I – O estado actual da ciência laboratorial permite concluir directamente pela paternidade. II – Não sendo feita essa prova directa, a falta de exclusividade de relações com o investigado é facto que, nos termos do nº 2, do artigo 1871º do Código Civil, pode contribuir para a ilisão da presunção estabelecida na al. e), do nº 1, do referido artigo.
I – Relatório. 1. Autor: o Ministério Público. 2. Réu: A. 3. Pedido: declaração de que o menor T é filho do réu. 4. Causa de pedir: relações sexuais entre o réu e a mãe do menor durante o período legal de concepção do menor, de onde resultou o seu nascimento. ... 7.1. Desta decisão, o réu interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, concluindo as suas Alegações pela forma seguinte: «A) No período legal de concepção do menor, a mãe deste manteve relações sexuais de cópula completa com vários indivíduos, sendo que B) Tal gravidez pode ter tido origem em qualquer uma dessas relações mantidas durante o período legal de concepção. ... D) Uma acção de investigação de paternidade, com vista a estabelecer uma filiação biológica, assenta no pressuposto de exclusividade das relações sexuais da mãe com o pretenso pai, ... G) Também o Assento de 21/06/1983 prescreve que "na falta de uma presunção legal de paternidade, cabe ao autor, em acção de investigação, fazer a prova de que a mãe, no período legal de concepção, só com o investigado manteve relações sexuais". ... II – Fundamentação. 9. Factos considerados provados na sentença: No dia 09/06/2000 nasceu T. C) O T foi registado como filho de M, solteira, não tendo sido registado o nome do pai nem dos avós paternos. 5. A M é filha de Ma e de I e não tem averbado qualquer casamento no seu assento de nascimento. 6. A é filho de Au e de Z, e tem averbado um casamento com MF. 1. A gravidez da mãe do T sobreveio a relações sexuais havidas entre esta e o réu. 2. Mantidas durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do T». 10. O Direito. O que está em causa neste recurso é o facto de não ter ficado provado que as relações de sexo com a mãe do menor tenham sido exclusivamente com o réu. Feita essa pergunta no nº 3 da base instrutória fls. 29 v.: «durante este período (o de concepção), a mãe do menor apenas teve relações sexuais com o Réu», a resposta foi “não provado” ficaram ainda “não provadas” todas as restantes perguntas: «saíam com frequência juntos, no automóvel do Réu? e «indo depois este levar a mãe do menor a casa?».. 10.1. Na sentença, considerou-se que tinha sido feita a prova directa da paternidade do réu, pelo que não era necessária a prova da exclusividade de relações sexuais com o investigado, requisito reservado para as situações de ilisão da presunção, previstas no nº 2, do artigo 1871º do Código Civil: dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado. Seguiu-se a posição do Acórdão da Relação do Porto, de 9 de Janeiro de 1997: «A prova directa da paternidade biológica - através de meios científicos - dispensa o autor de demonstrar a exclusividade das relações sexuais ...» C.J. XXII, 1, 196.. Esta posição foi também a defendida pelo Mº Pº. 10.2. Para o recorrente, além de ter ficado provado que a mãe do menor teve relações com outros homens no período legal de concepção alíneas A) a C) das Conclusões., não ficou provado que as tenha tido exclusivamente consigo alíneas D) a H) das Conclusões., pelo que «é absolutamente inverídico que o pai do menor possa ser o recorrente alínea I) das Conclusões.. Finalmente, põe em causa a suficiência da conclusão de um exame para o estabelecimento da paternidade. alínea J) das Conclusões. 10.3. Na sentença, distinguiram-se dois aspectos: a prova directa da paternidade, por um lado, e a presunção de paternidade resultante da introdução, pela Lei nº 21/98, de 12 de Maio, da alínea e), no nº 1, do artigo 1871º do Código Civil: «a paternidade presume-se quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção», facto concreto que ficou provado na acção «a gravidez da ... sobreveio a relações sexuais havidas entre esta e o Réu ..., mantidas durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Tiago»?, perguntas nºs. 1 e 2 da base instrutória (fls. 29 v.), ambas com resposta de “provado” (fls. 69).. O recorrente põe em causa ambos os aspectos da questão, considerando que o exame não é suficiente para o estabelecimento da paternidade e que a falta de exclusividade das relações sexuais não permite o funcionamento da referida presunção. Em seu favor, cita o Senhor Conselheiro Alberto Baltazar Coelho, jurisconsulto e intelectual de autoridade indiscutível, em artigo publicado na Colectânea de Jurisprudência CJ STJ VII, 1, 13 e ss., que tem a vantagem de ter sido escrito já depois da alteração introduzida, nesta matéria, pela Lei nº 21/98, de 12 de Maio. Não obstante ter-se considerado que foi feita a prova directa da paternidade do réu, o que poderia levar a pensar na desnecessidade da abordagem da segunda parte da questão - paternidade provada indirectamente, através da nova presunção estabelecida pela alínea e), do nº 1, do artigo 1871º introduzida pela já referida Lei nº 21/98. -, é necessário fazê-la quer porque os dois aspectos da questão acabam por estar ligados, quer porque o referido Senhor Conselheiro defende que a prova directa também exige a prova da exclusividade das relações com o investigado local citado, págs. 18 e 19., sendo que, como já dissemos, é o problema da falta de exclusividade que está em causa neste recurso; ou seja, se a exclusividade de relações é elemento constitutivo do direito do demandante, dúvidas não haverá que a sua falta pode pôr em movimento a dúvida séria susceptível de ilidir a presunção felizmente, não necessitaremos de aprofundar o conceito de dúvida séria contido na norma, pois que, não conseguiríamos ultrapassar a crítica do Sr. Prof. Antunes Varela, na RLJ 117º, 55, nota 1 - crítica mordaz, mas deliciosa -, embora facilitada pelas características do actual legislador.. 10.4. A exclusividade das relações foi questão fundamental no Assento de 21 de Junho de 1983 publicado no Diário da República de 27 de Agosto de 1983., a propósito da repartição do ónus da prova respectivo, uma vez que a jurisprudência nisso estava dividida, tendo aquele tomado a posição que correspondia à melhor doutrina sobre a questão Profs. Antunes Varela (Revista de Legislação e Jurisprudência (R.L.J.), 116º, 317 e ss, especialmente a págs. 56 do ano 117º), Castro Mendes (Direito Processual Civil, A.A.F.D.L., 1980, III vol. pág. 99) e Guilherme de Oliveira (O Direito da Filiação na Jurisprudência Recente, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, «Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. José Joaquim Teixeira Ribeiro», 1980, pág. 21, citado no Assento, e R.L.J. 128º, 180 e ss.: «na falta de uma presunção legal de paternidade, cabe ao autor, em acção de investigação, fazer a prova de que a mãe, no período legal da concepção, só com o investigado manteve relações sexuais». Portanto, não beneficiando o autor de uma presunção legal cf. art. 1.871º, com a redacção de 77., entendia-se que a acção só podia proceder se o autor provasse os dois referidos requisitos: a) a existência de relações sexuais entre a mãe e o pretenso pai durante o período legal da concepção, fixado no art. 1.798º; b) a fidelidade da mãe ao pretenso pai durante o mesmo período cf. RLJ 117º, 56, 1ª col., 1º §; brevitatis causa, não começamos mais atrás, pela mudança (mais do que alterações) operada pelo D.L. nº 496/77, o qual é claro ao dizer que não só teve em vista dar cumprimento ao disposto no nº 3, do art. 293º da C.R.P., como ainda fazer uma adequação global do Código Civil à filosofia e à doutrina político-social dominante da Constituição. O Acórdão do STJ, de 24/6/80 (BMJ 298º, 334) fala da impossibilidade de conciliação entre restrições do Código Civil (redacção inicial) e a Constituição de 1976. O art. 176º do D.L. nº 496/77 manda aplicar as alterações ao Código Civil a partir de 1 de Abril de 1978, o que contribui para a ideia de ruptura com o sistema anterior, ruptura muito significativa na área do Direito de Família e concretamente no da investigação da paternidade.. 10.4.1. Em obediência ao Assento, mas também aderindo a ele, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Dezembro de 1987, decidiu que, tendo resultado de exame médico-legal uma probabilidade de 98% de o réu ser o pai do investigante, tal não é suficiente para a procedência da acção de investigação de paternidade em que apenas se dão como provadas as relações sexuais do réu com a mãe do investigante no período legal da concepção, por tais elementos serem insuficientes para se dar como assente a filiação biológica C.J. XII, 5, 46; Acórdão relatado pelo então Sr. Desembargador Alberto Baltazar Coelho.. Também seguindo a doutrina do Assento, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22 de Janeiro de 1991, exigiu que o autor provasse, quer a existência de relações sexuais entre o pretenso pai e a mãe do menor, quer a exclusividade dessas relações, defendendo que, não sendo possível uma prova directa, teria sempre de vingar uma prova indirecta, a de que o pai será aquele que teve relações sexuais, desde que só ele as tenha tido. Por isso, concluiu «A resposta negativa sobre a fidelidade não pode ser suprida pela prova seroestatística» C.J. XVI, 1, 52.. 10.4.2. Mas, ao mesmo tempo, outras interpretações restringiam o âmbito de aplicação da decisão do Assento, no sentido da subvalorização do requisito da exclusividade das relações e de uma maior ênfase à prova directa, de natureza laboratorial. Seguiam, por seu lado, posições defendidas pelo Sr. Prof. Guilherme de Oliveira e pelo Sr. Conselheiro Campos Costa, no sentido de que, mesmo sem haver exclusividade de relações, era possível declarar o estado de pai daquele que as teve, se se provasse que o terceiro, que também se relacionara com a mãe, não podia ser o pai, por incompatibilidade genética, por ser impotente para gerar, etc., mas sempre por haver uma prova positiva de que o terceiro que quebrara a exclusividade não podia ser o progenitor Estabelecimento da Filiação, Almedina, 1979, págs. 154 e 155, O Direito da Filiação na Jurisprudência Recente, no Boletim já citado, págs. 25 e 26, com o apoio do Sr. Prof. Antunes Varela, na R.L.J. 117º, 56, já citada, e voto de vencido no Acórdão do STJ, de 13 de Dezembro de 1984, in Boletim do Ministério da Justiça (BMJ) 342º, 397, respectivamente.. Por exemplo, os Acórdãos do STJ de 26 de Junho de 1991 BMJ, 408º, 503., de 19 de Janeiro de 1993 BMJ, 423º, 535., de 5 de Maio de 1994 C.J. XIX, 2, 89., de 31 de Outubro de 1995 C.J. XX, 3, 87., de 21 de Novembro de 1996 BMJ, 461º, 476., da Relação de Lisboa de 10 de Outubro de 1995 C.J. XX, 4, 107. e da Relação do Porto, de 9 de Janeiro de1997 C.J. XXII, 1, 196.. Com um pouco mais detalhe, realçamos os seguintes Acórdãos, que seguem a mesma ou semelhante posição dos anteriores: a) da Relação de Lisboa, de 9 de Março de 1995 C.J. XX, 2, 73., que constatou que, «no caso da mãe ter relações sexuais com mais de um homem no período legal da concepção, a prova indirecta não é possível», acabando por aceitar a prova directa, a resultante de exames hematológicos, como prova suficiente para a procedência da acção. Consciente da possibilidade de tal decisão contrariar a doutrina do Assento, teve o cuidado de afirmar que «o Assento de 83 não vai contra estas posições, pois ele situa-se unicamente no domínio da prova indirecta e respectivo ónus de prova, não exigindo que essa seja a única prova determinante da paternidade», ou seja, faz uma interpretação restritiva dele, reservando a imposição do ónus ao autor, quando a fidelidade for alegada, mas não excluindo o recurso a outros meios de prova, ao mesmo tempo que remete para as decisões proferidas pelos Acórdãos da Relação do Porto de 21 de Junho de 1988 e do STJ de 27 de Junho de 1989 e cita a passagem já atrás referida do Sr. Prof. Guilherme de Oliveira Estabelecimento ..., págs. 154 e 155.. b) De certa maneira, também o da Relação de Lisboa, de 10 de Outubro de 1995 C.J. XX, 4, 107. envereda pelo mesmo caminho. Citando o Sr. Dr. Lopes do Rego Revista do Mº Pº, 45º, 122., aceita a tese de que a existência de relações sexuais no período legal da concepção mais não é do que um meio indirecto ou instrumental de alcançar a verdade biológica, prova que pode ser substituída pela demonstração directa da paternidade biológica («através do categórico resultado do exame, torna-se dispensável a prova do referido facto instrumental, para julgar procedente a pretensão do autor»), situação que estende a situações em que a mãe do menor se tenha relacionado com mais do que um homem no período legal da concepção. Tem o cuidado de esclarecer que não desconhece o Assento, mas assume uma interpretação restritiva, remetendo para o Acórdão do STJ, de 19/1/93 C.J. STJ I, 1, 67. e acrescentando que, face à prova directa, resultante do exame (art. 1.801º do CC), a prova indirecta tem de ceder, sendo que era esta que era objecto do Assento, posição que terá sido tomada pelo Acórdão referido em a). c) E é significativo o Acórdão do STJ de 31 de Outubro de 1995 C.J. STJ III, 3, 87.. Para vencer o obstáculo criado pelo Assento, chama à colação «jurisprudência significativa deste Supremo (em que se integram, entre outros os Acórdãos de 27.6.1989, no B.M.J. 388, pág. 452, de 26.6.1991 no B.M.J. 408, pág. 503 e de 14.11.1994, na revista nº 85.992)», defendendo que se tem admitido uma interpretação restritiva do Assento nº 4/83, no sentido de que, tendo embora fracassado a prova da exclusividade das relações sexuais entre o investigado e a mãe, durante o período legal da concepção do filho, deverá ser reconhecida a paternidade do investigado se houver indicações seguras de que das relações sexuais por ele mantidas resultou a procriação do filho. Faz, ainda, apelo à «lição do Prof. Antunes Varela, em anotação ao Assento, na Rev. de Leg. e Jurisp., ano 117º, pág. 56, ao considerar o caso de uma coabitação concorrente, escrevendo: "se houver, no entanto, indicações seguras de que essa coabitação concorrente não podia ter sido causadora da concepção da criança (da fecundidade do óvulo) nada obstará a que o tribunal, a despeito de ter fracassado a prova da exclusividade das relações, reconheça a paternidade do investigado”». d) Finalmente, o Acórdão do STJ de 25 de Fevereiro de 1993 BMJ 424º, 696.: «Nas acções de investigação oficiosa, ..., a procedência da acção depende apenas da prova da filiação biológica, ou seja, da prova de que o investigante nasceu da cópula entre sua mãe e o investigado durante o período legal da concepção (artigos 1798º, 1847º e 1865º, nº 5, do Código Civil). A prova da fidelidade da mãe durante o período legal da concepção é suficiente para demonstrar a causalidade das relações entre ela e o pretenso pai. Mas essa prova não é necessária. Pode ter havido coabitação concorrente durante o período legal da concepção e, todavia, ser viável a demonstração da paternidade biológica do réu porque se obtém uma prova hematológica que exclui a paternidade de terceiro. O próprio assento do Supremo Tribunal da Justiça de 21 de Junho de 1983 dá ideia de que o que verdadeiramente interessa não é bem a prova da exclusividade de relações sexuais, mas antes a prova de que o pai biológico é aquele que fecundou a mãe, coisa que também se pode provar por meios técnicos» pontos II a IV do respectivo sumário.. 10.4.3. Mas, o problema é que, como bem notava o referido Acórdão da Relação de Coimbra, de 22 de Janeiro de 1991, tais posições iam para além do defendido pelo referidos Autores Guilherme de Oliveira e Campos Costa, que só admitiam a concorrência de relações sexuais - logo, ausência de exclusividade - quando, através de exames, fosse possível determinar a exclusão da pessoa que, ao mesmo tempo que o investigado ou igualmente no período legal de concepção, tinha tido relações sexuais com a mãe, exclusão essa que o recurso a métodos bioquímicos pode, e podia, assegurar, o que já não acontecia com a prova positiva, que se socorre de um cálculo estatístico. Repare-se, por exemplo, no sumário do referido Acórdão do STJ, de 25 de Fevereiro de 1993 anterior al. d.: No ponto III, refere-se à «prova hematológica que exclui a paternidade de terceiro» e, no ponto IV, passa para a afirmação de que, para o Assento, «o que verdadeiramente interessa (é) a prova de que o pai biológico é aquele que fecundou a mãe», mais do que a exclusividade grifámos.. Mas sigamos a crítica feita pelo referido Acórdão da Relação de Coimbra. Considerou que a decisão recorrida tinha ido para além «do seu campo próprio - o do julgamento da matéria de facto», tendo recaído sobre o julgamento de direito: «Fazendo-o, temos o resultado, talvez não querido, da sentença, que se bastou com a prova de um dos factos demonstrativos da pretensão (a existência de relações sexuais entre a mãe e o pretenso pai no período legal da concepção) e prescindiu totalmente (da prova) do outro (a exclusividade das relações sexuais entre eles durante o mesmo período)». E o próprio Acórdão chama em sua defesa a posição de vencido do Sr. Conselheiro Campos Costa, já referido. E sobre os Acórdãos do STJ, de 13 de Dezembro de 1984 e de 16 de Novembro de 1978, citados pela decisão recorrida, afirma que «são completamente diferentes da situação presente, uma vez que o julgamento da matéria de facto teve resultado completamente diferente também: o quesito que averiguava da exclusividade das relações sexuais teve nessas acções resposta afirmativa, embora cautelosa, ...», ao passo que na decisão recorrida a resposta sobre a exclusividade tinha sido negativa. E conclui: «Por conseguinte, foi por ter extraposto doutrina, válida apenas para o julgamento da matéria de facto, para o julgamento da questão de direito e por ter identificado situações nada semelhantes que o Senhor Juiz eliminou um dos factos demonstrativos da pretensão do autor, indispensável à procedência da acção - o da exclusividade das relações sexuais entre a mãe e o pretenso pai durante o período legal da concepção. Quer dizer, julgou provada a acção mesmo inexistindo prova da coabitação causal». E, seguidamente, esclarece a posição do Sr. Conselheiro Campos Costa: «ele aceita a interpretação restritiva do Assento mas, tão só, quando a prova da exclusividade das relações sexuais resulta certa de exame feito, como se vê do exemplo que aponta de “um exame de sangue excluir a paternidade de terceiro com a qual a mãe tenha coabitado na época da concepção”». Portanto, a interpretação restritiva, pelo menos a defendida pelos dois Autores referidos, cinge-se às situações em que há uma prova científica certa, que é a que pode concluir pela exclusão, o que já não acontece (acontecia) com a prova positiva, que é a de probabilidade, estatística (método seroestatístico segundo o método de Hummel). 10.4.4. Mas, hoje, pode defender-se uma terceira posição que permita ultrapassar as dificuldades levantadas pelo Assento, já que a referida interpretação restritiva parece não permitir ir tão longe quanto se foi falamos do Assento, dando-lhe o valor de, pelo menos, jurisprudência que tem norteado a discussão do problema, o que não pode ser ignorado. Na verdade, defendemos que a indiscutível independência da decisão judicial não pode estar de costas voltadas para outros valores, como, por exemplo, a segurança decorrente de posições jurisprudenciais que não surpreendam desnecessariamente os destinatários e a imagem exterior do poder judicial, a qual não pode sair prejudicada pelo confronto imponderado com sentimentos de incompreensão por decisões sempre diferentes. Portanto, entende-se a independência como um valor e um instrumento a favor da comunidade e não como uma prerrogativa do juiz, razão que nos leva a respeitar as decisões dos tribunais superiores e, mesmo, simples decisões anteriores, sempre que o seu valor de convencimento valham mais do que razões fortes assentes em convicção muito cimentada e em questão cuja importância mereça um desvio de curso. Por isso procuramos sempre justificar os nossos desvios em relação ao Assento. Quanto à questão do seu valor como jurisprudência qualificada, a situação não exige que se entre na respectiva abordagem; mesmo que se siga o Acórdão do TC nº 1197/96, de 21 de Novembro de 1996, que ressalvou, da declaração de inconstitucionalidade, os assentos entendidos como “jurisprudência qualificada”, obrigando os juizes e os tribunais hierarquicamente subordinados àquele que os tenha emitido, entendimento que obteve consagração no nº 2, do art. 17º, do D.L. nº 329-A/95, de 12 de Fevereiro, e que foi reafirmado pelo Acórdão do TC nº 810/93, de 7 de Dezembro de 1993 (com o voto de vencida da Srª Conselheira Assunção Esteves e a posição com ele concordante do Sr. Prof. A. Castanheira Neves), não é vedada a interpretação que dele fazemos, conforme a lição do Sr. Prof. Vaz Serra, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 113º, pág. 250.. O estado actual da ciência já permite a conclusão da paternidade do investigado através da prova directa, unicamente. No fundo, do que se trata é de fundamentar de maneira diferente o afastamento da doutrina do Assento ou de sair do seu âmbito de previsão e decisão. Nos Acórdãos citados, esta posição, com maior ou menor clareza, já se adivinha. No sumário do Acórdão do STJ de 19 de Janeiro de 1993 BMJ 423º, 535., refere-se: «III - Dados os avanços tecnológicos no domínio da investigação biológica da filiação, os elementos de prova por esse meio recolhidos não poderão deixar de ser atendidos, em particular quando o grau de probabilidade por eles fornecido não seja inferior à “certeza” relativa de outros meios de prova, como a testemunhal». O Acórdão da Relação de Lisboa, de 9 de Março de 1995 C.J. XX, 2, 73., embora citando o Sr. Prof. Guilherme de Oliveira, que se refere só à prova da exclusão, como já se disse, passa para os progressos da ciência: «No entanto, os progressos da ciência neste capítulo têm sido enormes e fazem-se hoje exames de sangue (ou de marcadores genéticos) que determinam a paternidade de qualquer indivíduo com altíssimos graus de probabilidade, ultrapassando os noventa e nove por cento e aproximando-se mesmo quase aos cem por cento», razão de ser da introdução do artigo 1801º, pela reforma de 77 Sublinhámos no entanto, para marcar bem o ponto de viragem feito pelo Acórdão da impossibilidade da prova indirecta, faltando a exclusividade, para a primazia da prova directa, sendo certo que se pode defender que o Assento se situava no limite estrito da prova indirecta e não desta.. No mesmo sentido, «nomeadamente quando o seu grau de probabilidade é bastante elevado», poderiam citar-se passagens do Acórdão da Relação de Lisboa, de 10 de Outubro de 1995 C.J. XX, 4, 107. e, confrontado com uma probabilidade de 99,86%, considerando «a prova da exclusividade que, apurada através de presunções naturais, ..., nos dariam uma certeza bem mais falível do que a certeza que nos dá o exame hematológico realizado», o Acórdão da Relação do Porto de 9 de Janeiro de 1997 C.J. XXII, 1, 196.. Poderiam citar-se outros Acórdãos no mesmo sentido, eventualmente todos os que citados como defendendo uma interpretação restritiva do Assento, porque todos eles, de forma mais ou menos directa, falam dos progressos da ciência, argumento diferente, mas não antagónico, dos usados pelo Assento. E a verdade é que o Assento teve o cuidado de se localizar temporalmente: «Lá fora, são já correntes certos meios científicos que permitem apurar a paternidade biológica com um muito alto grau de probabilidade. ... . Não é o que, por enquanto, sucede entre nós» BMJ 328º, 299; sublinhámos.. E esta passagem é reforçada um pouco adiante: «Por ser assim, a paternidade real ou se demonstra por meios técnicos, ou só pode ter-se por demonstrada quando a mãe, durante o período legal da concepção, não manteve relações senão com o investigado». “Paternidade real”, expressão do Assento, porque ele sabia que a paternidade podia ser apurada dos resultados do laboratório (por meios técnicos, como se exprimiu o Assento); mas o Assento estava ainda limitado ao «resultado técnico do jogo do ónus da prova», conforme salientou o Sr. Prof. Guilherme de Oliveira Boletim, já citado, onde também se diz, a propósito desta alternativa, que «há que gastar em delongas e minúcias processuais aquilo que somos forçados a poupar no laboratório».. Por isso o Assento adverte: «por enquanto»! Na Alemanha há muito tempo que se determina a paternidade a partir da prova da coabitação e com resultados cientificamente seguros. Esta posição vem sendo trabalhada e assumida pelo Sr. Prof. Guilherme de Oliveira. Já em 1980, o Autor escrevia: « ..., a jurisprudência não pode continuar a discutir quem tem de provar a fidelidade sob pena de acabar perplexa quando, em algum caso, a fidelidade não tiver a importância que lhe atribui»; nessa data, 1980, ainda se referia só a casos de comprovada exclusão de paternidade Boletim, já citado.. Em 1984, já o Autor escrevia: «Talvez se possa afirmar que o regime mais próprio dentro de um sistema que não queira entravar a acção será um regime do tipo germânico: provada a coabitação, o réu será presumido pai. Admitamos, todavia, que um regime destes supõe uma grande generalização das provas científicas» O Estabelecimento da Filiação: Mudança Recente e Perspectivas, in Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, 19 de Dezembro de 1984, págs. 91 e ss.. Finalmente, em 1995, o Autor defende uma interpretação restritiva do Assento, mas agora com um âmbito diferente e mais alargado: « ..., essa prova (a da exclusividade) não é necessária sempre que se possa demonstrar o vínculo biológico por outros meios - através de meios científicos» R.L.J. 128º, 185.. Restringe a obrigatoriedade do Assento aos casos em que não possa fazer-se a prova directa do vínculo biológico, por meios laboratoriais, e aceita que o autor não se pode limitar à alegação e prova da coabitação. 10.4.5. Ora, chegados aqui, o que temos de admitir é a possibilidade de obter uma prova positiva da paternidade a partir dos exames previstos no art. 1.801º. E o estado actual da ciência em Portugal já o permite, sobretudo a partir de 1997. Na verdade, Portugal ultrapassou já a chamada “prova da semelhança”, considerada “grosseira e desacreditada” Prof. Guilherme de Oliveira, O Estabelecimento da Filiação ..., in “Ciclo de Conferências”, já citado. e os métodos antropométricos e heredobiológicos. Já chegámos à prova seroestatística e, quando necesssário para uma maior certeza, aos exames sobre o ADN, os quais permitem valores aproximados dos 100%. Seguem-se hoje os métodos científicos usados nos restantes Países europeus, nomeadamente na Alemanha, com mais de vinte exames preliminares, um mapa génico com base na população portuguesa o que não acontecia antes de 1997. e com um cálculo estatístico baseado em métodos também utilizados nos outros Países. A inserção de população portuguesa no mapa génico, podendo em alguns casos trazer pouco mais do que a comparação com outros povos -brancos americanos e europeus, sobretudo galegos-, está hoje actualizada a tal ponto que, nas regiões do Alentejo e Algarve, onde se encontram caracteres muito semelhantes com a população do Norte de África, os critérios são diferentes das regiões a Norte do Tejo.. Assim, pode dizer-se hoje que a ciência homogética forense em Portugal está ao nível da europeia, inclusivamente da alemã, pelo que se encontra ultrapassado o «por enquanto» do Assento e as reservas da maior parte dos Acórdãos que o seguiam e a informação que temos permite-nos pensar que estamos muito longe dos tempos em que era possível falar «do atraso das provas científicas da filiação (decerto mais avançadas do que as da ciência médica lusitana da especialidade, em 1977) - RLJ 117º, 54, 2º 4, da nota 1 -.. Aliás, entre parêntesis, deve dizer-se que o fosso das posições dos diversos Acórdãos citados não é, de certa maneira, tão profundo quanto o enunciado das posições e as passagens citadas podem aparentar. A verdade é que as decisões mais próximas do Assento confrontavam-se com graus de probabilidade relativamente baixos: o citado Acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Dezembro de 1987 decidia sobre uma probabilidade de 98%. E o de 22 de Janeiro de 1991, de 97,25%; este, que nesta abordagem previlegiámos, pela crítica mais construída aos Acórdãos restritivos, para além de decidir sobre a referida percentagem, ele próprio aceita «a doutrina e a jurisprudência segundo as quais “o apuramento da exclusividade das relações sexuais para determinar a filiação biológica assenta, no estado actual da ciência, num simples juízo de probabilidade aferido pelo bom comportamento da mãe ...”» sublinhámos.. Ora, só acima dos 99,73% é que se admite a paternidade como “praticamente provada”, ou, como se diz na doutrina alemã, uma “certeza prática”. Já os Acórdãos que seguiram uma interpretação restritiva e apelavam à evolução da ciência em Portugal, de forma associada ou não, se confrontavam com graus de probabilidade superiores: 99,70% (C.J. XX, 2, 73), 99,93% (C.J. XX, 4, 107); 99,86% (C.J. 97, 1, 196). Começamos a ver que não estamos longe da posição defendida pelo Sr. Conselheiro Alberto Baltazar Coelho: «se a prova directa da paternidade exige, ..., a demonstração da exclusividade ..., isso não significa que, embora não feita a prova daquela exclusividade, a investigada paternidade não seja dada como provada e, consequentemente, declarada judicialmente» CJ STJ VII, 1, 19, 1ª col., nº 12.. E, como resulta doq eu dissemos já, estamos de acordo com o Sr. Conselheiro quando afirma que «efectivamente, quando estes (exames laboratoriais) - ... - indicarem probabilidades de paternidade inferiores a 80% deverão representar “dúvidas séria” sobre a paternidade presumida em função de qualquer das alíneas do nº 1 do art. 1871 do Cód. Civ. E muito especialmente da referida al. e). relativamente a averiguadas probabilidades superiores a 80%, a seriedade das dúvidas, como decorre de todo o exposto, há-se resultar, por um lado, do concreto grau de probabilidade encontrado na perícia e, por outro lado, da ponderação conjunta de toda aprova produzida sobre o procedimento social da mãe e, muito especialmente, do seu comportamento sexual» CJ STJ VII, 1, 21, 2ª col., antepenúltimo e penúltimo §§.. A posição do Sr. Prof. Guilherme de Oliveira é, hoje, claramente esta. Dizia ele: « ..., julgo que a certeza estatística que se pode obter hoje, nos laboratórios portugueses, não é menor do que a certeza prática que sempre basta para fundar as decisões judiciais. Isto vale por dizer que não é facilmente aceitável que um tribunal despreze um resultado positivo de, digamos, 99% e resolva em sentido contrário com base em provas convencionais» Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia - 1984», 1987.. E diz actualmente: «Nos últimos anos, os laboratórios portugueses praticam exames que podem concluir por uma afirmação da paternidade» RLJ. 128º, 186.. Por isso, a alteração ao art. 1.871º; o art. 1º da Lei nº 21/98, de 12 de Maio, introduziu a al. e) no nº 1 do art. 1.871º, com a seguinte redacção: «Quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção». Não se emprega o vocábulo coabitação, exigido pelos direitos alemão e suíço, mas do simples relacionamento sexual, porventura um só. E, então, parece-nos que só se pode concluir que o legislador português contou com os avanços científicos e a modernização do País, de tal forma que já se pode dizer que a probabilidade do parceiro sexual da mãe ser o pai - probabilidade que é fundamento de uma presunção e, consequentemente, da inversão do ónus da prova - «não está dentro da presunção mas depois, nos resultados laboratoriais, nas tabelas estatísticas, e contabiliza-se em números» Prof. Guilherme de Oliveira, O Direito da Filiação ..., no Boletim já citado.. As circunstâncias que estavam previstas no nº 1, do art. 1.781º, foram consideradas «carregadas da probabilidade de o réu ser o pai» e «mais expressivas do que a simples prova da coabitação» e consideradas adequadas para o nosso sistema face ao atraso técnico do nosso País Prof. Guilherme de Oliveira, O Estabelecimento da Filiação ..., in Ciclo de Conferências, já referido.. Ora, a conclusão a tirar é que o legislador português, ao erigir em presunção um facto menos exigente e significativo do que a coabitação, já tem confiança na prova científica e passa-a, definitivamente, para a frente de uma prova muito mais falível e enfraquecida, considerando os padrões e valores da vida moderna como, aliás, um ou outro Acórdão reconhece, para excluir a presunção de fidelidade nas ligações ocasionais.. É do nosso conhecimento uma situação em que se investigava a paternidade de dois gémeos dizigóticos heteroparentais, sendo que a acção teria, necessariamente, de improceder relativamente a um deles, podendo proceder em relação ao outro, em que o resultado do exame era de 99,99999997%, caso que constitui a percentagem mais elevada que conhecemos e expressa propositadamente Acção ordinária nº 176/99, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Elvas.. Sendo os menores gémeos dizigóticos heteroparentais, tinha de se concluir não só que não tinha havido exclusividade nas relações sexuais com a mãe dos menores, como até que tinha havido relações com progenitores diferentes num curto espaço de tempo, três, quatro dias, no máximo. Portanto, não se tratava já de desvalorizar a exclusividade, mas sim de prescindir dela e já não por ter sido possível fazer a prova da exclusão da paternidade de terceira pessoa, mas sim por haver uma prova directa que permitia um juízo seguro sobre a paternidade do réu, apesar de relações concorrentes e temporalmente próximas. Mas, a verdade é que a ciência actual permite afirmar que a probabilidade de ter sido outra pessoa a geradora do menor não filha do investigado era a de três pessoas de entre 100.000.000 de indivíduos do sexo masculino em condições de procriar pertencentes ao grupo populacional de referência, sendo que a possibilidade de paternidade por parte da pessoa que gerara o outro gémeo era praticamente inexistente, mesmo que fosse irmão do réu, face ao mapa génico das pessoas examinadas. Portanto, nesse caso seguiu-se um caminho em que, mais do que se considerar que não tinha sido feita a prova da exclusividade (como aconteceu neste processo), se partiu do pressuposto de que não tinha havido exclusividade, que a mãe dos gémeos se relacionara sexualmente com o réu e com mais alguém, em pouco espaço de tempo (vamos supor que era uma prostituta). E, então, também não era possível assentar em presunções, porque, qualquer uma das actualmente previstas na lei, incluindo a da alínea e), estava irremediavelmente ilidida. 10.4.6. Voltemos à questão de fundo e à posição que permite o estabelecimento da paternidade só através da prova directa, ou seja, com a prova de relações sexuais cuja causalidade assente na prova laboratorial, contrariamente a uma prova associada à exclusividade de relações sexuais ou à exclusão de terceiro concorrente. A dúvida que se poderá pôr é sobre a necessidade, actualmente, de um processo judicial para o estabelecimento da paternidade, sem prejuízo da possibilidade da previsão de situações em que se admita o recurso ao processo judicial; ou, então, a introdução de um processo mais simplificado. Como muito bem notou o Acórdão da Relação de Lisboa, de 9 de Março de 1995 C.J. XX, 2, 74., «no dia em que a ciência descobrir todos os marcadores genéticos existentes, poder-se-á determinar a paternidade de qualquer indivíduo a 100%. Para lá se caminha e pode até neste momento ter-se lá chegado» sublinhámos.. Seja qual for a evolução deste tipo de acção, o que parece inevitável é ter de fazer-se a conjugação entre penetrante força das ciências exactas e as garantias próprias da ciência do direito, única forma de evitar as críticas a concepções que vão ficando desactualizadas, mas, ao mesmo tempo, evitar também situações como a referida pelo Sr. Conselheiro Alberto Baltazar Coelho e outras, que podemos idealizar - para fugir de casos concretos -, como a de um dos interessados trabalhar ou ter influência, de alguma maneira, no Laboratório onde se faz a recolha e o exame. 10.5. No caso sub judice, foi dado como provado que «a gravidez da mãe do Tiago sobreveio a relações sexuais havidas entre esta e o réu» resposta ao nº 1 da base instrutória., com o seguinte fundamento: «exame de sangue feito no INML, delegação de Coimbra, certificado a fls. 8/12, que conclui por uma probabilidade de 99,99999% de o réu ser o pai do Tiago ...» fls. 69.. Face ao que atrás ficou dito, à referida resposta e fundamentação, onde se acrescenta a ausência de outros elementos probatórios em contrário, temos de concluir de forma igual à sentença recorrida. III – Decisão. Pelo exposto, julgam improcedente a apelação, confirmando o decidido em primeira instância. Custas pelo recorrente.30 de Março de 2004.