I - A causa de recusa facultativa prevista na al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei 65/2003, de 23- 08, tem como pressuposto da sua efectivação a circunstância de o MDE ter sido emitido para cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança, e que o Estado Português haja assumido o compromisso de a executar de acordo com a lei portuguesa, o que não sucede no caso concreto dado que o MDE foi emitido pela competente autoridade judiciária francesa para efeitos de procedimento criminal visando a pessoa do recorrente, por factos praticados em território francês entre 01-01-2014 e 02-06-2015. II - Tendo esta causa de recusa facultativa, expressão de uma reserva de soberania, a sua justificação na ligação subjectiva e relacional que, porventura existente entre a pessoa procurada e o Estado da execução, permite que este recuse a execução do mandado de detenção europeu emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, contanto que se comprometa a executá-la, a mesma não é de aplicar numa situação em que é curta e ténue a ligação da pessoa procurada, ao território português, como sucede no caso concreto, na medida em que apesar de o recorrente sustentar que reside e se encontra profissionalmente inserido em Portugal pelo menos desde 17-12-2014, está por demonstrar, de facto, se a partir daquela data o mesmo recorrente permaneceu sempre neste país e não fez qualquer deslocação a França. III - A existência no Estado Membro de execução de um pedido de asilo ou para concessão do estatuto de refugiado ou de protecção subsidiária não determina a suspensão do MDE, fundado, como no caso, em factos absolutamente diversos dos que subjazem ao pedido de protecção (n.º 1 do artigo 48.º da Lei 27/2008, de 30-06). IV - A inexistência de incidentes com a justiça portuguesa carece de relevo para a execução ou não do MDE, uma vez que a sua emissão foi determinada, para efeitos de procedimento contra o ora recorrente, por factos ilícitos praticados, não em território português mas, em território francês. V - É irrelevante para efeitos de obstaculizar ao cumprimento do MDE a circunstância do recorrente ter a alegada condição de suspeito, por ainda não ter sido ouvido como arguido, na medida em que, nada obsta a que o MDE seja emitido e surja na fase de investigação, pois uma das finalidades do mesmo é, justamente, para efeitos de procedimento criminal, onde, entre o mais, poderá ter-se em vista a realização de actos próprios de investigação criminal considerados necessários (como, por exemplo, a constituição como arguido do sujeito contra quem se indicia a prática de factos puníveis pela Lei do Estado da emissão – arts. 1.º, e 2.º, da Lei 65/2003, de 23-08 e/ou a sua confrontação in loco com provas, pessoais ou reais, porventura existentes), que hão-de, naturalmente, decorrer em conformidade com as regras e princípios comuns aos Estados Membros da UE. VI - É certo que as autoridades francesas podiam, no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal, ter solicitado às autoridades portuguesas a realização de diligências que entendessem adequadas e necessárias ao efeito. Porém, não tendo usado de tal possibilidade, não cabe, seguramente, às autoridades portuguesas por em causa a opção feita pelo Estado Membro da emissão do MDE e, como consequência disso, recusar dar-lhe execução, para mais quando não se prefigura a existência de uma qualquer causa de recusa obrigatória ou facultativa. VII - A circunstância invocada pelo recorrente de o MDE constituir, em França, uma verdadeira prisão preventiva é irrelevante para cumprimento do MDE, face às razões antes apontadas, que se prendem com a ausência de causas de recusa obrigatória ou facultativa para execução do MDE aqui em causa. VIII - Para além possuir natureza temporária a entrega do recorrente, este sempre poderá, querendo, suscitar a questão perante o Estado Membro da emissão do mesmo mandado que, regendo-se pelos princípios e valores que presidem ao Direito da UE (maxime, os que se prendem com os direitos fundamentais dos cidadãos), não deixará de a apreciar. IX - É pois, de autorizar a entrega da pessoa procurada, o aqui recorrente, desde que prestada, previamente, nos termos do art. 13.º, al. b), da Lei 65/2003, de 23-08, pelo Estado Membro da emissão do MDE, a garantia estabelecida no acórdão recorrido de que, logo após a sua audição, o mesmo será devolvido a Portugal.
I. Relatório 1. No Processo n.º 546/17.1YRLSB da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público promoveu, em 15.03.2017, a execução do Mandato de Detenção Europeu (MDE), emitido pela autoridade judiciária da República Francesa, para detenção e entrega do cidadão AA, nascido em ....1979, natural de ..., com último domicílio conhecido na Rua .... 2. O referido Mandado de Detenção Europeu, que teve por base o mandado de captura de 11.03.2016 emitido por uma Senhora Juiz de Instrução do Tribunal de Grande Instância de Paris, foi emitido, em 28.04.2016, por uma Procuradoria da República junto do Tribunal de Grande Instância de Paris. 3. De acordo com o que consta daquele Mandado de Detenção Europeu, o mesmo foi emitido, para efeitos de procedimento criminal contra o requerido AA, por factos ocorridos em território francês entre 1 de Janeiro de 2014 e 2 de Junho de 2015, e susceptíveis de integrarem os crimes de: - Auxílio de entrada e estadia de estrangeiros em associação criminosa; - Fornecimento de documentos administrativos falsos de forma continuada; - Falsificação de documentos administrativos; - Detenção de documentos administrativos falsos; - Participação numa associação de malfeitores com vista a cometer esses crimes. 4. Ilícitos − previstos e punidos pelos artigos L622-1, L622-3, L622-5, L622-6 e L622-7 do “code de l'entrée et du séjour des étrangers et du droit d'asile”, 132-72, 324-1, 324-2, 324-3, 324-4, 324-5, 324-6, 324-7, 324-8, 441-1, 441-2, 442-1, 442-5, 441-9, 441-10, 441-11, 450-1, 450-3 e 450-5, do “code penal” – punidos com pena privativa de liberdade com a duração máxima de 10 anos de prisão, no caso do crime de auxílio de entrada e estadia de estrangeiros em associação criminosa (délit d'aide à l'entrée ou au séjour en bande organisée), e com pelo menos 5 anos de prisão no que concerne aos crimes relativos aos documentos administrativos falsos e seu uso (délits de faux documents administratifs et d'usage de faux documents administratifs). 5. Na sequência da inserção do aludido Mandado de Detenção Europeu no Sistema de Informação Schengen (SIS II), com o registo n.º ..., o requerido AA foi detido em 14.03.2017, pelas 11 horas, nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em Lisboa. 6. O requerido, que em 17 de Dezembro de 2014 obteve em Portugal documento provisório de identificação fiscal e se encontra-se inscrito na Segurança Social, com o n.º de identificação ..., aderiu a um clube de fitness da área da sua residência, em 18 de Agosto de 2015, e explora um estabelecimento comercial de mercearia, em local que tomou de arrendamento, por contrato com início em 1 de Fevereiro de 2016. 7. Acresce que o requerido formulou, em 22 de Setembro de 2015, pedido de protecção internacional, que deu causa ao Processo de Protecção Internacional n.º 756/15, que obteve, em 4 de Dezembro de 2015, despacho de admissibilidade do Director Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, notificado ao ora recorrente em 21 de Janeiro de 2016, tendo, na sequência disso, sido emitida a favor do mesmo uma autorização de residência provisória, pelo período de seis meses, renovável até decisão final. 8. O mencionado pedido de protecção tem por fundamento a alegada circunstância de, por via dos negócios que possuía em zona do território do Sri Lanka controlada pelo LTTE – Liberation tigers of Tamil Eelam – o recorrente era forçado a proceder periodicamente à entrega de dinheiro a tal grupo, a jeito de “imposto”, o que deu causa a que viesse, por três vezes, a ser preso e torturado pela polícia do seu país, por forma a fazê-lo confessar que tinha uma ligação ao LTTE. 9. Sucede que, em 25.11.2016, a Directora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras propôs que fosse recusado ao cidadão AA o requerido direito de asilo e concedida autorização de residência por protecção subsidiária, actualmente pendente de decisão da Ministra da Administração Interna. 10. Tendo, na sequência da sua detenção, ocorrida em 14.03.2017, o recorrente sido apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa, aí se procedeu, em 15.03.2017, à sua audição, ocasião em que, declarando não renunciar ao princípio da especialidade e opor-se à sua entrega às autoridades francesas, requereu a concessão de prazo para apresentar, por escrito, a sua oposição, o que lhe foi concedido. Na mesma oportunidade, foi determinado que o ora recorrente aguardasse sob detenção os ulteriores termos do Mandado de Detenção Europeu. 11. Na oposição deduzida à execução do Mandado de Detenção Europeu, o requerido – que, antes, havia apresentado diversos documentos tendentes a comprovarem a sua permanência em Portugal – invocou, em síntese, que: i) os factos em causa são punidos pela lei penal portuguesa com o máximo de 5 anos de prisão ou pena de multa; ii) o detido encontra-se inserido profissionalmente em Portugal, desde pelo menos 17 de Dezembro de 2014, sendo proprietário de um estabelecimento comercial, de que retira o seu sustento, paga os seus impostos e nunca praticou quaisquer crimes ou contra-ordenações em território nacional; iii) o detido requereu direito de asilo em Portugal, motivo por que qualquer medida “de deportação, ainda que provisória”, poderá questionar a sua segurança pessoal; iv) não se revela necessária a sua “deportação”, posto que se apresentará às autoridades francesas para responder em qualquer processo criminal que lhe seja instaurado; v) pugna pela sua libertação, sem prejuízo de eventualmente lhe ser aplicada medida cautelar de cassação do seu passaporte até que seja dado cumprimento à sua apresentação em juízo nos tribunais franceses. 12. Seguindo o processo os seus regulares termos, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 07.04.2017, decidiu em suma: - Julgar improcedente a oposição apresentada e deferir a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido, pela autoridade judiciária francesa, contra o cidadão nacional do Sri Lanka, AA, para efeitos de procedimento penal contra o mesmo, determinando a sua entrega ao Estado membro de emissão, sob condição de este (o Estado membro de emissão) prestar previamente a garantia[1] de que o referido AA, após ser ouvido, será devolvido a Portugal, Estado membro de execução, para aqui cumprir a pena ou a medida de segurança privativas de liberdade em que porventura venha a ser condenado, se essa for a sua (dele, requerido) vontade, e no pressuposto de que a protecção internacional lhe seja concedida e se mantenha; - Manter, no entretanto, o estatuto processual determinado no despacho subsequente à audição do requerido. 13. É contra o assim decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, naquele seu acórdão de 07.04.2017, que o requerido AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal, que concluiu nos seguintes moldes: “I – O recorrente não tem quaisquer incidentes com a justiça portuguesa, estando plenamente inserido na sociedade portuguesa. II – A prática dos factos ilícitos que lhe são imputados pela República Francesa, reportam-se ao período compreendido entre 1 de Janeiro de 2014 e 2 de Junho de 2015 sendo, certo que o recorrente fez prova nos autos de que, pelo menos, a partir de 17 de Dezembro de 2014 já se encontrava em actividade em Portugal. III – Face ao Código Processual Penal Português, o detido, ora recorrente, é um mero suspeito que ainda não foi constituído arguido, cujo estatuto, na Lei Portuguesa, lhe assegura direitos e deveres, e entre aqueles, o direito ao silêncio. IV – A exemplo de casos análogos, as autoridades judiciais francesas não estão impedidas de inquirir em Portugal o suspeito e confrontá-lo com as provas que eventualmente existam na posse da investigação francesa. V – Sendo certo que a detenção de um cidadão e a sua extradição para o país estrangeiro que instaurou o processo-crime que tem que ver com falsificação de documentos e auxílio de entrada e estadia de estrangeiros clandestinos, por si só, constitui, face ao ordenamento jurídico português, verdadeira prisão preventiva, a qual obedece ao preenchimento de requisitos que pressupõem indiciação grave da prática de crimes, não podendo ser violada a presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. VI – Salvo o devido respeito, o recorrente, sem passado criminal, está a ser tratado pela lei francesa como um foragido internacional perigoso, integrante de uma organização internacional criminosa, que ajuda a legalização de clandestinos de países terceiros. Ora, longe disso, o recorrente teve que pedir o direito de asilo por ter sido duplamente perseguido: torturado e preso pela polícia do seu país (Sri Lanka), por alegadas ligações ao LTTE – Liberation Tigers of Tamil Eelam, por um lado, e vítima de extorsão por esta organização que o obrigava ao pagamento do “imposto revolucionário”, por outro. Pelo que vem pugnar, junto desse Colendo Tribunal, pelo indeferimento do Mandado de Detenção Europeu requerido pela República Francesa”. 14. Respondeu o Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa que conclui no sentido de que o recurso deverá ser julgado improcedente visto não assistir qualquer razão ao recorrente. E isto, já porque, no caso, não se prefigurando a existência de qualquer causa de recusa obrigatória ou facultativa, não há incompatibilidade alguma entre a emissão de mandado de detenção europeu contra o recorrente e a sua constituição como arguido em França. Já porque quanto ao alegado facto de o mandado de detenção europeu constituir verdadeira prisão preventiva em França, incumbe ao requerente suscitar a questão perante a Justiça Francesa que, certamente, não lhe limitará o seu direito de defesa. Já porque no que concerne à circunstância de o recorrente ter pedido asilo a Portugal por se sentir duplamente perseguido, e bem assim à sua pretensão de aguardar-se que o Ministério da Administração Interna se pronuncie sobre a admissão do dito pedido de protecção e, só depois disso, decidir-se acerca do cumprimento, ou não, do mandado de detenção europeu, tal apenas se justificaria se os factos pelos quais o recorrente pediu asilo fossem os mesmos que fundamentam o mandado de detenção europeu, o que não sucede no caso. E isto porquanto os factos que justificam o pedido de asilo prendem-se com a invocada perseguição que é movida ao recorrente pela polícia do Sri Lanka, que por duas vezes o prendeu e torturou para que admitisse a sua colaboração com o LTTE, a quem foi forçado a pagar o chamado imposto revolucionário. Já porque magnânima e benevolente foi a decisão do tribunal recorrido ao condicionar a entrega do recorrente ao Estado membro da emissão do mandado de detenção europeu à prestação da garantia de, em caso de ser aplicada ao recorrente pena ou medida de segurança privativas de liberdade, o mesmo ser entregue a Portugal a fim de, neste país, a cumprir, se essa for a sua vontade, e no pressuposto de que se mantenha a protecção internacional requerida. E isto na medida em que, não impondo a norma do artigo 13.º, número 1, alínea b), da Lei n.º 23/2005, de 04.07 a prestação de tal garantia nem tão pouco havendo o recorrente manifestado vontade no sentido de que isso sucedesse, nos termos do artigo 85.º, do citado diploma a autorização de residência é cancelada quando existam razões sérias para crer que o requerido cometeu actos criminosos no território da União Europeia, o que já acontece presentemente e em França. 15. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. Assim… *** II. II.1 – Objecto do recurso As questões colocadas pelo recorrente nas conclusões, que não reflectem o constante da motivação apresentada, e bem assim nesta, são as seguintes: A. A entrega, ainda que provisória, do recorrente, que está sob a protecção de asilo do Estado Português, constitui um acto de soberania e, como tal, impõe-se-lhe recusar a mesma entrega e aguardar a decisão da Ministra da Administração Interna relativamente ao pedido de asilo e, só depois disso, decidir sobre o mandado de detenção europeu; B. Não tendo o recorrente tido quaisquer incidentes com a justiça portuguesa e estando plenamente integrado na sociedade portuguesa, a prática dos actos ilícitos que lhe são imputados pela República Francesa reportam-se ao período compreendido entre 01.01.2014 e 02.06.2015, quando é certo que o mesmo já se encontrava neste país, pelo menos desde 17.12.2014; C. Face ao Código de Processo Penal Português, o recorrente é um mero suspeito que, não tendo sido sequer constituído arguido, goza de direitos, entre os quais o direito ao silêncio, de onde que, a exemplo do sucedido em casos análogos, as autoridades francesas não estão impedidas de o inquirir em Portugal e confrontá-lo com as provas que porventura possuam; D. A detenção do recorrente e a sua “extradição” constituem verdadeira prisão preventiva face à lei francesa. ** II.2 – Apreciação 2.1 Como bem se sabe, foi em cumprimento da Decisão-Quadro (DQ) n.º 202/584/JAI do Conselho, de 13.06.2003[2] que a Lei n.º 65/2003, de 23.08[3] veio aprovar o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu (MDE), instrumento especial de cooperação judiciária, restrito ao espaço da União Europeia. Mandado de Detenção Europeu (MDE) que, como também se sabe, tratando-se de uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega de uma pessoa procurada, para efeitos de procedimento criminal ou de cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade (artigo 1.º, número 1, da Lei n.º 65/2003, de 23.08), é executada com base no elevado grau de confiança existente entre os Estados Membros, e no princípio do reconhecimento mútuo (artigo 1.º, número 2 do mesmo diploma), que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária. Porém, essa ideia central que, presidindo ao MDE tem a ver com os princípios da confiança e do reconhecimento mútuo entre os Estados Membros da União Europeia, não implica para estes uma obrigação absoluta de execução do Mandado de Detenção Europeu emitido. Daí a previsão de causas de recusa (obrigatórias e facultativas) do MDE na citada Decisão-Quadro (DQ) n.º 202/584/JAI (artigos 3.º e 4.º), alterada pela já mencionada Decisão-Quadro (DQ) n.º 2009/299/JAI do Conselho de 13.06[4], que lhe aditou o artigo 4.º-A, que tem por epígrafe “Decisões proferidas na sequência de um julgamento no qual o arguido não tenha estado presente”. Causas de recusa obrigatória ou facultativa de execução do MDE que, previstas na nossa Lei n.º 65/2003, de 23.08, respectivamente nos seus artigos 11.º, e 12.º, prendendo-se as primeiras (as de recusa obrigatória) com princípios fundamentais e indeclináveis ligados à amnistia [alínea a)], ao princípio ne bis in idem [alínea b)], à inimputabilidade em razão da idade [alínea c)], têm as segundas (as de recusa facultativa) a ver com razões que, conquanto ligadas à soberania nacional do Estado de execução do mandado, não podem contudo ser encaradas, e muito menos exercitadas, como um acto gratuito ou arbitrário do tribunal. ** II.2 2.1 No caso sub juditio, o mandado de detenção europeu − que observa os requisitos formais e substanciais previstos no artigo 3.º da Lei n.º 65/2003, de 23.08, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 35/2015, de 04.05, foi emitido pela autoridade judiciária competente da República Francesa e no âmbito da previsão do artigo 1.º, número 1, daquele diploma − tem por finalidade o procedimento criminal contra o recorrente, que é natural do Sri Lanka, por factos que, ocorridos no território daquele Estado-Membro da União Europeia entre 1 de Janeiro de 2014 e 2 de Junho de 2015, são susceptíveis de configurar os referenciados crimes de auxílio de entrada e estadia de estrangeiros em associação criminosa, de fornecimento de documentos administrativos falsos de forma continuada, de falsificação de documentos administrativos, de detenção de documentos administrativos falsos, e de participação numa associação de malfeitores com vista a cometer esses crimes. Ilícitos que, como já aqui se disse, puníveis com pena privativa de liberdade com a duração máxima de 10 anos de prisão, no que concerne ao crime de auxílio de entrada e estadia de estrangeiros em associação criminosa, e com pelo menos a pena de 5 anos de prisão, no que diz respeito aos crimes de falsificação e uso de documentos administrativos. Sendo certo que, na situação em apreço, não se verifica manifestamente, nem o recorrente tão pouco invoca, uma qualquer das causas de recusa obrigatória previstas no artigo 11.º, da mesma Lei n.º 65/2003, de 23.08. E, não menos verdade resulta que − ao invés do aduzido, em sede de motivação do recurso (mas, já não de conclusões), pelo recorrente (que, aquando da oposição manifestada à sua entrega à autoridade do Estado Membro da emissão do MDE, não invocou tal razão) − também não preenche causa alguma de recusa facultativa, designadamente a que, apesar não identificada pelo recorrente, só poderia ser a da alínea g) da norma do número 1 do artigo 12.º da citada Lei n.º 65/2003, de 23.08, uma vez que nenhuma das demais previstas nas alíneas a), a f), e h), se afeiçoam ao caso vertente. Causa de recusa facultativa que, prevendo a possibilidade de as autoridades nacionais recusarem a execução do mandado de detenção europeu quando “A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver a nacionalidade portuguesa, ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa”, no caso em apreciação prender-se-ia com o alegado facto de, tendo o recorrente, que pediu asilo a Portugal, se encontrar a residir neste país desde 17.12.2014. E não se preenche tal causa de recusa facultativa, desde logo porque, como decorre literalmente da mencionada norma da alínea g) do número 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23.08, pressuposto da sua efectivação constitui a circunstância de o MDE ter sido emitido para cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança, e que o Estado Português haja assumido o compromisso de a executar de acordo com a lei portuguesa. Ora, como visto, no caso vertente o MDE foi emitido pela competente autoridade judiciária francesa para efeitos de procedimento criminal visando a pessoa do recorrente, por factos praticados em território francês entre 1 de Janeiro de 2014 e 2 de Junho de 2015. E depois porque, tendo tal causa de recusa facultativa, expressão de uma reserva de soberania, a sua justificação na ligação subjectiva e relacional que, porventura existente entre a pessoa procurada e o Estado da execução, permite que este recuse a execução do mandado de detenção europeu emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, contanto que se comprometa a executá-la, é por demais patente que assaz curta e ténue é a ligação da pessoa procurada, o aqui recorrente, ao território português. Para além de que, apesar de o recorrente sustentar que reside e se encontra profissionalmente inserido em Portugal pelo menos desde 17.12.2014, como bem se repara no acórdão sob impugnação, está por demonstrar, de facto, se a partir daquela data o mesmo recorrente permaneceu sempre neste país e não fez qualquer deslocação a França. Isto, por um lado. Por outra via, e no que tange ao facto de o recorrente ter requerido ao Estado Português a concessão de asilo e de estar a aguardar a prolação de decisão final a respeito, importa precisar que, como mais para trás se anotou, por despacho de 25.11.2016, a Directora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras propôs que fosse recusado ao cidadão AA o requerido direito de asilo e concedida autorização de residência por protecção subsidiária. Proposta que aguarda decisão da Ministra da Administração Interna. Feita que fica esta precisão e atentando agora nos efeitos decorrentes do asilo ou da protecção subsidiária concedidos ou pendentes de decisão final, é bem verdade que, tendo a aludida Decisão-Quadro (DQ) n.º 2002/584/JAI) do Conselho, de 13.06.2002 substituído a extradição entre os Estados Membros da União Europeia pelo sistema de entrega de pessoas procuradas entre autoridades judiciais dos mesmos Estados Membros, dentre os motivos de não execução do MDE, previstos nos artigos 3.º, e 4.º da dita Decisão-Quadro do Conselho, de 13.06.2002, não se contando a existência no Estado Membro de execução de um pedido de asilo ou para concessão do estatuto de refugiado ou de protecção subsidiária, também não se prevê qualquer forma de suspensão da decisão sobre a execução do MDE com o mencionado fundamento. De outro passo, não deixa de resultar igualmente verdadeiro que, ao contrário do que sucede nas legislações de outros Estados Membros, a nossa Lei n.º 27/2008, de 30.06[5] (que, estabelecendo as condições e os procedimentos para a concessão de asilo ou de protecção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de protecção subsidiária, é posterior à Lei n.º 65/2003, de 23.08, que aprovou o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu), no artigo 48.º, que tem por epígrafe “efeitos do asilo e da protecção subsidiária sobre a extradição”, nada diz quanto à suspensão de execução do Mandado de Detenção Europeu enquanto estiver pendente de apreciação o pedido de protecção e, como assim, a entrega da pessoa procurada ao Estado Membro da União Europeia emissor do MDE. Ao invés, pois, do que ocorre com a decisão final sobre o processo de extradição em que, como decorre do disposto no artigo 48.º da Lei n.º 27/2008, de 30.06, se prevê que a mesma ficará suspensa enquanto o pedido de protecção internacional se encontrar em apreciação, quer na fase administrativa, quer na fase jurisdicional. De que resulta que, se a pendência de apreciação do pedido de protecção não determina, como se viu, a suspensão do Mandado de Detenção Europeu, fundado, como no caso, em factos absolutamente diversos dos que subjazem ao pedido de protecção (número 1 do citado artigo 48.º da Lei n.º 27/2008, de 30.06), razão alguma existe para que não seja executado o Mandado de Detenção Europeu emitido pela autoridade judiciária francesa contra o ora recorrente, cujos direitos não deixarão, certamente, de ficar acautelados, tendo em vista que, tal qual os demais Estados Membros União Europeia, o Estado requerente garante os valores e princípios do Estado de direito democrático, que constituem pressuposto fundamental de pertença e defesa comum. * 2.2 E, no que se reporta à alegada inexistência de incidentes com a justiça portuguesa, como bem repara o Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa, para a execução ou não do mandado de detenção em causa, tal problemática carece de relevo, uma vez que a sua emissão foi determinada, como se vem dizendo, para efeitos de procedimento contra o ora recorrente, por factos ilícitos praticados, não em território português mas, em território francês, entre 01.01.2014 e 02.06.2015. Certo sendo que, como aqui também já se disse, se por demonstrar está por enquanto se, a partir de 17.12.2014, o recorrente esteve sempre em Portugal, há que ter presente que, de acordo com a autoridade judiciária do Estado Membro da emissão do MDE, os factos ilícitos praticados em território francês terão tido início em data anterior àquela, mais exactamente em 01.01.2014. Questão, de resto, a esclarecer com e pelas autoridades francesas, no âmbito do processo que, pelos mesmos factos, visa o procedimento criminal contra o recorrente. E o mesmo se diz quanto à alegada condição de “suspeito” do recorrente, por ainda não ter sido constituído arguido. Na verdade, nada obstando a que o Mandado de Detenção Europeu seja emitido e surja na fase de investigação, tanto assim que uma das finalidades do mesmo é, justamente, para efeitos de procedimento criminal, onde, entre o mais, poderá ter-se em vista a realização de actos próprios de investigação criminal considerados necessários (como, por exemplo, a constituição como arguido do sujeito contra quem se indicia a prática de factos puníveis pela Lei do Estado da emissão - artigos 1.º, e 2.º, da Lei n.º 65/2003, de 23.08, e/ou a sua confrontação in loco com provas, pessoais ou reais, porventura existentes), que hão-de, naturalmente, decorrer em conformidade com as regras e princípios comuns aos Estados Membros da União Europeia[6]. É certo que as autoridades francesas podiam, no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal, ter solicitado às autoridades portuguesas a realização de diligências que entendessem adequadas e necessárias ao efeito. Não tendo, porém, usado de tal possibilidade, não cabe, seguramente, às autoridades portuguesas por em causa a opção feita pelo Estado Membro da emissão do MDE e, como consequência disso, recusar dar-lhe execução, para mais quando, como já se viu, não se prefigura a existência de uma qualquer causa de recusa obrigatória ou facultativa. * 2.3 Por último, no que concerne à invocada circunstância de o “Mandado de Detenção Europeu constituir, em França, uma verdadeira prisão preventiva”, relevando ainda as razões que, antes apontadas, se prendem com a ausência de causas de recusa obrigatória ou facultativa para execução do MDE aqui em causa, cabe também referir que, para além possuir natureza temporária a entrega do recorrente, este sempre poderá, querendo, suscitar a questão perante o Estado Membro da emissão do mesmo mandado que, regendo-se pelos princípios e valores que presidem ao Direito da União Europeia (maxime, os que se prendem com os direitos fundamentais dos cidadãos), não deixará de a apreciar. Acresce que, em conformidade com o decidido no acórdão recorrido, previamente à entrega do recorrente deverá o Estado Membro da emissão do MDE prestar, nos termos do artigo 13.º, alínea b), da Lei n.º 65/2003, de 23.08, a garantia de que o mesmo será devolvido a Portugal, logo após ser ouvido. Razões por que se julga ser, pois, de autorizar a entrega da pessoa procurada, o aqui recorrente AA, desde que prestada, previamente, pelo Estado Membro da emissão do MDE, a garantia estabelecida no acórdão recorrido de que, logo após a sua audição, o mesmo será devolvido a Portugal. *** III. Decisão Termos em que, pelos fundamentos expostos, se acorda, na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso interposto pelo cidadão AA e, por via disso, confirmar integralmente a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, com 5UC de taxa de justiça. Lisboa, 4 de Maio de 2017 Os Juízes Conselheiros Isabel São Marcos (Relatora) Helena Moniz ------------------ [1] Que, em conformidade com o decidido no mesmo acórdão de 07.04.2017, foi, independentemente do seu trânsito, desde logo solicitada, com nota de urgência, à autoridade judiciária da emissão do MDE. [2]Alterada pela Lei n.º 35/2015, de 04.05, em cumprimento da Decisão- Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26.02. [3] Publicada no Diário da República, I.ª Série A, n. 194, de 23.08.2003. [4] Que alterou, para além da Decisão-Quadro 202/584/JAI, as Decisões-Quadro 2005/214/JAI, 2006/783/JAI, 2008/909/JAI, e 2008/947/JAI. [5] Alterada pela Lei n.º 26/2014, de 05.05. [6] De conferir, no mesmo sentido e entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.05.2016, Processo n.º 15/16.7TRPRT.P1.S1, e de 09.02.2011, Processo n.º 1215/10.9YRLSB.S1, ambos da 5.ª Secção.