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Acórdão STJ de 2021-02-25

1029/19.0T9EVR.S1

TribunalSupremo Tribunal de Justiça
Processo1029/19.0T9EVR.S1
Nº Convencional5.ª SECÇÃO
RelatorEduardo Loureiro
DescritoresRecurso PER Saltum, Abuso Sexual de Criança, Concurso de Infrações, Pena Única, Cúmulo Jurídico, Medida da Pena
Data do Acordão2021-02-25
VotaçãoUnanimidade
Privacidade1
Meio ProcessualRECURSO PENAL
DecisãoJulgado o Recurso Procedente.
Indicações EventuaisTRANSITADO EM JULGADO

Autos de Recurso Penal Proc. n.º 1029/19.0T9EVR.S1 5ª Secção ACÓRDÃO Acordam em conferência os juízes na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. RELATÓRIO. 1. Julgado no PCC n.º 1029/19……., foi o arguido AA – doravante Recorrente – condenado por acórdão do Tribunal Colectivo de 28.9.2020 do Juiz … do Juízo Central Cível e Criminal ….. – doravante, Acórdão Recorrido –, para o que ora interessa, nos seguintes termos: ─ Em duas penas de 4 anos e 6 meses de prisão, uma por cada um de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art.os 177º n.º 1 e 177º n.º 1 al.ª b) do Código Penal (CP), na redacção da Lei n.º 103/2015, de 24.8; ─ Em duas penas de 6 anos de prisão, uma por cada um de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art.os 177º n.os 1 e 2 e 177º n.º 1 al.ª b) do Código Penal (CP), na redacção da mesma lei; ─ Na pena única de 10 anos de prisão, em cumulação das anteriores, nos termos do art.º 77º do CP, prisão. 2. Inconformado, move-lhe o Recorrente o presente recurso, que dirige a este Supremo Tribunal de Justiça e que finaliza com as seguintes conclusões e pedido: ─ «1. O presente recurso tem por objecto a medida da pena aplicada (matéria de direito). 2. O Tribunal a quo violou o disposto no art.s 71, n.º 2 al. d) do Código Penal, pois apenas foi considerado o facto do arguido vivenciar quadro económico fragilizado. 3. O arguido não aceita os factos que lhe são imputados. 4. Assim, e pelo exposto deve ser determinada a absolvição do arguido, ou a diminuição da pena de prisão aplicada, tendo em atenção que a qualificação de uma pena de prisão excessivamente longapode comprometer definitivamente a ressocialização e a vida futura do arguido. 5. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo determinada a absolvição ou se assim não for entendido, a redução da pena de prisão aplicada ao arguido, assim fazendo V. Exas. Justiça !!!». 3. O recurso foi admitido por douto despacho de 5.11.2020, para subir imediatamente, nos autos e com efeito suspensivo. 4. O Senhor Procurador da República ….. respondeu doutamente ao recurso. Remata a peça com as seguintes conclusões: ─ «1. O arguido começo por delimitar o âmbito do recurso interposto à medida da pena aplicada (matéria de direito) mas, sede de conclusões menciona que não aceita os factos que lhe são imputados, pelo que deve ser absolvido. 2. Considerando, porém, que o arguido não identifica um único facto que, na sua perspectiva, tenha sido incorrectamente julgado provado, nem avança qualquer argumento a ponderar no sentido de que algum dos factos inscritos na matéria assente devesse ser julgado com não provado, afigura-se que o arguido pretendeu efectivamente delimitar, nos termos do disposto no artº 403º, do C.P.P., o âmbito do recurso à medida das penas parcelares e única que lhe foram impostas. 3. De acordo com a exposiçãofáctica e o raciocínio jurídico plasmado na decisão do Tribunal a quo, o Ministério Público entende que tal juízo não é merecedor de censura, pelo que a medida concreta das penas parcelares aplicadasparaalém deproporcionadas,mostram-se perfeitamente suportadaspela medidada culpadoarguido AA. 4. De facto, a culpa de AA situa-se a um nível muito elevado, face ao descrito modo de actuação, à idade da vítima e ao propósito procurado pelo arguido. 5. Com efeito, AA agiu com dolo directo, sendo a sua culpa classificada de modo intenso já que, deliberadamente, quis praticar os factos, bem sabendo que tinha à sua guarda e cuidados uma criança menor de idade (com 10 e 11 anos de idade, à data dos factos), frágil, inocente, indefesa e que com a sua conduta molestava o saudável desenvolvimento físico e psíquico de BB, coartando a sua auto-determinação sexual. Não se pode olvidar que AA cometeu o mesmo crime por quatro vezes, sendo certo que duas delas consistiram em coito anal e oral (factos provados 13. e 17.). Neste sentido, a repetição do comportamento de AA espelha, inequivocamente, que o mesmo não interiorizou, em momento algum, o desvalor da sua conduta e a gravidade dos factos por si praticados, uma vez que os realizou por mais do que uma vez. 6. A prevenção geral positiva ou de integração surge como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese todas as suas violações que tenham tido lugar. 7. Revertendo ao caso concreto, só se pode concluir que são fortíssimas e absolutamente imperativas as exigências de prevenção geral no que a crimes desta natureza diz respeito, cabendo ao Estado um especial dever de protecção jurídica a dar às crianças. 8. Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados com as exigências de prevenção especial, quer no sentido de evitar a reincidência, quer na socialização do agente com vista a respeitar osvalores comunitários fundamentais, tutelados pelos bens jurídico-criminais. 9. Neste quadro, importa salientar que AA conta já com três condenações anteriores que, apesar de natureza distinta da do ilícito típico que se verifica in casu, são reveladoras de uma personalidade avessa às regras básicas de convivência social e respeito pelo ordenamento jurídico. 10. Note-se, igualmente, que o arguido AA não demonstra preocupação com o facto de existirem menores envolvidos num contexto jurídico- penal da prática de crime de natureza sexual. 11. Ademais, segundo parecer da DGRSP, AA carece de intervenção técnica que contemple o acompanhamento no âmbito da sexualidade, de modo a trabalhar condutas desviantes. 12. As penas parcelares aplicadas situam-se abaixo do limite médio da moldura penal aplicável, pelo que não ultrapassam a culpa apresentada pelo arguido. 13. Por sua vez, e tendo em consideração os limites impostos pelo artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, a pena única aplicada situa-se abaixo do limite médio da moldura penal abstractamente aplicável ao caso sub iudice (21 anos), não ultrapassando a culpa revelada pelo arguido. 14. Em suma, oacórdão recorrido não ofende qualquer norma legalou constitucional, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.». 5. No momento previsto no art.º 416º n.º 1 do CPP 1, o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça emitiu douto parecer pelo não provimento do recurso. 6. Notificado do parecer – art.º 417º n.º 2 –, o recorrente nada disse. 7. Colhidos os vistos, de acordo com o exame preliminar, foram os autos presentes a conferência. Cumpre, assim, apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO. A. Âmbito-objecto do recurso. 8. O objecto e o âmbito dos recursos são os fixados pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 412º n.º 1, in fine –, sem prejuízo do conhecimento das questões oficiosas2. Tribunal de revista, de sua natureza, o Supremo Tribunal de Justiça conhece apenas da matéria de direito – art.º 434 º. Não obstante, deparando-se com vícios da decisão de facto enquadráveis no art.º 410º n.º 2 que inviabilizem a cabal e esgotante aplicação do direito, ou com nulidade não sanada – art.º 410º n.º 3 e 379º n.º 2 – pode, por sua iniciativa, sindicá-los. 9. Reexaminadas as conclusões da motivação, verifica-se que a única questão que o Recorrente realmente põe à consideração deste Supremo Tribunal é a da medida concreta da pena conjunta, considerando excessiva a de 10 anos decretada e querendo vê-la reduzida. E, assim, apesar de dizer na conclusão.3 que não aceita os «factos que lhe são imputados» e de nas conclusões 4. e 5., sustentar que deve ser absolvido. E, também, depois de no n.º 18) da motivação ter afirmado que não aceitava «em nenhum momento» que tivesse actuado «movido por um especial prazer de satisfazer os seus instintos libidinosos» e – n.º 19) – que não compreendia a condenação e que «não repugnaria ao Direito é a Justiça […] a sua absolvição». Mas sem que, como (bem) oportunamente observa o Senhor Procurador da República de ……, tenha avançado «qualquer argumento a ponderar no sentido de que algum dos factos inscritos na matéria assente devesse ser julgado como não provado». E sem que, do mesmo modo, tenha questionado a qualificação jurídico-penal dos factos ou qualquer outro aspecto relativo à culpabilidade. O que – tudo – concorre no sentido de ser somente a pena única o que o Recorrente quer ver corrigida por via do recurso, a tanto limitando o seu objecto com a permissão do art.º 403º n.os 1 e 2, mormente das al.as d) e f). De resto, a haver dúvidas sobre o objecto da impugnação, nem sequer – se bem se vêem as coisas! – se centrariam entre as questões da culpabilidade e da determinação da sanção, mas sim, dentro desta, entre as penas parcelares e a pena conjunta. Bem podendo perguntar-se se, quando se queixa da excessividade da pena de prisão, o Recorrente não se estará a referir tanto às primeiras como à última. Entende-se, todavia, que não, que apenas visa a pena única. É que, em primeiro lugar, percorrida a peça de recurso – motivação e conclusões –, em ponto algum se vê o mais breve questionamento da medida das penas parcelares, aliás, apenas descritivamente referidas nos n.os 1 e 2 da motivação. E depois, porque, tirando tal referência, a mesma peça fala sempre, em pena, no singular – «o recurso tem por objecto a medida da pena aplicada» (conclusão 1.); «a diminuição da pena aplicada» (conclusão 4.); «a redução da pena aplicada» (conclusão 5.) – e nunca a penas. O que, nas palavras de uma técnica de direito como o é a Senhora Defensora do Recorrente, que não pode deixar de conhecer o sentidos delinguagemcorrentee jurídica dos conceitos, sópodesignificarque seestá a referirà penaconjunta e somente a essa, até porque é dela, e não das parcelares, que poderá caber o cumprimento que, na óptica do recurso, pode «comprometer definitivamente a ressocialização e a visa futura do arguido». B. Apreciação. 10. Assente, então, que o objecto se restringe à medida da pena única, veja-se do seu fundamento, começando-se por recensear no Acórdão Recorrido a matéria de facto e de direito relevante. a. Acórdão Recorrido. (a). Fundamentação de facto. 11. O Tribunal Colectivo …. assentou nos seguintes factos provados: ─ «1. O menor BB, nascido a ……. de 2008, atualmente com 11 anos de idade, é filho de CC e de DD. 2. Os pais do menor BB estão separados, encontrando-se o mesmo à guarda e cuidados da mãe. 3. Em data não concretamente apurada, mas antes da Primavera de 2019, DD começou a viver em comunhão de leito, mesa e habitação com o Arguido, na Rua ….., em ……. 4. Juntamente com o Arguido e com DD, a seu cargo e sob a sua assistência e proteção, vivia o filho menor desta, BB. 5. No dia 9 de julho de 2019, DD e o Arguido casaram. 6. Na Primavera de 2019, quando BB, tinha dez anos de idade, aproveitando-se do ascendente que tinha sobre o menor, que se encontrava à sua guarda e cuidados, bem como da confiança que lhe era votada pela mãe do mesmo, o Arguido começou a procurá-lo para com ele satisfazer os seus instintos libidinosos. 7. No quadro do descrito comportamento, em data não concretamente apurada, mas entre a Primavera e o Verão de 2019, à noite, na sala da residência, encontrando-se sozinho com o menor BB, o Arguido pediu ao mesmo que se sentasse no sofá a seu lado. 8. Depois de BB se sentar a seu lado, o Arguido começou a acariciar uma das pernas do menor BB, enquanto, simultaneamente, acariciava o seu pénis. 9. De seguida, o Arguido ordenou ao menor BB que agarrasse o seu pénis ereto e fizesse, com a mão, movimentos ascendentes e descendentes. 10. Decorrido algum tempo desses movimentos, o Arguido ejaculou. 11. Após, o Arguido deu o seu telemóvel ao menor BB e disse ao mesmo “não contes a ninguém”. 12. Igualmente em data não concretamente apurada, mas entre a Primavera e o Verão de 2019, de manhã, no interior da residência, onde se encontravam, o Arguido encostou à parte da frente do seu corpo à parte de trás do corpo do menor BB, que se encontrava de pé, e baixou o pijama que o mesmo tinha vestido. 13. Ato contínuo, o Arguido inseriu o seu pénis ereto no ânus de BB e fez com o corpo movimentos oscilantes característicos da relação sexual, enquanto acariciava o cabelo do menor. 14. Entretanto, o menor BB pediu ao Arguido para parar, o que o mesmo fez. 15. Após, o Arguido disse ao menor BB para ir para a escola. 16.Em consequência direta e necessária da descrita conduta de AA, o menor BB sofreu de dores físicas e de mal-estar psicológico. 17. Igualmente em data não concretamente apurada, mas no referido período temporal, na sala da residência, o Arguido introduziu o pénis ereto na boca do menor BB. 18. Também em data não concretamente apurada, mas durante o lapso temporal acima descrito, na sala da residência, o Arguido levantou-se, tirou os calções e exibiu o pénis ereto ao menor BB. 19 .Após, o Arguido tentou tocar com o pénis na cabeça do menor BB, que se desviou. 20. Ao atuar da forma descrita, em quatro ocasiões, com consciência de que o menor BB era seu enteado, de que residia com o mesmo, o qual, por vezes, ficava à sua guarda e cuidados, o Arguido agiu com o propósito concretizado de obter prazer sexual e de satisfazer os seus instintos libidinosos. 21. O que fez com consciência de que o menor BB tinha inicialmente dez anos de idade e, posteriormente, onze anos de idade, de que as zonas do corpo em que tocou constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade dele, de que punha em causa o seu são desenvolvimento da consciência sexual e de que ofendia o respetivo sentimentos de pudor, intimidade e liberdade sexual, causando-lhe grande sofrimento físico e psíquico, o que também pretendeu e fez, interrompendo o percurso normativo do desenvolvimento psicossexual, erotizando o menor antes de este dispor de competências cognitivas, sociais e emocionais para regularizar a sua sexualidade, bem como para evitar o contacto sexual com um adulto. 22. Ao atuar do modo descrito, o Arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas. Mais se provou quanto às condições pessoais, económicas e respetiva inserção social do Arguido: 23. O Arguido é filho único, o progenitor era funcionário numa ….. e a progenitora ……. 24. Teve uma infância pautada por alguma violência, devido ao consumo em excesso de bebidas alcoólicas por parte do progenitor que o tornava agressivo e, por vezes, violento. 25. O Arguido frequentou a escola em idade própria e abandonou os estudos, aos 16/17 anos, sem concluir o 9.º ano de escolaridade. 26. Iniciou atividade laboral aos 17 anos, como ….., numa loja de ….., onde se manteve até ingressar no serviço militar obrigatório. 27. Após, trabalhou numa …., vindo a alterar de entidade patronal, por melhores condições económicas. 28. O Arguido dedicou-se a esta profissão até aos 54 anos, idade com que se reformou por invalidez. 29. O Arguido reconhece ingerir bebidas alcoólicas, em situações pontuais, mas quando o que o faz de forma excessiva. 30. Nunca foi sujeito a tratamento médico a esta problemática. 31. O Arguido casou aos 22 anos de idade, tendo tido deste relacionamento um filho portador de deficiência que faleceu aos 21 anos de idade. 32. O casamento terminou após 17 anos. 33. O Arguido voltou a constituir família com 38 anos, com EE, que manteve durante cerca de 6 anos, tendodeste relacionamento dois filhos, atualmentecom17 e15 anosde idade, que se encontram aresidir com a progenitora e, com os quais mantém boa relação. 34. A filha do Arguido de 17 anos, após a separação, residiu consigo e com os seus pais, até ao falecimento destes, há cerca de 5 anos. 35. Em 2012, o Arguido inicia relacionamento amoroso com FF, com quem passou a coabitar juntamente com as filhas menores da companheira e a sua filha GG. 36. O Arguido encontra-se preso preventivamente, desde 17 de outubro de 2019, à ordem deste processo. 37. Nessa data, o Arguido desenvolvia tarefas no bar da Sociedade Recreativa de ….. 38. Residia sozinho em casa que herdou dos progenitores. 39. O Arguido apresenta uma visão da sexualidade fundamentada em valores tradicionais, remetendo esta questão para a esfera íntima do casal. 40. O Arguido manifesta necessidade de aceitação social e preocupação com a construção de uma imagem positiva. 41. No Estabelecimento Prisional, o Arguido mantém uma atitude cordata com colegas e superiores. 42. Em ambiente prisional, recebe visitas de um casal amigo, da filha e do filho. 43. O Arguido negou os factos em causa neste processo, apresentando uma postura de desculpabilização e não manifesta consciência crítica. 44. Da avaliação realizada pela DGRSP resulta que o Arguido se trata de um indivíduo comunicativo, centrado sobre as suas questões pessoais e muito defensivo. Parece ainda tratar-se de um indivíduo com um percurso afetivo, mas sem profundidade afetiva, não conseguindo relatar /reproduzir um único episódio significativo de qualquer uma das alegadas relações afetivas com os outros (adultos ou crianças, familiares ou não familiares), nem equaciona qualquer preocupação com o facto de existirem menores envolvidos num contexto jurídico-penal de alegada prática de crime de natureza sexual, dados os constrangimentos psicológicos envolvidos para todas as partes. 45. Segundo parecer da DGRSP que o Arguido, em caso de condenação, o Arguido deve ser sujeito a uma intervenção técnica que contemple acompanhamento no âmbito da sexualidade, de modo a trabalhar condutas que eventualmente venham a apurar-se como desviantes. 46. O Arguido é reputado pelos seus amigos como uma pessoa afável e sociável. 47. O Arguido conta com as seguintes condenações: • Foi condenado, no âmbito do processo comum n.º 19/08……, do Tribunal Judicial …, por sentença proferida no dia 21.04.2009, transitada em julgado em 21.05.2009, na pena de 100 dias de multa, à taxa diáriade € 5,00, pela prática, em 17.04.2008, de umcrime de ofensa à integridadefísica simples, declarada extinta por despacho de 18.03.2010; • Foi condenado, no âmbito do processo comum n.º 171/08……, do Tribunal Judicial …, por sentença proferida no dia 09.10.2009, transitada em julgado em 09.11.2009, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, pela prática, em 09/2008, de um crime de difamação, declarada extinta por despacho de 24.06.2010; • Foi condenado, no âmbito do processo sumário n.º 16/15….., do Juízo de Competência Genérica de …., por sentença proferida no dia 02.03.2015, transitada em julgado em 10.04.2015, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de três meses, pela prática, em 01.03.2015, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, declaradas extintas por despachos de 20.07.2015 e 02.10.2015.» (b). Fundamentação de direito – a pena única e sua medida. 12. Em abono da cumulação de penas e da medida da pena conjunta, consta o seguinte do Acórdão Recorrido: ─ «Estando os dois crimes pelos quais o Arguido vai condenado em relação de concurso efetivo, ao abrigo do n.º 1 do artigo 30.º, do Código Penal, cumpre efetuar o cúmulo jurídico das penas parcelares acima determinadas, nesta sede, preenchidos que se encontram os pressupostos do n.º 1 do artigo 77.º, do Código Penal. De harmonia com o disposto no artigo 77.º n.ºs 1 e 2, do Código Penal, a pena mínima a aplicar ao Arguido é a mais elevada das penas parcelares concretamente aplicadas, isto é, a pena de seis (6) anos de prisão, sendo que o limite máximo deverá corresponder à soma de todas as penas parcelares, no caso, a pena de vinte um (21) anos. Atendendo ao circunstancialismo atrás referido referente, em particular, às exigências de prevenção geral que o caso demanda, à ilicitude dos factos e à personalidade do Arguido nos termos supra expendidos, afigura-se ajustado fixar a pena única de 10 (dez) anos de prisão.». b. Crítica dos fundamentos do recurso. 13. Quer, então, o Recorrente que se reduza a medida da pena única de 10 anos de prisão, que cumulou as penas parcelares de 4 anos e 6 meses – duas – e de 6 anos – duas, também – que lhe foram impostas pela comissão dos quatro crime de abuso sexual de crianças agravado por que foi condenado. Sem quantificar a redução, considera a pena excessiva e, por isso, comprometedora da ressocialização que deve prosseguir. E desse modo, por não ter tido na devida conta circunstâncias a que o art.º 71º n.º 2 al.ª d) do CP manda expressamente atender, como a de sempre ter trabalhado, ter ajudado os filhos, ser reputado pelos amigos como pessoa afável e sociável, ter vontade de se inserir na sociedade e no mercado de trabalho e dispor de apoio familiar que na sua reintegração quer económica quer social. Veja-se! 14. Nos termos do art.º 77º n.º 1 do CP, «[q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente». Já o seu n.º 2 dispõe que «a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes». E o n.º 3 estipula que «se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores». A medida concreta da pena do concurso é determinada, tal como a das penas singulares, em função da culpa e da prevenção – art.os 40º e 71º do CP –, mas levando em linha de conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente (art.º 77.º, n.º 1, segundo segmento, do CP). O que significa que à visão atomística inerente à determinação das penas singulares, sucede, nesta, uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a sopesar a gravidade desse ilícito global enquanto enquadrada na personalidade unitária do agente, «tudo deve[ndo] passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique». E que na «avaliação da personalidade – unitária – do agente» releva «sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma "carreira") criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade», que só primeira, que não a segunda, tem «um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». E no que assume especial importância «a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)»3, e em que são de considerar «múltiplos factos factores entre os quais […] a amplitude temporal da atividade criminosa; a diversidade dos tipos legais praticados; a gravidade dos ilícitos cometidos; a intensidade da atuação criminosa; o número de vítimas; o grau de adesão ao crime como modo de vida; as motivações do agente; as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo»4. Servindo a pena, como já dito, as finalidades exclusivamente preventivas da protecção de bens jurídicos – prevenção geral positiva ou de integração – e da reintegração do agente na sociedade – prevenção especial positiva ou de socialização –, devem elas «coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possível» na pena única, «porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros»5. Finalidades – e também culpa – que, tendo intervindo, já, na determinação da medida das penas parcelares, operam aqui por referência ao «conjunto dos factos e à apreciação geral da personalidade», o que «não se confunde com a ponderação das circunstâncias efetuada relativamente a cada crime, que é necessariamente parcelar» e não envolve, por isso, violação do princípio da dupla valoração. E pena única que também ela deverespeitar osprincípios da proporcionalidade, necessidade, adequação e proibição de excesso para que o art.º 18º da CRP alerta. 15. Descendo ao mais concreto, começa-se por dizer que, mesmo não estando o ponto em discussão, as quatro condutas do Recorrente, todas ocorridas entre a Primavera e o Verão de 2019 e todas incidentes sobre a mesma vítima, menor com 10 a 11 anos de idade, filho da, então, companheira do arguido e com ele convivente, integram, de facto, a previsão dos crimes de abuso sexual de crianças agravado por que houve condenação, p. e p., dois deles, pelos art.os 171º n.º 1 e 177º n.º 1 al.ª b) do CP, na redacção da Lei n.º 103/2015, e, os outros dois, pelos art.os 177º n.os 1 e 2 e 177º n.º 1 al.ª b) do mesmo diploma e na mesma redacção. Redacção essa, aliás, a vigente à data da prática dos ilícitos, por isso que vocacionalmente aplicável por força dos art.os 1º e 2º n.º 1 do CP. E redacção efectivamente aplicada in casu, e bem, por as posteriores alterações da norma do art.º 177º operada pela Lei n.º 101/2019, de 6.9, e pela Lei n.º 40/2020, de 18.8, em nada terem bulido na tipicidade objectiva e subjectiva dos ilícitos e na sua punição, por isso que não havendo favor rei que possa justificar a sua intervenção retroactiva nos termos do art.º 2º n.º 4 do CP. E nada havendo, assim, a dizer quanto à qualificação dos factos, o mesmo acontece com a decisão sobre a relação de concurso entre todos os ilícitos, que, efectivamente, se verifica à luz do art.º 77º do CP e que, efectivamente, justifica a cumulação das correspondentes penas parcelares, a recordar, as de 6 anos de prisão – duas – e de 4 anos de prisão – também duas. 16. Figurada, então, a relação de concurso e necessária a determinação de uma pena única – art.º 77 n.º 1 do CP –, há-de esta ser de prisão, que o são todas as penas parcelares em presença – art.º 77º n.º 3, a contrario, do CP) – e encontrada no intervalo de 6 anos – mínimo correspondente a umas das mais graves das penas parcelares – e 21 anos – soma material de todas as penas, nos termos do art.º 77 n.º 2 do CP). A gravidade do ilícito global é muito acentuada: os crimes abuso sexual de crianças em presença são, todos, de criminalidade especialmente violenta na definição do art.º 1º al.ª l); o número de ilícitos – quatro – e já considerável, principalmente tendo em conta o curto período tempo – entre a Primavera e o Verão de 2019 – em que foram praticados; o grau de lesão do bem jurídico atingido – a liberdade de autodeterminação sexual do menor no enfoque do livre desenvolvimento da sua personalidade no plano sexual – é significativo em razão, de novo, do número de actos e da sua potencialidade ofensiva, tanto maior quanto menor a imaturidade da vítima, no caso, ainda na fase inicial da adolescência, nos critérios definidos pela Organização Mundial de Saúde6. A culpa, lato sensu, é, igualmente elevada, denotando a imagem global do facto firme e persistente intenção de delinquir. Na sua relação com a personalidade unitária do Recorrente, o conjunto dos factos, indiciando, ainda, (pluri)ocasionalidade, deixa no entanto adivinhar traços de tendência: regista três condenações anteriores por crimes de ofensa à integridade física simples, difamação e condução em estado de embriaguez em penas de multa que cumpriu; os episódios de agressão sexual por que aqui foi condenado indiciam inclinação para a prática de crimes sexuais na pessoa de menores, a ponto de os serviços de reinserção social terem aconselhado a sujeição dele «a intervenção técnica que contemple acompanhamento no âmbito da sexualidade». 17. Ora, num quadro, assim, de ilicitude significativa – a exigir decidida reafirmação por via da pena dos valores penais infringidos –, de resistência do arguido ao dever-ser jurídico penal e de indicação de alguma inclinação criminosa – a reclamar pena que efectivamente o reaproxime do respeito dos inerentes valores, mas do que não constitui bom prenúncio a circunstância, que, aliás patenteou neste recurso, de persistir numa atitude de desculpabilização e de falta de consciência crítica dos factos – e de culpa acentuada, bem se justifica uma pena única que, podendo ficar aquém da de 10 anos decretada, nunca poderá, de qualquer modo, afastar-se muito dela. Concretamente, e tendo fundamentalmente em atenção o significado que, em termos de prognóstico de ressocialização, podem ter os hábitos de trabalho que o Recorrente vem cultivando desde a sua juventude, o apoio de alguns familiares de que beneficia – mormente de dois dos filhos, já nãomuitolonge daidade adulta –e obomcomportamentoprisional que vemobservando, entende-se que uma pena única de 9 anos de prisão ainda satisfaz as exigências de prevenção e compatibiliza-se com a culpa. Pena essa que, necessária e proporcionada, aqui se decreta, nessa medida se alterando o Acórdão Recorrido e procedendo o recurso. III. DECISÃO. 18. Termos em que acordam os juízes desta 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso, condenando o Recorrente na pena única de 9 (nove) anos de prisão, mantendo-se em tudo o mais o Acórdão Recorrido. Sem custas. * Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP). * Supremo Tribunal de Justiça, em 25.2.2021. Eduardo Almeida Loureiro (Relator) António Gama _______________________________________________________ 1 Diploma a que pertencerão todos os preceitos que se vierem a citar sem menção de origem 2 Cfr. Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19.10.1995, in D.R. I-A , de 28.12.1995. 3 Figueiredo Dias, "Consequências Jurídicas do Crime", 1993, p. 291 e 292. 4 AcSTJ de 9.10.2019 - Proc. n.º 600/18.2JAPRT.P1.S1, in SASTJ. 5 Figueiredo Dias, "Temas Básicos de Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 105 e ss. 6 Fase entre os 10 e 19 anos, entre a infância e a idade adulta, conforme documento consultável em https://www.who.int/health-topics/adolescent-health#tab=tab_1.

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