Apura logo

Acórdão STJ de 2006-11-02

06P4069

TribunalSupremo Tribunal de Justiça
Processo06P4069
Nº ConvencionalJSTJ000
RelatorArménio Sottomayor
DescritoresExtradição, Princípio da Especialidade, Costume Internacional, Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Detenção, Prisão Preventiva, Interrogatório de Arguido, Habeas Corpus, Prisão Ilegal, Detenção Ilegal, Interpretação Extensiva
Nº do DocumentoSJ200611020040695
Data do Acordão2006-11-02
VotaçãoUnanimidade com 1 Dec Vot
Privacidade1
Meio ProcessualHABEAS CORPUS.
DecisãoOrdenada a Apresentação do Arguido ao Juiz

Sumário

I - O princípio da especialidade traduz-se em “limitar os factos pelos quais o extraditando será julgado, após a entrega ao Estado requerente, àqueles que motivaram essa entrega” (Anna Zairi, Le Principe de la Spécialité de l’Extradition au Regard des Droits de l’Homme, pág. 30, apud José Manuel Cruz Bucho e outros, Cooperação Judiciária Internacional, I, pág. 40, n.º 71). II - Segundo aquela autora, o fundamento jurídico do princípio assenta no reconhecimento da soberania do Estado requerido pelo Estado requerente, expressa no carácter convencional da extradição, e corresponde à observância pelo Estado requerente do compromisso perante o Estado requerido de apenas perseguir o extraditando pelas infracções mencionadas no pedido. III - Todavia, uma concepção mais moderna, fundada na ideia de protecção dos interesses do indivíduo, considera a especialidade como uma regra que releva do costume internacional e que vale mesmo na falta de disposições convencionais. IV - Partindo desta visão humanista, aquela autora estabelece uma conexão entre o princípio da especialidade da extradição e a matéria dos direitos do homem, fazendo derivar o princípio da especialidade do art. 6.°, n.º 3, al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que essa norma exige que o acusado seja informado da natureza e da causa da acusação contra ele formulada, o que significa que só pode haver extradição por factos de que o extraditando tenha conhecimento. V - O princípio da especialidade sofre duas excepções: - quando houver consentimento do Estado requerido na ampliação da extradição, de forma a que o extraditado responda por outros processos; - quando, terminado o procedimento criminal ou o cumprimento da pena e restituída à liberdade, a pessoa extraditada permaneça no território do Estado requerente para além do prazo de 45 dias, que é concedido para que abandone livremente esse território, ou se a ele regressar depois de o ter deixado. VI - Com a revisão do CPP de 1998 ficou esclarecido que, detido o arguido em qualquer fase do processo, se torna obrigatório o respectivo interrogatório judicial, para, em conformidade com o preceito constitucional, se operar a “restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa” (art. 28.°, n.º 1, da CRP). VII - Detenção e prisão preventiva são conceitos diferentes. VIII - O CPP reserva o conceito de prisão preventiva para a privação de liberdade individual emergente de decisão judicial e aplicada como medida de coacção. A detenção não se encontra definida na lei, podendo caracterizar-se como uma medida precária de privação da liberdade, com características cautelares, cuja finalidade essencial é a colocação do sujeito à disposição da autoridade judicial. Não estando necessariamente dependente de mandado judicial, quando, todavia, for ordenada pelo juiz está sujeita a pressupostos materiais coincidentes com as finalidades que legalmente lhe são assinaladas: para a aplicação de medida de coacção ou para assegurar a presença imediata do detido perante o juiz em acto processual. IX - Nos termos do art. 31.º, n.º 1, da Constituição, o habeas corpus colhe sempre fundamento em situações de ilegalidade, sejam de prisão, sejam de detenção, não prevendo o preceito qualquer excepção. X - Ainda que para tanto se torne necessário recorrer à interpretação extensiva, as normas do CPP que regulam o instituto têm de ser objecto duma interpretação que, no respeito pela Constituição, permita que nelas sejam incluídas outras situações de privação da liberdade, como é o caso do detido por ordem do juiz que permaneça mais de 48 horas sem ser sujeito a interrogatório judicial. XI - Das duas modalidades de habeas corpus, é de afastar, desde logo, para este efeito, a da competência do juiz de instrução, apesar de ser a que prevê especificamente o excesso de detenção. XII - Na verdade, se a ordem de detenção dimana dum juiz, operada que seja a captura, o detido fica à ordem dum processo judicial distribuído a um determinado tribunal, pelo que fazer intervir, neste caso, o juiz de instrução constituiria uma entorse do sistema. XIII - Dificuldade que não se verifica na modalidade dos arts. 222.° e 223.°, por a competência para a apreciação da providência se radicar no STJ. E se é certo que, segundo a lei processual, a providência de habeas corpus da competência do STJ respeita a excessos de prisão, nenhuma razão válida se opõe a que a mesma disciplina seja aplicada a outras ocorrências de excesso de prazo de privação de liberdade, quando dimanadas de acto judicial. XIV - Uma vez que não se trata de prisão ilegal, mas de uma detenção de que pode resultar a aplicação duma medida de coacção, designadamente de prisão preventiva, não é caso de ordenar a imediata libertação do requerente. XV - Mais adequada é a medida prevista na al. c) do n.º 4 do art. 223.° - mandar apresentar o detido no tribunal competente e no prazo de 24 horas, a fim de ser dado cumprimento ao disposto no art. 254.°, n.º 2, do CPP.


Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. "AA", arguido no processo nº 292/98.3 JGLSB.1 da 1ª Secção da 1ª Vara Criminal de Lisboa, veio requerer a providência excepcional de habeas corpus. Em requerimento subscrito por advogado, que não prima pela clareza na exposição dos fundamentos e onde se confunde o pedido de restituição à liberdade com pedidos de declaração de nulidade processual e de declaração de inconstitucionalidade de normas que não têm aplicação directa na situação actual do requerente, invoca o disposto no 222º n.º 2 al. a) b) e c). do Código de Processo Penal. Alega: - como questão prévia, que o requerente foi conduzido sob prisão, em 18 de Outubro de 2006 para o E.P.L., proveniente do Brasil e que em 20 de Outubro foi removido para o E.P. Linhó. Acrescenta que ao abrigo do art. 335º n.º 3 C.P.P. os autos implicavam a declaração de contumácia, com a consequente suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou detenção do arguido. Não tendo a contumácia sido declarada, e tendo a audiência sido realizada sem a presença do requerente, que foi condenado em 25 anos de prisão, são nulos os actos praticados desde o início da audiência e é nulo todo o processado; - em 27 de Abril de 2004, o Ministério Público promoveu a emissão e remessa à Audiência Nacional de Espanha dum mandado de detenção europeu a funcionar como pedido de extensão de competência para permitir o julgamento pelos factos por que foi pronunciado; uma vez que a Espanha não deferiu tal pedido, está impedida a perseguição criminal por esses factos, face ao princípio da especialidade; - o pedido de extradição posteriormente solicitado ao Brasil, é proibido por o requerente não ter renunciado ao princípio da especialidade, nem ter consentido em ser perseguido por outro processo diferente daquele que motivou a sua entrega por Espanha, estando vedado no processo a prática de qualquer acto, conforme acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de Abril de 2005; - os princípios da reciprocidade da especialidade existentes em Espanha, em Portugal, no Brasil e na União Europeia constituem obstáculo à perseguição, manutenção da prisão e submissão a julgamento nos autos 292/98 da 1ª Vara Criminal de Lisboa, face às excepções contidas na Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto; - decorreram 5 dias desde que o arguido entrou em Portugal, sem que o arguido tenha sido apresentado ao juiz, o que deveria ocorrer no prazo de 48 horas, nos termos do art. 28º nº 1 da Constituição e art. 254º do Código de Processo Penal, sendo a prisão ilegal por inexistência de decisão exequível e não apresentação em tribunal; - o requerente abandonou Portugal nos 45 dias – art. 7º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, fixou-se no Brasil, tem um filho brasileiro e fala a mesma língua, não renunciou à regra da especialidade, não consentiu na entrega nem regressou voluntariamente a Portugal, pelo que a prisão “re-ordenada” pelo juiz da 1ª Vara Criminal de Lisboa, atenta contra os princípios comunitários e internacionais; - o requerente, no Brasil, perante o Tribunal Regional Federal da Primeira Região, declarou que não abre mão do princípio da especialidade; - inexiste sentença transitada ou decisão exequível. 2. Da informação prestada pelo juiz do processo n.º 292/98.3 JGLSB consta, em súmula: - o requerente foi ouvido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, em 30 de Setembro de 1999, tendo então sido determinada a sua prisão preventiva; - o arguido evadiu-se em 16 de Outubro de 1999; - deduzida a acusação, porque o arguido se mantinha evadido, foi notificado editalmente da pronúncia e da designação de dia para julgamento, com a cominação de que, se não comparecesse, seria julgado como se estivesse presente; - realizada a audiência de julgamento, foi o arguido condenado nas penas parcelares de 17 anos de prisão e de 11 anos de prisão e na pena única de 25 anos de prisão, por acórdão de 22 de Setembro de 2000, ainda não transitado; - em 6 de Dezembro de 2004, foi proferido despacho de reapreciação de medidas de coacção, sendo indeferido um requerimento do arguido nesse âmbito, e foi reiterada a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, tendo sido ordenada a passagem de mandado de detenção europeu e de mandado de captura internacional; - em 30 de Março de 2006, o Supremo Tribunal Federal do Brasil concedeu a extradição, tendo sido entregue ao Estado Português em 18 de Outubro de 2006; - a detenção internacional do arguido para os fins de cumprimento da medida de coacção não obriga a novo interrogatório judicial ou à audição presencial do arguido, sendo a sua audição facultativa nos termos do n.º 3 do art. 213º do Código de Processo Penal; - a situação pessoal do arguido naqueles autos está perfeitamente definida desde o primeiro interrogatório judicial, não tendo aqui aplicação o disposto no art. 254º n.º 1 do Código de Processo Penal; - não se demonstra verificado qualquer dos pressupostos da providência de habeas corpus, estando devidamente salvaguardadas as garantias constitucionais do direito à liberdade 3. Convocada a Secção Criminal, notificados o Ministério Público e o defensor, e realizada a audiência a que se refere o arts. 223º nº 3 e 435º do Código de Processo Penal, com alegações orais do Ministério Público e da defesa, cumpre tornar pública a deliberação. 4. O requerente tem legitimidade e pode formular, como formulou, a petição – artigo 222º, nº 2, do CPP. Mantém-se a situação de privação de liberdade do peticionante. O requerente, arguido no proc. 292/98 da 1ª Vara Criminal de Lisboa, lança mão da providência de habeas corpus também com vista a alcançar finalidades que a providência não visa. Conforme tem sido afirmado por este Supremo Tribunal de Justiça e o requerente bem sabe, já que fez uso, por duas vezes, do habeas corpus, esta constitui uma "providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido. O seu fim exclusivo e último é, assim, estancar casos de detenção ou de prisão ilegais”. 5. Previsto nas Constituições de 1911 e de 1933, que remetiam para a lei ordinária a respectiva regulamentação, o instituto do habeas corpus apenas foi introduzido no ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei 45.033, de 20 de Outubro de 1945. Conforme a respectiva exposição de motivos “a providência do habeas corpus consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade. Providência de carácter extraordinário ... é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade”. Na Constituição de 1976, estabeleceu-se, no art. 31º, que haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente. Em anotação a esta norma referem os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa – Anotada, 3ª edição revista, pág. 199) que, “a prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27º, quando efectuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc.”. O habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 321), sendo certo que “a qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e nesse sentido fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial de detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal” (Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, pág. 343) . Por isso, não pode o requerente pretender que o Supremo Tribunal, no âmbito desta providência se pronuncie acerca de matérias como as constantes do ponto que designou como “questão prévia”, designadamente sobre a alegada falta de declaração da contumácia, ou sobre o despacho que não julgou imprescindível a presença do arguido na audiência, nem ainda quanto ao não adiamento do julgamento ou relativamente à condenação do arguido na pena de 25 anos de prisão ainda não transitada. São questões que eventualmente poderão ser discutidas e apreciadas num recurso ordinário, mas, nunca por nunca, na providência de habeas corpus. Nesta, o Supremo Tribunal de Justiça tem apenas de verificar se a prisão do arguido se encontra inquinada por algum dos fundamentos das als. a), b) e c) do n.º 1 do art. 222º do Código de Processo Penal, que o requerente, apesar da patente diferença entre as situações constantes de cada uma das mencionadas alíneas, considera violadas na sua totalidade. 6. A ilegalidade da prisão deve provir de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; c) Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial. Liminarmente, teremos de afastar o preenchimento das als. a), que o recorrente invoca, mas relativamente às quais não aduz directamente quaisquer factos. A prisão adveio de um pedido de extradição formulado pelo Estado Português à República Federativa do Brasil, a solicitação do juiz da 1ª Vara Criminal de Lisboa, que para tanto emitiu um mandado internacional de captura, dentro das competências que lha são próprias. Assim, não pode falar-se em prisão ordenada por entidade incompetente. 7. Sustenta o requerente que não pode ser preso, nem pode ser perseguido criminalmente nos presentes autos, porque “não renunciou ao princípio da especialidade, nem consentiu em ser perseguido em Portugal por outro processo”, o que remete para o fundamento da al. b) – ser a prisão motivada por facto pelo qual a lei não permite. O princípio da especialidade é um princípio estruturante da cooperação judiciária penal internacional em matéria penal, internacionalmente aceito, cujos efeitos o requerente, que foi sujeito a uma entrega a Portugal por via do mandado de detenção europeu, pretende se mantenha mesmo na situação em que o arguido, libertado do processo que motivou aquela entrega, se acoita num outro país, fora do espaço europeu. Se tomarmos como paradigma a Convenção Europeia de Extradição, encontramos tal princípio expresso no art. 14º e formulado do seguinte modo: a pessoa que tenha sido entregue não será perseguida, julgada ou detida com vista à execução duma pena ou duma medida de segurança nem submetida a qualquer outra restrição à sua liberdade individual por facto anterior à entrega diferente daquele que motivou a extradição, salvo nos caso seguintes: a) Quando Parte que a entregou nisso consentir. Para esse efeito deverá ser apresentado um novo pedido, acompanhado dos documentos previstos no artigo 12º e de auto donde constem as declarações do extraditado. O consentimento será dado quando à infracção pela qual é pedido implique por si mesma a obrigação de extraditar, nos termos da presente Convenção. b) Quando, tendo tido a possibilidade de o fazer, a pessoa extraditada não tenha abandonado, nos 45 dias que se seguem à sua libertação definitiva, o território da Parte à qual foi entregue ou quando a ele tenha regressado depois de o ter deixado. O princípio da especialidade traduz-se em "limitar os factos pelos quais o extraditando será julgado, após a entrega ao Estado requerente, àqueles que motivaram essa entrega" (Anna Zairi, Le Principe de la Spécialité de l'Extradition au Regard des Droits de l'Homme, p. 30, apud José Manuel Cruz Bucho e outros, Cooperação Judiciária Internacional, I, pág. 40 n. 71). Segundo aquela autora, o fundamento jurídico do princípio assenta no reconhecimento da soberania do Estado requerido pelo Estado requerente, expressa no carácter convencional da extradição e corresponde à observância pelo Estado requerente do compromisso perante o Estado requerido de apenas perseguir o extraditando pelas infracções mencionadas no pedido. Todavia, uma concepção mais moderna, fundada na ideia de protecção dos interesses do indivíduo, considera a especialidade como uma regra que releva do costume internacional e que vale mesmo na falta de disposições convencionais. Partindo desta visão humanista, aquela autora estabelece uma conexão entre o principio da especialidade da extradição e a matéria dos direitos do homem, fazendo derivar o principio da especialidade do art. 6°, n° 3, al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que essa norma exige que o acusado seja informado da natureza e da causa da acusação contra ele formulada, o que significa que só pode haver extradição por factos de que o extraditando tenha conhecimento. Duma forma ou doutra, o princípio da especialidade só constitui uma salvaguarda enquanto o extraditado se encontrar sob a tutela do Estado requerente. Conforme referimos, o princípio da especialidade sofre duas excepções: - quando houver consentimento do Estado requerido na ampliação da extradição, de forma a que o extraditado responda por outros processos; - quando, terminado o procedimento criminal ou o cumprimento da pena e restituída à liberdade, a pessoa extraditada permaneça no território do Estado requerente para além do prazo de 45 dias, que é concedido para que abandone livremente esse território, ou se a ele regressar, depois de o ter deixado. Assim como um Estado pode requerer a extradição dum cidadão com fundamento em vários procedimentos criminais de que este é suspeito, arguido ou condenado, assim também, se, depois de operada a entrega, se vier a verificar a existência de outros processos, pode ser solicitada, ao Estado requerido, a ampliação da extradição, a qual só é possível se esse Estado nela consentir. A segunda excepção permite que, decorrido o prazo de 45 dias, sem a pessoa abandonar o território do Estado requerente, ou se, tendo-o deixado, a ele voltar, o Estado que solicitou a extradição possa, sem qualquer outra formalidade, perseguir criminalmente aquela pessoa, por factos anteriores ao pedido de extradição. O princípio da especialidade só protege, assim, a pessoa enquanto ela estiver sob tutela do Estado requerente. Logo que ele abandone o território do Estado requerente, cessa para sempre essa garantia. Por isso, assim como, decorrido o referido prazo, pode ser criminalmente perseguida se permanecer ou voltar ao território do Estado requerente, sem que se exija qualquer consentimento do Estado requerido, assim também para a sujeitar a outro ou outros procedimentos criminais, pode ser alvo de um novo pedido de extradição, agora solicitado ao Estado em que a pessoa se encontrar, quer seja, quer não, o primitivo Estado requerido. É esta a situação que ocorre com o aqui requerente. Não pronunciado no processo da comarca de Sesimbra, que deu origem à sua entrega pelo Reino de Espanha e ordenada a sua libertação por este Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da providência de habeas corpus – proc. n.º 3786/04, o ora requerente ficou livre para permanecer em Portugal ou para se ausentar para um outro qualquer Estado. Logo que saiu do País, Portugal poderia, como fez, solicitar novo pedido de extradição, o qual foi endereçado ao Brasil e foi sujeito a todo o formalismo processual próprio desse processo e com as garantias que o direito interno do Estado requerido concede em caso de tal providência. Estando em causa neste momento a prisão decorrente deste novo pedido de extradição, a qual foi concedida, tendo o arguido sido entregue a Portugal ao abrigo desse pedido, nenhum valor tem a argumentação apresentada pelo requerente, com fundamento na entrega por Espanha por via do mandado de detenção europeu e da legislação que o permite. O requerente continua, assim, a confundir o que é claro e já lhe foi explicado no acórdão de 14 de Abril de 2005 – proc. 1364/05 – 3ª Secção, que apreciou o segundo habeas corpus que “o Estado requerido, o Brasil, não é membro da Comunidade Europeia, pelo que se nos afigura destituída de qualquer fundamento a invocação das regras contidas na Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto”. Aliás dentro da União Europeia, o princípio da especialidade pode não ter aplicação, uma vez que a Decisão-Quadro do Conselho, no n.º 1 do art. 27º, permite em termos de reciprocidade, que qualquer Estado membro, notificando para o efeito o Secretariado-Geral do Conselho, presuma o “consentimento para a instauração de procedimento penal, a condenação ou detenção para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa da liberdade, por uma infracção praticada antes da sua entrega, diferente daquela por que foi entregue”. Todavia, não tendo Portugal procedido a tal notificação, antes conferindo ao princípio da especialidade a mesma amplitude da Convenção Europeia da Extradição, conforme dispõe o art. 7º n.º 1 da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, não pode o Estado Português beneficiar da excepção àquele princípio, motivo que levou ao deferimento do pedido de habeas corpus – proc. 3767/04, concedendo a liberdade ao requerente. Idêntica disciplina, quanto ao princípio da especialidade, se encontra contida no art. 16º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), diploma que regula a presente extradição, em virtude de o Estado requerido ser o Brasil. No que respeita a esta matéria, pode, portanto, concluir-se que, o requerente, tendo-se ausentado para o Brasil após ter sido posto em liberdade, deixou de beneficiar do princípio da especialidade decorrente da primitiva entrega proveniente do Reino de Espanha, pelo que era lícito a Portugal solicitar ao Brasil uma outra extradição, com vista a responsabilizá-lo criminalmente no âmbito do proc. 292/88 das 1ª Vara Criminal de Lisboa. Foi esta extradição que foi agora concedida pela República do Brasil e, foi por via dela que se operou a remoção do aqui requerente para Portugal, com a entrega do detido ao representante do Governo Português no Brasil e aos inspectores do Gabinete Nacional da Interpol, que o acompanharam na viagem e entregaram no Estabelecimento Prisional de Lisboa. (docs. de fls. 188 e 194). Uma vez que, pelas razões invocadas, o requerente havia deixado de beneficiar do princípio da especialidade e visto que os crime por que foi condenado, embora por decisão ainda não transitada, admitem prisão preventiva, haverá que concluir que a prisão não foi motivada por facto pelo qual a lei não o permite 8. Conforme consta do mandado de detenção internacional que sustentou o pedido de extradição, as decisões que fundamentam a emissão do mandado foram o despacho proferido em 6 de Dezembro de 2004, que decretou a prisão preventiva do arguido AA e a condenação, por acórdão proferido a 22 de Setembro de 2000, na pena de 17 anos de prisão por crime chefia de associação criminosa, com reincidência e na pena de 11 anos de prisão pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado, com reincidência e, em cúmulo jurídico, na pena única de 25 anos de prisão. A informação do juiz do processo, documentada na certidão de diversas peças processuais oficiosamente mandada juntar, esclarece que, no despacho subsequente ao interrogatório de arguido detido, foi determinado “que o arguido, AA, aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva”, medida que foi considerada “única adequada e suficiente às exigências cautelares que o presente caso requer”. Essa medida foi interrompida, quando o arguido, aproveitando a realização de diligências de investigação incompatíveis com a sua permanência em estabelecimento prisional , veio a evadir-se no dia 16 de Outubro de 1999. Operada agora a entrega ao Estado Português, o requerente deu entrada no Estabelecimento Prisional de Lisboa em 18 de Outubro de 2006 (fls. 188), tendo sido transferido para o Estabelecimento Prisional do Linhó, dois dias depois, conforme o próprio requerente informa. Diz ainda o requerente que não foi presente a nenhum juiz, De facto, afirma-se na informação a que respeita o art. 223º n.º 1 do Código de Processo Penal, que “a detenção internacional do arguido para os fins de cumprimento da medida de coacção que lhe foi imposta não obriga a novo interrogatório judicial ou à audição presencial do arguido, sendo a sua audição facultativa nos termos do n° 3 do Art. 213° do CPPenal. A situação pessoal do arguido nestes autos estava e está perfeitamente definida neste âmbito, desde a realização do primeiro interrogatório judicial, não tendo aqui aplicação o disposto no Art. 254°/1, alínea a), do CPPenal, estando perfeitamente salvaguardado o imperativo constitucional do Art. 28°/1 da Constituição da República Portuguesa.” Questão idêntica foi objecto de apreciação na providência de habeas corpus decidida em 10 de Novembro de 2005 – proc. n.º 3719/05 com o mesmo relator –, a qual, expurgada das respectivas especificidades, passaremos a acompanhar. “Dispõe-se no art. 254º do Código de Processo Penal: 1 - A detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada: a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção; ou b) Para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder vinte e quatro horas, do detido perante a autoridade judiciária em acto processual. 2 - O arguido detido fora de flagrante delito para aplicação ou execução da medida de prisão preventiva é sempre apresentado ao juiz, sendo correspondentemente aplicável o disposto no artigo 141.º Segundo o art. 141º n.º 1 do Código de Processo Penal, "o arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de 48 horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam". Não constando o n.º 2 da redacção inicial do art. 254º do Código de Processo Penal, formaram-se, na jurisprudência, a propósito do mencionado art. 141º, duas correntes: uma que defendia que o interrogatório judicial só era obrigatório quando a detenção fosse realizada pelo Ministério Público ou por órgão de polícia criminal; outra que sustentava que a obrigatoriedade daquele interrogatório se impunha em todos os casos em que tivesse havido detenção, quer por iniciativa do Ministério Público ou de órgão de polícia criminal, quer em cumprimento de decisão judicial de aplicação de medida de prisão preventiva. Tal divergência deu motivo a que, por se tratar de direitos fundamentais, o Procurador-Geral da República, por despacho de 15 de Novembro de 1990, tenha determinado aos magistrados do Ministério Público que sustentassem a interpretação de que o primeiro interrogatório judicial do detido é sempre obrigatório, interpondo recurso sempre que o tribunal decidisse de modo diferente. Fundava-se para tanto aquela determinação no entendimento de que o artigo 141.º, n.º 1 do Código de Processo Penal tinha de ser interpretada em conformidade com os artigos 28.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 da Constituição e que, à luz desses preceitos, o interrogatório judicial se destina a permitir ao juiz o conhecimento das causas da detenção e a possibilitar que o juiz oponha ao detido estas causas e lhe faculte o uso eficaz dos direitos de defesa. Por isso se considerava no referido despacho que o artigo 141.º, n.º 1, do Código de Processo Penal não podia deixar de se articular com o artigo 254.º do mesmo diploma, segundo o qual "A detenção (...) é efectuada: a) Para, no prazo máximo de 48 horas, o detido ser submetido a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação de uma medida de coacção”. A alteração operada na redacção do art. 28º n.º 1 pela Revisão Constitucional de 1997, que, segundo a proposta da Comissão Eventual de Revisão Constitucional, teve a finalidade de corrigir tecnicamente o texto anterior, levou à substituição da expressão “a prisão sem culpa formada” por “a detenção”, determinando agora o texto constitucional que “A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa”. Na proposta legislativa do Governo para a revisão do Código de Processo Penal de 1998, consignou-se a necessidade de acrescentar um n.º 2 ao art. 254º, para, segundo a respectiva exposição de motivos, “impor expressamente, em rigoroso respeito pela Constituição, a apresentação do detido ao juiz, sempre que a detenção ocorrer fora de flagrante delito, em qualquer fase do processo”. Alterado o Código de Processo Penal, ficou esclarecido que, detido o arguido em qualquer fase do processo se torna obrigatório o respectivo interrogatório judicial, para, em conformidade com o preceito constitucional, se operar a “restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa” (art. 28º n.º 1). Ora, a norma do art. 254º n.º 2 do Código de Processo Penal não foi observada pelo juiz da 1ª Vara Criminal de Lisboa. Tendo tomado conhecimento da entrega do detido no estabelecimento prisional, por execução do pedido de extradição que se mostrava fundado no seu despacho de 6 de Dezembro de 2004, conforme consta dos mandado internacional de captura por si subscrito, o juiz do processo deveria de imediato ter mandado comparecer o arguido para o interrogar e lhe dar oportunidade de defesa. A falta de observância desta disposição inquina de ilegalidade a situação do requerente, por violar o seu direito à liberdade, que é um direito constitucionalmente reconhecido. No presente caso, a detenção foi ordenada pelo juiz titular do processo, o qual, como se referiu, tem competência para tal determinação e foi motivada por facto – condenação, ainda não transitada, por crimes de associação criminosa e de tráfico de estupefacientes – que admite a prisão preventiva. Por outro lado, os prazos a que a al. c) do art. 222º se refere são, no entender do Prof. Germano Marques da Silva (Processo Penal, II, pág. 326) “os prazos fixados por lei são os prazos máximos da prisão preventiva e os fixados por decisão judicial são os da duração da pena de prisão fixada em sentença condenatória”. Assim, o pedido formulado pelo requerente não é directamente enquadrável neste fundamento, por a situação em que se baseia dizer respeito a um excesso de detenção. Com efeito, detenção e prisão preventiva são conceitos diferentes. O Código de Processo Penal reserva o conceito de prisão preventiva para a privação de liberdade individual emergente de decisão judicial e aplicada como medida de coacção. A detenção não se encontra definida na lei, podendo caracterizar-se como uma medida precária de privação da liberdade, com características cautelares, cuja finalidade essencial é a colocação do sujeito à disposição da autoridade judicial. Não estando necessariamente dependente de mandado judicial, quando, todavia, for ordenada pelo juiz está sujeita a pressupostos materiais coincidentes com as finalidades que legalmente lhe são assinaladas: para a aplicação de medida de coacção ou para assegurar a presença imediata de detido perante o juiz em acto processual. As situações de excesso de prazo de detenção que se encontram previstas no art. 220º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal, no âmbito do habeas corpus, são da competência do juiz de instrução, mas são situações em que o detido, que se encontra à ordem duma autoridade, deve ser presente à autoridade judicial. A ordem de detenção emane dum juiz e o detido se encontre num estabelecimento prisional à ordem dum tribunal, a situação assume contornos diferentes da normal detenção, com reflexos na inaplicabilidade do habeas corpus na modalidade regulada nos arts. 220º e 221º do Código de Processo Penal. Nos termos do art. 31º n.º1 da Constituição, o habeas corpus colhe sempre fundamento em situações de ilegalidade, sejam de prisão, sejam de detenção, não prevendo o preceito qualquer excepção. Ainda que para tanto se torne necessário recorrer à interpretação extensiva, as normas do Código de Processo Penal, que regulam o instituto, têm de ser objecto duma interpretação, que, no respeito pela Constituição, permita que nelas sejam incluídas outras situações de privação da liberdade, como é o caso do detido por ordem do juiz que permaneça mais de 48 horas sem ser sujeito a interrogatório judicial, . Das duas modalidades de habeas corpus, é de afastar, desde logo, para este efeito, a da competência do juiz de instrução, apesar de ser a que prevê especificamente o excesso de detenção. Na verdade, se a ordem de detenção dimana dum juiz, operada que seja a captura, o detido fica à ordem dum processo judicial distribuído a um determinado tribunal, pelo que fazer intervir, neste caso, o juiz de instrução, constituiria um entorse do sistema. Dificuldade que não se verifica na modalidade dos arts. 222º e 223º por a competência para a apreciação da providência se radicar no Supremo Tribunal de Justiça. E se é certo que, segundo a lei processual, a providência de habeas corpus da competência do Supremo Tribunal de Justiça respeita a excessos de prisão, nenhuma razão válida se opõe a que a mesma disciplina seja aplicada a outras ocorrências de excesso de prazo de privação de liberdade, quando dimanadas de acto judicial. 9. Assente a competência do Supremo Tribunal de Justiça, resta decidir a medida apropriada. Uma vez que não se trata de prisão ilegal, mas duma detenção de que pode resultar a aplicação duma medida de coacção, designadamente de prisão preventiva, não é caso de ordenar a imediata libertação do requerente. Mais adequada é a medida prevista na al. c) do n.º 4 do art. 223º – mandar apresentar o detido no tribunal competente e no prazo de 24 horas, a fim de ser dado cumprimento ao disposto no art. 254º n.º 2 do Código de Processo Penal. Termos em que deliberam no Supremo Tribunal de Justiça em determinar ao juiz da 1ª Vara Criminal de Lisboa – 1ª secção, que proceda ao interrogatório do detido AA, nos termos do art. 254º n.º 2 do Código de Processo Penal, mandando-o comparecer em juízo no prazo de 24 horas. Sem custas. Comunique, de imediato, via fax, à 1ª Vara Criminal de Lisboa. Honorários legais à defensora oficiosa nomeada para este acto. Lisboa, 2 de Novembro de 2006 Arménio Sottomayor (relator) Carmona da Mota (tem declaração de voto, entendendo que no caso “o habeas corpus seria (…) pura e simplesmente de «indeferir por falta de fundamento bastante»”, pois a prisão preventiva foi ordenada pelo juiz de instrução competente e mantida pelo juiz do processo, foi motivada por factos pelos quais a lei permite e não se mantém para além do prazo fixado pela lei). Pereira Madeira Santos Carvalho

© 2024 Apura. Todos os direitos reservados.
Termos e Condições
Política de Privacidade