Apura logo

Acórdão STA de 2011-12-07

0419/11

TribunalSupremo Tribunal Administrativo, 2 Secção
Processo0419/11
Data do Acordão2011-12-07
RelatorLino Ribeiro
DescritoresCaso Julgado, Limites do Caso Julgado, Impugnação Judicial, Acção de Anulação, Caso Julgado Material, Identidade de Objecto
Nº ConvencionalJSTA00067292
Nº do DocumentoSA2201112070419
Data de Entrada2011-04-28
RecorrenteFazenda Pública
RecorridoA..., LDA
VotaçãoUnanimidade
Meio ProcessualREC JURISDICIONAL
ObjectoDESP TAF PENAFIEL DE 2010/04/21 PER SALTUM
DecisãoProvido
Área TemáticaDir Proc Tribut Cont - Impugn Judicial, Dir Proc Civ
Legislação NacionalCPC96 ART497 ART498 N2 N4 ART660 N2 ART671 ART675 LGT98 ART56 N2 ART57 N5 ART95 N1 D CPPTRIB99 ART96 ART97 ART99 ART102 N1 D ART106 CPA91 ART9 ART83 ART109 CONST97 ART268 N4 CIVA84 ART20 N1 A
Referência a DoutrinaMANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG317 ANTUNES VARELA MANUAL DE PROCESSO CIVIL PAG712 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA SOBRE A AUTORIDADE DO CASO JULGADO DAS SENTENÇAS DE ANULAÇÃO DE ACTOS ADMINISTRATIVOS PAG52 PAG62 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA ANULAÇÃO DE ACTOS ADMINISTRATIVOS E RELAÇÕES JURIDICAS EMERGENTES PAG 190 PAG201 VASCO PEREIRA DA SILVA PARA UM CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DOS PARTICULARES PAG271

Sumário

I - Os limites objectivos do caso julgado definem-se por referência ao objecto do processo. II - No processo de anulação de actos tributários o objecto do processo define-se necessariamente por referência a um acto inválido: o pedido imediato do impugnante corresponde à eliminação do acto impugnado da ordem jurídica, e com ela, a cessação da situação lesiva por ele causada; e a causa de pedir, às específicas causas de invalidade invocadas. III - Mas o facto do acto ser um elemento essencial da acção impugnatória, não permite concluir que o objecto do processo se identifique com ele, pois, subjacente à pretensão anulatória existe sempre uma relação material constituída pela definição introduzida pelo acto na ordem jurídica e pela lesão que ele causa à posição jurídica subjectiva do impugnante. IV - O caso julgado material estende-se assim ao juízo que o tribunal faz sobre os pressupostos de que depende o exercício do poder consubstanciado no acto ou sobre a ocorrência de factos impeditivos ou extintivos que obstem a esse exercício. V - Por isso, há identidade de objecto se já existir uma sentença transitada em julgado que apreciou os concretos fundamentos de facto e de direito em que se baseia a pretensão anulatória do acto impugnado.


Texto Integral

Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo 1.1. A Fazenda Pública interpõe recurso jurisdicional do despacho interlocutório proferido em 21/4/2010 no processo de impugnação nº 812/09.9.BEPRT, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, e que julgou improcedente a excepção de caso julgado. Para tal, nas respectivas alegações, conclui o seguinte: a) A não subida imediata do recurso da decisão interlocutória compromete o efeito útil a obter com a invocada excepção do caso julgado. b) Pois, ao evitar-se que venha a ser proferida nova decisão, sobre uma situação jurídica já definida, acautela-se o princípio da certeza e da segurança do direito, assim como se protege o prestígio da administração da justiça. c) O douto despacho sob recurso padece de erro de julgamento quanto à matéria de direito, ao ponderar erroneamente, ou não ponderar de todo, as regras legais determinantes da verificação de caso julgado, previstas nos art.°s 497° e 498° do CPC. d) Ao decidir como decidiu, o douto despacho fez errada aplicação do direito aos factos controvertidos. e) Entende a Fazenda Pública que estando em causa identidade de sujeitos processuais, de causa de pedir e de pedido, verifica-se a excepção de caso julgado prevista no art. 494°, al. i), do CPC, aplicável ex vi art. 2°, al. e), do CPPT, a qual é de conhecimento oficioso por força do art. 495° do citado CPC. f) Assim, tendo o impugnante apresentado impugnação judicial em 27.03.2003, sobre a qual recaiu a sentença proferida de 25 de Maio de 2005, que após a devida apreciação dos factos e do direito a julgou improcedente, g) Não pode, por utilização abusiva de meios processuais administrativos, reabrir a oportunidade para a apreciação das questões que já foram devidamente valoradas e apreciadas pelo douto tribunal a quo. h) Não podendo, como tal, a impugnação apresentada em segundo lugar, na sequência da invocada formação do acto de indeferimento tácito do pedido de revisão do acto tributário, ser objecto de nova apreciação judicial, sob pena de violação dos princípios da certeza e da segurança jurídica. 1.2. A recorrida contra-alegou com as seguintes conclusões. 1. O recurso jurisdicional em que ora se contra-alega foi interposto pelo Representante da RFP contra o despacho de fls. 246/247, que julgou a excepção dilatória de caso julgado invocada por este último improcedente. 2. Não assiste razão ao RFP, atendendo a que o despacho ora recorrido não merece qualquer censura e deve, consequentemente, manter-se. 3. Na verdade, em causa está a questão de saber se o acto silente da Administração fiscal é sindicável em sede judicial, questão essa à qual só se poderá responder positivamente. 4. Na verdade, de acordo com princípio da decisão (artigo 56° da LGT), é estabelecido um dever geral da Administração fiscal se pronunciar acerca de todas as questões que lhe sejam apresentadas pelos sujeitos passivos e sobre quaisquer matérias que sejam da sua competência, princípio este consagrado constitucionalmente no artigo 268° da Constituição da República Portuguesa (CRP) — Direitos e Garantias dos Administrados. 5. O dever de pronúncia consubstancia um dever de decisão, que deve cumprir todas as formalidades exigidas por lei, nomeadamente o dever de fundamentação previsto no artigo 77° da LGT, segundo o qual a decisão é sempre fundamentada, por meio de exposição das razões de facto e de direito que a motivaram. 6. Resulta do n.º 2 do citado artigo 56º do Código de Procedimento e Processo Tributário que não existe dever de decisão nos casos em que a Administração fiscal se haja pronunciado, há menos de dois anos, sobre idêntico pedido do mesmo autor, o que, naturalmente, significa que, decorridos dois anos sobre uma qualquer anterior pronúncia, existe dever de decisão da pretensão formulada pelo mesmo autor com idênticos objecto e fundamentos. 7. Estamos, assim, em face de uma obrigação da Administração fiscal que decorre do princípio da legalidade, “pois que não é constitucionalmente admissível a existência de actos administrativos dispensados do cumprimento da legalidade” (vide Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária comentada e anotada, 2ª Edição revista e aumentada, 2000, Vislis Editores, comentário ao artigo 56º, páginas 225 e seguintes). 8. Quer isto dizer que está a Administração fiscal obrigada, ao abrigo das disposições que se vêm citando, a pronunciar-se acerca de pedido idêntico, formulado sobre o mesmo autor, acerca da mesma matéria, desde que sobre o primeiro tenham decorrido mais de 2 anos. 9. Trata-se aqui, em bom rigor, de um verdadeiro dever de reapreciação por parte da Administração fiscal. 10. Ora, a criação de tal dever de decidir tem como objectivo a formação de um acto tácito de indeferimento - que depende da existência do mencionado dever - permitindo, consequentemente, a abertura da via contenciosa: e o meio próprio para reagir contra este acto silente é, justamente, a impugnação judicial. 11. Neste sentido se pronunciou o STA, no acórdão n.º 306/09, datado de 08-07-2009, segundo o qual “O meio processual adequado para reagir contenciosamente contra o acto silente atribuído a director-geral que não decidiu o pedido de revisão oficiosa de um acto de liquidação de um tributo é a impugnação judicial”, pois que, “se o acto administrativo em matéria tributária comporta a apreciação do acto de liquidação, a legalidade deste último, não obstante não ser ele o objecto imediato do recurso, é nele indirectamente apreciada pelo tribunal, justificando-se, por este motivo, a adopção do processo judicial de impugnação”. 12. Assim, a recorrida solicitou, mediante expediente extraordinário de revisão de acto tributário, que a Administração fiscal se pronunciasse acerca das ilegalidades pelo mesmo invocadas. 13. A Administração fiscal não se pronunciou - como o exigem as disposições legais aplicáveis - acerca do requerido pela recorrida, gerando-se, consequentemente, um acto silente da Administração fiscal, susceptível de ser objecto de sindicância jurisdicional, através da respectiva impugnação judicial. 14. Pelo que, o despacho ora recorrido não merece qualquer censura do ponto de vista legal, devendo, consequentemente, manter-se na ordem jurídica. 1.3. O Ministério Público emitiu parecer no sentido do provimento do recurso. 2. O despacho recorrido tem o seguinte teor, na parte que interessa: “ Cumpre decidir. A impugnante apresentou pedido de revisão de acto tributário ao abrigo do disposto no artigo 78º da Lei Geral Tributária (LGT). A Administração Fiscal liquidou o imposto em discussão neste processo. A Impugnante solicitou, por via da revisão de acto tributário, que a Administração Fiscal se pronunciasse acerca das ilegalidades por ela invocadas. A Administração Fiscal nada disse. Acompanhamos a posição da Impugnante quando diz estarmos perante um acto silente da Administração Fiscal, susceptível de ser objecto de sindicância jurisdicional, através da respectiva impugnação judicial. Efectivamente, não estamos perante uma situação que consubstancie a excepção de caso julgado, pois não existe identidade de pedidos e de causa de pedir. A actual impugnação é apresentada do acto silente da Administração Fiscal que não se pronunciou sobre o pedido de revisão. Pelo que improcede a referida excepção de caso julgado. Assim, procederá o Tribunal à apreciação do pedido e, bem assim das liquidações do imposto em crise, Notifique”. 3. Pese embora o despacho recorrido não ter seleccionado a matéria de facto sobre a qual julgou a excepção de caso julgado, ela resume-se no seguinte: (i) em 27/3/2003, a recorrida impugnou judicialmente os actos de liquidação adicional do IVA relativo aos anos de 1999 a 2002, praticados em 14/10/2002, na sequência de uma inspecção efectuada à impugnante, pedindo a anulação de tais liquidações; (ii) a acção impugnatória fundou-se no facto da administração tributária não reconhecer o direito à dedução do IVA, por considerar que a impugnante não praticou qualquer operação activa no âmbito da actividade “Turismo no Espaço Rural”; (iii) por sentença de 25 de Maio de 2005, transitada em julgado em 15/11/2007, a impugnação foi julgada improcedente, por se demonstrar que a instalações da impugnante “não se encontram afectas ao objecto social, razão pela qual o IVA suportado na aquisição de bens e serviços com as referidas instalações não confere direito à dedução”; (iv) em 19/9/2008, ao abrigo do artigo 78º da LGT, a recorrida requereu a revisão das liquidações adicionais do IVA relativo aos anos de 1999 a 2002 e juros compensatórios, invocando a ilegalidade das liquidações e pedindo a sua revisão; (v) sobre esse requerimento, a administração tributária não emitiu qualquer pronúncia. (vi) em 26/3/2009 é instaurada a presente acção de impugnação contra o indeferimento tácito do pedido de revisão, invocando-se a ilegalidade das liquidações por não aceitarem a dedução do IVA e pedindo-se a respectiva anulação. A única questão a decidir consiste em saber se a presente acção impugnatória ofende o caso julgado formado pela sentença que julgou improcedente a pretensão anulatória das liquidações do IVA. Como se sabe, o caso julgado material, a única vertente que aqui interessa, é a autoridade especial que a sentença adquire dentro do processo e fora dele quando já não é susceptível de recurso ordinário (cfr. art. 671º do CPC). Trata-se de um efeito processual da sentença que se projecta sobretudo sobre os titulares da função jurisdicional, quer impedindo que os tribunais se venham a pronunciar no futuro sobre a questão de mérito já decidida, quer vinculando-os a acatar e aplicar a definição transitada em julgado, quando lhes seja submetida a mesma questão. O caso julgado visa essencialmente a imodificabilidade da decisão transitada e a irrepetibilidade do juízo contido na sentença. Como ensinava Manuel de Andrade, o caso julgado obsta «a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por uma anterior decisão, e portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados» (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, pág. 317). Por isso, perante a propositura de nova acção sobre a mesma questão, o juiz deve negar-se a proferir nova decisão autónoma, sob pena de ineficácia da nova decisão (cfr. art. 675º do CPC). A operatividade da excepção de caso julgado depende pois da relação subsistente entre o que já foi julgado e o que está submetido a decisão como a nova acção. Como a sentença deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à apreciação do juiz, e só essas, salvo as de conhecimento oficioso (cfr. arts. 660º nº 2 do CPC), a eficácia de caso julgado deve limitar-se à decisão que for tomada sobre tais questões. Diz o artigo 673º do CPC que é «nos precisos limites e termos em que se julga» que se determina a extensão do caso julgado, limites subjectivos e objectivos que, por remissão do nº 1 do art. 671º, estão definidos nos artigos 497º e 498º do CPC. Os limites objectivos do caso julgado definem-se por referência ao objecto do processo. Como se prescreve nestes artigos, é preciso que exista a «repetição de uma causa» depois da «primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário», em que «o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior», o que acontece «quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir». Portanto, objecto do processo e a extensão objectiva do caso julgado identificam-se através do pedido e da causa de pedir. Mas o papel principal é desempenhado pela pretensão do autor, que se identifica como o efeito jurídico pretendido (nº 2 do art. 498º do CPC), ou seja, a providência solicitada ao tribunal (pedido imediato) e a posição jurídica material a tutelar por esse meio (pedido mediato). A causa de pedir serve apenas para individualizar a posição subjectiva que o autor pretende efectivar com a providência solicitada. Como refere Antunes Varela «a ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido, antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado» (cfr. Manual de Processo Civil, pág. 712). Nos processos de natureza impugnatória, como é o caso da impugnação judicial de actos tributários (cfr. art. 95º da LGT e 96º, 97º e 99º do CPPT), a pretensão do impugnante dirige-se à remoção da ordem jurídica de um acto jurídico inválido. De modo que, no processo de anulação de actos tributários ou de quaisquer outros actos administrativos, o objecto do processo define-se necessariamente por referência a um acto inválido: o pedido imediato do impugnante corresponde à eliminação do acto impugnado da ordem jurídica, e com ela, a cessação da situação lesiva por ele causada; e a causa de pedir, de acordo com a teoria da substanciação consagrada no nº 4 do art. 498º do CPC, corresponde ao «facto concreto ou à nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido», ou seja, às específicas causas de invalidade invocadas. O acto administrativo é, pois, um elemento incontornável do objecto do processo de impugnação, no sentido de que é contra ele que o impugnante reage e de que é sobre ele que a sentença de anulação projecta os seus efeitos. Mas, o facto do acto ser um elemento essencial da acção impugnatória, não permite concluir que o objecto do processo se restrinja ou se identifique com ele. Assim era entendido pela doutrina tradicional que configurava o processo de impugnação como um “processo feito a um acto”, «no sentido de que a pretensão anulatória objecto do processo e à qual se reportava o efeito de caso julgado da sentença é indissociável do acto impugnado e não se projecta para além dele» (cfr. Mário Aroso Almeida, Sobre a autoridade do caso julgado das sentenças de anulação dos actos administrativos, Almedina, pág. 52). Mas, por força do nº 4 do artigo 268º da CRP, que consagrou um modelo de contencioso administrativo de natureza subjectiva, o objecto do processo estendeu-se para além dos limites definidos pelo acto impugnado. Como refere Vasco Pereira da Silva, «num sistema de tipo subjectivo, o objecto do processo é o direito substantivo afirmado pelo particular como lesado por um acto administrativo» e assim o pedido de anulação (o pedido imediato) é «visto como um meio de tutela de um direito subjectivo lesado do indivíduo (pedido mediato)» (cfr. Para um contencioso administrativo dos particulares, Almedina, pág. 271). De igual modo, Aroso de Almeida diz que o processo de impugnação «tem por objecto o reconhecimento do direito à posição jurídica que decorre da modificação, por referência à qual o direito de acção desempenha a função instrumental que lhe é própria em relação à posição substantiva que se destina a servir» (ob. cit. pág. 62). Na verdade, embora o impugnante pretenda, em primeira linha a anulação do acto ilegal, fá-lo reagindo e contestando o poder e a posição administrativa consubstanciada no acto impugnado, de modo a que seja repristinada ou reconstituída a situação que detinha antes da prática do acto impugnado. Subjacente à pretensão anulatória existe pois uma relação material constituída, por um lado, pela definição introduzida pelo acto na ordem jurídica, e por outro, pela lesão que ele causa aos direitos e interesses legalmente protegidos do impugnante (cfr. art. 95º da LGT e art. 96º do CPPT). Mais rigorosamente, como escreve Aroso de Almeida, «o que se discute no processo de impugnação do acto ablativo é o bem fundado da pretensão que a Administração fez valer com esse acto. O fundamento no qual assenta a pretensão anulatória do recorrente é a contestação da posição assumida pela Administração no acto impugnado. Por isso, o processo será procedente se for negado o poder da Administração, enquanto autora do acto atacado» (cfr. Anulação de actos administrativos e relações jurídicas emergentes, pág. 190). A construção alargada do objecto do processo de anulação de actos administrativos não pode deixar de se projectar na extensão da autoridade do caso julgado das sentenças de mérito proferidas nesse tipo de processos. A eficácia objectiva do caso julgado já não se delimita, sem mais, pela questão da validade ou invalidade de um acto, determinando, de forma imodificável, o seu afastamento da ordem jurídica ou a sua confirmação. A delimitação tradicional do caso julgado material deixava de fora o juízo que a sentença faz sobre a relação material na qual se inscreve o acto impugnado. Ora, o juízo que o tribunal faz sobre os pressupostos de que depende o exercício do poder consubstanciado no acto ou sobre a ocorrência de factos impeditivos ou extintivos que obstem a esse exercício, também estão ao alcance do caso julgado, atenta a nova configuração do objecto do processo. De forma bem expressiva, e referindo-se às sentenças de provimento, escreve Aroso de Almeida que «o caso julgado da sentença de anulação não se delimita, assim, a reconhecer a invalidade do acto sobre o qual recai, mas possui ainda o alcance de proceder ao accertamento negativo da posição consubstanciada no acto inválido, definindo se e em que medida o poder exercido com a prática do acto existia e podia ter sido exercido» (cfr. ob cit. pág. 201). A extensão do caso julgado material aos aspectos em que o tribunal se baseou para considerar ilegítimo ou legítimo o exercício do poder, e consequentemente proferir a anulação do acto ou declarar a improcedência da acção, tem importância decisiva no caso dos autos. A sentença recorrida julgou que o objecto é diferente, porque se está perante actos de natureza diferente: na primeira acção, o acto expresso de liquidação do imposto; na presente, o acto de indeferimento tácito do pedido de revisão daquela liquidação. Segundo a doutrina tradicional, que restringe o objecto do processo à pretensão anulatória, não haveria caso julgado porque, sendo actos diferentes, não há identidade de pretensões. Mas, se o assunto que se discute no processo é a regularidade formal e material do poder administrativo exercido com a prática do acto impugnado, então haverá identidade de objecto se já existir uma sentença transitada em julgado que apreciou os concretos fundamentos de facto e de direito em que se baseia a pretensão anulatória do acto impugnado. Se o impugnante já contestou a legitimidade do poder consubstanciado no acto, defendendo a posição subjectiva de fundo que foi lesada por esse acto, e se nessa acção foi emitida uma pronúncia judicial que confirma ou nega esse poder, então já há um accertamento do poder manifestado com o acto impugnado que não pode ser repetido, sob pena de ofensa ao caso julgado. A recorrida move a impugnação contra o indeferimento tácito do pedido de revisão da liquidação. Sendo o acto tácito desprovido de qualquer conteúdo substantivo, a pretensão anulatória tem por fim a eliminação do acto de liquidação objecto do pedido de revisão, precisamente o mesmo contra o qual a recorrida já havia reagido em processo anterior. Lendo petição inicial, do primeiro ao último artigo, verifica-se que é contra a liquidação adicional do IVA relativo aos anos de 1999 a 2002 que a recorrida pretende reagir, com fundamento em que a alínea a) do nº 1 do artigo 20º do CIVA lhe dá o direito à dedução, numa coincidência quase total com petição da impugnação daquela liquidação que foi julgada improcedente por sentença transitada em julgado. Relativamente ao indeferimento tácito, não foram apresentados fundamentos de facto e de direito diferentes dos invocados na impugnação do acto de liquidação. Nem sequer se alegaram “vícios próprios” do acto tácito, como a violação do dever de apreciar os pressupostos procedimentais, do dever de pronúncia ou do dever de decidir (art. 56º da LGT e art. 9º e 83º do CPA). Mas, mesmo que tivessem sido invocados, como pretendem fazê-lo nas contra-alegações, ainda assim não é a omissão da decisão dentro do prazo legalmente estabelecido que torna diferente o objecto de ambas as causas. A relação material subjacente a ambos aos actos é a mesma: o direito à dedução do IVA com fundamento em que houve prestações de serviços sujeitas a imposto. Ora, havendo sentença transitada em julgado sobre essa questão, a anulação do indeferimento tácito só poderia produzir a anulação da liquidação se os fundamentos de invalidade fossem outros. Acontece que o pedido de revisão não assentou em fundamentos diversos dos alegados na impugnação judicial anterior, julgada improcedente. E a verdade é que na data em que foi pedida a revisão, pressupondo que havia o dever legal de decidir (cfr. al. c) do nº 2 do art. 56º da LGT), apenas o “erro imputável aos serviços”, e não a ilegalidade já apreciada, poderia servir de fundamento a um pedido do contribuinte para que a administração tributária realizasse a revisão. Não se pode perder de vista que o acto silente, a que o contencioso fiscal ainda dá relevância jurídica (cfr. arts. 57º, nº 5 e 95º, nº 1, al. d) da LGT e 97º, nº 1 al. c), 102º, nº 1 al. d) e 106º do CPPT), tem por única finalidade fazer presumir indeferida a pretensão para o efeito de se poder exercer o respectivo meio legal de impugnação (cfr. art. 109º do CPA). Trata-se de uma figura de ordem adjectiva, um expediente técnico-jurídico para assegurar o acesso à justiça, que não produz quaisquer efeitos jurídico-administrativos substantivos na esfera jurídica do requerente. Por isso, o objecto do processo há-de ser a pretensão material do impugnante, sobre a qual a Administração nada disse, cabendo ao tribunal pronunciar-se sobre ela. E mesmo na eventualidade da anulação do acto tácito com fundamento na violação do dever de decidir, nunca seria possível obter-se a anulação da liquidação com fundamento em que não se verificam os fundamentos de facto e de direito em que ela se baseou, dada a sentença transitada em julgado. A execução de tal sentença anulatória não poderia projectar os seus efeitos sobre o acto de liquidação, naquilo que anterior sentença confirmou, uma vez que se tornou incontroverso que os recorridos não têm direito à redução do IVA. A presente acção, nos termos em que a recorrida a apresentou, visa o mesmo efeito jurídico que a impugnação judicial já decidida. Houve uma sentença de improcedência que teve o alcance de declarar com força imperativa que a pretensão formulada não tem fundamento, ou seja, que a liquidação adicional do IVA não padece da ilegalidade que a impugnante lhe apontou. A específica ilegalidade ali invocada, a existência de prestação de serviços sujeitas a IVA, e a correspondente pretensão anulatória do acto de liquidação, é totalmente idêntica à invocada e formulada no presente processo. Se o processo prosseguisse, o juiz teria necessariamente de contradizer ou de confirmar a decisão anterior proferida quanto à verificação do direito à dedução do IVA, pois, apesar da natureza do acto impugnado ser diferente, a ilegalidade invocada e a pretensão anulatória não deixam de ser as mesmas. Nas duas acções está em discussão o mesmo assunto, sendo certo que na primeira já se decidiu que não lugar à dedução do IVA. E não havendo outro assunto a discutir no processo, tem necessariamente que se julgar procedente a excepção de caso julgado, cuja razão de ser essencial é evitar que se renovem indefinidamente litígios entre as mesmas pessoas, pelos mesmos fundamentos e sobre o mesmo assunto, donde resulta a falta de confiança e tranquilidade social e a possibilidade de decisões contraditórias com o desprestígio para a justiça. 4. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em: a) Conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido; b) Julgar procedente a excepção de caso julgado e absolver da instância a Fazenda Pública. Custas pela recorrida, nesta e na primeira instância. Lisboa, 7 de Dezembro de 2011. - Lino Ribeiro(relator) – Valente Torrão – Dulce Neto.

© 2024 Apura. Todos os direitos reservados.
Termos e Condições
Política de Privacidade