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