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Acórdão STJ de 2003-04-29

03P1646

TribunalSupremo Tribunal de Justiça
Processo03P1646
Nº ConvencionalJSTJ000
RelatorPereira Madeira
DescritoresExtradição, Nulidade de Acórdão, Omissão de Pronúncia
Nº do DocumentoSJ200304290016465
Data do Acordão2003-04-29
VotaçãoUnanimidade
Tribunal RecursoT REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso1279/03
Data2003-03-13
Privacidade1
Meio ProcessualREC PENAL

Sumário

I - Para efeitos de apreciação do pedido de extradição com vista à prossecução de procedimento criminal visando o julgamento do arguido pelo estado requerente, a gravidade da infracção relevante é aferida pela acusação e não pelos fundamentos da defesa quanto aos factos da acusação, os quais haverão de ser ponderados e devidamente valorados em julgamento. II - Para esse efeito, mesmo que se considerasse que, perante a lei portuguesa, o caso configuraria ou poderia configurar uma «hipótese atenuada de tráfico», prevista no artigo 25.º do DL n.º 15/93 - «tráfico de menor gravidade» - tal não implicaria necessariamente ser caso de invocação da doutrina do artigo 10.º da Lei n.º 144/99, citada, que permite ao Estado requisitado recusar a cooperação com o Estado requerente em caso de «reduzida importância da infracção», pois os dois conceitos não se confundem. III - Se é certo que qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio, e da sua correspondência, a ingerência da autoridade pública no exercício desse direito é legítima «quando constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da ordem moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros», tal como reza o artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. IV - Não deixa de constituir uma exuberante manifestação de exagero a afirmação do requerido segundo a qual «arrancá-lo abruptamente do seio da sua família e comunidade é, num Estado de Direito Democrático, uma afronta à dignidade da pessoa humana que acarreta consigo uma lesão irreversível da integridade da pessoa», assim se confundindo claramente meras «consequências familiares desagradáveis» sempre inerentes à extradição, com o patamar mais elevado da violação de Direitos do Homem.


Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. Por nota verbal n.º 215/02, de 5 de Agosto de 2002, dirigida pela respectiva Embaixada em Lisboa, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, o Reino de Espanha solicitou por via diplomática, à República Portuguesa, a extradição do cidadão guineense BB, residente em Alfornelos, n.º ....., 1.º, d.to, 2700 Amadora, por se encontrar acusado no País requerente pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 368.º do Código Penal espanhol de 1995, ao qual corresponde, em abstracto, a pena de 3 a 9 anos de prisão. Por despacho de 30/9/02 a Ministra da Justiça deu assentimento ao prosseguimento do processo de extradição. Na sequência do exposto, o Ministério Público junto da Relação de Lisboa promoveu perante aquele tribunal superior o cumprimento do pedido do Estado Espanhol. O requerido opôs-se ao pedido. Observado o legal rito processual, em 13/3/2003 veio a ser proferido acórdão em que foi deliberado deferir o pedido de extradição para que o identificado cidadão guineense responda judicialmente em Espanha pela prática de crime de tráfico de estupefacientes pelo qual está indiciado. Inconformado, o requerido, entretanto confortado com a concessão de apoio judiciário, recorre ao Supremo Tribunal de Justiça a quem confronta com este teor conclusivo: 1. Verifica-se um dos pressupostos constantes do artigo 6.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, que possibilita a não extradição do recorrente. 2. Extraditar o ora recorrente constitui uma violação frontal das exigências prescritas pela Convenção Europeia para Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950. 3. Arrancá-lo abruptamente do seio da sua família e comunidade num Estado de Direito Democrático, [constitui] uma afronta à dignidade da pessoa humana, que acarreta consigo uma «lesão irreversível da integridade da pessoa». 4. Em conformidade com o artigo 57.º, n.º 2, da Lei 144/99, de 31 de Agosto, o acórdão recorrido deve ser elaborado nos termos da Lei de Processo Penal. 5. Em conformidade com o disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, o douto acórdão recorrido enferma de uma nulidade já que o tribunal não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, mais concretamente sobre o alegado no art.º 24.º e 12.º da oposição à extradição. Em 14/4/03, respondeu o MP junto do tribunal recorrido, concluindo em suma: 1. As razões de natureza familiar e pessoal invocadas pelo extraditando, em nosso entender, não preenchem o conceito dos requisitos negativos da cooperação judiciária internacional. 2. Como tal, encontram-se preenchidos todos os pressupostos formais e substantivos do pedido de extradição. 3. O douto acórdão recorrido não se nos afigura nulo, por omissão de pronúncia, uma vez que resulta do seu texto que, os motivos invocados na oposição ao pedido de extradição deduzido pelo arguido foram devidamente apreciados e considerados negativamente na deliberação de deferimento do pedido de extradição. 4. Em consequência, o presente recurso não merece provimento, sendo de confirmar inteiramente o douto acórdão recorrido. Subidos os autos, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta exarou neles o seu visto. 2. Colhidos os vistos legais em simultâneo, cumpre decidir em conferência, nos termos do disposto no artigo 59.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto - Lei de Cooperação Judiciária Internacional Em Matéria Penal (LCJIMP). Como se viu, são duas as questões em que assenta a discordância do recorrente: 1. pretensa existência de «pressuposto que possibilita a não extradição do recorrente». 2. nulidade do acórdão recorrido por alegada «omissão de pronúncia» quanto aos pontos 24 e 12 da oposição à extradição. Abordar-se-á imediatamente esta última questão, uma vez que, claramente, se apresenta como prejudicial relativamente à restante já que, como é claro, em caso de procedência da invocada nulidade processual não seria possível o conhecimento do fundo da causa. No artigo 12.º da sua oposição ao pedido de extradição, alega o recorrente: «Assim vejamos, Em conformidade com a Lei 144/99 de 31 de Agosto, art.º 10.º, a extradição deve ser recusada quando estejam em causa crimes de natureza diminuta.» E no artigo 24.º da mesma peça: «Mas caso assim se não entenda pelo Venerando Tribunal, pode ainda ser negado o pedido de extradição ao abrigo do art.º 18.º da mesma Lei, uma vez que a extradição irá acarretar para o extraditando e para o seu agregado familiar graves consequências de carácter pessoal, económico e social.» Para alicerçar a primeira das identificadas afirmações, o recorrente alegava, em suma, na sua oposição ao pedido, que era consumidor ocasional de drogas e que fora aquela a primeira vez que procedeu à venda de estupefacientes «para fazer face ao vício», concluindo de seguida que «tais factos subsumem-se ao estatuído no art.º 26.º do DL n.º 15/93, de 22/1». E porque assim o caso seria de crime «de natureza diminuta», circunstância que importaria a recusa de extradição nos termos do disposto no artigo 10.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto. Acontece, em primeiro lugar, que em lado algum do processo, nomeadamente na acusação cuja cópia se encontra junta aos autos (fls. 8 e segs.), se faz a mínima referência ao alegado «tráfico para consumo». A acusação é apenas e só por tráfico de estupefacientes. Portanto, com correspondência no artigo 21.º do DL 15/93, que implica em abstracto uma pena de prisão de 4 a 12, 5 a 15 ou 1 a 5 anos, consoante o caso. Ora, para efeitos deste processo, em que o pedido de extradição visa a prossecução de procedimento criminal com vista ao julgamento do arguido e não [ainda] (1), o cumprimento de qualquer pena ou medida de segurança - situação distinta daquela e contemplada também no n.º 1 do artigo 31.º daquela Lei - para avaliar da gravidade da infracção relevante para efeitos de atender ou negar o pedido de extradição, é a acusação que importa considerar e não, como pretende o requerente, ajuizar dos fundamentos da sua defesa quanto aos factos da acusação, os quais haverão de ser ponderados e devidamente valorados em sede de julgamento e não aqui, onde a oposição tem de cingir-se aos confins do n.º 2 do artigo 55.º da citada Lei. Mas a acusação é o que é e não a que o recorrente gostaria que fosse. E nela é-lhe imputada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, punido pelo artigo 368.º do Código Penal Espanhol com pena de 3 a 9 anos de prisão. Portanto, é claro que, manifestamente, o caso não é de «natureza diminuta». Tanto mais que, mesmo que se considerasse que, perante a lei portuguesa, o caso configuraria ou poderia configurar uma hipótese atenuada de tráfico, prevista no artigo 25.º do DL n.º 15/93 (2) - «tráfico de menor gravidade» - tal não implicaria, ao invés do que pretende o recorrente, ser caso de invocação da doutrina do artigo 10.º da Lei n.º 144/99, citada, que permite ao Estado requisitado recusar a cooperação com o Estado requerente em caso de «reduzida importância da infracção». Pois, para este feito, «reduzida importância da infracção» não se confunde com aquela «menor gravidade» do tráfico. É que, por um lado, na economia do DL 15/93, seja o tráfico de menor ou maior gravidade, o crime é grave, em qualquer dos casos. Tanto assim que, mesmo nos casos ditos de menor gravidade do artigo 25.º as penas máximas previstas são respectivamente de 5 e 2 anos de prisão, consoante se configure o caso da alínea a) ou b) respectivas. Por isso, logo por aqui se vê não ser lícita a pretensão de equiparar os conceitos «menor gravidade» a «reduzida importância» da infracção de um e outro dos diplomas legais em presença. Depois porque a própria Lei n.º 144/99 se encarrega de iluminar, de algum modo, o conteúdo deste último conceito «reduzida importância» ao estabelecer no artigo 31.º, n.º 2, que «só é admissível a entrega da pessoa reclamada no caso de crime, ainda que tentado, punível pela lei portuguesa e pela lei do Estado requerente com pena ou medida privativas de liberdade de duração máxima não inferior a um ano», o que, por indução extensiva, permite, com largo conforto, ter o caso dos autos muito afastado da possibilidade de inclusão na hipótese contemplada no artigo 10.º citado. Por tudo isto, se é certo que no acórdão recorrido se passou ao lado desta discussão, e que não teria ficado mal encará-la de frente, tal se terá devido à circunstância de se haver implicitamente como seguro que ela era descabida, na medida em que, para além do que o recorrente ora alegue em sua defesa, era e é à acusação que importava recorrer para efeito de saber qual o crime por que o procedimento criminal prossegue no Estado requerente, e que, portanto, fundamenta o pedido de extradição. Logo, não se configura qualquer relevante omissão de pronúncia, até porque no mesmo acórdão o tribunal a quo se manifestou expressamente, assim contrariando a tese do recorrente, que «o crime imputado é punido com pena de prisão de 3 a 9 anos, de acordo com o artigo 368.º do Código Penal Espanhol (...)». Mais: o acórdão recorrido, de forma sintética, é certo, afastou explicitamente a hipótese de verificação de qualquer hipótese de exclusão legal da extradição ao afirmar «não havendo dúvidas quanto à identidade do requerido, a extradição só seria de excluir nos casos referidos nos art.ºs 6.º a 8.º da Lei 144/99. Porém, nenhum desses casos se verifica». Deste modo obteve também resposta negativa com vista à oposição do recorrente, a invocação de que «a extradição irá acarretar para o extraditando e para o seu agregado familiar graves consequências de carácter pessoal, económico e social», sem motivo de censura por parte deste Supremo Tribunal, tanto mais quanto é certo que, quanto a este ponto, aquele se limitou a invocar pouco mais que generalidades - as mesmas que qualquer outro extraditando poderia invocar - como essa de ter residência em Portugal, (art.º 1.º da alegação de fls. 59), ser em Portugal que se encontra todo o seu agregado familiar (art.º 2.º), ser em Portugal que o extraditando desenvolve toda a sua actividade profissional «através da qual provem ao sustento da sua família» (art.º 3.º), e encontrar-se ocasionalmente em Espanha aquando da prática dos factos (art.º 4.º). Pois, para além dos naturais incómodos e mesmo perturbação dos hábitos de vida que uma extradição sempre ocasiona ao extraditando e à família, não se vê concretização, ao nível mesmo da alegação dos factos, das «graves consequências» para a pessoa visada, «em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal», que, face ao disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Lei citada, poderiam fundar uma eventual negação de cooperação. Improcede, assim, a pretensão de ver declarada a nulidade do acórdão recorrido. Aqui chegados, importa então atacar a questão da existência de «pressuposto que possibilita a não extradição do recorrente». Alega este em tal sede que se verifica o pressuposto previsto concretamente na alínea a), do artigo 6.º da Lei 144/99 citada. Isto porque «o centro da vida do extraditando corre em Portugal onde trabalha para sustentar a sua família, onde reside com todo o seu agregado familiar e por último com todos os seus amigos o que se mostra essencial para o desenvolvimento saudável e digno de qualquer ser humano. Arrancá-lo abruptamente do seio da sua família e comunidade é, num Estado de Direito Democrático, uma afronta à dignidade da pessoa humana que acarreta consigo uma lesão irreversível da integridade da pessoa». A citada alínea a) do artigo 6.º reza assim: «O pedido de cooperação é recusado quando: a) O processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 14 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal». Mas não se vê em como ou em quê o deferimento do pedido de extradição possa ofender o citado dispositivo, tanto mais que sendo o Reino de Espanha, como se sabe, tal como Portugal igualmente membro do Conselho da Europa (3), pelo menos, desde 1977, e também signatário da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o processo pendente naquele País contra o recorrente dá todas as garantias da satisfação das exigências reclamadas. Por outro lado, é patente na sua alegação que aquele exacerba desmesuradamente e sem fundamento jurídico plausível o conceito de protecção à dignidade da pessoa humana, que a seu ver seria afrontosamente violada, pelo facto de o arguido «ser arrancado abruptamente do seio da sua família e comunidade». A ser levada à letra esta sua concepção das coisas, seria difícil ou mesmo impossível alguém ser extraditado, desde que para tanto tivesse de ser «arrancado do seio da sua família». Só que este respeito pela vida privada e familiar não é, naturalmente, um direito absoluto. Pois se é certo que qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio, e da sua correspondência, a ingerência da autoridade pública no exercício desse direito é legítima «quando constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da ordem moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros», tal como reza o artigo 8.º da citada Convenção Europeia dos Direitos do Homem. A própria Constituição limitando embora a extradição à aplicação de penas ou medidas de segurança de carácter não perpétuo ou duração definida - art.º 33.º, n.º 4 - admite-a expressamente. Para mais, não deixa de constituir uma exuberante manifestação de exagero a afirmação do recorrente segundo a qual «arrancá-lo abruptamente do seio da sua família e comunidade é, num Estado de Direito Democrático, uma afronta à dignidade da pessoa humana que acarreta consigo uma lesão irreversível da integridade da pessoa», confundindo claramente «consequências familiares desagradáveis» inerentes à extradição, com violação de Direitos do Homem. De todo o modo, no caso, a compressão dos pretensos direitos do arguido, para além de, como se viu, ter cobertura na Lei, está justificada e legitimada pela necessidade de defesa da ordem e a prevenção das infracções penais igualmente relevantes naquele patamar elevado dos Direitos Humanos. Improcedem, assim, todas conclusões da motivação. 3. Termos em que, negando provimento ao recurso, confirmam a decisão recorrida. Em matéria de custas observar-se-á oportunamente o disposto no artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto. Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Abril 2003 Pereira Madeira Simas Santos Santos Carvalho António Mortágua ____________ (1) Pois ninguém pode garantir neste momento que o arguido não venha a ser absolvido em julgamento. (2) - A pretensão de ver o caso levado à previsão do artigo 26.º é, por agora, de todo irrealista em face dos factos acusados, embora o recorrente não esteja impedido como é óbvio, de, em julgamento, fazer a prova do que agora alega em sua defesa. (3) - Cfr. por todos Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2.ª edição Coimbra Editora, págs. 27, nota 25.

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