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Acórdão STJ de 2017-01-31

440/12.2TBBCL.G1.S1

TribunalSupremo Tribunal de Justiça
Processo440/12.2TBBCL.G1.S1
Nº Convencional1ª. SECÇÃO
RelatorPedro de Lima Gonçalves
DescritoresInvestigação de Paternidade, Inconstitucionalidade, Prazo de Propositura da Acção, Direito à Identidade Pessoal, Direitos de Personalidade, Filiação Biológica, Presunção de Paternidade, Ónus da Prova
Data do Acordão2017-01-31
VotaçãoMaioria com * Vot Venc
Privacidade1
Meio ProcessualREVISTA
DecisãoConcedida Parcialmente a Revista
Área TemáticaDireito Civil - Direitos da Personalidade - Direito da Família / Filiação / Reconhecimento Judicial da Paternidade / Acção de Investigação da Paternidade ( Ação de Investigação da Paternidade ) / Prazo para Propositura da Acção ( Prazo para Propositura da Ação ), Direito Constitucional - Direitos e Deveres Fundamentais / Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais
Doutrina- GUILHERME DE OLIVEIRA, «Caducidade das ações de investigação», Lex familiae, n.º 1, 2004, 12-13; «Caducidade das ações de investigação», Comemorações dos 35 anos do C. Civil e dos 25 anos de Reforma de 1977, Vol. I, 10. - JORGE DUARTE PINHEIRO, O direito da família contemporâneo, 4.ª ed., 2013, 177, 178. - JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, "Constituição da República Portuguesa” Anotada, Tomo I, 2010, 552, 609, 814. - PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, vol. II, Tomo I, 35, 249. - PEREIRA COELHO, Curso de Direito de Família, Vol. II, tomo I, 2006, 252, 274. - PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Código Civil”, Anotado, Vol. V, 1995, 82 e 83.
Legislação NacionalCÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 1602.º, 1817.º, N.º1, 1871.º, N.ºS 1 E 2, 1873.º, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, N.ºS 1 E 2, 25.º, N.º1, 26.º, N.º1, 36.º, N.º1.
Jurisprudência NacionalACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: -N.º 23/2006, DE 10 DE JANEIRO (PUB. NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, DE 08 DE FEVEREIRO DE 2006); N.º 476/2011, DE 12 DE OUTUBRO DE 2011; N.º 106/2012, DE 06 DE MARÇO DE 2012; N.º 166/2013, DE 20 DE MARÇO DE 2013; N.º 441/2013, DE 15-06-2013; N.º 350/2013, DE 19-06-2013 E N.º 750/2013, DE 23-10-2013, ACESSÍVEIS IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT . * EM SEDE DE FISCALIZAÇÃO CONCRETA, EM PLENÁRIO, O ACÓRDÃO N.º 401/2011, DE 22.09.2011.

Sumário

I. A ação de investigação de paternidade tem como escopo a atribuição jurídica da paternidade do filho ao progenitor biológico deste, pelo que o facto de onde emerge tal direito é a procriação biológica/geração, constituindo tal facto jurídico procriador (relação sexual fecundante) a respetiva causa petendi. II. Tal facto jurídico pode lograr prova, quer diretamente, enquanto prova da procriação / filiação biológica (via biológica), quer indiretamente, através do uso de alguma das presunções legais (da relação biológica) de paternidade previstas no nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, desde que não ilididas, nos termos do nº 2 do mesmo normativo (via presuntiva), podendo tais vias ser invocadas cumulativamente (como sucede no caso dos autos). III. Na presente ação de investigação de paternidade, enquanto ação fundada na presunção de paternidade estabelecida na alínea a) do nº 1 do no artigo 1871º do Código Civil, à A. cabe provar os factos-base de tal presunção, em concreto, a posse de estado, a qual é integrada, conjunta e cumulativamente, por três elementos: (i) a reputação como filho pelo pretenso pai (nomen); (ii) o tratamento como filho pelo pretenso pai (tractatus); e (iii) a reputação como filho do pretenso pai pelo público (fama). IV. A norma constante do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade da A., enquanto filha, propor a presente ação de investigação de paternidade, com fundamento no facto biológico da filiação, é inconstitucional, uma vez que o direito a conhecer a ascendência biológica constitui dimensão essencial do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e o direito a estabelecer os concomitantes vínculos jurídicos traduz uma dimensão do direito a constituir família previsto no artigo 36º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, consubstanciando tal prazo limitador uma restrição excessiva ou desproporcionada aos assinalados direito fundamental à identidade pessoal e direito de constituir família, bem como ao próprio direito geral de personalidade dos investigantes (cfr. artigo 70º do Código Civil).


Texto Integral

ACÓRDÃO Acordam na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1. AA instaurou, em 07.2.2012, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, contra BB, pedindo que: — Se declare e condene o R. a reconhecer que a A. é sua filha, com as consequências legais; — Se reconheça que a A. tem o direito de obter o registo da referida paternidade, na Conservatória do Registo Civil, aí devendo ser cancelados quaisquer registos efetuados em contrário. Para tanto alegou, em síntese, que: — A A. nasceu em 00.00.1949, tendo sido registada apenas como filha de CC, solteira, com 36 anos de idade e natural da freguesia de ..., ..., ..., mas também é filha do R. e é por ele perfilhável, dado não haver entre ambos relações de parentesco ou de afinidade que obstem a tal; — O nascimento da A. ocorreu no termo da gravidez da sua mãe e como consequência das relações de cópula havidas entre ela e o R., com quem mantinha uma relação de proximidade e amor, publicamente conhecida, nunca tendo tido a sua mãe, durante a relação com o R., e, nomeadamente nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento, relações sexuais de cópula com qualquer outro homem que não aquele; — O R. sempre teve para com a A. atitudes que normalmente os pais têm para com os filhos, nomeadamente, questionando-a se está tudo bem, se precisa de alguma coisa e inclusive concedendo-lhe a bênção quando a A. a solicitava, como era costume na época, tendo o R. chegado a propor à mãe da A. irem residir para Angola, onde este lhes proporcionaria o sustento para ambas, o que não se concretizou devido à oposição dos avós maternos da A.; — Esta situação era conhecida e comentada por todas as pessoas amigas e conhecidas, da freguesia de ... (...) e arredores, já que todas sabiam que a A. é filha do R. e onde sempre foi apelidada de "...", "..." em virtude da alcunha da família do R. ser "...". Requereu, ainda, produção antecipada de prova, solicitando que A. e R. «simultaneamente, sejam submetidos a colheitas de sangue e zaragota bucal e seja realizada perícia de investigação biológica de paternidade, pelo serviço de genética e biologia forense do Instituto de Medicina Legal». 2. Citado, o R. apresentou contestação, invocando a exceção perentória da caducidade do direito da A., e, por impugnação, afirmando nunca ter ocorrido qualquer relação sexual de cópula completa entre o R. e a mãe da A., bem como nunca ter tido quaisquer atitudes de pai para com a A.. 3. A A. replicou quanto à matéria da exceção, sustentando a imprescritibilidade do direito a investigar a sua paternidade. Conclui pela improcedência da exceção de caducidade. 4. Admitida a realização de exame pericial, o R. nunca compareceu, e, tendo sido determinada a deslocação do Instituto de Medicina Legal à residência do R., o mesmo, por requerimento de fls. 97-98, veio recusar submeter-se a tal exame. 5. Perante a recusa do R., a fls. 99, foi proferido o seguinte despacho: «Tal declaração por parte do R será devidamente tida em conta a seu tempo». 5.1. E, no ulterior desenvolvimento dos autos, a fls. 225/229, foi proferido despacho que conclui da forma seguinte: «(…) Diferente é a cominação prevista no art. 344º, nº 2 do Código Civil. Na verdade, a prática pela força de um acto médico como é o de recolha de sangue para realização dos exames necessários é incompatível com o direito constitucionalmente consagrado à integridade física (cf. Artigo 25º da CRP e Acórdão do Tribunal Constitucional nº 616/98, DR. II série, de 17/3/99). Opta-se antes por considerar que a recusa ilegítima na efectivação do exame implicará, deste modo, para o réu o ónus de demonstrar que não é o pai biológico da investigante, invertendo-se o ónus da prova a cargo da autora (neste sentido, cf. Carlos Lopes do Rego, RMP nº58, p.171). E há que fazer tal cominação que se encontra em falta! Assim, tendo em conta os considerandos acima tecidos, notifique o Réu do presente despacho bem como para as consequências legais no que respeita ao ónus da prova (vejam-se neste sentido, entre outros, Acs. do STJ de 23.10.2007, da Relação do Porto de 04.07.2001 e 25.11.2004, e o recente Ac. da Relação de Guimarães de 24.04.2014, in www.dgsi.pt). Notifique.» 6. Findos os articulados, foi proferido despacho a convidar a A. a aperfeiçoar a petição inicial, «aduzindo factos integradores de algumas daquelas estatuições legais (artigo 1817º, nº 3, alíneas a) a c) do Código Civil)». 6.1. No acatamento do convite formulado, a A. procedeu ao aperfeiçoamento da petição inicial. 7. Foi proferido despacho saneador, em que se relegou o conhecimento da exceção de caducidade para final, sendo, de seguida, selecionada a matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória 8. Realizado o julgamento, foi proferida sentença final, que julgou procedente a exceção de caducidade do direito à ação, absolvendo o R. do pedido de investigação da paternidade formulado nestes autos pela A.. 9. Não se conformando com esta decisão, a A. interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de …. 10. O Tribunal da Relação de …, julgando improcedente a apelação (designadamente, quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de facto), confirmou, integralmente, a decisão recorrida. 11. Mais uma vez inconformada, a A. / Apelante veio interpor revista a título excecional, a qual foi considerada admissível, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil, conforme o acórdão de fls., proferido pela formação dos Juízes deste Supremo Tribunal prevista no nº 3 do indicado normativo. 12. A A. / Recorrente apresentou alegações, em que formula as seguintes (transcritas) conclusões: 1ª. Embora o Acórdão recorrido, da Relação de …, tenha confirmado a decisão proferida na 1ª instância, o presente recurso é admissível, nos termos do previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil, já que, os interesses em causa no presente processo são de particular relevância social. 2ª. A certeza da filiação, ou seja, o direito de ser pai ou ter a certeza da sua paternidade tem uma relevância social incomensurável, já que, resulta de tal certeza do direito uma infinidade de demais direitos conexos, quais sejam as relações patrimoniais. 3ª. Em causa estão interesses que assumem importância na estrutura e relacionamento social, podendo interferir, designada mente, com a tranquilidade e segurança relacionadas com o crédito das instituições e a aplicação do direito, ou ainda quando se trate de questão suscetível de afetar um grande número de pessoas. A presente questão extravasa as próprias fronteiras do concreto processo e interessa à sociedade em geral. 4ª. No que respeita à relevância jurídica desta questão, a existência de prazos de caducidade nas ações de investigação da paternidade, a mesma prende-se pelo elevado grau de complexidade que apresenta, pela controvérsia que gera na doutrina e na jurisprudência. 5ª. Assim, a apreciação desta questão concreta pelo Supremo Tribunal de Justiça tem em vista a obtenção de decisão suscetível de contribuir para a formação de uma orientação jurisprudencial. 6ª. Pelo que, tendo em vista uma melhor aplicação do direito, a qual é claramente necessária, também se justifica a interposição desta revista excecional. 7ª. Acresce ainda que, o presente Acórdão da Relação de … está em contradição com vários outros Acórdãos, quer proferidos pela Relação, em especial pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06 de setembro 2011, processo n.º 1167/10.5TBPTL.S1, 1ª Secção, votado por unanimidade, e pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 2012, processo nº 193/09.1TBPTL.G1.S1, votado também por unanimidade, transitados em julgado, conforme cópia dos mesmos e cuja certidão se protesta juntar. 8ª. No Supremo Tribunal de Justiça é clara tendência para considerar como contrária ao texto constitucional qualquer limitação temporal ao exercício de ação desta natureza. 9ª. Assim, não restam dúvidas, face ao ora alegado, do direito da Recorrente apresentar o presente recurso de revista excecional, direito inalienável e que não lhe pode ser retirado, até porque retirar-lhe tal direito, por força da caducidade que se encontra plasmada na sentença recorrida, é claramente injustificado, face aos valores da filiação que estão em causa nos presentes autos, os quais foram negados à ora Apelante, pela sentença de que se recorre. 10ª. Contrariamente à douta posição sufragada, entende a Apelante que ficou amplamente provado que o Réu sempre tratou a Autora como sendo sua filha. E que a mesma era reputada como tal também pelo público em geral. 11ª. Ora o tratamento como filha cessou quando o Réu, atenta a sua idade avançada e debilidade física, deixou de viver sozinho e começou a fazer-se constantemente acompanhar por familiares. 12ª. À luz do quadro vigente, a pretensão da A. cabe perfeitamente no disposto na al. a) do n.º 3 do artigo 1817º do CC, tendo ficado amplamente provado a cessação de tratamento como filha, por parte do R e, no ano de 2012, estava ainda em prazo para intentar a presente ação. 13ª. E, mais como determina o n.º 4 da citada disposição legal, "nos casos referidos na al. b) do número anterior, incumbe ao R. a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da ação". 14ª. Ora, uma vez mais, a prova do R. quanto a esta questão foi completamente inexistente. Em contrapartida, a A. logrou provar a cessação desse tratamento. 15ª. No que toca à prova da filiação biológica, o Tribunal da Relação alicerçou a sua posição num facto manifestamente equivocado. 16ª. Isto porque resulta efetivamente claro a inversão de ónus de prova. E não no despacho de fls. 99, o qual foi posteriormente aperfeiçoado pela Mma. Juíza da 1ª Instância, no seu despacho de fls._, referência 137709321. 17ª. Assim, a recusa do réu, tornando impossível a prova do vínculo parental, determinou a inversão do ónus da prova, nos termos dos artigos 344º n.º 2 do C. Civil e 471º do CPC e devia ter sido o réu a demonstrar, através de meio de prova tão significativo como o ADN, que não é o pai da investigante. O que não fez! 18ª. Ora, a Recorrente resigna-se contra o facto de tal equívoco não ter sido corrigido pelo Venerando Tribunal da Relação: onde está, afinal, efetivado o ónus de impugnação a cargo do Réu, em virtude da inversão operada? 19ª. O Réu não logrou fazer prova da inexistência de qualquer facto superveniente nos três anos anteriores à propositura da ação, pois não fez qualquer prova! 20ª. Pelo que entende a Recorrente que o Acórdão recorrido deverá baixar a Relação para que seia corrigido este flagrante erro judiciário, o que se requer, ao abrigo do disposto no artigo 682º, n.º 2 e 3 e 683º, n.º 1 do CPC. 21ª. Pugna a Apelante pelo facto de ter conseguido provar, através de prova testemunhal, que entre a sua mãe, CC e o R. BB existiu efetivamente uma relação amorosa secreta e que a sua mãe, à data dos factos, não tinha nenhum relacionamento com outros homens. 22ª. A existência de prazos de caducidade das ações de investigação de paternidade, impostos ao investigante, obstando a que, a todo o tempo, obtenha o reconhecimento judicial da sua ascendência biológica traduzem-se numa restrição, violadora dos princípios constitucionais consagrados nos artigos 18º nº 2, 26º nº 1 e 36º nº 1 CRP, configurando uma restrição desproporcionada do direito à identidade das pessoas. 23ª. À Recorrente não lhe pode ser coartada a possibilidade legal do investigar a sua paternidade, com todas as demais consequências legais resultantes desta mesmo proceder, direito que terá que prevalecer sobre qualquer norma civilista, sob pena de inaceitável discriminação de um dos elos da relação jurídico-filial. 24ª. Tendo em conta que no nosso ordenamento jurídico, em que a ação de investigação da paternidade ou maternidade constitui o meio que assiste ao pretenso filho para obter o reconhecimento judicial da sua ascendência biológica, não se justifica qualquer limite temporal para o seu exercício. 25ª. O Estado não pode restringir o estabelecimento da filiação, através de prazos de caducidade, na medida em que ao condicionar a instauração de ações de investigação de paternidade/maternidade, está a restringir desproporcionadamente estes direitos. 26ª. Em suma, pleiteia a Recorrente pela violação dos artigos 1817º, n.º 3, aI. b) por remissão do 1873º e 1798º todos do C.C.; dos artigos 471º, 639º e 64º, do CPC e, ainda, o disposto nos artigos 16º, 18º n.º 2, 25º n.º 1, 26º, n.º 1 e 36º n.º 1 da CRP. Conclui pela procedência do recurso. 13. O R. / Recorrido contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista e formulando as seguintes (transcritas) conclusões: 1ª. O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o Tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 635°, nº 4 e 639° do CPC). 2ª. O douto Acórdão revidendo confirmou, com os mesmos fundamentos, a decisão da 1a Instância, julgando procedente a excepção da caducidade do direito da A. para o exercício do direito de investigar a paternidade, e em consequência, absolveu o recorrido do pedido que contra si foi formulado. 3ª. Da situação de dupla conforme nos autos, a presente Revista excepcional tem por único objecto a concreta questão de inaplicabilidade do prazo de caducidade nas acções de investigação de paternidade, previsto no art° 1817°, nº 1 do Cód. Civil (ex vi art° 1873°), com fundamento na inconstitucionalidade que a recorrente invoca. 4ª. A questão não é nova, já se encontra estudada e estabilizada na jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça, sendo pacífico o entendimento de que o art° 1817° do Cód. Civil não padece de qualquer inconstitucionalidade. 5ª. Este entendimento vem, de resto, expresso no recente Ac. do STJ, de 17-11-2015, proferido no processo 30/14.5TBVCD.P1.S1, in www.dgsi.pt. para cuja fundamentação se remete, e que por unanimidade decidiu: "O estabelecimento do prazo de caducidade no n.º 1 do art. 1817.° do CC, para a investigação de paternidade - aplicável por força da remissão prevista no art. 1873. ° do mesmo diploma -, na redacção dada àquele pela Lei n.º 14/2009, de 01.04, não padece de qualquer inconstitucionalidade.” 6ª. É sabido que, o Tribunal Constitucional, em Plenário, pelo Acórdão n.º 401/2011 de 22/09/2011 (publicado no DR, 2.a Série, de 03/11/2011) decidiu "Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.°, n.º 1 do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.°, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante". 7ª. Este entendimento, sufragado no citado Acórdão nº 401/2011, vem sendo acolhido por ulteriores Acórdãos do Tribunal Constitucional. - cfr., entre outros, os Acórdãos n.°s 445/2011, de 11/10/2011; 446/2011 de 11/10/2011; 476/2011 de 12/10/2011; 545/2011 de 16/11/2011; 106/2012, de 06/03/2012; 24/2012 de 17-01-2012 e 247/2012 de 22/05/2012, in www.tribunalconstitucional.pt 8ª. Sendo defendido nas referidas decisões que "o prazo de 10 anos após a maioridade ou emancipação, consagrado no artigo 1817.°, n.º 1, do Código Civil, revela-se como suficiente para assegurar que não opera qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma acção de investigação de paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada". 9ª. Bem como que é "do interesse público que se estabeleça o mais breve que seja possível a correspondência entre a paternidade biológica e a paternidade jurídica, fazendo funcionar o estatuto jurídico da filiação com todos os seus efeitos, duma forma estável e que acompanhe durante o maior tempo possível a vida dos seus sujeitos" 10ª. E, como defendem, o meio para tutelar estes interesses atendíveis, públicos e privados (segurança para o investigado e sua família) ligados à segurança jurídica "é precisamente a consagração de prazos de caducidade para o exercício do direito em causa. Esses prazos funcionam como um meio de induzir o titular do direito inerte ou relutante a exercê-lo com brevidade, não permitindo um prolongamento injustificado duma situação de indefinição, tendo desta forma uma função compulsória, pelo que são adequados à protecção dos apontados interesses, os quais também se fazem sentir nas relações de conteúdo pessoal, as quais, aliás, têm muitas vezes, como sucede na relação de filiação, importantes efeitos patrimoniais". 11ª. Princípios, estes, também merecedores de tutela constitucional - interesse público na certeza e segurança jurídica - sempre presente em toda a regulamentação jurídica e intimamente ligado à consagração de qualquer prazo para o exercício de um direito (art.º 20 da C. R. Portuguesa). 12ª. Na sequência da declaração de constitucionalidade operada no referido acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/2011, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo, de forma unânime, que o art° 1817° do Cód. Civil não é inconstitucional. 13ª. Da conciliação do prazo geral de dez anos (nº1) com os prazos especiais de três anos (nº3), fixados pelo art° 1817° do Cód. Civil, é entendimento pacífico na jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça que, o actual regime de prazos para a investigação da filiação, é razoável, proporcional e mostra-se suficientemente alargado para conceder ao investigante uma real possibilidade de exercício do seu direito. 14ª. Sendo certo que, ao estabelecer prazos de caducidade, o legislador não desrespeitou as fronteiras da suficiência da tutela, uma vez que a limitação estabelecida não impede o titular do direito de o exercer, impondo-lhe apenas o ónus de o exercer em determinado prazo. 15ª. Nos presentes autos, a recorrente não cita qualquer acórdão do Tribunal Constitucional que haja decidido no sentido que ela defende sendo certo que, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça referidos pela recorrente para sustentar o seu entendimento, são todos eles anteriores às sucessivas declarações de constitucionalidade proferidas pelo Tribunal Constitucional e por este Supremo Tribunal de Justiça (cfr. G) das conclusões). 16ª. Encontra-se, assim, estabilizado o entendimento acolhido no Tribunal Constitucional e no Supremo Tribunal de Justiça, de que o art° 1817° do Cód. Civil não viola os direitos constitucionais da paternidade biológica e do estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelos direitos fundamentais à identidade pessoal (art° 26° nº1 e 36°, nº 1 da CRP) e, consequentemente NÃO padece de qualquer inconstitucionalidade. 17ª. Daí que, assente e estabilizada como está a questão, a interposição da presente revista excepcional, por falta de requisitos, deve ser recusada. 18ª. Como bem refere o douto Acórdão revidendo, tendo a A. nascido em 1.12.1949, e tendo a acção dado entrada em juízo em 7.2.2012, ou seja decorridos ambos os prazos previstos no nº 1 do artº 1817° do Cód. Civil, deveria a recorrente, como era seu ónus, alegar e provar quaisquer factos susceptíveis de integrar alguma das alíneas do nº 3 do preceito. 19ª. Ao contrário da conclusão da recorrente, a prova daqueles factos não aconteceu: nem que um ano antes da propositura da acção o Réu deixasse de tratar a A. como filha, nem que tal tratamento alguma vez existisse em momento anterior (tratamento esse que, por nunca ter existido, não poderia também alguma vez ter cessado), pelo que o direito da A. propor a acção com o R. caducou. 20ª. Não resultou demonstrada nos autos a existência de qualquer vínculo biológico de progenitura que, pretensamente, ligue o recorrido à recorrente, uma vez que não ficou provada a existência de relações sexuais mantidas entre o recorrido e a mãe da A., e muito menos causais do nascimento desta. 21ª. Ao contrário da conclusão da recorrente, o Tribunal a quo" interpretou e aplicou correctamente o disposto nos art°s 1817° (ex vi dos art°s 1873° e 1798°), todos do Cód. Civil; nos art°s 471°, 639° e 64° do CPC, e nos art°s 16°, 18°, 25°, 26° e 36°da CRP, devendo ser mantido o douto Acórdão revidendo. 14. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II. Delimitação do objeto do recurso Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela A. / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões: No âmbito do estabelecimento judicial da paternidade, por presunção, não ilidida, enunciada na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil: (i) Da aplicação do disposto nos artigos 682º, nºs 2 e 3, e 683º, nº 1, do Código de Processo Civil, para correção do "flagrante erro judiciário" cometido pelo Tribunal da Relação de …; (ii) Da pretextada prova da "posse de estado" [para efeitos de estabelecimento da presunção de paternidade enunciada na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil] e da "cessação do tratamento como filha" (para efeitos de aplicação do prazo previsto no nº 3 do artigo 1817º do Código Civil); No âmbito da prova direta da filiação biológica: (iii) Da exceção de caducidade da ação e da invocada inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 1817º, nº 1 do Código Civil; (iv) Da pretextada violação da inversão do ónus da prova determinada por despacho de fls. 225/229. III. Fundamentação. 1. Factualidade dada como provada Vem provada pelas Instâncias a seguinte factualidade: 1.1. A Autora nasceu no dia 00 de … de 1949, tendo sido registada na Conservatória de Registo Civil de ... apenas como filha de CC [A) da matéria assente]. 1.2. Sendo sua mãe ao tempo solteira, com 36 anos de idade, e natural da Freguesia de ... ... deste Concelho e comarca [B) da matéria assente]. 1.3. O Réu é natural da Freguesia de ... ... [C) da matéria assente]. 1.4. O Réu à data do nascimento da Autora encontrava-se com 21 anos de idade e no estado de solteiro [D) da matéria assente]. 1.5. O Réu sempre que se dirigia à sua casa da Freguesia de ... ... e se cruzava com a Autora questionava-a se estava tudo bem com ela, bem como do estado de saúde do seu filho [Pontos 7º e 14º da base instrutória]. 1.6. O Autor fez o serviço militar num quartel da cidade de …, onde assentou praça em 00 de … de 1949 [ponto 15º da base instrutória]. 1.7. Tendo terminado o serviço militar a 00 de … de 1951 [ponto 16º da base instrutória]. 1.8. Em 00 de … de 1951 o Réu teve licença para se ausentar para a então colónia de Angola para onde veio a emigrar em data não concretamente apurada [ponto 18º da base instrutória]. 1.9. Tendo permanecido em Angola até … de 1975 [ponto 19º da base instrutória]. 1.10. Data em que regressou definitivamente a ..., onde se instalou com a sua família na Freguesia de ... ... e, logo de seguida, na cidade de ... [ponto 20º da base instrutória]. 1.11. E onde passou a residir até hoje [ponto 21º da base instrutória]. 1.12. A Autora sempre foi apelidada de “...” e “...” e a alcunha da família do Réu é “...” [ponto 11º da base instrutória]. 1.13. A ação foi proposta em 07 de Fevereiro de 2012. 2. Da pretextada prova da "posse de estado" [para efeitos de estabelecimento da presunção de paternidade enunciada na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil] e da "cessação do tratamento como filha" (para efeitos de aplicação do prazo previsto no nº 3 do artigo 1817º do Código Civil) 2.1. Enquadramento preliminar Estamos no âmbito de uma ação de investigação da paternidade, instaurada, em 07.2.2012, pela A., com vista ao reconhecimento pelo R. da sua paternidade em relação à mesma A. Tendo tal ação como escopo a atribuição jurídica da paternidade do filho ao progenitor biológico deste, então, o facto de onde emerge tal direito é a procriação biológica ou geração, constituindo tal facto jurídico procriador (relação sexual fecundante) a respetiva causa petendi. Sucede que tal facto, pode lograr prova:  — diretamente, enquanto prova da procriação / filiação biológica (via biológica); — ou indiretamente, através do uso de alguma das presunções legais (da relação biológica) de paternidade previstas no artigo 1871º do Código Civil, desde que não ilididas nos termos do nº 2 do mesmo normativo (via presuntiva), podendo tais vias ser invocadas cumulativamente (como sucede no caso dos autos). No caso em presença, a causa de pedir complexa invocada mostra-se, então, integrada: — pelo facto jurídico procriador (procriação biológica: o facto de a A. ter sido gerada através de cópula fecundante entre a sua mãe e o R.), cuja prova direta a A. se propõe; — pelo facto-base da presunção estabelecida na alínea a) no nº 1 do artigo 1871º do Código Civil (posse de estado); — e pelo facto-base da presunção estabelecida na alínea d) no nº 1 do artigo 1871º do Código Civil [consignado-se quanto a este fundamento que, na condensação efetuada, apenas foi selecionada a alegação factual transposta para os pontos 4º e 5º da Base Instrutória; na impugnação da matéria de facto provada perante a Relação de Guimarães, pela A. não foram sequer questionadas as "respostas negativas" a tais pontos 4º e 5º da Base Instrutória, pelo que a mera declaração de discordância ora ínsita na conclusão recursória 20ª resulta totalmente ininteligível à luz do objeto da presente revista, com a consequente inatendibilidade]. À luz da causa de pedir invocada e da exceção de caducidade da ação invocada pelo R., analisemos, então, as questões suscitadas pela Recorrente. 2.2. Da pretendida correção do "flagrante erro judiciário" cometido pelo Tribunal da Relação de Guimarães Desde logo, vem a A. / Recorrente pugnar pela correção (mediante a baixa do Acórdão recorrido à Relação) do que designa por "flagrante erro judiciário", sustentando:  — Por um lado, que ficou amplamente provado que o R. sempre tratou a A. como sendo sua filha e que a mesma era reputada como tal também pelo público em geral, tendo tal tratamento como filha cessado quando o R., atenta a sua idade avançada e debilidade física, deixou de viver sozinho e começou a fazer-se constantemente acompanhar por familiares; — Por outro lado, ser a prova do R. completamente inexistente quanto à cessação voluntária daquele tratamento nos três anos anteriores à propositura da ação, e concluindo que, à data da propositura da ação, estava ainda em prazo para intentar a mesma. Importa, assim, começar por indagar da possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça sindicar o juízo emitido pela Relação de … quanto à impugnação da matéria de facto. Consabido é que o Supremo Tribunal de Justiça, não "julga de facto" mas tão-só "de direito" e, nessa conformidade:  — Em regra, ao Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, compete somente a aplicação, em definitivo, do regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (cfr. nº 1 do artigo 682º do Código de Processo Civil); — À Relação comete-se o dever de modificar a decisão sobre a matéria de facto, sempre que os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil. Todavia, excecionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça:  (i) Pode corrigir qualquer "erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa" se houver ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (prova tarifada ou legal), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 682º, nº 2, e 674º, nº 3, ambos do Código de Processo Civil;  (ii) Intervém na decisão sobre a matéria de facto, quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, nos termos do nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil;  (iii) Tem intervenção na decisão sobre a matéria de facto se considerar que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, nos termos do referido nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil. Em síntese: — Às instâncias compete apurar a factualidade relevante; — Com carácter residual, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça destina-se a averiguar da observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes. Aqui chegados, averiguemos, então, se o Tribunal da Relação de …, ao manter a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto provada, violou, ou não, o artigo 662º do Código de Processo Civil e se tal (eventual) violação é sindicável por este Tribunal. No caso dos autos, a A. / Recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto (no que aqui releva, pontos 8º a 14º da Base Instrutória julgados não provados; quanto à afirmação) e à questão de, em seu entender, não terem sido extraídas consequências, da circunstância de o R. não ter provado a cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da ação. Como assim: — Não se verifica qualquer inobservância das regras de direito probatório material, uma vez que a aludida pretensão de aplicação do regime constante dos nºs 3 e 4 do aludido artigo 1817º do Código Civil, em matéria da caducidade da ação, só teria lugar caso se verificasse o preenchimento do facto-base da presunção estabelecida na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, o que não ocorreu (como no subsequente ponto III.2.3. melhor se analisará); — Não ocorre qualquer insuficiência da decisão de facto (questão que não pode ser confundida com qualquer insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, esta inscrita no âmbito do princípio da livre apreciação), que determine a intervenção deste Supremo Tribunal, nos termos apontados pelo nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil, dado que a decisão sobre a matéria de facto provada proferida pelo Tribunal da Relação se mostra suficiente para suportar / justificar a solução jurídica adotada quanto ao não preenchimento da previsão normativa favorável à pretensão da A., na perspetiva do efeito pretendido, por incumprimento, por banda da A., do ónus probatório que sobre si impendia (prova, em primeira linha, dos factos-base da presunção legal invocada); — Não ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que determinem a intervenção deste Supremo Tribunal nos termos apontados pelo nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil, porquanto não há qualquer colisão entre a decisão de não alteração da matéria de facto que inviabilize a solução jurídica adotada quanto ao não estabelecimento da presunção de paternidade enunciada na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil e consequente inaplicabilidade, em matéria de caducidade da ação, do prazo de 3 anos previsto na al. b) do nº 3 do artigo 1817ºdo Código Civil (e sequencialmente, do nº 4 do mesmo artigo) E, não se verificando qualquer das anteriormente assinaladas circunstâncias excecionais que permitem ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar a alteração da decisão sobre a matéria de facto emitida pela Relação de …, improcedem as razões da Recorrente. 2.3. Do pretextado estabelecimento da presunção de paternidade enunciada na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil e da aplicação à propositura da ação do prazo previsto na alínea b) do nº 3 do artigo 1817º do mesmo diploma  2.3.1. Enquadramento prévio Neste particular, vem a A. / Recorrente sustentar que: — Por um lado, ficou provado que o Recorrido sempre tratou a Recorrente como sendo sua filha e que a mesma era reputada como tal também pelo público em geral, e que esse tratamento cessou cerca de um ano antes de instaurar a ação, pelo que estaria ainda em prazo para intentar a presente ação; — Por outro lado, sempre incumbiria ao Réu a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da ação. O Acórdão sob recurso, quando discorre, em matéria de caducidade da ação, sobre a questão da não aplicação do prazo previsto na alínea b) do nº 3 do artigo 1817º do Cód. Civil, acaba, implícita, mas naturalmente, por não julgar verificados também os fundamentos do estabelecimento judicial da paternidade, por presunção, não ilidida, enunciada na alínea a) do artigo 1871º do Cód. Civil, com fundamento em que a A. não logrou provar a posse de estado. Importa, assim, que previamente à apreciação da questão da caducidade, se indague sobre a presunção de paternidade que a A. se arroga. Conforme anteriormente referido, a presente ação de investigação de paternidade sendo, simultaneamente, direta e presuntiva, tem como fundamento, além da filiação biológica, a presunção legal de posse de estado estabelecida na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, que dispõe «a paternidade presume-se quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público». Assim, enquanto ação de investigação da paternidade fundada na presunção de paternidade estabelecida naquela alínea a) do nº 1 do no artigo 1871º do Código Civil, cabe à A. provar os factos-base de tal presunção, em concreto, a posse de estado, a qual é integrada, conjunta e cumulativamente, por três elementos: (i) a reputação como filho pelo pretenso pai (nomen); (ii) o tratamento como filho pelo pretenso pai (tractatus); e (iii) a reputação como filho do pretenso pai pelo público (fama). Na dilucidação de tais requisitos cujo preenchimento cumulativo se torna necessário para a verificação da denominada posse de estado de filho, explicita JORGE DUARTE PINHEIRO: «A reputação como filho consiste na convicção íntima por parte do investigado, de que é pai do investigante. O tratamento como filho traduz-se na prática, por parte do pretenso pai, para com o investigante, dos atos de assistência que os pais normalmente costumam dispensar aos filhos, incluindo os cuidados, carinho, amparo, proteção e solicitude próprios de um pai. A reputação como filho do pretenso pai consiste na convicção, por parte das pessoas que conhecem o investigante e o investigado, de que este é pai daquele.» (in "O Direito da Família Contemporâneo", 2015, pág. 165). Neste mesmo sentido da necessidade de verificação cumulativa dos três requisitos, sublinham PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVERA, «o filho viveu na posse de estado de filho quando foi reputado e tratado como filho pelo réu (nomen e tractatus), e foi reputado como filho pelo público (fama). Estes três elementos tradicionais em que se traduz a posse de estado devem conjugar-se em cada caso; não haverá posse de estado se faltar algum deles» (in "Curso de Direito da Família", vol. II, tomo I, 2006, p. 224/225). No tocante ao elemento tractatus, que acaba por se exprimir em comportamentos exteriores de natureza económica e afetiva, de assistência material e moral, tipicamente paternos, e que resultam da convicção íntima séria e firme (reputação) do pretenso pai quanto à filiação, sendo o mesmo um elemento particularmente contingente haverá que ter presentes as judiciosas considerações tecidas no Ac. STJ de 18 de Fevereiro de 2015: «tratamento como filho, inerente à filiação sócio-afectiva, implica por parte do pai comportamento que, no plano afectivo e material, revele que existe um cuidado e protecção igual aos que os pais dispensam aos filhos, no quadro da vivência social e idiossincrática, sendo que a exteriorização dessas manifestações concludentes de reconhecimento deve ser olhada e apreciada no horizonte temporal dos costumes imperantes e prevalecentes na contingência do tempo. Assim, importará saber se o indigitado pai é uma pessoa reservada ou expansiva, se na comunidade os sentimentos de reprovação social são intensos, o que justifica resguardo e pudor. É de considerar relevante, no sentido do tratamento e reconhecimento, que exista uma actuação reveladora de um mínimo de afecto e ajuda moral e material ao longo do tempo, sendo de ponderar se existe proximidade territorial ou não, e se as circunstâncias pessoais do investigante exigem a mesma intensidade de afecto e ajuda material.» (in Sumários, Fevereiro de 2015, p. 29, acessível in www.stj.pt) Ademais, baseando-se o tratamento como filho por parte do pretenso pai em presunção que favorece o investigante, em matéria de caducidade, do nº 3 do artigo 1817º do Código Civil resulta que, se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, a ação pode ser proposta nos três anos posteriores à cessação do tratamento como filho pelo pretenso pai (al. b) do mesmo nº 3 do artigo 1817º Código Civil). E, no nº 4 do aludido artigo 1817º, coloca-se, então, a cargo do R. o ónus da prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da ação. Vejamos se, no caso presente, a A. / Recorrente beneficiou da "posse de estado". 2.3.2. Da não demostração do facto-base da presunção de paternidade estabelecida na a) do nº 1 do no artigo 1871º do Código Civil Os factos que as instâncias consideraram provados (dos alegados enquanto reveladores da posse de estado), foram (apenas) os seguintes: — O R. sempre que se dirigia à sua casa da Freguesia de ... ... e se cruzava com a A. questionava-a se estava tudo bem com ela, bem como do estado de saúde do seu filho; — A A. sempre foi apelidada de "..." e "..." e a alcunha da família do R. é "...". Ora, mesmo tendo em consideração o anteriormente referido sobre o requisito de tratamento e não sendo exigido à A. que alegue e prove um conjunto de atos como se A. e  R. vivessem no quadro de uma família constituída, podendo considerar-se relevantes contactos discretos, certo é que os factos dados como provados não nos levam a concluir pela verificação, no caso presente, do tratamento de filha por parte do Réu. A circunstância de o R., quando se encontrava em sua casa da Freguesia de ... ..., e, se cruzava com a A., a questionar sobre se estava tudo bem com ela, bem como do estado de saúde do seu filho, não caracteriza, só por si, esse tratamento (e a preocupação de um pai para com a vida de um filho), antes caracterizando um ato de cortesia social entre pessoas que se conhecem numa pequena localidade. E, à luz destes factos, numa perspetiva global dos fatores pessoais e sociais envolventes, não merece qualquer censura que o Tribunal da Relação tenha considerado que não ficou provado que o R. tenha dispensado à A. o tratamento que os pais votam aos filhos, mantendo-se tal segmento decisório. E tal afastamento do estabelecimento da presunção de paternidade conduz a que o Tribunal da Relação de Guimarães, sequencialmente, venha a concluir: — Pela não aplicação da hipótese prevista no nº 3 do artigo 1817º, aplicável ex vi do artigo 1873º, ambos do Código Civil, uma vez que a verificação da hipótese aí configurada implicava a cessação do tratamento como filha, e, consequentemente, a (prévia) prova do estabelecimento daquela presunção de paternidade a que alude o artigo 1871º, nº 1, al. a), do Código Civil (posse de estado), conclusão que igualmente se mantém; — E pela aplicação do nº 1 do mesmo preceito, e, consequentemente, pela caducidade do direito de a A. propor a ação contra o R.. Em conclusão: a não prova pela A. do facto-base da presunção estabelecida na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil acarreta, necessariamente, a improcedência de tal fundamento de estabelecidade da paternidade, o que se determina, ficando, assim, prejudicada a questão da apreciação da caducidade do exercício da ação com fundamento presuntivo. 3. Da prova direta da filiação biológica 3.1. Da exceção de caducidade da ação e da invocada inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 1817º, nº 1 do Código Civil Conforme referido no antecedente ponto III.2.1., a A. intentou a presente ação de investigação de paternidade com fundamento (também) na filiação biológica, alegando que o seu nascimento ocorreu no termo da gravidez da sua mãe como consequência das relações de cópula havidas entre esta e o R.. Na contestação, o R. veio invocar a caducidade da ação, dado que a mesma tinha sido intentada mais de 10 anos depois da A. ter atingido a maioridade. O Tribunal de 1ª instância, considerando não ser inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, concluiu pela procedência da exceção da caducidade da ação, pelo decurso do prazo fixado naquele mesmo nº 1. Inconformada, a A. recorreu para o Tribunal da Relação de …, sustentando, no que ora releva, a inconstitucionalidade da norma do Código Civil que fixa prazos para a propositura da ação de investigação de paternidade. O Tribunal da Relação de …, no Acórdão sob recurso, veio a manter a decisão da 1ª instância, concluindo que o nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, na redação dada pela Lei nº14/2009, de 01 de Abril, não é inconstitucional. A A. interpôs revista excecional, contrapondo a inconstitucionalidade das normas que fixam prazos na ação de investigação de paternidade. Vejamos, então, os parâmetros constitucionais em questão. 3.2. Dos parâmetros constitucionais da questão da inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil e das respetivas consequências no plano da caducidade No que aqui importa, assume relevo o prazo constante do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil (aplicável à ação de investigação de paternidade ex vi do artigo 1873º do Código Civil), nos termos do qual «a ação só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação». A questão da admissibilidade do estabelecimento, por meio da lei ordinária, de prazos de caducidade das ações de investigação paternidade sempre foi objeto de grande controvérsia, vindo a merecer acolhimento no Código Civil de 1966 a posição que apontava no sentido do estabelecimento de tais prazos, alicerçada em princípios de certeza e segurança jurídica, passando a dispor o respetivo nº 1 do artigo 1854º (redação inicial) que «a ação de investigação de maternidade ou paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua emancipação ou maioridade. Em anotação, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA explicitaram que «a nova solução traduziu-se, praticamente, num encurtamento geral do prazo de proposição da ação»  [relativamente ao direito pretérito, a saber, artigo 37º. do Decreto nº 2, de 25 de Dezembro, de 1910, nos termos do qual «a ação de investigação da paternidade ou maternidade, só pode ser intentada em vida do pretenso pai ou mãe, ou dentro do ano posterior à sua morte, salvas as seguintes exceções(…)»], adiantando que: «esta solução do direito anterior tinha reconhecidamente graves inconvenientes, o mais importante dos quais foi o de ter convertido a ação de determinação legal do pai num puro instrumento de caça à herança paterna…quando o pai fosse rico.» E que «a principal razão que determinou entre nós a nova solução de 1966 e certamente pesou na sua manutenção pela reforma de 1977 (…) foi a tal consideração ético-pragmática de combate à investigação como puro instrumento de caça à herança paterna e de estímulo à determinação da paternidade (…) em tempo socialmente útil.» (in "Código Civil, Anotado", Vol. V, 1995, p. 82 e 83). A controvérsia não ficou, porém, encerrada com tal inovação legislativa, vindo o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 23/2006, de 10 de Janeiro (pub. no Diário da República, I série, de 08 de Fevereiro de 2006), a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC (na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro), aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos arts. 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa. Entretanto, a Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, veio alterar a redação do referido artigo 1817º, n.º 1, alargando (de dois para) para dez anos posteriores à maioridade ou emancipação o prazo para a propositura da ação de investigação, regressando com tal alteração a dissensão jurisprudencial. Procurando pôr fim à nova controvérsia, o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta, veio a proferir, em plenário, o Acórdão nº 401/2011, de 22.09.2011, decidindo «não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante.». [Na mesma linha, vêm sendo proferidas sucessivas decisões do mesmo Tribunal, de que se citam, a título meramente ilustrativo, os Acórdãos n.º 476/2011, de 12 de Outubro de 2011; n.º 106/2012, de 06 de Março de 2012; n.º 166/2013, de 20 de Março de 2013; n.º 441/2013, de 15-06-2013; n.º 350/2013, de 19-06-2013 e n.º 750/2013, de 23-10-2013, acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt]. Todavia, não o conseguiu evitar, mantendo-se atual e polémica a questão da constitucionalidade da norma na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça. Na doutrina, no quadro constitucional vigente, GUILHERME DE OLIVEIRA defende a imprescritibilidade do direito de investigar, sugerindo que se aplique a figura do abuso de direito de modo a que, em situações extremas, o autor de uma ação de investigação «possa ser tratado como se não tivesse o direito que invoca», nomeadamente, quando «não pretende mais do que faturar no seu ativo patrimonial» (in "Caducidade das ações de investigação", Lex familiae, n.º 1, 2004, pags. 12-13). De resto, em consonância com a posição ulteriormente expressa, em obra conjunta com PEREIRA COELHO, aí referindo que «depois de se dar ao filho um direito imprescritível, uma ação pode merecer o obstáculo do sistema jurídico, ao menos em casos-limite. Os obstáculos resultarão das potencialidades da norma geral sobre o "abuso do direito", ou de um remédio específico como o que vigora no direito de Macau, que determina a ineficácia patrimonial do estabelecimento do vínculo (artigo 1656º CCiv Mac) quando a ação é intentada mais de quinze anos depois do conhecimento dos factos de onde se poderia concluir a paternidade e, além disto, quando se mostre que a intenção principal do autor é a obtenção de benefícios patrimoniais.» (in "Curso de Direito de Família", Vol. II, tomo I, 2006, pag. 252). A esta primeira "solução" de recurso ao abuso de direito, objetando JORGE DUARTE PINHEIRO que «pode ter, porém, vários inconvenientes: abre uma brecha na alegada imprescritibilidade do direito de investigar, cujo alcance será inicialmente difícil de apurar; remete diretamente para a figura geral do abuso de direito, quando talvez fosse plausível lançar mão de possíveis concretizações, o que diminuiria o grau de incerteza: reage ao exercício abusivo do direito paralisando-o totalmente, em vez de permitir a produção de alguns dos seus efeitos, dentro do que fosse aceitável (p.e., se a finalidade do investigante é a mera obtenção de benefícios sucessórios, não bastará negar-lhe tais benefícios, autorizando a constituição do vínculo de filiação?); ao paralisar totalmente o direito de investigar, por causa de uma atuação censurável do investigante, não contempla a posição de terceiros que possam estar legitimamente interessados no estabelecimento da filiação entre o investigante e o pretenso pai (v.g. dos filhos do investigante: o direito à identidade ou historicidade pessoal não se reduz ao conhecimento e reconhecimento do parentesco no 1º grau da linha reta.» (in "O direito da família contemporâneo", 4ª ed., 2013, pág. 177) E propõe este mesmo Autor que «Tudo ponderado e dado que a posição sucessória legal que é atribuída aos familiares do de cujus não cabe nos efeitos característicos do direito de constituir família, (…) o melhor caminho será o de uma interpretação que, acentuando o elemento teleológico em detrimento do elemento literal, permita extrair do art.º 1817º um sentido compatível com os art.ºs 26º, n.º 1, e 36º, n.º 1, da C.R.P., com o princípio do aproveitamento das disposições legais (…) e com o princípio da rejeição do exercício inadmissível de situações jurídicas (…). Os prazos do art.º 1817º devem ser observados se o investigante quiser obter benefícios sucessórios do vínculo da filiação (…) Onde se lê, p.e., no n.º 1, que “a ação de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação” deve subentender-se “para efeitos sucessórios” (…)» (in ob. cit., p. 178.). Feito este breve bosquejo sobre o estado da questão relativamente ao prazo de caducidade de 10 anos nas ações de investigação de paternidade, desde já, se consigna que se adere à posição de que a nova redação do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil (introduzida pela Lei nº 14/2009), ao manter uma limitação temporal (10 anos) para a propositura da ação, não afastou a inconstitucionalidade da norma, pela ordem de razões que infra se analisará. Como é sabido, nos termos do nº 1 do artigo 25º da Constituição da República Portuguesa, «a integridade moral e física das pessoas é inviolável» surgindo «o reconhecimento e a tutela da integridade pessoal indissociavelmente ligados ao reconhecimento constitucional absoluto da pessoa humana (artigo 1º da Constituição)» (JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", Tomo I, 2010, pág. 552). Por sua vez, de harmonia com do nº 1 do artigo 26º do mesmo diploma, «a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação». E, como notam os Autores citados, «a identidade pessoal é aquilo que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal. Num sentido muito amplo, o direito à identidade pessoal abrange o direito de cada pessoa a viver em concordância consiga própria, sendo, em última análise, expressão da liberdade de consciência projetada exteriormente em determinadas opções de vida. O direito à identidade pessoal postula um princípio de verdade pessoal. Ninguém deve ser obrigado a viver em discordância com aquilo que pessoal e identitariamente é.» Acrescentando «(…) a identidade pessoal inclui os vínculos de filiação. Existe um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e da maternidade» (in ob. cit., p. 609). Por último, de acordo com o nº 1 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa, «todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade». E desta disposição constitucional, em conjugação com os direitos à integridade pessoal e à identidade pessoal, resulta «um direito a converter a filiação biológica em filiação jurídica mediante o estabelecimento das correspondentes relações de maternidade e paternidade» (PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA, in Curso), citado pelos Autores anteriormente referidos, que adiantam «não podendo, numa situação de conflito entre um eventual interesse dos pais naturais em ocultar a relação de filiação e o interesse do filho em estabelecer a filiação, ser invocado pelos pais, após a procriação, um direito a não constituir família e, assim, ao não estabelecimento da filiação» (ob. cit., p.814).  À luz destes preceitos, o direito à identidade pessoal, nele se incluindo o direito de conhecer e ver reconhecida a respetiva ascendência biológica, configura um direito de índole pessoalíssima (englobando o direito de conhecer e de ver reconhecida a verdade biológica da filiação, a ascendência genética de cada pessoa) e imprescritível, constitucionalmente consagrado. Ora, «os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas» (nº1 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa), sendo que «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (nº 2 do artigo 18º da CRP). Ou seja, para se limitar um direito fundamental é necessário que as restrições sejam proporcionais, necessárias e adequadas, pelo que importa averiguar se, com a negação da "imprescritibilidade" de tais ações, ocorre uma restrição excessiva ou desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, ao direito de constituir família e até ao direito geral de personalidade dos investigantes (artigo 70º do Código Civil). Por outro lado, as "prerrogativas" ligadas ao exercício, a todo o tempo, da ação de investigação e estabelecimento da filiação jurídica interferem gravemente com valores que também desfrutam de proteção legal e até constitucional, como sejam a segurança jurídica, pelo que importa, ainda, analisar os fundamentos invocados para limitar o direito à investigação da paternidade. Procedendo a tal análise: (i) Quanto ao argumento da segurança jurídica do pretenso pai e herdeiros. Os interesses que, tradicionalmente, sustentaram as restrições ao direito de investigar a paternidade desembocavam, não raras vezes, na tutela da garantia da "segurança jurídica", exatamente plasmada na segurança jurídica do pretenso pai e dos seus herdeiros. Segundo PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA, «esta garantia tem sentido principalmente no âmbito patrimonial de onde emergiu, afinal, todo o direito civil. De facto, compreende-se a necessidade de definir até que momento é possível formular uma pretensão com implicações económicas para os indivíduos...(…) os eventuais onerados precisam, de um ponto de vista da sua organização patrimonial, de saber a partir de que momento é que podem confiar na propriedade do bem adquirido, na disponibilidade de uma soma em dinheiro, ou a partir de que momento é que já não precisam de estar financeiramente prevenidos para proceder a um pagamento, ou orçamentar uma despesa de indemnização. Tanto a vida patrimonial dos indivíduos como a vida comercial das empresas precisam desta segurança. (…) A segurança de não ser declarado pai, em qualquer momento, merece os mesmos cuidados por parte do sistema jurídico? De duas uma: se o suposto progenitor julga que é o progenitor, está nas suas mãos acabar com a insegurança – perfilhando – e se tem dúvidas pode mesmo promover a realização de testes científicos que as dissipem; se, pelo contrário, não tem a consciência de poder ser declarado como progenitor, não sente a própria insegurança.» (in "Curso de Direito da Família ", vol. II, Tomo I, pág. 249). Deste ensinamento extrai-se que esta garantia só tem pleno sentido no âmbito da tutela do património, desfrutando, assim, o direito a conhecer o ascendente biológico e a estabelecer os concomitantes vínculos jurídicos de uma valoração qualitativamente superior relativamente a tal valoração puramente patrimonial assente na segurança e na estabilidade jurídicas, e, quiçá, eventualmente, desresponsabizadora de atos anteriores praticados pelo pretenso pai. (ii) O argumento da perda ou "envelhecimento das provas". Este argumento deixou atualmente de ser considerado relevante, uma vez que as ações de investigação são, cada vez mais, julgadas com base nos testes de ADN, que não envelhecem nunca e que permitem determinar com grande segurança a maternidade ou a paternidade de uma pessoa, mesmo muitos anos após a morte do pretenso progenitor, afastando, desta forma, o risco da incerteza das provas. Aliás, tenha-se presente que o legislador, logo com a reforma introduzida no direito da família, com o DL nº 496/77, pretendeu organizar o direito de família sob a «égide do respeito da verdade biológica e, por esta razão, pretendia que não houvesse qualquer entrave ao uso dos métodos científicos que pudessem contribuir para a descoberta dos vínculos biológicos, quer para os reconhecer juridicamente, quer para impugnar os reconhecimentos que não se apoiassem na verdade. O texto é expressivo (referem-se ao artigo 1801º do Código Civil, nas ações relativas à filiação são admitidas como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados) dessa intenção, da abertura total que o legislador pretendeu fazer para as provas periciais e para todas as descobertas cientificamente comprovadas.» (PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA, ob. cit., p. 35). Da assinalada relevância dos métodos científicos nas ações de investigação da maternidade/paternidade decorre, pois, que o argumento da perda ou "envelhecimento das provas" perde razão de ser. (iii) Quanto ao argumento de "caça fortunas". Segundo este argumento, a consagração de prazos de caducidade da acção de investigação impede a reclamação de direitos à herança do pretenso pai, dissuadindo a instauração de acções que visam unicamente a exigência (tardia) de bens materiais (de resto, o principal motivo determinante da solução do nº 1 do artº. 1817º, na redacção anterior a 2006, foi o de evitar o uso da acção de investigação exclusivamente para lograr benefícios sucessórios). GUILHERME OLIVEIRA tende a desvalorizar este argumento nos seguintes termos: — Sustentando que a garantia de segurança jurídica nesta matéria tem sentido, essencialmente, no âmbito patrimonial. E não se coloca da mesma forma, se tivermos em consideração a posição do pretenso progenitor ou a posição dos seus herdeiros. Quanto ao primeiro, ainda que esteja em causa uma situação em que é “surpreendido com as consequências de um “acidente” passado há muito tempo, dir-se-á que tem sempre de assumir as responsabilidades, porque mais ninguém o pode fazer no lugar dele”; — Salientando que o perigo de as ações serem tardiamente intentadas por razões puramente egoístas, embora não tenha desaparecido, perdeu muita da sua importância face à alteração da estrutura social e da riqueza, não tendo qualquer valia em situações em que a ação é intentada entre autores e réus com meios de fortuna semelhantes ou num momento em que o investigante não tem pretensões materiais, porque já não está em condições de formular pretensões de natureza alimentar e ainda não terá pretensões de natureza sucessória. Outras situações há, ainda, em que tais pretensões materiais são irrelevantes porque, pura e simplesmente, o investigado não tem bens (ou não os tem em valor significativo); — Quanto aos herdeiros, realçando que o sistema jurídico não tem uma preocupação absoluta com a sua segurança patrimonial e com a tutela das suas legítimas expetativas, bastando lembrar que qualquer herdeiro preterido pode intentar uma ação de “petição da herança”, a todo o tempo, com a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro (artigo 2075º do Código Civil). (Cfr. "Caducidade das ações de investigação", in "Comemorações dos 35 anos do C. Civil e dos 25 anos de Reforma de 1977 ", Vol. I, pág. 10) Daí que não seja aceitável que a proteção da certeza ou segurança patrimonial de outros filhos e do pretenso progenitor possa excluir o direito, eminentemente pessoal e que integra uma dimensão fundamental da personalidade, a saber quem é o pai biológico.  (iv) Relativamente ao argumento do interesse público. Como se sabe, a ordem pública impõe o impedimento dirimente absoluto do casamento entre duas pessoas parentes na linha reta ou no segundo grau da linha colateral (artigo 1602º do Código Civil), no propósito de vedar relações incestuosas «com todas as razões de ordem ética, eugénica e social que fazem dessa proibição um dos tabus mais profundos da humanidade» (cfr. PEREIRA COELHO, in "Curso de Direito da Família", Vol. II, p. 274). Ora, mediante o reconhecimento jurídico do vínculo biológico, abre-se uma possibilidade de admissão do incesto, com toda a respetiva carga negativa para a sociedade, pelo que a demonstração da paternidade biológica se revela também do interesse do Estado e da sociedade. Assim, interessará ao Estado que a situação se mostre definida no mais curto espaço de tempo, mas para os interesses em causa relevará o conhecimento da verdade biológica em qualquer ocasião. Efetuada a análise crítica de tais argumentos, concluímos que, no horizonte de consolidação do princípio da verdade biológica como "estruturante de todo o regime legal", de reforço da tutela do direito à historicidade pessoal — enquanto direito à investigação e estabelecimento do respetivo vínculo biológico (paternidade ou maternidade) e dos concomitantes vínculos jurídicos —, uma vez que o direito a conhecer tal ascendência biológica constitui dimensão essencial do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e o direito do investigante a estabelecer os concomitantes vínculos traduz uma dimensão do direito a constituir família previsto no artigo 36º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, se verifica a inconstitucionalidade material do estabelecimento do prazo de caducidade previsto nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, por tal prazo limitador consubstanciar uma restrição excessiva ou desproporcionada aos assinalados direito fundamental à identidade pessoal e direito de constituir família, bem como ao próprio direito geral de personalidade dos investigantes (cfr. artigo 70º do Código Civil), o que se declara. E, sendo a norma constante do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade da A., enquanto filha, propor a presente ação de investigação de paternidade, com fundamento no facto biológico da filiação, inconstitucional, não ocorre caducidade do direito, nesta questão, sendo concedido provimento à revista, revogando-se, em consequência, o Acórdão da Relação de Guimarães que, julgando procedente a exceção da caducidade, concluiu pela absolvição do R. do pedido. 3.3. Da pretextada violação da inversão do ónus da prova determinada por despacho de fls. 225/229 Vem a A. / Recorrente sustentar, ainda, que o Tribunal da Relação alicerçou a sua posição, quanto à prova da filiação biológica, num facto manifestamente equivocado, isto é, (apenas) no despacho de fls. 99, quando foi proferido despacho posterior, e que a recusa do Réu a submeter-se ao exame, determinou a inversão do ónus da prova. Efetivamente, o Tribunal da Relação, apesar de se referir à questão da inversão do ónus da prova (e de se reportar apenas ao despacho de fls. 99, não atendendo ao despacho proferido a fls. 225/229), adotou a solução metodológica de prévia apreciação da exceção da caducidade, e, como concluiu pela sua procedência, não fez repercutir, quanto ao fundamento da filiação biológica, as consequências de tal inversão do ónus da prova Como assim, devem os autos baixar ao Tribunal da Relação para se pronunciar sobre este fundamento invocado pela A. / Recorrente (a filiação biológica), no contexto da invocada violação da inversão do ónus da prova determinada por despacho de fls. 225/229. IV. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça, em: — Conceder parcial provimento à revista, e, em consequência, revogar o acórdão recorrido no segmento em que, quanto ao fundamento da filiação biológica, julgou procedente a exceção da caducidade da ação; — Ordenar que os autos baixem ao Tribunal da Relação de … para que seja apreciada o fundamento da filiação biológica, no contexto da invocada violação da inversão do ónus da prova determinada por despacho de fls. 225/229. Custas a cargo da parte vencida a final. Lisboa, 31 de janeiro de 2017 (Processado e integralmente revisto pelo relator – por vencimento -, que assina e rubrica as demais folhas) Pedro de Lima Gonçalves - Relator Sebastião Póvoas Alexandre Reis ---*--- DECLARAÇÃO Como primitivo relator, fiquei vencido na decisão relativa ao tema da desconformidade constitucional da norma do artigo 1817º nº 1 do CC, por um conjunto de razões que assim sintetizo: 1. Na ponderação da questão de saber se o estabelecimento de prazos de caducidade das ações de investigação de paternidade viola o direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no art. 26º nº 1 da CRP, há muito debatida na nossa jurisprudência, não nos podemos alhear da orientação que vem sendo adoptada pelo Tribunal Constitucional, ao negar a questionada inconstitucionalidade, na sequência do acórdão nº 401/2011, proferido pelo Plenário desse Tribunal em 22/9/2011 (no P. 497/10), embora essa decisão careça da força obrigatória (geral) a que aludem os arts. 282º da CRP e 2º e 66º da Lei 28/82. 2. Competindo a esse Órgão, especificamente, administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (art. 30º da LOSJ), os critérios jurisprudenciais que o mesmo afirme, uniforme e consistentemente, em matérias de natureza jurídico-constitucional, devem ser, em princípio, generalizadamente adoptados, para não se pôr em crise a relativa previsibilidade, a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP, tendo-se, para tanto, em consideração «todos os casos que mereçam tratamento análogo», como é exigido pelo art. 8º nº 3 do CC. 3. É indiscutível que, encerrando a identidade pessoal o conjunto de atributos e características que permitem individualizar cada pessoa na sociedade, o «estabelecimento da paternidade insere-se no acervo dos direitos pessoalíssimos, entre os quais, o de conhecer e de ver reconhecida a verdade biológica da filiação, a ascendência e marca genética de cada pessoa» e que, por isso, o direito de investigar a verdadeira ascendência biológica, por permitir aceder a uma informação conformadora da identidade própria e da personalidade singular de cada indivíduo, é um direito fundamental com «protecção constitucional, como vertente que é, do direito à integridade moral, à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (arts. 16.º, 18.º, 25.º, n.º 1, e 26.º da CRP)». 4. Contudo, tal direito, sendo fundamental, não é absoluto e, por isso, não está o legislador impedido de modelar ou condicionar o respectivo exercício, para assegurar outros interesses ou valores que com ele colidam e também constitucionalmente tutelados, mediante a sua harmonização, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores em conflito. 5. Da fundamentalidade de tal direito não decorre, necessariamente, que se mostre injustificado qualquer condicionamento ou limite temporal para o exercício desse direito e que, por isso, o legislador ordinário não possa restringir o assentamento da filiação/identidade pessoal, através de prazos de caducidade, por razões que legitimam o incentivo ao exercício, o mais cedo possível, do direito tendente estabelecer a paternidade biológica. Trata-se de valores, em geral, conexos com o interesse da certeza e estabilidade das relações jurídicas, em que se salienta, desde logo, o interesse de ordem pública em que se esclareça e estabilize o mais cedo possível o estatuto jurídico da filiação com todos os seus efeitos (designadamente o dos impedimentos matrimoniais). Este interesse também se projecta na segurança do investigado e dos membros da sua família, para os quais a acção de investigação, surgida demasiados anos após a procriação, é susceptível de gerar sérias perturbações do direito à reserva da vida privada. 6. Por conseguinte, corresponde a uma opção razoável do legislador ordinário a regulamentação do exercício do direito do filho ao reconhecimento da paternidade, em função de outros interesses que no caso também concorrem, pelo estabelecimento do prazo regra de dez anos para a propositura da acção de investigação de paternidade, contado da maioridade ou emancipação do investigante, contida na norma do artigo 1817º nº 1 do CC (aplicável por força do artigo 1873º do mesmo código), na redacção da Lei 14/2009 de 1/4. 7. Mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou emancipação, a acção de reconhecimento da filiação é ainda exercitável dentro dos prazos previstos nos nºs 2 e 3 do referido art. 1817º, que, sendo prazos especiais de caducidade, funcionam como contra-excepções à intervenção do dito prazo-regra da caducidade/excepção. Alexandre Reis

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